Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2/2025, de 26 de Fevereiro
- Corpo emitente: Supremo Tribunal de Justiça
- Fonte: Diário da República n.º 40/2025, Série I de 2025-02-26
- Data: 2025-02-26
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Sumário
Texto do documento
Revista ampliada n.º 4368/22.0T8LRA.C1.S1.
Acordam, em Pleno das Secções Cíveis, no Supremo Tribunal de Justiça:
I - Relatório.
AA, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta e indivisa por óbito de seu pai, BB, instaurou, em 4 de Novembro de 2022, acção declarativa comum contra CC, DD, EE, P..., L.da, e FF e mulher, GG, pedindo, além do mais, que seja declarada a nulidade das vendas executivas efetuadas em 5 de Novembro de 2019 e 2 de Abril de 2021, aludidas na petição inicial, com a restituição do imóvel ao acervo hereditário, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 892.º, 289.º e 291.º, n.º 2, do Código Civil, e o cancelamento do registo das aludidas transmissões.
Devolvidas as cartas para citação dos Réus CC e DD, foram apresentados dois requerimentos que a agente de execução dirigiu à A. (datados de 5 de Janeiro de 2023 e 6 de Janeiro de 2023) para envio de importâncias a título de provisão (€ 150,06 + € 125,46) e com a advertência contida no artigo 721.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Apresentou a A. o seguinte requerimento, datado de 19 de Janeiro de 2023:
«1- Na sequência da frustração da citação por via postal de dois dos RR. nos presentes autos, CC e DD, foi determinada a nomeação para o efeito de agente de execução - cf. notificação de 28/11 (ref....20).
2 - Em consequência, veio a D. AE nomeada, Exm.ª Sr.ª Dr.ª HH, solicitar o pagamento de provisão, nos montantes de € 150,06 e € 125,46 (cf. notificações identificadas em epígrafe, de 05/01 e 06/01, respectivamente). Ora,
3 - Salvo melhor entendimento, tais despesas constituem encargos processuais, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea d) RCP, pelo que
4 - Se requer sejam tais encargos adiantados pelo IGFPJ, conforme prevê e permite o artigo 19.º, n.º 1 do mesmo Regulamento, uma vez que
5 - A A. litiga com benefício de protecção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos conforme decisão da SS junta com a PI, e sendo certo que
6 - Encontrando-se na situação de desempregada, a A. não tem, manifestamente, capacidade para fazer face a tais despesas - Doc. 1.
Sem prescindir e de qualquer modo,
6 - A A. irá providenciar pelo pedido de ampliação do benefício de protecção jurídica junto da SS, para abranger também a atribuição de AE, conforme comprovativo que se protesta juntar.
Termos em que se R. mui respeitosamente a V. Ex.ª se digne ordenar sejam os encargos decorrentes da nomeação de AE para efeitos de citação dos RR., pagos adiantadamente pelo IGFPJ, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 16.º, n.º 1, alínea d) e 19.º, n.º 1 do RCP».
Foi proferido, de seguida, o seguinte despacho, datado de 24 de Janeiro de 2023:
«(...) Atendendo a que a A. refere expressamente pretender solicitar à Segurança Social benefício de proteção jurídica na modalidade de agente de execução, aguardar-se-á, pois, por 30 dias a decisão daquela entidade. Caso naquele prazo nada seja comunicado ao processo a secção oficiosamente solicitará tal informação. E caso lhe seja atribuído A.E., competirá ao funcionário judicial a citação pessoal dos RR., com a eventual deprecada ao Juízo de Competência Genérica da... (relativamente a um dos RR). Assim, indefere-se o pedido para adiantamento de encargos ao A.E. nomeado, pois que, a ser atribuída tal modalidade, os atos de citação deverão ser feitos conforme acima referido por A.E. sem necessidade pois de qualquer adiantamento, quando o estado tem meios ao seu dispor para tal efeito, sendo certo que não estamos no âmbito de processo executivo onde é obrigatória a existência de agente de execução nos termos do artigo 720.º do CPC. (...)»
Em 26 de Janeiro de 2023, a A. veio dizer que a Segurança Social “considera não ser possível a pretensão de ampliação do benefício para atribuição de AE (Doc.1), pelo que deverão as diligências de citação serem efetuadas por oficial de justiça, conforme foi (...) determinado”.
Foi, então, proferido o despacho datado de 17 de Fevereiro de 2023 nos seguintes termos:
“(...) Ao contrário do referido pela A. em anterior despacho não se considerou que a citação deveria ser feita por funcionário judicial, outrossim se disse, e passa-se a citar:
“Atendendo a que a A. refere expressamente pretender solicitar à Segurança Social benefício de proteção jurídica na modalidade de agente de execução, aguardar-se-á, pois, por 30 dias a decisão daquela entidade. Caso naquele prazo nada seja comunicado ao processo a secção oficiosamente solicitará tal informação. E caso lhe seja atribuído A.E., competirá ao funcionário judicial a citação pessoal dos RR., com a eventual deprecada ao Juízo de Competência Genérica da... (relativamente a um dos RR). Assim, indefere-se o pedido para adiantamento de encargos ao A.E. nomeado, pois que, a ser atribuída tal modalidade, os actos de citação deverão ser feitos conforme acima referido por A.E. sem necessidade pois de qualquer adiantamento, quando o estado tem meios ao seu dispor para tal efeito, sendo certo que não estamos no âmbito de processo executivo onde é obrigatória a existência de agente de execução nos termos do artigo 720.º do CPC”.
O que estava em causa em anterior requerimento era o pedido da A. para que o Tribunal adiantasse os honorários da A.E. nomeada para efetuar a citação, tendo a A. em tal requerimento dito ainda, que iria solicitar a ampliação do apoio judiciário com a modalidade de atribuição de agente de execução.
E a A. fê-lo, tendo, contudo, a Segurança Social dito e cita-se novamente:
‘Pretendendo a requerente proteção jurídica para nova modalidade, deverá apresentar um novo requerimento de proteção jurídica no Centro Distrital do Instituto de Segurança Social, (o que poderá fazer por esta via e para esta caixa institucional-.), devidamente instruído com os elementos necessários à análise da sua atual situação socio-económica e profissional’.
Assim sendo, deverá a A. querendo requerer nova proteção jurídica com pedido de nova modalidade, a saber atribuição de A.E., e sendo este atribuído então sim quem praticará o ato de citação será o funcionário judicial.
Pelo exposto, e por ora, indefere-se o requerido, aguardando os autos o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC.
Notifique.»
O referido despacho foi notificado às partes, nomeadamente à A. na pessoa da sua mandatária, em 20 de Fevereiro de 2023.
Entretanto, em 28 de Fevereiro de 2023, a agente de execução veio informar que:
«[...] não tendo sido liquidado os honorários da signatária nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC, no prazo de 30 dias, contados da sua notificação, vão os respetivos autos ser arquivados.»
Por decisão de 4 de Setembro de 2023, foi proferido o seguinte despacho:
«(...) Atento o despacho proferido em 17.02.2023 sob a ref.ª ...20, mostrando-se decorrido o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1, do CPC, julgo deserta a instância.»
Foi interposto pela A. recurso de apelação.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Fevereiro de 2024 foi a apelação julgada improcedente, confirmando-se a decisão recorrida
Veio a A. interpor, agora, recurso de revista excepcional nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, apresentando as seguintes conclusões:
1.º) Em matéria de citação, impera a regra do princípio da oficiosidade (artigo 226.º do CPC), pelo que as diligências de citação não constituem um ónus que não possa ser suprido oficiosamente pelo tribunal (artigo 6.º, n.º 2 do CPC), não se verificando nesse caso a deserção da instância.
2.º) Além disso, o dever de gestão processual e de prevenção obrigaria, no caso vertente, que o despacho proferido em 04/09/2023 julgando deserta a instância, tivesse sido precedido de prévia advertência judicial, antes de terminado o prazo, ou permitindo-se que o ato fosse praticado dentro de um prazo adicional que o tribunal razoavelmente fixasse (artigo 6.º, n.º 1 CPC), ou sem que antes fosse assegurado o princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 CPC).
3.º) De resto, nem sequer é verdade, como refere o d. acórdão recorrido que a recorrente pudesse ter procedido ao pagamento da provisão à AE, dado que, como também ali se reconhece (cf. pág. 4), “a AE veio informar (em 28.02.2023) que “não tendo sido liquidado os honorários da signatária nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC, no prazo de 30 dias, contados da sua notificação, vão os respetivos autos ser arquivados.”.
4.º) A norma constante do atual artigo 281.º, n.º 1 do CPC deve ser interpretada em harmonia com um princípio geral do sistema jurídico que limite as consequências desvantajosas dos atos e omissões dos sujeitos de direito com o fim de lhes possibilitar ainda a efetivação dos seus direitos.
5.º) Acresce que, no caso em análise, não é suficientemente claro o despacho proferido pelo Juízo Central Cível da Comarca de... 17/02/2023 (transcrito na página 3 do acórdão recorrido), o qual - na sequência do pedido para realização da citação por funcionário judicial - refere que “por ora, indefere-se o requerido, aguardando os autos o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC”.
6.º) Ou seja, ao contrário do que refere o d. acórdão recorrido (ponto 8, pág. 9), tal despacho - ao utilizar a expressão “por ora indefere-se” - não constitui inequívoca advertência de que impendia sobre si o ónus de impulsionar os autos com vista à citação dos RR. e da possibilidade de deserção caso a Recorrente nada dissesse no prazo de seis meses.
7.º) Assim o Juízo Central Cível de... induziu em erro a Recorrente na pessoa da respetiva mandatária, não se verificando in casu a negligência a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC.
8.º) Tudo isto, aliado à importância e sensibilidade dos interesses em jogo na lide e à possibilidade de preclusão do direito da aqui recorrente pelo decurso de prazos substantivos e processuais (cf. supra, I-a) das presentes alegações), ao próprio valor dos encargos inerentes (já suportados pelas partes), imporiam decisão diversa da decisão surpresa proferida em 1.ª instância e mantida pelo tribunal a quo, à luz da função jurisdicional que a Constituição consagra do seu artigo 203.º, n.º 2 (tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos).
9.º) Seria insuportável para a boa administração da justiça que a instância sub iudice se extinguisse, tendo em conta que ficaria precludido o pedido principal formulado pela Recorrente (cf. ponto 1, pág. 1 do d. acórdão recorrido) por força do disposto no artigo 291.º do C. Civil (cf. tb Doc. 1), assim se sanando (pela 2.ª vez), a expropriação ilegal de que a recorrente foi vítima da casa de morada de família, decisão essa ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 62.º da C.R.Portuguesa.
10.º) A decisão recorrida fez incorreta interpretação e aplicação da norma constante do artigo 281.º, n.º 1 do CPC ao caso em apreço.
11.º) A manter-se a decisão recorrida serão violados os princípios do contraditório, da cooperação, da boa gestão processual e da adequação formal (artigos 3.º, 6.º, 7.º e 547.º, todos do CPC), assim como o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 203.º, n.º 1 da Constituição da República).
Não houve resposta.
Foi a revista excepcional admitida por acórdão da Formação datado de 5 de Junho de 2024.
Refere-se neste aresto:
“Nos presentes autos, na sequência de ter sido indeferido o pedido da Autora para que o Tribunal adiantasse os honorários do A.E. para efetuar citação, ficaram os autos a aguardar o impulso processual da autora, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
O acórdão recorrido entendeu que bem andou o Tribunal da 1.ª Instância ao declarar a deserção da instância, nos seguintes termos:
“8. Na situação em análise, por despacho de 17.02.2023, o Tribunal a quo advertiu as partes, porquanto, além de indeferir o requerido (pela 2.ª vez!), os autos ficaram a aguardar novo (e adequado) impulso, sem prejuízo do prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC, o que, para a A., representada pela sua Exma. Advogada, apenas poderia significar que, se nada dissesse no prazo de seis meses posterior ao decurso do período de suspensão, se consideraria existir negligência da sua parte no ónus de impulsionar processualmente os autos, o que daria lugar à extinção da instância por deserção, nos termos daquele normativo.
9 - Ante a demonstrada inação/inércia da A. - ao não promover o seguimento do processo, bem sabendo a consequência dessa atuação omissiva - não resta alternativa à afirmação da negligência na promoção do regular andamento dos autos, necessariamente relevante para efeitos de deserção da instância; acresce que não se verifica ou alega qualquer facto ou circunstância suscetível de integrar justo impedimento (artigo 140.º), e nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte.”.
Como foi considerado em acórdãos desta Formação de 28 de outubro de 2022 (Processo 18932/16.2T8LSB.L3.S2), de 10 de novembro de 2022 (Processo 19176/16.9T8LSB.L3.S2), de 14 de junho de 2023 (Processo 18860/16.1T8LSB.L2.S2) e de 7 de fevereiro de 2024 (Processo 86/22.7T8PTL.G1.S2) deteta-se alguma instabilidade da jurisprudência dos tribunais superiores a respeito da questão de saber qual o âmbito de intervenção do tribunal para aquilatar da negligência inerente à inatividade processual da parte sobre a qual recai o ónus de impulso processual para efeitos de decretamento da extinção da instância por deserção.
Como foi deixado escrito no mencionado acórdão da Formação de 10 de novembro de 2022, “perfilam-se, pois, arestos que, afirmando que a deserção da instância apenas pode ser declarada judicialmente no caso de se considerar negligente a falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daqueles sobre quem tal ónus impende, ressaltam que tal negligência não pode presumir-se da sua mera inatividade processual no decurso do prazo de seis meses. Salientam que o tribunal deve, assim, diligenciar, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente, conferindo contraditório às partes, especialmente àquela contra quem é dirigida a cominação da deserção, sob pena de violação do princípio do contraditório, causadora de nulidade processual se influir decisivamente na decisão da causa (cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-05-2020 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-09-2016).
Por outro lado, alinham-se acórdãos (que correspondem ao sentido prevalecente da jurisprudência deste STJ) que entendem que não compete ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência com vista a formular um juízo sobre a razão da sua inércia processual, considerando que a lei não impõe a realização de tal diligência e que negligência deverá ser avaliada em função dos elementos objetivos que resultarem do processo (cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 22-02-2018, relatado por Abrantes Geraldes, de 02-06-2020, relatado por Fernando Samões, de 20-04-2021, relatado por Pedro Lima Gonçalves e de 05-05-2022, relatado por Fátima Gomes).
Recentes acórdãos proferidos ao nível do segundo grau de jurisdição vêm colocando a tónica na necessidade de apreciação casuística das vicissitudes processuais para aferir se a parte teve conhecimento claro das consequências da sua inércia, sendo em função do juízo a formular nesta sede que se concluirá pela necessidade ou desnecessidade de conferir o contraditório prévio em exame (cf. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 07-11-2019 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-02-2021).”.
A flutuação jurisprudencial que se acabou de descrever confere à questão objeto de recurso relevância jurídica numa matéria que, ainda que não complexa, justifica, em linha com o entendimento recente desta Formação, que o Supremo Tribunal de Justiça dispense ao tema, uma vez mais, um derradeiro tratamento clarificador e liderante.
Tudo visto, concluímos pela admissibilidade da revista excecional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, ficando, assim, prejudicada a apreciação do fundamento decorrente das invocadas alíneas b) e c) do mesmo normativo, uma vez que a admissibilidade da revista excecional se basta com o preenchimento de um dos pressupostos contidos na n.º 1 da sobredita disposição.”.
Pelo Juiz Conselheiro relator, ao abrigo do disposto no artigo 686.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, foi proposto que o julgamento da presente revista se fizesse na forma ampliada, com intervenção do Pleno das Secções Cíveis, o que foi deferido por decisão do Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 8 de Julho de 2024.
Aberta vista ao Ministério Público, foi emitido parecer no qual se concluiu:
“1 - A autora foi advertida de que a falta de impulso processual por mais de 6 meses teria como consequência a deserção da instância, nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do CPC, através do despacho judicial de 17-02-2023;
2 - Diferentemente do que sucedeu no caso sobre o qual decidiu o acórdão fundamento, no qual não foi proferido esse despacho de advertência;
3 - A autora nada requereu relativamente ao andamento dos autos por mais de 6 meses;
4 - Essa omissão de impulso processual é imputável, por negligência, à autora;
5 - O Tribunal nada mais estava obrigado a fazer a não ser declarar a deserção da instância.
Afigura-se, assim, que a pretensão da recorrente não merece provimento.
O Ministério Público emite, assim, parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido”.
II - FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra:
III - QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 - A figura da deserção da instância. Breve referência à sua evolução histórica no ordenamento processual português.
2 - Pressupostos legais necessários para o decretamento da deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2. 1. - O conceito de negligência processual relevante para efeitos de deserção da instância.
2. 2. - A prévia audiência da parte.
3 - Análise do caso concreto.
Passemos à sua análise:
1 - A figura da deserção da instância. Breve referência à sua evolução histórica no ordenamento processual português.
O Código de Processo Civil de 1939, aprovado pelo Decreto-Lei 29637, publicado no Diário do Governo 1.ª série, n.º 123, de 28 de Maio de 1939, consagrou inovatoriamente a figura da deserção da instância, o que fez por razões pragmáticas tendo em vista evitar que os processos ficassem indefinidamente pendentes após haver sido declarada a interrupção da instância.
Assim, ultrapassado que fosse o prazo de interrupção da instância (um ano e um dia) em virtude da inércia das partes em promover o impulso processual e se a situação se mantivesse durante o período de cinco anos verificava-se a sua deserção e consequente extinção, com o arquivamento dos autos (artigos 290.º e 296.º).
Todavia, a deserção da instância tinha de ser declarada pelo juiz sendo-lhe os autos conclusos para o efeito (artigo 296.º).
O Decreto-Lei 44129 publicado no Diário do Governo, 1.ª série n.º 299, em 28 de Dezembro de 1961, aprovou o novo Código de Processo Civil que, em matéria de deserção da instância, não alterou sensivelmente o regime pretérito.
A instância considerava-se interrompida desde que os autos estivessem parados durante mais de um ano por inércia da parte em promover os seus termos ou de qualquer incidente deles dependente (artigo 285.º, n.º 1).
Se a paragem dos autos se prolongasse por cinco anos, devido a estas circunstâncias, a instância era considerada deserta.
Porém, é dispensada agora a obrigatoriedade de prolação de despacho judicial (artigo 291.º).
Com a reforma introduzida pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, o período para a deserção da instância foi reduzido para dois anos, mantendo-se a desnecessidade de qualquer despacho judicial a declará-la (cf. artigo 291.º, n.º 1, onde se refere “Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos”).
Finalmente, através das alterações promovidas pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou formalmente o Novo Código de Processo Civil, o seu regime é profundamente reformulado.
Elimina-se a figura da interrupção da instância, passando a lei a prever exclusivamente a sua deserção, o que se verificará quando, por negligência das partes, o processo estiver a aguardar impulso processual há mais de seis meses (artigo 281.º, n.º 1).
O que significa que a declaração de deserção da instância - na acção declarativa que não na executiva (cf. n.º 5 do artigo 281.º) - obriga de novo à prolação de despacho judicial onde sejam devidamente analisados, valorados e fundamentados os seus pressupostos.
Esta evolução legislativa evidencia claramente o desígnio da promoção da celeridade processual, da diminuição das pendências e a inerente libertação de recursos humanos, fomentando-se ainda, com particular ênfase, a maior auto-responsabilidade das partes no desenvolvimento proactivo da instância.
Manifesta-se desta forma a especial preocupação com a salvaguarda do interesse, de natureza pública, do regular funcionamento dos serviços judiciais, com racionalização de meios e adequada gestão processual, eliminando-se delongas evitáveis, impertinentes e injustificadas, mormente as que resultam (causalmente) da violação pelas partes dos seus deveres de cooperação e diligência.
Ou seja, visa-se agora a celeridade e agilização processual, sendo que a desejável dinâmica dos seus trâmites pressupõe a respectiva movimentação dentro dos ritmos processuais pré-estabelecidos, não se concebendo que, perante a inércia do interessado em promover o impulso que lhe cabe, os processos fiquem nas secretarias judiciais em estado de inútil latência por um período temporal tido por não razoável.
O funcionamento da máquina judiciária, tendo em conta os elevados custos que acarreta para a comunidade e a necessidade de afirmação do seu próprio prestígio institucional, não se compadece com incompreensíveis posturas de desinteresse, desatenção ou desleixo na prossecução dos termos processuais, imputáveis àqueles que, no domínio dos direitos privatísticos, deveriam ser os primeiros - por especialmente interessados no desfecho da lide que voluntariamente encetaram - a preocuparem-se proactivamente com o seu desenvolvimento, com vista a alcançar-se uma composição do pleito em tempo útil, adequado e razoável.
Trata-se, no fundo, de uma questão de natureza pragmática tal como, de resto, a figura da deserção da instância foi primitivamente concebida no Código de Processo Civil de 1939, aprovado pelo Decreto-Lei 29637, publicado no Diário do Governo 1.ª série, n.º 123, de 28 de Maio de 1939.
De todo o modo, a deserção da instância na acção declarativa implicará necessariamente a apreciação e valoração jurisdicional, caso a caso, do comportamento omissivo das partes, sendo mister concluir-se que foi devido a tal postura negativa que o processo se manteve sem andamento algum durante o lapso temporal legalmente exigido (seis meses e um dia).
Acrescente-se, ainda, que nos encontramos apenas perante a produção de um efeito exclusivamente processual - a extinção da instância - que deixa, contudo, intocado, no plano substantivo, o direito que a parte pretendia fazer valer através da acção judicial que instaurou, o qual não se extingue nem modifica desta forma (sem prejuízo dos efeitos autónomos associados ao possível funcionamento do instituto da prescrição, o que não tem a ver com a figura da deserção da instância).
(Sobre esta matéria, vide, entre outros, Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Volume II (artigos 264.º a 466.º), 3.ª Edição, Lisboa 2000, a páginas 62 a 67; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1.º a 702.º”, Almedina 2020, 2.ª edição, páginas 347 a 350; Paulo Ramos de Faria in “O julgamento da deserção da instância declarativa”, in Revista Julgar Online, 2015; Francisco Ferreira de Almeida, in “Direito Processual Civil”, Volume I, Almedina 2019, 3.ª edição, a páginas 753 a 756; acórdão do Tribunal Constitucional n.º 604/2014, de 14 de Novembro de 2018 (relator Lino Ribeiro), publicado in tribunalconstitucional.pt.).
2 - Pressupostos legais necessários para o decretamento da deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2. 1. - O conceito de negligência processual relevante para efeitos de deserção da instância.
Dispõe o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
“Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A decisão judicial que declara a instância deserta e, nessa medida, extinta nos termos dos artigos 281.º, n.º 1, e 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial a negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende esse ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.
Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual - extinção da instância por efeito de deserção - a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto (mais de seis meses consecutivos).
Exige-se ainda, como conditio sine qua non, que esse imobilismo seja devido à injustificada inércia da parte a quem cabe o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.
Ou seja, é absolutamente essencial para a declaração de deserção da instância que, em virtude da existência de disposição legal donde resulta o ónus de impulso processual e pela forma como o tribunal lhe comunica, de forma clara, directa e inequívoca, essa necessidade processual de agir, a parte tivesse ou devesse ter o necessário conhecimento, nesse particular circunstancialismo, de que o processo só poderia prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizesse, a instância caminharia inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cf. artigos 7.º, n.º 1, e 8.º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do acto processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu.
Assim sendo, o tribunal apenas pode declarar a extinção da instância por deserção quando dispuser dos elementos que lhe permitam concluir, com inteira segurança, que deve fundar-se na rigorosa e atenta análise dos autos, que existiu de facto negligência em promover o seu impulso, exclusivamente imputável à parte interessada, a qual estava sujeita aos efeitos decorrentes dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade que vigoram no direito processual civil.
Logo, e como se disse, é absolutamente decisivo para que seja legalmente possível declarar a deserção da instância a prévia e detalhada análise do circunstancialismo próprio e singular de cada situação processual concreta.
Neste sentido, constituirá elemento especialmente importante, e que poderá conduzir à conclusão de que existiu, ou não, negligência da parte em promover o impulso processual, a forma como se expressou o despacho que a interpela e adverte a realizar o acto que lhe incumbia, onde deverão constar ainda, expressamente, as consequências processuais associadas (em concreto a cominação da extinção da instância por deserção por efeito da dita inércia).
Não será ainda despicienda, na análise do caso concreto, a circunstância de a parte se encontrar devidamente assistida por advogado, o qual, enquanto profissional especialista em matéria jurídica, se encontrava naturalmente habilitado a entender o verdadeiro sentido e alcance da notificação realizada nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, competindo-lhe agir em conformidade.
Importa outrossim salientar que a negligência processual relevante para que possa vir a ser declarada, pelo juiz da causa, a deserção da instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pressupõe sempre que, no caso concreto, compita exclusivamente à parte o ónus do impulso processual e que o não cumpra pelo período de mais de seis meses consecutivos, com a inerente e consequente paragem dos autos nessas circunstâncias temporais.
Ou seja, é mister que o acto que importa praticar (e que terá sido omitido) não se situe na esfera de competência dos poderes/deveres oficiosos do juiz, designadamente por via do exercício do dever de gestão processual, integrando a obrigação de direcção e condução dos autos de que é o titular (cf. artigo 6.º, n.os 1 e 2, e 7.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), que lhe estão legalmente cometidos, sendo certo que neste último caso a eventual inércia da parte quanto ao impulso processual não relevará para efeitos do funcionamento do instituto da deserção da instância.
(Sobre esta temática, e versando uma situação em que, não obstante a notificação da parte nos termos e para os efeitos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, concluiu-se inexistir negligência da parte em promover o impulso processual por competir, ao invés, ao juiz da causa ordenar oficiosamente o seu normal e célere prosseguimento, nos termos gerais do artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 2024 (relator Fernando Baptista), proferido no processo 4141/18.0T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.).
2. 2. - A prévia audiência da parte.
Coloca-se ainda, no âmbito da presente revista ampliada, a questão essencial de saber se a decisão judicial que declara a extinção da instância terá de ser sempre, em termos imperativos e necessários, antecedida da notificação da parte interessada para que esta possa alegar o que tiver por conveniente, em obediência ao princípio geral consignado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Afirmando que não deve o juiz decretar a deserção da instância sem ouvir previamente a parte vide João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in “Manual de Processo Civil” Volume I, AAFDL Editora 2022, a página 586; Miguel Teixeira de Sousa em artigo publicado no Blog do Instituto Português do Processo Civil (IPPC), em 27 de Janeiro de 2023, Jurisprudência 75; Lebre de Freitas in “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência da parte”, publicado in Revista da Ordem dos Advogados, Volume 78, n.º 1 (2018), páginas 191 a 199; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina, Janeiro 2021, 4.ª edição, a página 572.
Sobre esta mesma questão referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1.º a 702.º”, 2.ª edição, Almedina 2020, a página 350:
“Em suma, diremos que, quando não se suscitem dúvidas sobre a necessidade de impulso processual ou sobre as consequências da inércia da parte, a deserção da instância dever ser declarada a partir da mera observação dos elementos conferidos pelos autos. Mas cuidado há que ter nas situações em que a identificação, a incidência ou a exigência de impulso processual não sejam evidentes ou quando sejam equívocas as consequências decorrentes da inércia, a justificar um sinal mais solene da existência do ónus e/ou dos efeitos extraídos do seu incumprimento. Não devem, de todo, ser adoptados comportamentos contraditórios violadores das regras de confiança, como se decidiu em STJ 14-5-19, 3422/15”.
No sentido da inexistência do dever e da obrigatoriedade de audiência prévia da parte interessada - pelo menos na generalidade das situações - tem-se pronunciado a larga e firme maioria dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que versou, ao longo dos anos, sobre esta questão.
Sobre esta temática, vide:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2017 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo 728/08.9TBSSB.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2021 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo 27911/18.4T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 (relator Salazar Casanova), proferido no processo 105/14.0TVLSB.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2015 (relator Salazar Casanova), proferido no processo 955/10.7TBVVD.G1.S1, não publicado.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2017 (relator Júlio Gomes), proferido no processo 1572/07.4TBCTX.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016 (relator José Rainho), proferido no processo 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2018 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo 473/14.4T8SCR.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2023 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo 19176/16.9T8LSB.L3.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Fevereiro de 2020 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo 21005/15.1T8PRT.P1.S1, não publicado.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo 1652/16.5T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2021 (relator Acácio das Neves), proferido no processo 3820/17.3T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 2023 (relator Afonso Henrique), proferido no processo 18860/16.1T8LSB.L2.S1.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2023 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo 1783/17.4T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2023 (relatora Ana Paula Lobo), proferido no processo 19315/16.0T8LSB.L2.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2023 (relatora Ana Paula Lobo), proferido no processo 543/18.0T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2023 (relator Jorge Dias), proferido no processo 18932/16.2T8LSB.L3.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2020 (relator Fernando Samões), proferido no processo 139/15.8T8FAF.G1.S1, publicado in ECLI.pt,
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (relator Sousa Lameira), proferido no processo 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2018 (relator Hélder Almeida), proferido no processo 5314/05.0TBLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.,
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2018 (relatora Rosa Tching), proferido no processo 225/15.4T8VNG-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Afirmando a necessidade de, no caso concreto sobre que versou e dadas as suas particulares especificidades, proceder à audiência prévia das partes, considerando por isso inválido o despacho que declarou a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vide:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2018 (relator Henrique Araújo), proferido no processo 3368/06.1TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt., e
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 2017 (relator Távora Victor), proferido no processo 56277/09.1YIPRT.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Por outro lado, no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2024 (relatora Teresa Albuquerque), proferido no processo 12756/22.5T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, concluiu-se que:
“Desde o momento em que o despacho em causa deu conhecimento preciso ao autor do ónus de impulso processual e das consequências da respectiva inércia, sem que este tenha dele interposto recurso no referente ao segmento que fazia iniciar o prazo dos seis meses da data em que lhe fora notificada a contestação, e sem que tenha feito valer nos autos posição contrária, estava o mesmo obrigado a conformar a sua actuação processual em função desse despacho, impulsionando o processo com a demonstração do pedido de registo nos seis meses subsequentes ao da sua notificação da contestação, e não, nos seis meses subsequentes ao da data da notificação do acima referido despacho.
Neste contexto, tendo o autor tido conhecimento inequívoco da causa e das consequências da sua inércia, basta para a afirmação da sua negligência, a evidenciada e patenteada nos autos (negligência aparente ou processual)”.
Sobre o mesmo tema, pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 2024 (relator Luís Correia de Mendonça), proferido no processo 86/22.7T8PTL.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt. onde concluiu, para além do mais, que:
“[...] A norma vincula o juiz à prévia audição das partes quando tiver de «decidir questões de direito ou de facto» o que abrange todas as decisões, qualquer que seja a sua forma, mediante as quais o juiz toma conhecimento ou decide de uma questão, de um incidente ou de uma causa, desde que verificados os demais condicionalismos legalmente exigidos.
Neste artigo 3.º, 3 o termo questão refere-se aos temas de decisão que podem ser objecto de uma pronúncia por parte do juiz, seja ela de facto ou de direito, de natureza substancial ou processual, não abrangendo, porém, os meros motivos, argumentos, considerações ou juízos de valor constantes dos fundamentos da decisão.
Maioritariamente, as questões que devem ser previamente sujeitas ao contraditório prévio, são as questões de direito e de entre estas as que são de conhecimento oficioso.
Não há dúvida que a decisão que decreta a extinção da instância por deserção preenche estes elementos da referida factispecie abstracta.
Mas, em contrapartida e ao contrário do que defende o recorrente, o tribunal não está obrigado, aquando do despacho de interrupção da instância, a advertir a parte de que a sua inacção durante seis meses e um dia importará a deserção.
Estamos, quanto a esta interrupção, diante de uma vicissitude prevista na lei, sujeita a determinados pressupostos, cuja verificação, essa sim, está sujeita a prévia audição da parte, não estando em lado algum previsto um dever assistencial do juiz em ordem a avisá-lo das consequências jurídicas da sua inacção, bem sabidas, aliás, de qualquer advogado que patrocine diligentemente a causa.
[...] Não se pode, à luz do artigo 3.º, 3, proferir despacho a declarar extinta a instância sem previamente ouvir a parte”.
Cumpre tomar posição.
O princípio do contraditório constitui indiscutivelmente pedra angular no nosso panorama processual civil.
Conforme salienta Rui Pinto in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina 2018, a página 39:
“A garantia do processo equitativo do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa implica que a medida de tutela final seja produzida com a participação dos titulares da relação litigiosa, como sucede, aliás, com toda a actividade do Estado que interfira com os direitos dos cidadãos.
Num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias”.
Não é, portanto, minimamente questionável a sua importância absolutamente fulcral e decisiva para que a lide possa processar-se de forma justa e equitativa, enquanto configuração prática do direito das partes à tutela jurisdicional efectiva.
Daqui não resulta, porém, que exista fundamento legal para obrigar o juiz, antes de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e sempre que a questão se suscite, a cumprir invariavelmente o contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, através da prévia audiência das partes.
Nenhuma norma ou princípio processual especificamente o impõe para todas e cada uma das situações, mormente face à sua clara e inequívoca desnecessidade no caso concreto.
(Diga-se, aliás e a este propósito, que no âmbito da acção executiva, e nos termos do n.º 5 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, a deserção da instância não é sequer declarada pelo juiz, o que significa a afirmação da desnecessidade de audiência prévia das partes (enquanto regra) nesse momento - o da deserção - em todos os processos desta natureza).
Com efeito, a negligência processual relevante para a deserção da instância pode e deve estar necessariamente espelhada, em termos claros e inequívocos, na própria tramitação processual e na sua singular conformidade com quadro legal aplicável, cuja análise permitirá, com a necessária segurança, concluir que a parte tinha (ou devia ter) naquele caso concreto a consciência de que os autos se encontravam parados à espera da prática do acto processual que lhe competia, tendo ainda a mesma a noção segura e efectiva dos efeitos processuais associados à sua eventual e futura inércia.
Ou seja, constitui pressuposto essencial deste instituto o juízo extraído pelo tribunal no sentido de que, com base no que é concretamente revelado pela análise detalhada da tramitação processual e pela atenta e rigorosa tomada em consideração do regime jurídico aplicável ao caso concreto, a parte estava (ou deveria estar naquelas circunstâncias específicas e peculiares) perfeitamente ciente da sua obrigação de agir (não o fazendo), num domínio em que imperam os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade.
Assim, assente nestes particulares pressupostos, afrontará o princípio da economia processual expresso no artigo 130.º do Código de Processo Civil pretender artificialmente acrescentar, em todos os casos, sistematicamente, uma nova obrigação processual adicional não prevista normativamente - a obrigatoriedade incontornável da audiência da parte antes da prolação do despacho de deserção da instância (cujos pressupostos devem resultar afinal, com segurança e em termos absolutamente objectivos, da simples leitura dos autos, desde que devidamente conjugada com a aplicação das normas legais pertinentes) - e que, uma vez não observada, fulminaria inexoravelmente a decisão judicial com o vício de nulidade (artigo 195.º do Código de Processo Civil).
Importa, portanto, afastar o entendimento de que, em todas as situações processuais que tenham a ver com a possibilidade de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a ausência da prévia audiência da parte interessada redundaria invariavelmente na violação dos princípios do contraditório e da proibição de decisões surpresa consignados no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Desde logo, na medida em que sendo exigível para a verificação da negligência processual relevante o conhecimento (ou dever do conhecimento) da parte relativamente à obrigatoriedade da prática do acto processual em falta e à consciência da consequência legal associada, os seus direitos de defesa neste tocante encontram-se já, por sua natureza, devida e inteiramente salvaguardados, não sendo razoável invocar-se a obrigatoriedade de concessão de nova oportunidade para que esta - que se concluiu, de forma absolutamente clara e inequívoca, haver falhado o dever processual a que se encontrava especialmente adstrita - se pronunciasse sobre aquilo que já antes bem sabia ou que, actuando diligentemente, deveria necessariamente saber.
Contrariando a pretensa imperatividade, indiferenciadamente e em todos os casos, da sua audiência prévia para assegurar o exercício do contraditório, nos termos gerais do artigo 3.º, n.º 3, do Código Civil, dir-se-á igualmente:
- ou a parte poderia não ter (ou não deveria ter) no caso concreto consciência e total segurança quanto à sua obrigação de agir processual e, então, justifica-se nessas circunstâncias que fosse ouvida, designadamente para poder afirmar que não se encontrava numa situação de negligência relevante para a declaração de extinção da instância por deserção;
- ou, pelo contrário, se existe de facto devidamente comprovado no processo esse mesmo conhecimento, em termos claros e inequívocos, face ao regime jurídico aplicável que estabelecia indubitavelmente essa sua obrigação de agir, perante um tão impactante silêncio omissivo por mais de seis meses, torna-se difícil de compreender e aceitar, em termos de razoabilidade e da eficácia do funcionamento da própria instituição judiciária, bem como da racionalidade e economia na utilização dos meios ao seu dispor, a exigência da obrigação processual imposta ao tribunal de indagar junto da própria parte (faltosa) acerca das hipotéticas razões pelas quais, afinal de contas, sendo a especial interessada no expedito andamento dos autos, permaneceu silenciosa e inerte durante tão longo período temporal.
Assim sendo, inexiste nestas circunstâncias qualquer tipo de prolação de decisão surpresa proibida pelos princípios gerais do contraditório e da tutela da confiança.
Exigindo-se, nesses termos e para este concreto efeito, que a parte tivesse consciência da obrigação da prática do acto processual e da consequência da sua inércia pelo prazo (mais de seis meses) legalmente fixado, não fará, em princípio, sentido considerar que a mesma, nada tendo, entretanto, feito no processo - como especialmente lhe competia -, não pudesse razoavelmente contar com o desfecho (esperado e não surpreendente) para o qual, há longos seis meses, havia sido expressamente advertida e de que ficara naturalmente ciente.
Note-se, ainda, que se encontra, em qualquer circunstância e em ultima ratio, salvaguardada a livre possibilidade de impugnação judicial por via de recurso nos termos gerais contra os fundamentos (de facto e de direito) do despacho que declara a deserção da instância - onde aí sim poderá livremente questionar o respaldo jurídico que esteve na base da declaração judicial de deserção da instância -, bem como a livre invocação do instituto do justo impedimento previsto no artigo 140.º do Código de Processo Civil, com a demonstração dos correspondentes (e exigentes) requisitos legais.
Encontramo-nos perante um instituto jurídico e processual - a deserção da instância - motivado por razões puramente pragmáticas, já assinaladas supra, que não retiram, no plano substantivo, o direito que assistirá às partes, uma vez despertadas da letargia que as assolou nesta instância, de interporem nova acção judicial em que, com a diligência, atenção e cooperação devidos, poderão fazer valer em juízo as pretensões que deixaram cair na anterior.
O que significa basicamente, e em termos práticos, que ao decidir julgar deserta a instância deverá, em princípio, haver lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia das partes, desde que a parte interessada não devesse ter conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de notificação oportunamente realizada, que o processo aguardaria o seu impulso processual sob tal cominação.
(Sufraga-se, desta forma e inteiramente, a corrente jurisprudencial consolidada e firme do Supremo Tribunal de Justiça de que se deu notícia supra e à qual se adere sem dúvidas ou hesitações).
Atente-se, a título de exemplo paradigmático, no caso típico da suspensão da instância por falecimento da parte em conformidade com o disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
O despacho do juiz declarando a suspensão da instância é notificado à parte, aguardando os autos pela promoção do incidente de habilitação que permitirá fazer cessar a suspensão nos termos gerais do artigo 276.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
A parte tem, ou deverá ter, neste contexto, a perfeita consciência de que, força do regime jurídico aplicável, deverá impulsionar nos autos o incidente de habilitação nos termos gerais do artigo 351.º do Código de Processo Civil.
Se nada faz no processo, passados seis meses e um dia, o juiz deverá desde logo julgar deserta a instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sem qualquer necessidade de exercício do contraditório que, neste circunstancialismo, deixa de ser justificável.
É o que se passa também quando o autor é notificado para proceder ao registo da acção em conformidade com o disposto no artigo 9.º do Código de Registo Comercial, declarando-se que a instância fica suspensa, e após o período de seis meses e um dia nada fez no processo que justificasse o levantamento da suspensão, mormente a prova do registo ou a prossecução de diligências tendentes a esse efeito.
Há aqui também fundamento para declarar a deserção da instância sem necessidade de audiência prévia das partes, por totalmente desnecessária.
Como pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2018 (relatora Rosa Tching), proferido no processo 225/15.4T8VNG-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt:
«Mas a verdade, é que, no caso dos autos, não se descortina a necessidade de a referida notificação ser acompanhada da advertência de que a inércia do autor na realização do registo da ação e respetiva comprovação por mais de 6 meses determinaria a deserção da instância.
Desde logo porque, tendo sido notificado às partes, designadamente ao mandatário do autor, o despacho de suspensão da instância para efeitos de o autor proceder ao registo da presente ação, não só se tornou bem claro ser, exclusivo, ónus do autor providenciar pela feitura desse registo como o mesmo não podia deixar de saber, até porque está representado por advogado, que, em face da decretada suspensão da instância com o dito fundamento, teria que demonstrar a realização do referido registo dentro do prazo de seis meses estabelecido no art. 281.º, n.º 1 do CPC, a fim de impulsionar o andamento dos autos antes de decorrido este mesmo prazo, sem prejuízo de, justificadamente alegar e provar que, não foi possível fazê-lo sem culpa/ negligência.
[...] E ainda porque «o princípio do contraditório tem em vista questões de facto ou de direito que sejam suscitadas no processo, impondo-se ao Tribunal decidi-las, não tem em vista, o que é completamente diferente, impor ao Tribunal, no âmbito de um incidente inominado que não está previsto na lei, convidar os interessados que, no aludido período de seis meses optaram por não juntar aos autos nenhum documento nem suscitar qualquer questão, explicar o seu comportamento ou apresentar os documentos ou suscitar as questões que podiam ter suscitado e não suscitaram.»
O mesmo sucede em todas as outras situações em que determinada disposição legal imponha expressamente à parte essa obrigação de agir - que esta conhecia ou deveria conhecer agindo com a diligência devida - e em que a mesma se remete, não obstante, à total inércia, não promovendo a diligência que lhe competia desenvolver durante um período temporal superior a seis meses.
Aceita-se, em contrapartida, que existam situações em que não seja apreensível pela parte interessada o referido dever de agir ou em que não lhe tenha sido devidamente transmitida, de forma absolutamente clara e inequívoca, a obrigação/exigência da prática do acto processual em causa, bem como a perfeita noção das gravosas consequências que lhe estariam causalmente associadas.
Nesses casos, em que, como conforme se refere na obra citada supra (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1.º a 702.º”, 2.ª edição, Almedina 2020, a página 350) “a identificação, a incidência ou a exigência de impulso processual não sejam evidentes ou quando sejam e equívocas as consequências decorrentes da inércia”, competirá então ao juiz, neste pressuposto, prosseguindo de forma equilibrada, curial e razoável o prevalente desiderato da completa dilucidação e transparência dos contornos processuais em causa, ordenar a notificação prévia da parte com vista ao exercício do contraditório que nessas especiais circunstâncias se impõe.
Conforme judiciosamente refere Paulo Ramos de Faria in «O julgamento da deserção da instância declarativa», in Revista Julgar Online, 2015:
«[...] não se poderá dizer, sem mais, que devem as partes ser ouvidas depois de se verificarem os pressupostos da deserção, mas antes do seu julgamento. Tudo dependerá do caso concreto - mihi factum dado tibi jus -, isto é, do grau de satisfação pelo tribunal, do princípio da cooperação, do dever de prevenção e do dever de gestão processual, antes de se ter completado o prazo da deserção. O mais que se poderá dizer é que, quando estes princípios e deveres não tenham sido satisfeitos, não se podendo concluir que o demandante foi esclarecido, deve ser oferecido o contraditório prévio à decisão.»
Ou seja, há desnecessidade da prévia audiência das partes na generalidade das situações que assentem nos pressupostos que se deixaram consignados (juízo de segurança - em termos jurídicos - de que competia efectivamente à parte, face ao quadro legal aplicável, o dever de impulso processual, e/ou comunicação pelo tribunal, em termos adequados e inequívocos, quanto à exigência da movimentação dos autos sob pena de poder vir a ser decretada a extinção da instância por deserção ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Por exclusão de partes, em todos os outros casos, o juiz deverá ouvir previamente as partes no âmbito do exercício do contraditório.
Diga-se, finalmente, que, seguindo os princípios do equilíbrio, moderação e adequação, assentes no poder/dever de uma gestão processual ponderada, aberta e equitativa, em termos da sua direcção e condução proactivas e cooperantes, e principalmente tendo em consideração a necessidade de reforço do princípio fundamental da confiança, há que atender às situações que, pelos seus contornos específicos de menor clareza ou mesmo de alguma indisfarçável obscuridade ou ambiguidade, justifiquem, de forma particular, essa mesma audiência prévia.
3 - Análise do caso concreto.
A situação sub judice pode descrever, em súmula, nos seguintes termos:
1.º - Aquando da citação de dois RR., cujas cartas registadas com aviso de recepção vieram devolvidas, o agente de execução solicitou a inerente provisão de custos à A.
2.º - Esta, beneficiando de apoio judiciário, pediu ao Centro Distrital do Instituto de Segurança Social, uma ampliação do apoio com vista a englobar nele os honorários do agente de execução.
3.º - O Centro Distrital do Instituto de Segurança Social respondeu-lhe que deveria renovar o seu pedido, agora com esse (novo) alcance.
4.º - A A. pediu ao juiz de 1.ª instância que a citação se realizasse por oficial judicial, entendendo que o seu pedido junto do Centro Distrital do Instituto de Segurança Social havia sido indeferido.
5.º - O tribunal notificou então a A. para “querendo requerer nova proteção jurídica com pedido de nova modalidade, a saber atribuição de A.E., e sendo este atribuído então sim quem praticará o ato de citação será o funcionário judicial.
E acrescentou:
«Pelo exposto, e por ora, indefere-se o requerido, aguardando os autos o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC».
6.º - Em 28 de Fevereiro de 2023 a agente de execução informou o tribunal que “não tendo sido liquidado os honorários da signatária nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC, no prazo de 30 dias, contados da sua notificação, vão os respetivos autos ser arquivados.”.
Apreciando:
A situação em análise situa-se em plena fase de citação dos RR., cujas cartas para citação de dois deles vieram devolvidas.
Ora, neste especial domínio processual e face ao requerimento apresentado pela A. no sentido de que a citação se fizesse através de oficial judicial por não conseguir suportar o pagamento de provisão exigido pelo agente de execução nomeado, competia ao tribunal fazer o uso devido dos seus poderes/deveres de gestão processual, que integram os de condução e direcção do processo de que é titular, estabelecidos nos artigos 6.º e 7.º do Código de Processo Civil, removendo proactivamente os obstáculos que se colocavam à efectivação da citação dos ditos RR. e providenciando assim pelo andamento célere, expedito e regular da lide.
(Conforme salientava Alberto dos Reis in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, 1946, a página 3:
“O ónus processual não consiste unicamente na necessidade que tem o autor de propor a acção em juízo; proposta a acção, o ónus continua a fazer sentir o seu peso, porque é principalmente às partes que cumpre, em cada momento, exercer a actividade processual necessária para que o processo siga os seus termos e atinja a sua finalidade.
[...] Não se suponha, porém, que o juiz se limita a receber o impulso dado pelas partes. O conceito de inércia e passividade do magistrado fez o seu tempo.
[...] A análise atenta das disposições do Código permite afirmar que a ideia-mestra que presidiu à sua arquitectura foi esta: investir o juiz dos poderes necessários para dirigir realmente o processo em cada uma das suas fases.
Pretendeu-se que o órgão jurisdicional tivesse não só a direcção formal, senão também a direcção real e efectiva do litígio; e não se hesitou em pôr na mão do magistrado os poderes indispensáveis para esse desideratum”).
Conforme é enfatizado nas alegações de recurso:
“Em matéria de citação, impera a regra do princípio da oficiosidade (artigo 226.º do CPC), pelo que as diligências de citação não constituem um ónus que não possa ser suprido oficiosamente pelo tribunal (artigo 6.º, n.º 2 do CPC), não se verificando nesse caso a deserção da instância.
[...] nem sequer é verdade, como refere o acórdão recorrido que a recorrente pudesse ter procedido ao pagamento da provisão à AE, dado que, como também ali se reconhece (cf. pág. 4), “a AE veio informar (em 28.02.2023) que “não tendo sido liquidado os honorários da signatária nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC, no prazo de 30 dias, contados da sua notificação, vão os respetivos autos ser arquivados.”.
A norma constante do atual artigo 281.º, n.º 1 do CPC deve ser interpretada em harmonia com um princípio geral do sistema jurídico que limite as consequências desvantajosas dos atos e omissões dos sujeitos de direito com o fim de lhes possibilitar ainda a efetivação dos seus direitos.
Acresce que, no caso em análise, não é suficientemente claro o despacho proferido pelo Juízo Central Cível da Comarca de Leiria 17/02/2023 (transcrito na página 3 do acórdão recorrido), o qual - na sequência do pedido para realização da citação por funcionário judicial - refere que “por ora, indefere-se o requerido, aguardando os autos o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1 do CPC”.
Adiantamos, desde já, que se nos afigura assistir inteira razão à recorrente na medida em que o indeferimento constante do despacho proferido em 17 de Fevereiro de 2023, no que concerne à realização da citação em falta, revestiu, nos próprios e exactos termos do despacho em causa, natureza assumidamente não definitiva, titubeante e relativamente dúbia, quando aí se mencionou que tal modalidade de citação não seria determinado “por ora” (mas que, logicamente, não deixaria de poder vir a efectivar-se - e a ser deferida - ulteriormente).
Assim, neste especial contexto processual, perante uma A. que beneficiava de apoio judiciário por ser carenciada de meios para satisfazer o pagamento ao agente de execução e que requereu oportunamente que a citação se fizesse por oficial judicial, invocando o alargamento desse seu pedido de apoio judiciário de modo a abranger os encargos com o pagamento do dito agente de execução, competia claramente, nessas concretas circunstâncias, ao tribunal e em termos oficiosos (e sem necessidade de outro tipo de impulso processual da parte interessada) providenciar pela citação dos RR. na modalidade que entendesse adequada.
A este propósito dispõem os n.os 1 e 9 do artigo 231.º do Código de Processo Civil:
“1 - Frustrando-se a via postal, a citação é efetuada mediante contacto pessoal do agente de execução com o citando.
[...] 9 - A citação é feita por funcionário judicial, nos termos dos números anteriores, devidamente adaptados, quando o autor declare, na petição inicial, que assim pretende, pagando para o efeito a taxa fixada no Regulamento das Custas Processuais, bem como quando não haja agente de execução inscrito ou registado em qualquer das comarcas pertencentes à área de competência do respetivo tribunal da Relação.”.
Ora, beneficiando o A. de apoio judiciário, a citação em falta poderia ser realizada nos termos tido por adequados, proporcionando o normal prosseguimento dos autos.
Esta conclusão decorre, desde logo, do cotejo das normas contidas nos artigos 16.º, n.º 1, al. g), e 35.º-A, da Lei 34/2004, de 29 de Julho (Lei do Apoio Judiciário).
Escreve sobre esta matéria Salvador da Costa, in “O Apoio Judiciário”, Almedina, 2022, 10.ª edição, a página 60:
“O proémio e a alínea g) do n.º 1 estabelecem que o apoio judiciário compreende a atribuição de agente de execução.
Trata-se de um normativo inovador, inserido pela Lei 47/2007, que visou substituir o apoio judiciário da modalidade de remuneração do solicitador de execução, que foi suprimido.
É uma situação de apoio judiciário em espécie, porque se traduz na intervenção de um agente de execução na execução em causa, deferida que seja a respetiva atribuição pela segurança social, a requerimento do exequente.
Só o exequente tem direito à concessão desta espécie de apoio judiciário, verificada que seja a sua situação de insuficiência económica, nos termos do artigo 8.º-A deste diploma.
O estatuído neste normativo está em relação conexão com o disposto no artigo 35.º-A deste diploma, segundo o qual, quando for concedido o apoio judiciário nesta modalidade, o agente de execução é um oficial de justiça determinado segundo as regras da distribuição.
Em suma, a concessão de apoio judiciário nesta modalidade exclui a obrigação de pagamento de honorários e despesas ao agente de execução pelo IGFEJ, I. P., e não são abrangidos pelo apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de encargos de que o executado beneficie.”
O benefício de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo abrange necessariamente, como não poderia deixar de ser, o pagamento devido ao agente de execução com a realização da citação a que alude o n.º 1 do artigo 231.º do Código de Processo Civil.
Importa atentar em que o n.º 1 do artigo 231.º do Código de Processo Civil estabelece a regra a observar em caso de frustração da citação por via postal, não distinguindo o legislador os casos em que o autor beneficia de apoio judiciário e os casos em que não beneficia.
Mesmo nos casos em que o autor beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça, a citação deve realizar-se através de agente de execução, ficando a cargo do IGFEJ o encargo associado à imprescindível realização dessa basilar diligência.
De resto, afigura-se-nos não existirem dúvidas quanto à inclusão dos honorários devidos ao agente de execução na noção de encargos, como esse conceito se encontra definido no n.º 3 do artigo 529 do Código de Processo Civil, onde se prevê que:
“São encargos do processo todas as despesas resultantes da condução do mesmo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa.”
Assim sendo, os honorários devidos ao agente de execução são efectivamente encargos do processo que estão abrangidos no âmbito do apoio judiciário concedido ao A. (sendo aliás totalmente descabido e inexplicável admitir ou defender que a parte que usufrui legitimamente do benefício da dispensa do pagamento, em geral, de taxa de justiça e encargos, não possa retirar dele nenhuma utilidade quando se trata da satisfação dos custos necessários à efectivação da citação dos RR. - cujas cartas tenham sido devolvidas -, tendo obrigatoriamente de os suportar mesmo perante a sua indiscutível e manifesta carência de meios económicos para o fazer, numa fase processual em que predomina especialmente o dever de actuação proactiva e gestionária do juiz da causa).
Em suma, no caso dos autos a citação deveria ter sido promovida e realizada, não tendo sido sequer a pretensão da A. nesse sentido expressa e definitivamente negada pelo juiz nos despachos que oportunamente proferiu.
Cumpre notar que a questão do adiantamento dos honorários do agente de execução não foi, especificamente, conhecida, mas, ao invés, postergada face ao propósito da autora de requerer (equivocadamente) uma ampliação do pedido de apoio judiciário (cuja apreciação compete à Segurança Social).
Por tudo isto, há que concluir que os contornos atípicos e muito pouco claros da situação sub judice, evidenciados pela própria natureza dubitativa do despacho proferido (em que se indefere “por ora” o requerido, admitindo-se a ulterior notificação dos RR. através de oficial judicial, conforme o A. concretamente pediu), levam a concluir que a parte não terá ficado (ou poderá - por boas razões - não ter ficado), nestas anómalas circunstâncias, devidamente ciente e absolutamente segura quanto à obrigação da prática do acto em falta, sob pena da declaração de deserção da instância.
O que significa que foi precipitada, inconsistente e injustificada a (tabelar) notificação da A. nos termos e para os efeitos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Impunha-se, inclusive, in casu, pelas razões desenvolvidas supra, que o juiz, perante o quadro processual com que foi confrontado, nada assertivo em termos da exigência processual de actuação da A. e da segurança quanto à perfeita consciência desta acerca dos efeitos que lhe estariam associados, tivesse então avisadamente optado pela prévia notificação da parte com vista ao exercício do contraditório antes de haver determinado, sem mais, extinção da instância por deserção.
Assim sendo, e em conformidade com o enquadramento jurídico explanado, embora se verifique objectivamente o imobilismo da demandante durante o dito período de seis meses, o certo é que, por força da oficiosidade das diligências para a citação dos RR. que o tribunal indevidamente descurou, não as determinando quando o deveria ter feito, e a situação relativamente dúbia e titubeante que rodeou a prolação do despacho onde constava a advertência do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (não oportunamente esclarecida - como poderia perfeitamente tê-lo sido - pela ausência de audiência prévia da interessada que aqui se impunha), a conduta do A. não integra a figura da negligência relevante e idónea a operar os pressupostos inerentes à figura da deserção da instância.
Pelo que a revista é concedida, revogando-se a decisão que declarou extinta a instância por deserção nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
IV - DECISÃO.
Pelo exposto, acorda o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e prosseguindo os autos os seus trâmites, em conformidade com o referido supra.
Custas pela parte vencida a final.
Fixa-se a seguinte Uniformização de Jurisprudência:
I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Após trânsito em julgado, remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República, conforme o disposto no artigo 687.º, n.º 5, do CPC.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2025. - Luís Espírito Santo (relator) - Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues - Ana Paula Lobo - Manuel José Aguiar Pereira - acompanho a declaração de voto do Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Abreu em relação do Segmento Uniformizador (Parte II) - Isabel Manso Salgado - parcialmente vencida, acompanho a declaração do Conselheiro Oliveira Abreu - Jorge Leal - Emídio Francisco Santos - Nelson Borges Carneiro - Maria do Rosário Gonçalves - Henrique Antunes - Anabela Luna de Carvalho - Orlando Santos Nascimento - Cristina Coelho - Maria Teresa Albuquerque - Rui Machado e Moura - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (aderindo ao voto vencido parcial do Senhor Cons. Oliveira Abreu) - Maria Clara Sottomayor - Maria Graça Trigo - Fátima Gomes - Graça Amaral - Maria Olinda Garcia - Catarina Serra - vencida parcialmente - Adiro à declaração de voto do Exmº Conselheiro Oliveira Abreu - António Oliveira Abreu (vencido parcialmente, conforme declaração de voto junto) - Maria João Vaz Tomé - António Moura Magalhães - Ricardo Alberto Santos Costa - José Maria Ferreira Lopes - António Barateiro Martins - Fernando Baptista (adiro à declaração do Cons. Oliveira Abreu) - Luís Fernando dos Santos Correia de Mendonça, vencido quanto ao segmento uniformizador e fundamentação do acórdão na parte relativa a esse segmento - Maria de Deus Simão Correia parcialmente vencida pelas razões desenvolvidas pelo Exmo Conselheiro Luís Mendonça.
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Processo 4368/22.0T8LRA.C1.S1 (Julgamento ampliado de revista)
Declaração de Voto - Juiz Conselheiro Oliveira Abreu
Declaração de voto
1 - Acompanho a solução encontrada no sentido de que seja concedida a revista, revogando-se o acórdão recorrido que declarou extinta a instância por deserção nos termos do artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
2 - Sufrago a orientação vertida no projeto apresentado quando sustenta que a decisão judicial que declara deserta a instância, e, nessa medida, extinta nos termos dos artºs. 281.º n.º 1, e 277.º, alínea c), ambos do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial que o imobilismo processual para a produção deste efeito processual (mais de seis meses consecutivos), seja devido à injustificada inércia da parte onerada com o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.
3 - A este propósito, colhemos, com utilidade, do projeto apresentado: “[...] a negligência processual relevante para a deserção da instância tem necessariamente de estar devidamente espelhada, em termos claros e inequívocos, na própria tramitação processual [...].
Neste sentido, constituirá elemento especialmente importante, e que poderá conduzir à conclusão de que existiu, ou não, negligência da parte em promover o impulso processual, a forma como se expressou o despacho que a interpela e a adverte a realizar o acto que lhe incumbia, onde deverão constar ainda, expressamente, as consequências processuais associadas (em concreto a cominação da extinção da instância por deserção por efeito da dita inércia).”
4 - Ora, se assim é, e concordamos que o seja, torna-se, a meu ver, incoerente, contraditório, aceitar, como decorre do projeto apresentado, “[...] seguindo os princípios do equilíbrio, moderação e adequação, assentes no poder/dever de uma gestão processual ponderada, aberta e equitativa, em termos da sua direcção e condução proactivas e cooperantes, e principalmente tendo em consideração a necessidade de reforço do princípio fundamental da confiança, há que atender às situações que, pelos seus contornos específicos de menor clareza ou mesmo de alguma indisfarçável obscuridade ou ambiguidade, justifiquem, de forma particular, essa mesma audiência prévia.”
5 - Na verdade, assumindo de vez que a negligência processual relevante para a deserção da instância tem necessariamente de estar, clara e inequivocamente, retratada na própria tramitação processual, o que decorre, forçosamente, da diligência do Tribunal ao interpelar e advertir a parte, não se pode/deve admitir que, na falta da assinalada diligência por parte do Tribunal, se imponha a notificação prévia da parte com vista ao esclarecimento das razões que possam explicar ou justificar a aparente inércia, abrindo o contraditório.
6 - As notificações judiciais devem expressar, clara e inequivocamente, a identificação da situação em causa, sua incidência, outrossim, a menção do exigido impulso processual, sem descurar, nunca, a alusão às consequências decorrentes da inércia do litigante, donde, se ao litigante não é dado, clara e inequivocamente, integral conhecimento dos termos acabados de enunciar, importa, apenas e só, concluir que o Tribunal andou mal, impondo-se que diligencie, isso sim, para que seja suprimida a falta de diligência devida ao exarar o despacho que interpelou e advertiu o litigante.
7 - Não se justifica, pois, a meu ver, a audiência prévia da parte, quando a responsabilidade é do Tribunal ao deixar de atuar diligentemente.
8 - Daqui decorre, coerentemente, que não me revejo integralmente no enquadramento jurídico vertido no acórdão, e, consequentemente, entendo que da resposta uniformizadora não deveria constar o consignado no item II, a par de que acolheria uma resposta uniformizadora, com a seguinte formulação:
“A decisão judicial que declara extinta a instância, por deserção, tem como pressuposto que o imobilismo processual (mais de seis meses consecutivos) para a produção daquele efeito processual, seja devido à injustificada inércia da parte onerada com o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, o que decorre, necessariamente, da diligência do Tribunal ao interpelar e advertir a parte para a identificação da situação em causa, sua incidência, menção do exigido impulso processual, e alusão às consequências decorrentes da inércia do litigante.”
(Oliveira Abreu)
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Revista ampliada - Processo 4368
Voto vencido porque penso que a doutrina do acórdão não contribui para dar ao contraditório o lugar que lhe pertence no nosso sistema de direito, como consequência de uma visão participada e influenciadora das partes na tomada de decisão pelo juiz, que é a do processo moderno, antes se insere numa linha de erosão do contraditório.
O significa esta erosão? Significa proclamar, como se faz no acórdão, que «o princípio do contraditório constitui indiscutivelmente pedra angular no nosso panorama processual civil», afirmar que «é inquestionável a sua importância fulcral e decisiva para que a lide possa processar-se de forma justa e equitativa» e, seguidamente, apesar disso, desarmá-lo e enfraquecê-lo com várias hipóteses ou condições limitativas.
Uma dessas limitações é a reiterada remissão para a «mera observação dos elementos conferidos pelos autos», para «a simples leitura dos autos» conjugada com a referência ao «regime jurídico aplicável», como critério para determinar se as partes devem ou não ser previamente ouvidas, segmentos expressivos que, pela sua vaguidade e ambiguidade, permitem quase tudo.
Erosão tanto existe transformando a regra em excepção (transmutar o segmento «manifesta desnecessidade» do artigo 3.2, 3 CPC no seu contrário) como afirmar que a regra é a audiência prévia das partes e depois esvaziar a regra enunciada com adversativas ou rodeá-la de conceitos indeterminados que acabam por lhe esvaziar o conteúdo e eficácia práticas.
Na minha perspectiva, o contraditório deve ser sempre actuado. Só em casos verdadeiramente excepcionais, que é inviável concretizar, só quando o juiz estiver indiscutivelmente seguro de que a parte estava ciente de que deveria, em prazo, praticar um acto e que o não praticou por negligência, é que o juiz pode dispensar a actuação do contraditório.
Ora não se chega a esta conclusão pela simples observação dos autos que normalmente não oferece ao juiz senão um nada processual, além do último acto praticado há mais de 6 meses.
Aquela orientação foi recentemente seguida no acórdão da Relação de Lisboa de 3.12.2024, Proc. 9984/22 no qual se defende que «a «manifesta desnecessidade» (artigo 3.2, n.s 3, do Cód. Proc. Civil) de oferecimento do contraditório prévio à decisão de uma questão com influência «no exame ou na decisão da causa» é de verificação (ocorrência) absolutamente excepcional»
Tenho reiteradamente posto em destaque que o contraditório não é só um princípio estruturante do processo que deve ser levado a sério. É muito mais do que isso: é uma garantia que pode ser qualificada como direito processual fundamental.
A garantia do contraditório extrai-se da ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2.5 CRP) do princípio da igualdade (artigos 113.9 CRP e 4.9), dos artigos 20.9, 1 e 202.2, 2 CRP, enquanto pressuposto do direito de defesa, do artigo 20.9, 4, enquanto vertente do processo equitativo, e do artigo 32.e, 5 da CRP, o qual, apesar de referido ao processo criminal, por razões de política legislativa, deve ser transposto para o processo civil, por uma questão de coerência e dimanação do Estado de Direito.
No plano convencional destaque ainda para o artigo 6.9 da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e para o artigo 47.9 da Carta dos direitos fundamentais da unido europeia.
Sem mencionar, no plano internacional, os artigos IO.9 e li.9 da DUDH e o artigo 14.9 da PIDCP.
De resto, não se pode conceber uma tutela jurisdicional sem contraditório.
Note-se que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas, ergo os tribunais (artigo 18.b, 1, CRP).
Custa-me, por isso, aceitar que se diga que não existe fundamento legal para o juiz assegurar de uma forma tendencialmente absoluta o contraditório prévio, quando tiver de declarar deserta a instância.
Além dos normativos citados, que seriam já por si bastantes, o artigo 3.3.9 é transversal e omnicompreensivo.
O acto de conhecer de ofício determinada questão nova, não pode deixar de se exteriorizar, com a chamada de atenção das partes sobre essa questão e de ser antecedido pela sua sujeição ao crivo dialéctico dos sujeitos processuais envolvidos na causa.
Resulta que os princípios de economia processual ou do prazo razoável, princípios secundários, não se devem sobrepor ao contraditório.
O contraditório é um valor-fim e não um valor-meio, como o são aqueles valores menores.
Acresce que o despacho em causa não é um despacho qualquer: é um despacho que extingue a instância (artigo 277.2, c)), com importantes consequências quanto à subsistência do direito, não só na contagem do prazo da prescrição, mas também quanto à caducidade (artigo 332.5 CC).
Não por acaso, a maioria dos ordenamentos dos países da nossa família jurídica prevê expressamente, nas hipóteses da perempção, a audiência prévia das partes.
Inclusivamente, no processo canónico, tal acontece.
Por exemplo: em França, o artigo 388 NCP estipula que a perempção deve, sob pena de não ser recebida, ser pedida ou oposta, antes de qualquer outro meio; ela é de direito O juiz pode verificá-la oficiosamente, depois de ter convidado as partes a apresentar as suas observações.
Em Espanha, a falta de impulso do procedimento pelas partes ou interessados não originará a caducidade da instância ou do recurso (artigo 236.Q Ley de Enjuiciamiento Civil).
O novo código de processo civil romeno de 2010, que contém um artigo, o 14.9, que dispõe que o juiz, em qualquer instância, deve submeter à discussão das partes todos os pedidos, as excepções e as circunstâncias, de facto ou de direito, invocadas, distingue dois prazos para a deserção: um prazo de 6 meses por falta de diligência imputável à parte [artigo 416.2, ai. 1)] e de 10 anos na ausência de motivos imputáveis aparte (artigo 423.9).
No processo canónico matrimonial, o artigo 146.2 da Dígnitas Connubi preceitua que a instância extingue-se se, não acontecendo impedimento, no decurso de seis meses, as partes não tiverem realizado nenhum acto processual; porém, o tribunal não deixa de advertir previamente a parte sobre o acto que deveria realizar.
Não fica por aqui a minha discordância do projecto.
Remete-se para o artigo 195.9 como referência legal para sindicar uma decisão que viole o contraditório. Esta questão é complexa e tem sido muito discutida, havendo várias posições sobre a matéria [cf. v.g. recentes posições de Lemos Jorge/Ramos de Faria, As outras nulidades da sentença cível in: Julgar on Une e de Miguel Teixeira de Sousa, este no seu Blog IPPC e o meu «O contraditório e a proibição das decisões-surpresa», ROA, Ano 82, (2022):185-239]. Seria preferível não tomar posição num acórdão que não tem esta matéria por objecto.
Por outro lado, discordo em absoluto que sirva de razão para dispensar a aplicação rigorosa do artigo 3.9, 3 a invocação da «livre possibilidade de impugnação judicial por via de recurso nos termos gerais contra os fundamentos (de facto ou de direito) do despacho que declara a deserção da instância» ou o instituto do justo impedimento.
A invocação do justo impedimento tem de ser feita, por via incidental, logo que cessa a sua causa (artigo 140.2, 2). Sendo assim, não vejo como pode a parte servir-se com utilidade da figura para reparar, por via de recurso, a sua falta de impulso processual.
Acresce que o princípio do contraditório na sua modalidade/o/te,, significando que, salvo casos excepcionais estabelecidos na lei ou de manifesta desnecessidade, a decisão do juiz sobre matéria nova, seja sempre antecedida da audiência das partes, tem carácter preventivo.
O direito de defesa é um conceito mais amplo, já que pode ser também sucessivo, e que não substitui o contraditório prévio. «Mais vale prevenir do que remediar».
Há muitos institutos, que nascem do princípio da defesa, mas que nada têm a ver com o contraditório. É o caso do sistema de recursos.
Da pouco clara demarcação das figuras do contraditório e da defesa com a consequente transposição para a fase do remédio, da defesa que devia ter sido feita ex ante, resulta que a parte prejudicada tenha de indicar, no recurso, os específicos aspectos que a discussão poderia ter evidenciado ou aprofundado, integrando lacunas e colmatando argumentos já contidos em anteriores actos defensivos, o que significa a indevida transformação de uma censura de nulidade em censura de injustiça da sentença.
Na minha opinião a violação do contraditório pelo juiz é, em qualquer caso, um erro de actividade e não de julgamento.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2025. - Luís Correia de Mendonça.
118731237
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6086462.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
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1939-05-28 - Decreto-Lei 29637 - Ministério da Justiça
Aprova o Código de Processo Civil, publicado em anexo. Salvaguarda a legislação de processo contida no Código do Trabalho e no Código de Estrada, bem como a legislação especial sobre liquidação de casas bancárias e sobre expropriações por utilidade pública. Estabelece normas sobre futuras alterações ao Código de Processo Civil, cometendo a Procuradoria-Geral da República a recepção das exposições tendentes ao seu aperfeiçoamento, bem como a sua proposição do Governo. Autoriza o Governo a tornar extensivo o (...)
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1961-12-28 - Decreto-Lei 44129 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro
Aprova o Código de Processo Civil. Dispõe sobre o regime da acção - em geral e executiva -, e sobre a competência e garantias da imparcialidade. Estabelece disposições gerais sobre o processo, processo de declaração (ordinário, sumário e sumaríssimo) e sobre o processo de execução (para pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa e para prestação de facto). Prevê os processos especiais e o Tribunal Arbitral (voluntário e necessário).
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1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça
Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais
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2004-07-29 - Lei 34/2004 - Assembleia da República
Estabelece um novo regime de acesso ao direito e aos tribunais e transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/8/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.
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2007-08-28 - Lei 47/2007 - Assembleia da República
Altera (primeira alteração) a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais.
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2013-06-26 - Lei 41/2013 - Assembleia da República
Aprova em anexo à presente lei, que dela faz parte integrante, o Código de Processo Civil.
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