Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020
Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma do artigo 154.º da Lei 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, ao atribuir caráter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, aditado a este Código pelo artigo 152.º da citada da Lei 7-A/2016, determina a aplicabilidade nos anos fiscais anteriores a 2016, da norma do mesmo n.º 7, em conjugação com o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei 107-B/2003, de 31 de dezembro, segundo a qual a isenção objeto de tais preceitos não abrange as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio requerer, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de novembro («Lei do Tribunal Constitucional»), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 154.º da Lei 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, ao atribuir caráter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, aditado pelo artigo 152.º da citada da Lei 7-A/2016, determina a aplicabilidade nos anos fiscais anteriores a 2016, da norma de tal n.º 7, em conjugação com a alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo 7.º, na redação dada pela Lei 107-B/2003, de 31 de dezembro, segundo a qual a isenção prevista nesses preceitos não abrange as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.
Como fundamento, o requerente alega que tal norma já foi julgada inconstitucional em mais de três casos concretos pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente nos Acórdãos n.os 644/2017, 92/2018 e 52/2019 (acessíveis, assim como os demais adiante referidos, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), já transitados em julgado, e, bem assim, na Decisão Sumária n.º 161/2019 (acessível a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/), igualmente transitada em julgado.
2 - Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. Fundamentação
§ 1.º Os pressupostos da fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade de norma julgada inconstitucional em três casos concretos
4 - De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto naquela Lei.
5 - O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado pelo Ministério Público tem por base quatro decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Com efeito, o Acórdão 644/2017, confirmando a Decisão Sumária n.º 404/2017, julgou inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, «a norma do artigo 154.º da Lei 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, ao atribuir caráter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, aditado a este Código pelo artigo 152.º da citada da Lei 7-A/2016, determina a aplicabilidade nos anos fiscais anteriores a 2016, da norma do mesmo n.º 7, em conjugação com o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do referido Código, na redação dada pela Lei 107-B/2003, de 31 de dezembro, segundo a qual a isenção objeto de tais preceitos não abrange as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos». Tal julgamento foi reafirmado - com diferenças ínfimas de pormenor ao nível da redação da norma, que não afetam o seu conteúdo - pelos Acórdãos n.os 92/2018 e 52/2019 e pela Decisão Sumária n.º 161/2019.
Encontram-se, por conseguinte, reunidas as condições indispensáveis à apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, nos termos da Constituição e da Lei do Tribunal Constitucional.
§ 2.º A questão de constitucionalidade
6 - O artigo 152.º da Lei 7-A/2016 alterou o artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei 159/99, de 14 de setembro, com a redação dada pela Lei 107-B/2003, de 31 de dezembro, reformulando as alíneas i) e u) do respetivo n.º 1 e aditando-lhe um novo n.º 7.
O referido artigo 7.º, no seu n.º 1, alínea e), segundo a redação dada pela Lei 107-B/2003, inalterada pela Lei 7-A/2016, dispõe o seguinte:
«Artigo 7.º
Outras isenções
1 - São também isentos do imposto:
[...]
e) Os juros e comissões cobrados, as garantias prestadas e, bem assim, a utilização de crédito concedido por instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras a sociedades de capital de risco, bem como a sociedades ou entidades cuja forma e objeto preencham os tipos de instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras previstos na legislação comunitária, umas e outras domiciliadas nos Estados membros da União Europeia ou em qualquer Estado, com exceção das domiciliadas em territórios com regime fiscal privilegiado, a definir por portaria do Ministro das Finanças;
[...].»
Por sua vez, o n.º 7 do mesmo artigo 7.º, aditado ao Código do Imposto de Selo pelo artigo 152.º da Lei 7-A/2016, tem a seguinte redação:
«Artigo 7.º
Outras isenções
[...]
7 - O disposto na alínea e) do n.º 1 apenas se aplica às garantias e operações financeiras diretamente destinadas à concessão de crédito, no âmbito da atividade exercida pelas instituições e entidades referidas naquela alínea.»
Por fim, o artigo 154.º da Lei 7-A/2016 estabeleceu que a redação dada pelo artigo 152.º ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo tem «caráter interpretativo».
7 - É este caráter interpretativo, na medida em que determine a aplicação retroativa do n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, às comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões que está em causa no presente processo.
Especificamente, questiona-se se a interpretação legalmente estabelecida do artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do Código do Imposto do Selo, nos termos da conjugação do n.º 7 do mesmo preceito com o artigo 154.º da Lei 7-A/2016, e segundo a qual não são abrangidas pela isenção do imposto do selo prevista naquela alínea as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos, pode aplicar-se nos anos anteriores a 2016 - i.e., antes da entrada em vigor dos artigos 152.º e 154.º da Lei 7-A/2016 - , é compatível com a proibição de criação de impostos com natureza retroativa, estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Nos termos literais em que se encontra prevista, a isenção da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei 107-B/2003, abrange quaisquer comissões cobradas por instituições de crédito, sociedades financeiras e instituições financeiras a outras instituições da mesma natureza e a sociedades de capital de risco, independentemente de estarem em causa operações financeiras diretamente destinadas à concessão de crédito. Assim, apesar de se fazer menção expressa à atividade de concessão de crédito, não se associa a isenção relativa à cobrança de comissões ao exercício daquela atividade, mas apenas e só à natureza das entidades envolvidas. Já o citado n.º 7 do mesmo artigo 7.º, aditado em 2016, veio estatuir uma associação necessária daquela isenção às «garantias e operações financeiras diretamente destinadas à concessão de crédito» (itálico acrescentado).
A constitucionalidade de tal associação, em si mesma considerada, e valendo para os anos de 2016 e seguintes, não é objeto de apreciação no presente processo.
O que está em causa é o entendimento legalmente estabelecido de que a mesma associação vale necessariamente, também, para os anos anteriores a 2016, atento o caráter interpretativo atribuído pelo artigo 154.º da Lei 7-A/2016 ao preceito que a veio prever. Com efeito, segundo dispõe o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, produzindo efeitos a partir do início de vigência desta última, com ressalva dos «efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de natureza análoga».
§ 3.º A proibição constitucional de impostos com natureza retroativa
8 - No domínio fiscal rege, desde a revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição: ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa. Consequentemente, o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroativos, os agravem. Segundo a jurisprudência constitucional, retira-se daquele preceito uma proibição de estatuir consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação de todos os factos relevantes à luz do direito aplicável antes da estatuição das consequências jurídicas novas. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão 128/2009:
«Decorre deste preceito constitucional, que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão "retroatividade" usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal.
As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroatividade em "termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes". Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroatividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse "de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afetados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram".
[...]
Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroatividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjetiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objetiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroatividade da lei fiscal "não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito" (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt).
Quer isto dizer que, atualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroatividade da lei fiscal, a mera natureza retrativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.»
Na verdade, o Tribunal Constitucional tem vindo a explicitar o enquadramento constitucional dos limites à repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas e a diferenciá-los em função da intensidade da projeção dos respetivos efeitos sobre a esfera jurídica das pessoas. Assim, na síntese do Acórdão 575/2014:
«O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos. Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado.
A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas - tomadas pelo legislador ordinário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores históricos - façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma "técnica" de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de «retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica», ou ainda, mais simplesmente, de «retrospetividade». Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito.
É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual. Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui.»
No respeitante ao domínio fiscal, o Tribunal Constitucional entende que a proibição da retroatividade do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo por isso tão somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (assim, por exemplo, v. os Acórdãos n.os 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.os 128/2009, 85/2010 e 399/2010; o caráter "absoluto" da proibição em apreço foi, todavia, questionado no Acórdão 171/2017).
9 - A mencionada proibição constitucional tem implicações relativamente às leis interpretativas em matéria fiscal.
Como se explicou nos Acórdãos n.os 267/2017 e 395/2017, devido à integração da lei interpretativa na lei interpretada estatuída no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, a primeira é necessariamente retroativa, já que a mesma é considerada como "fazendo parte" da segunda.
Trata-se, evidentemente, de uma ficção temporal - a ficção de que um facto presente (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada); e a retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção (assim, v. o Acórdão 395/2017).
Concretizando no que se refere à norma ora em apreciação (cf. supra o n.º 7), o caráter interpretativo atribuído à determinação, em 2016, de uma associação necessária da isenção prevista em preceito vigente desde 2003 a certas garantias e operações financeiras, com exclusão de outras, implica que tal exclusão abranja também garantias prestadas e operações financeiras realizadas antes de 2016: ainda que as mesmas tenham sido consideradas isentas, e a menos que os efeitos de tal isenção se devam considerar salvaguardados nos termos da parte final do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (v.g. por sentença transitada em julgado), tais garantias e operações passam a dever ser tributadas de acordo com o sentido legalmente fixado sobre o alcance da isenção.
Daí suscitar-se a questão da solvabilidade constitucional, designadamente à luz do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, das leis interpretativas que agravem situações fiscais anteriormente definidas em consequência da ocorrência do pertinente facto tributário.
§ 4.º A inconstitucionalidade de leis interpretativas no âmbito de aplicação da proibição da retroatividade fiscal (artigo 103.º, n.º 3, da Constituição)
10 - A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido "correto" do direito preexistente. «O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar» (cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cf. idem, ibidem). E, por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação da lei fixada pelo próprio legislador - a chamada "interpretação autêntica" - «vale com a força inerente à nova manifestação de vontade» do respetivo autor (cf. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a aludida consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cf. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).
Por isso mesmo, como se referiu no Acórdão 267/2017, pode, de acordo com certa conceção, falar-se de uma retroatividade meramente formal inerente a toda a lei - tida por "verdadeiramente" ou "genuinamente" - interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é "formal", visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior - cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos -] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 246). Com efeito, «a retroação [das leis interpretativas] justifica-se, além do mais, por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legítimas dos interessados. Estes podiam contar com a solução da [lei nova] interpretativa, visto ela corresponder a um dos vários sentidos atribuídos já pela doutrina e pela jurisprudência à [lei antiga]»: assim, é «de sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adotado» (cf. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, pp. 286-287).
Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior - qualificando-se já não como lei interpretativa, mas sim como lei inovadora - , será substancial ou materialmente retroativa (cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito..., cit., p. 247).
Nesta perspetiva, e tendo em conta a ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, relevará, então, que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente; ao passo que a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa verdade seja inovadora se deva considerar como material ou substancialmente retroativa, porquanto, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.
Na verdade, pode suceder - e sucede com alguma frequência - que o legislador declare ou qualifique expressamente como "interpretativa" certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Ora, uma lei que modifique o direito preexistente - o mesmo é dizer, que constitua direito novo - sob a capa de "lei interpretativa", porque criadora de efeitos jurídicos novos para os respetivos destinatários, violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas; porém, a lei genuinamente interpretativa, porque se limite a declarar o direito que já vigora e com o qual os respetivos destinatários podem contar, não violará tal proibição, do mesmo modo que toda e qualquer interpretação jurídica, incluindo a feita pelos tribunais, também não pode considerar-se como produtora de efeitos jurídicos novos que frustrem «expectativas seguras e legitimamente fundadas».
11 - Sucede que, do ponto de vista do direito constitucional, e no que se refere à interpretação da lei, não pode abstrair-se das diferenças orgânicas e funcionais entre legislador e julgador. É a relevância das mesmas, já salientada nos mencionados Acórdãos n.os 267/2017 e 395/2017, que cumpre aqui recordar e reiterar.
A iurisdictio ou função de "dizer o direito" - de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais - compete constitucionalmente aos tribunais (cf. o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):
«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional - daí a epígrafe "função jurisdicional" - conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material ("jurisdictio" como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal [...] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI, p. 509).
Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados. Como se salientou por exemplo no Acórdão 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito [...]».
Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma (assim, v. o Acórdão 267/2017). O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. Mais: a lei que a si própria se qualifica como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada.
Por isso mesmo, a atividade hermenêutica do legislador e dos juízes é essencialmente diferente, tornando-se necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo (v. o Acórdão 395/2017):
«Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais - ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis - , a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas - os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus - por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor.
É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional - o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica.
Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se - e aqui reside o segundo aspeto da distinção - nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes independentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relativas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade.»
Deste modo, a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações de certa norma legal já realizadas - ou claramente admissíveis - por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis e, na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais "podem dizer" (v. o Acórdão 267/2017). Daí que a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não possam deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei revista igualmente um caráter material ou substancial (v., de novo, os Acórdãos n.os 267/2017 e 395/2017)
Significa isto que a interpretação legislativa, por ter a natureza própria do poder de que emana, e independentemente da intenção declarada ou implícita na lei que a consagra, tem sempre subjacente um juízo formulado segundo critérios político-legislativos. Objetivamente, isto é, pela sua própria natureza, a lei interpretativa fixa o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso (cf. o Acórdão 395/2017). A eventual coincidência entre o sentido fixado por tal lei e aquele que seja apurado por via da interpretação judicial da lei interpretada não é impossível, mas também não é necessária. Todavia, o que aqui releva é que os resultados da interpretação legal e da interpretação judicial são expressões de atividades constitucionalmente distintas e que, por conseguinte, também se regem por diferentes parâmetros constitucionais.
12 - Segundo esta perspetiva, fundada na diferença constitucional entre a função legislativa e a função jurisdicional, não pode aceitar-se a ideia de que uma lei "genuinamente interpretativa" - porque se limita a consagrar um dos sentidos possíveis da lei interpretada - não seja lesiva das «expectativas seguras e legitimamente fundadas» dos seus destinatários e, por isso mesmo, caso trate de matéria fiscal, a respetiva retroatividade - tida como meramente "formal" - nem sequer esteja abrangida pela proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Como se entendeu no Acórdão 395/2017:
«Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica - assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos - enquanto sujeitos de direito - que aquelas se lhes dirigem. Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política - constitutivas e não declarativas de direito -, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.
Não é outro, segundo se crê, o alcance das seguintes palavras que constam do Acórdão 172/2000:
"[A] vinculação interpretativa que [as] leis [interpretativas] comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos [...] leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica."»
Consequentemente, a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
13 - No caso da norma em apreciação no presente processo, nem sequer é necessário discutir se a proibição constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal é, nos mesmos termos em que a previsão do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição tem sido interpretada pela jurisprudência constitucional, absoluta (como sustentado, por exemplo, nos Acórdãos n.os 267/2017, 644/2017 e 92/2018) ou admite exceções, fundadas seja na existência de uma controvérsia insanável com um lastro decisório estatisticamente significativo no âmbito de uma determinada ordem jurisdicional, seja na coincidência do sentido fixado pela lei interpretativa com o da jurisprudência dominante relativamente ao entendimento da lei interpretada (como se considerou hipoteticamente, por exemplo, nos Acórdãos n.os 395/2017 e 107/2018; e se entendeu dever aplicar no caso decidido pelo Acórdão 49/2020).
Com efeito, tal questão pode aqui ser deixada em aberto, uma vez que é muito reduzido o número de decisões de tribunais superiores ou de tribunais arbitrais tomadas antes da entrada em vigor da Lei 7-A/2016 relativamente à alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei 107-B/2003.
Acresce que as decisões conhecidas (por exemplo, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21.09.2010, Processo 2754/08, e o acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa [-CAAD-], de 17.12.2012, Processo 74/2012-T) respeitam à atividade de mediação de seguros, nomeadamente a comissões cobradas por operações de seguro entre instituições de crédito e instituições financeiras como as seguradoras - operações caracterizadas como não financeiras e descritas na verba 22 da Tabela Geral do Imposto do Selo. Ora, a dimensão específica que está em causa no presente processo diz respeito às comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos - uma operação financeira abrangida pela verba 17 da citada Tabela. E, como resulta claro da jurisprudência conhecida sobre a norma ora em apreciação, a questão do respetivo alcance apresenta-se de modo significativamente diferente consoante estejam ou não em causa operações financeiras, para efeitos daquela verba 17 (cf. os juízos sobre o caráter inovador de tal norma proferidos nos processos do CAAD n.os 348/2016-T, 633/2016-T, 667/2016-T, 9/2017-T, 279/2017-T, 303/2017-T, 353/2017-T, 441/2017-T, 527/2017-T e 510/2018-T - todas relativas a fundos de pensões; e as interpretações restritivas da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei 107-B/2003, no sentido de a isenção aí prevista estar necessariamente associada à concessão de crédito, feitas no âmbito de processos em que estava em causa a atividade de mediação de seguros, como sucedeu no citado acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, posteriormente seguido pelo Supremo Tribunal Administrativo - v. acórdãos de 15.06.2016, Processo 770/15, de 29.06.2016, Processo 1630/15, de 30.11.2016, Processo 822/16, de 18.01.2017, Processo 835/16, de 5.04.2017, Processo 1391/16, e de 28.06.2017, Processo 1627/15 - e em diversos processos do CAAD).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa, estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, da norma do artigo 154.º da Lei 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, ao atribuir caráter meramente interpretativo ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, aditado a este Código pelo artigo 152.º da citada da Lei 7-A/2016, determina a aplicabilidade nos anos fiscais anteriores a 2016, da norma do mesmo n.º 7, em conjugação com o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei 107-B/2003, de 31 de dezembro, segundo a qual a isenção objeto de tais preceitos não abrange as comissões de gestão cobradas pelas sociedades gestoras aos fundos de pensões por elas geridos.
Sem custas.
O relator atesta o voto de conformidade ao presente acórdão dos Senhores Conselheiros, José Teles Pereira, Maria de Fátima Mata-Mouros e Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração). Pedro Machete.
Lisboa, 16 de dezembro de 2020. - Pedro Machete - João Pedro Caupers - Fernando Vaz Ventura - Gonçalo Almeida Ribeiro - Joana Fernandes Costa - Mariana Canotilho (com declaração) - Maria José Rangel de Mesquita - Manuel da Costa Andrade.
Declaração de voto
Votei a decisão, com a ressalva de que não considero que todas as leis interpretativas sejam sempre, necessária e inconstitucionalmente retroativas. - Mariana Canotilho.
Declaração de voto
Apesar de estar de acordo com a declaração de inconstitucionalidade da norma em questão - já que não pode ser considerada realmente interpretativa, pela inexistência de anterior controvérsia jurisprudencial - divirjo da fundamentação constante dos pontos 11 e 12 do acórdão.
Depois de se ter dito «que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente» e que «a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa verdade seja inovadora se deva considerar como materialmente ou substancialmente retroativa, e portanto ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo» (ponto 10), e de ainda se ter afirmado que «o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial» (ponto 11), o presente acórdão conclui que «a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição» (ponto 12).
Ora, é contra esta conclusão que já manifestei desacordo em declarações de voto emitidas nos Acórdãos n.os 267/2017 e 49/2020, para cuja argumentação se remete. A posição agora tomada em Plenário tem uma evidente consequência: todas as normas fiscais interpretativas, porque substancialmente retroativas, são inconstitucionais. Em direito fiscal, nas matérias cobertas pelo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, o legislador não pode interpretar as leis que edita. Mesmo que a norma revele uma intenção interpretativa, resolvendo controvérsia jurisprudencial - por vezes artificialmente levantada - não resta outra opção política que não seja revogar a norma controvertida e criar outra com o sentido que sempre entendeu que deveria ser dado à norma revogada, dando assim oportunidade a uma evasão fiscal.
No caso da conformidade constitucional das normas fiscais interpretativas o que está em causa é determinar a natureza da retroatividade dessas normas e não tanto saber se a proibição constitucional de impostos retroativos é absoluta ou se comporta gradações ou exceções. Como dá conta o acórdão, o Tribunal tem entendido que a retroatividade inautêntica ou retrospetividade não está abrangida por essa proibição. Apenas a retroatividade própria - que se verifica quando há interferência normativa de modo a atingir eventos iniciados e concluídos no passado, associando novas consequências jurídicas a factos jurídicos já consumados, sob a vigência de norma anterior - é que constitucionalmente inadmissível em matéria tributária; já a retroatividade imprópria, - em que a alteração normativa atinge eventos iniciados no passado, quando da vigência de norma anterior, porém ainda não concluídos, de modo a intervir prejudicialmente em posições jurídicas dos sujeitos passivos -, em princípio, é admissível.
Ora, em relação às normas verdadeiramente interpretativas - aquelas cujo sentido normativo é materialmente interpretativo - não há que aplicar o princípio da não retroatividade das leis consignado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP e artigo 12.º do Código Civil. Uma vez que não visam valorar ex novo um facto passado, mas, antes, visam a norma, esclarecendo que, no momento da verificação desse facto, a norma interpretada já tinha o alcance que lhe é obrigatoriamente fixado pela lei interpretativa, não há uma verdadeira e própria retroatividade. Tal como se diz no acórdão (assim como do Acórdão 216/2015), a retroatividade das normas interpretativas não resulta de nova e diferente valoração jurídica de facto passado, não visa o facto, mas sim de uma ficção temporal - a ficção de que a entrada em vigor da lei interpretativa ocorreu com a entrada em vigor da lei interpretada. Tal como acontece com a «retroatividade inautêntica» em que a repercussão sobre o passado assume uma "intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio" (Acórdão 575/2014), o "típico nexo retroativo" que resulta dessa ficção, acolhido no artigo 13.º do Código Civil, não envolve efeito retroativo em sentido verdadeiro e próprio, para efeitos de aplicação do cláusula constitucional da proibição da retroatividade dos impostos.
Não nos convence o argumento das diferenças orgânicas e funcionais entre legislador e o julgador e a natureza constitutiva e declarativa dos atos de um e de outro. Para além de ser hoje inadmissível ver na interpretação judicial «só um ato de conhecimento, sem um conteúdo e resultado normativamente constitutivos», e na interpretação autêntica «um ato legislativo, sem quaisquer pressupostos interpretativos», como demonstrou Castanheira Neves (O Instituto Dos «Assentos» E A Função Jurídica Dos Supremos Tribunais, Coimbra Editora, 1983, pág. 328), a discussão em torno dos poderes jurídicos do legislador e dos tribunais, - que, de resto, é bem antiga - não é critério adequado para resolver o problema da natureza da retroatividade das normas interpretativas. Com efeito, em ambas as categorias de interpretação - interpretação judicial e interpretação autêntica - há momentos hermenêuticos e momentos normativamente constitutivos. E se a lei interpretativa tem presente uma intenção interpretativa em sentido próprio - uma lei verdadeiramente interpretativa -, então é porque o legislador se colocou no mesmo campo metodológico que o juiz, não proclamando regras novas, mas simplesmente declarando o direito preexistente.
Já poderá ter algum sentido invocar a intercessão de poderes e funções - legislativa e judicial - nos casos de leis só pelo legislador ditas interpretativas, mas materialmente inovadoras. Nesses casos, o legislador assume abusivamente um poder de interpretação, impondo obrigatoriamente um sentido que a lei interpretada metodologicamente não pode comportar ou que não é aceitável ou possível, porque não intervêm para decidir uma questão de direito cuja solução era controvertida ou incerta no domínio da vigência da lei interpretada. Se a disposição legislativa que se proclama interpretativa só o é formalmente, porque não tem um sentido materialmente interpretativo que a jurisprudência também poderia ter adotado, é porque o legislador apenas lhe quis dar o âmbito de aplicação que é reconhecido às leis propriamente interpretativas, e nessa hipótese, a proclamação equivale a uma "cláusula de retroatividade". Ou seja, a lei é materialmente inovadora, mas diz-se interpretativa para impor a retroatividade através dessa formal qualificação.
Não é assim nos casos das interpretações autênticas impostas por leis interpretativas materiais ou «por natureza». Pois, invocar os poderes jurídicos do legislador e dos tribunais para determinar a natureza da retroatividade das normas verdadeiramente interpretativas não se pode concluir - como faz o acórdão no ponto 12, embora em evidente contradição com que disse no ponto 10 - que a retroatividade é substancial. Mais uma vez, o ensinamento de Batista Machado: «se porventura se pode dizer que as variações e mudanças de jurisprudência no que respeita à interpretação da regra de direito, pelo menos na medida em que esta regra nunca foi considerada certa, não têm efeito retroativo, então também a lei interpretativa nos termos atrás definidos não será substancialmente retroativa» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 247). - Lino Rodrigues Ribeiro.
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