2.ª Secção
Relator: Cons.ª Ana Guerra Martins
Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos, em que são recorrentes Novartis AG e Novartis Farma - Produtos Farmacêuticos, Lda. e recorridos o Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.; Ministério da Economia e do Emprego; Generis Farmacêutica, S. A., e Tolife - Produtos Farmacêuticos, SA as primeiras vêm interpor recurso, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 9 de janeiro de 2013, para que sejam apreciadas as seguintes questões:
"[...]
. a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 9.º, n.º 1, da Lei 62/2011, de 12 de dezembro ("Lei 62/2011"), por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 3 e 111.º (princípio da separação de poderes entre órgãos de soberania) da Constituição da República Portuguesa ("CRP");
. a inconstitucionalidade material da norma constante dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179.º, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei 62/2011), quando interpretada, como o fez o Acórdão a quo, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. ("INFARMED") afira, no contexto do processo de concessão de autorização de introdução no mercado ("AIM"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e desse modo:
i) obrigando-o a deferir requerimento de concessão de AIM para medicamento violador desses direitos; ou
ii) impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto por violação dos artigos 17.º, 18.º,42.º,62.º, n.º 1 e 266.º da CRP;
. a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 8.º, n.os 1. 3 e 4 da Lei 62/2011, quando interpretada, como o fez o Acórdão a quo, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED' afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e desse modo:
i) obrigando-o a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos; ou
ii) impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto por violação dos artigos 17.º, 18.º,42.º,62.º, n.º 1 e 266.º da CRP."
2 - Notificada para o efeito, a recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«Conclusões
1 - A questão dos autos e que se pede a este Tribunal que aprecie é o culminar de uma invulgar conjugação dos três poderes públicos - o Executivo, o Legislativo e o Judicial - com vista a criar entraves ao cumprimento, por parte do Estado, dos seus deveres de respeito e garantia de efetivação que sobre ele recaem quanto a um concreto direito fundamental: o direito de propriedade industrial relativo a medicamentos.
2 - Vem assim questionada a interpretação dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179, n.os 1e 2 do Estatuto do Medicamento e 8.º, n.os 3 e 4 da Lei 62/2011 no sentido de proibir que o INFARMED garanta e defenda ou, mais, que lhe imponha que desproteja e promova a ofensa de um direito fundamental de um cidadão, no quadro de uma ação administrativa especial onde se pede a declaração de nulidade, ou a anulação ou ainda a declaração de diferimento de eficácia de atos de AIM de medicamentos genéricos violadores de uma patente, bem como a condenação à abstenção da emissão dos PVPs desses mesmos medicamentos ou à abstenção da fixação de tais preços sem que essa fixação fique condicionada a apenas entrar em vigor na data em que a Patente das Recorrentes caducar.
3 - Os direitos de propriedade industrial, entre os quais se contam os direitos fundados em patentes de medicamento, encontram-se necessária e geneticamente ligados a outras manifestações da liberdade fundamental de criação cultural, também protegidas pelo ordenamento jurídico-constitucional e legal, como são os direitos de autor stricto sensu, pelo que o direito à patente de que as Recorrentes beneficiam, protegido pelo artigo 42.º da Constituição, é um direito, liberdade e garantia estando assim diretamente protegido pelo regime que a Constituição para tal prevê.
4 - Por outro lado, os direitos de propriedade industrial, como direito de propriedade que são, encontram-se no domínio formalmente abrangido pelo preceito do artigo 62.º da Constituição e integram o conteúdo substancialmente protegido pela norma constitucional referente ao direito de propriedade privada.
5 - Este Tribunal Constitucional tem reconhecido, em jurisprudência firme que o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição abrange a propriedade intelectual e a propriedade industrial, tendo também salientado repetidamente que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17.º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18.º
6 - Os direitos de propriedade industrial, como manifestações do direito de propriedade, são também reconhecidamente direitos fundamentais protegidos pela Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 1.º do seu Protocolo 1; por seu lado, o artigo 6.º, n.º 1 do Tratado da União Europeia, ao integrar a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, portanto, o seu artigo 17.º, consagrou a proteção da propriedade intelectual - integrando os poderes de dela fruir, utilizar, dispor e transmitir - como direito fundamental da União e princípio geral do direito comunitário.
7 - Além das três faculdades da propriedade a que é garantida expressa tutela constitucional (acesso, transmissão e manutenção), existe implícita também a tutela do poder de fruição (utendi e fruendi), a qual emana diretamente, porém, do artigo 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, aplicável na ordem interna por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP.
8 - O direito industrial de patente é um direito de propriedade temporário e na avaliação das consequências de qualquer ablação ao gozo da sua fruição sempre terá que se ter em conta esta sua natureza efémera.
9 - No que aos conflitos que entre direitos possam surgir diz respeito, importa notar que o direito à proteção da saúde constitucionalmente consagrado no artigo 64.º da CRP não atribui aos cidadãos um direito subjetivo público a prestações específicas nesse domínio, consagrando apenas um direito social a exigir a tomada de medidas por parte do Estado que concretizem essa proteção, não beneficiando do regime específico dos direitos, liberdades e garantias.
10 - Ao direito de propriedade como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias aplica-se o princípio da reserva de lei restritiva, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, ou seja, o princípio de que tais direitos só podem ser restringidos por lei e nos casos expressamente previstos na Constituição - o que significa que nenhuma autoridade pública, seja ela um tribunal ou um órgão da Administração direta ou indireta do Estado, pode deixar de respeitar um direito, liberdade e garantia ou a ele análogo, com base apenas na consideração de um direito social, mesmo que protegido constitucionalmente, salvo se legitimado pelos modos que a Constituição e a lei expressamente previrem (mormente, conforme se prevê no artigo 62.º, n.º 2 da Constituição, mediante expropriação nos termos dos artigos 105.º e seguintes do CPI).
11 - O confronto que poderia existir em razão da existência e consagração simultânea do direito de patente e do direito à iniciativa económica privada, intrinsecamente conflituantes, encontra-se já resolvido pela lei: por força do regime a que o direito à iniciativa económica privada está sujeito, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP, entendeu o legislador fixar um prazo de apenas 20 anos a contar da data do pedido de patente como limite do monopólio conferido, a que subjaz o entendimento de que tal duração é a necessária para salvaguarda desse outro direito constitucionalmente protegido.
12 - O dever constitucional de sujeição da Administração à Constituição, que radica na parametricidade constitucional, deve ser visto sobdois prismas: o seu dever de "executar de modo conforme as normas legais não inconstitucionais" (dimensão positiva) e o seu dever de não "praticar atos imediata ou consequentemente inconstitucionais - estando, portanto, impedida de aplicar normas jurídicas inconstitucionais" (dimensão negativa)
13 - Os princípios gerais da atividade administrativa constantes do CPA e as normas que concretizam preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer atuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada, nos termos do artigo 2.º, n.º 5 do CPA, o que significa que os deveres a que a Administração Pública está sujeita, no âmbito da sua atuação, são os mesmos em ambos os níveis - tanto constitucional como ordinário - o que torna irrelevante a discussão sobre se a vinculação administrativa é devida, em primeira linha, à lei ou à Constituição, na medida em que aqui elas são coincidentes.
14 - O princípio da constitucionalidade exige ainda, entre outras coisas, que a Administração interprete e aplique as leis no sentido mais conforme à Constituição, como decorre de resto do artigo 3.º, n.º 1 da CRP, que prevê que a validade de todos os atos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição.
15 - O princípio da especialidade não tem aplicação delimitativa no âmbito da aferição do dever de garantia de direitos fundamentais e não pode ser confundido com o princípio da funcionalidade, consagrado no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, que encontra a justificação para a sua inclusão em motivos históricos.
16 - O dever de garantia de direitos fundamentais, previsto nos artigos 2.º e 9.º, alínea b) da CRP, é horizontal, aplicando-se por igual a toda a Administração Pública e, de resto, a todos os cidadãos, pelo que não existe qualquer delimitação dos direitos, liberdades e garantias que, à Administração, cabe proteger, nem ela pode escolher garantir uns em detrimento de outros: os órgãos e agentes da Administração têm que garantir e respeitar todos, sem exceder as suas competências no desenvolvimento dessa proteção e a Administração Pública está sempre sujeita ao dever de promover, garantir, respeitar e proteger direitos fundamentais como o direito de propriedade industrial, sejam quais forem as entidades administrativas em causa e a forma de atuação adotada, de acordo com o comando dos artigos 2.º, 9.º, alínea b), 18.º, n.º 1 e 266.º da CRP.
17 - O direito da União Europeia, nomeadamente o artigo 26.º do Diretiva 2001/83/CE, não se opõe a que as autoridades dos Estados-Membro tomem em consideração os direitos de propriedade industrial de terceiros no seu processo decisório de concessão ou de recusa de AIM e, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, compete aos Estados-Membros, na transposição das diretivas, zelar por que seja seguida uma interpretação destas últimas que não entre em conflito com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária.
18 - Da mesma forma que o Estatuto do Medicamento tem de se conformar com os limites constitucionais, também qualquer interpretação Diretiva 2001/83/CE terá sempre que ser feita no quadro do que dispõem os Tratados e nomeadamente da disposição do artigo 51.º, n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a qual dispõe que os Estados-Membros, quando apliquem o direito da União, "devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação".
19 - Mesmo que o direito europeu assim não dispusesse, sempre seria de aplicar a disposição dos artigo 8.º, n.º 4 da Constituição, a qual prevê que "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático", e desaplicar as normas comunitária que violassem tal princípio.
20 - Sendo os direitos fundamentais manifestações deste princípio da dignidade da pessoa humana, eles só existirão juridicamente, só se consubstanciarão em direitos subjetivos públicos, na medida em que a sua fruição seja garantida, ou seja, os direitos fundamentais deixam de o ser sem o específico regime que os protege e garante.
21 - Daqui decorre a existência de um direito fundamental inominado, não incluído na categoria dos direitos, liberdades e garantias, mas a eles análogo, decorrente do artigo 266.º, n.º 2 da CRP como manifestação do princípio do Estado de Direito democrático: o direito fundamental à garantia de direitos fundamentais por parte da Administração.
22 - O Estado português está vinculado e deve conformar-se com o que dispõe e prevê a Constituição, atuando por e através dela - atuando com vista a atingir os objetivos que esta consagra e legitimado pela sua consagração (artigo 3.º, n.º 2 da CRP), daí que nos termos do artigo 3.º, n.º 3 da CRP, a prática de qualquer ato do Estado desconforme com a Constituição seja inválido.
23 - Inclui-se na alínea b) do artigo 9.º da CRP a garantia dos direitos e liberdades fundamentais, garantia essa que assume assim a expressão máxima de tarefa fundamental do Estado, a quem, assim incumbe, por intermédio de todos os seus serviços, órgãos e agentes, o dever de salvaguarda dos direitos de propriedade industrial das Recorrentes, como direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, obrigando-o a adotar formas de organização e de procedimento adequadas à sua proteção efetiva.
24 - Ao contrário do que se escreve no acórdão do STA, a promoção e proteção da propriedade industrial estão, assim, sempre, dentro das atribuições do INFARMED e das competências dos seus órgãos e agentes, tal como a Constituição lhas imputa, manifestando-se necessariamente no quadro das competências - poderes - que a lei lhes tenha concedido.
25 - O ato de concessão de uma AIM não é um "ato realizado para fins de ensaio ou experimentais", pelo que o excurso do Acórdão recorrido sobre a sua não inclusão, por essa razão, no âmbito da violação da patente e da respetiva norma criminal punitiva nenhum interesse tem para esta causa.
26 - A AIM tem como única finalidade a de autorizar a comercialização de um medicamento que, sem tal autorização, jamais poderia ser vendido e tem eficácia automática a partir do momento da sua prática, como decorre do disposto no artigo 127.º do CPA.
27 - Se a comercialização de tal medicamento é infratora de uma patente, é manifesto que o objeto mediato dessa autorização, a sua teleologia, é precisamente a infração dessa patente, ou seja, na medida em que autoriza a comercialização de um medicamento violador de uma patente, a Administração Pública imiscui-se nessa comercialização, tornando-a viável e promovendo, consequentemente, a violação dela decorrente.
28 - De acordo com o "princípio da prevenção", a Administração Pública não se pode desligar das consequências possíveis de um ato que pratique, ainda que o Direito preveja formas de compensação do cidadão lesado mediante a previsão da responsabilização civil e penal de terceiros e, do mesmo modo, pedir-se que a Administração Pública se limite a não ignorar as consequências possíveis de um ato que pratica é exigir-se um nível mínimo de proteção de direitos fundamentais, devida pela Administração Pública.
29 - As preocupações geralmente manifestadas de não se conceder um monopólio de facto maior do que o legalmente estipulado para a comercialização da invenção protegida, garantindo-se que os medicamentos genéricos possam ser "colocados no mercado às 00:00 do dia seguinte ao da caducidade da Patente" seriam facilmente ser ultrapassadas sem o sacrifício da posição jurídica das Recorrentes, pela aposição de um termo suspensivo à autorização administrativa de que dependa a comercialização do medicamento violador da patente, concedendo-lhe eficácia diferida nos termos do artigo 129.º, alínea b) do CPA.
30 - A interpretação oferecida pelo acórdão a quo, como vimos, é inconstitucional por obrigar o INFARMED a desconsiderar a violação do direito de patente das Recorrentes, sendo evidente que obrigar a Administração Pública a desconsiderar a violação de direitos fundamentais é diametralmente oposto ao dever de garantir a sua efetivação: é pura linguística que comporta comandos contraditórios e que oferece uma solução de proteção negativa de um direito fundamental, esvaziando totalmente de conteúdo o direito à garantia de direitos fundamentais pela Administração Pública, sendo por isso materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 3.º, 9.º, alínea b), 18.º, n.º 1 e 266.º da CRP.
31 - Não sendo concedida eficácia diferida à AIM, será o direito fundamental à garantia de direitos fundamentais por parte da Administração suprimido, sendo, em decorrência, tal ato administrativo nulo, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea d) do CPA, por ofender o conteúdo essencial de um direito fundamental.
32 - E os Tribunais, por seu turno, não podem abster-se de declarar a ilegalidade de um ato administrativo proferido com desrespeito do dever de garantia de um direito fundamental, quando chamados a sobre ela se pronunciar, sob pena de essa sua omissão consubstanciar uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, prevista e consagrada no artigo 20.º, n.os 1 e 5 da CRP.
33 - Não obstante não se poder considerar o direito de propriedade industrial como um direito de conteúdo unicamente negativo, a verdade é que o conteúdo essencial desse direito corresponde à fruição de um exclusivo, por recurso aos diversos poderes que a lei para esse efeito lhe coloca à disposição, correspondendo este ius prohibendi ao conteúdo fundamental da patente, como direito exclusivo.
34 - Significa isto que, através da violação do direito fundamental à garantia de direitos fundamentais imposto à Administração Pública, a interpretação recorrida veio admitir ainda uma conduta que contribui, potencia e legitima a violação desproporcional do conteúdo essencial de um direito enquadrável na categoria dos direitos, liberdades e garantias, por força do artigo 42.º da CRP (ou, pelo menos, de um direito com natureza a eles análoga, por força do artigo 62.º da Constituição), sendo por isso materialmente inconstitucional por violação no disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 42.º e 62.º da Constituição.
35 - As possibilidades de restrição do direito de propriedade privada, que só podem resultar de um comando exarado pela lei, estão previstas no artigo 62.º, n.º 2 da Constituição (sendo que nenhuma das hipóteses aí consagradas teve lugar no caso dos autos), não podendo as dificuldades orçamentais do País justificar o desrespeito pelos princípios e normas constitucionais e sendo expectável que nos momentos de tensão e de dificuldades várias, a Lei Fundamental assuma papel destacado, enquanto bitola delimitadora da margem de liberdade de que dispõe o legislador.
36 - O domínio da aplicação da interpretação da norma constante dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento é desigual porque restrita a medicamentos, valendo o dever de desconsideração e de desproteção, na interpretação recorrida, apenas perante direitos de propriedade industrial incidentes sobre produtos farmacêuticos e mantendo-se os demais deveres de respeito e de garantia a que o Estado está vinculado aos direitos fundamentais relativos a produtos de outros domínios da técnica e da atividade económica totalmente intactos, violando-se assim o princípio da igualdade prevista no artigo 13.º da CRP.
37 - A parametricidade constitucional consagrada no artigo 3.º da CRP obriga a que a Administração Pública, na análise de qualquer diploma legal e em qualquer atuação que daí advenha, procure sempre, de entre as diversas interpretações possíveis que se lhe ofereçam de um tal comando legal, procurar a mais conforme à Lei Fundamental.
38 - A norma dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179.º, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento pode ser interpretada de várias formas, mas só uma será constitucional e que é a que propugna a proteção e garantia de direitos fundamentais, pelo que tendo o INFARMED (e, posteriormente, o STA) escolhido optar pela interpretação desconforme à Constituição, fulminando o seu ato de inconstitucionalidade, por força do artigo 3.º, n.os 2 e 3 da CRP.
39 - O artigo 9.º, n.º 1 da Lei 62/2011 veio dar valor interpretativo aos dispositivos dos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Decreto-Lei 176/2006, na redação que lhes atribuiu.
40 - Ainda que a norma afirme ter caráter interpretativo e não eficácia retroativa, o seu propósito é, evidentemente, o de atingir situações que se configuraram no passado e que subsistem ainda e não seria necessária a consagração da sua natureza interpretativa se o seu objetivo fosse o de dispor só para o futuro.
41 - A lei interpretativa, ainda que autêntica, ao pretender vigorar para o período anterior à sua emissão, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, altera o contexto de auto vinculação dos órgãos de aplicação do Direito ao Direito e, consequentemente, afeta a segurança dos destinatários das normas protegida por uma proibição (constitucional) de retroatividade.
42 - Representando os artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179.º, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento, na interpretação oferecida pelo STA, uma limitação a um direito fundamental das Recorrentes, a atribuição de eficácia retroativa a tal norma, seja por que via for, é inconstitucional, por atingir o artigo 18.º, n.º 3 da CRP.
43 - O verdadeiro objetivo da Lei 62/2011, como decorre aliás claramente da Exposição de Motivos que o Governo apresentou à Assembleia da República, não foi o de interpretar normas jurídicas em abstrato mas, o de forçar a mão dos juízes, interferindo na decisão de casos judiciais pendentes e orientando a Justiça no sentido desejado pelo legislador.
44 - Nessa medida, o artigo 9.º da Lei 62/2011 encontra-se ferido também de inconstitucionalidade por uma invasão da reserva da função judicial pelo poder legislativo, violando os princípios constitucionais da separação de poderes e do Estado de direito democrático, previstos nos artigos 2.º e 111.º, n.º 1 da CRP.
45 - A Administração Pública, consciente da ilegalidade dos atos que praticava porque, como o Governo afirmou na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 13/XII, assim eram considerados pelos tribunais, veio posteriormente legislar sobre a matéria em sentido confessadamente contrário à jurisprudência, atribuindo natureza interpretativa às normas alteradas, com vista a sanar retroativamente a invalidade de tais atos.
46 - Tal intrusão da Administrativo no poder judicial tem como propósito, apenas, coartar o direito dos administrados de acesso aos tribunais para impugnação dos atos administrativos que lesem os seus direitos e interesses legalmente protegidos, previsto no artigo 268.º, n.º 4 da CRP como manifestação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, garantido pelo artigo 20.º, n.º 1 da Constituição, violando os artigos 2.º, 20.º, n.º 1, 110.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP, sendo por isso materialmente inconstitucional.»
3 - Devidamente notificado para o efeito, o recorrido Infarmed veio apresentar as seguintes contra-alegações:
«No presente recurso as Recorrentes vêm colocar em causa os artigos 25.º/1 e 2 e 179.º/1 e 2 do Estatuto do Medicamento e os artigos 8.º/1 e 3 e 9.º da Lei 62/2011, de 12 de dezembro ("Lei 62/2011"), por considerarem que as mesmas normas violam o direito de propriedade industrial constante do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa ("CRP").
No entanto, e como de seguida demonstraremos, os referidos artigos são absolutamente conformes com a CRP.
Vejamos.
Para a alegarem a inconstitucionalidade das referidas normas, as Recorrentes partem de uma premissa que os seus alegados direitos de propriedade industrial são direitos fundamentais.
Acontece que, os direitos de propriedade industrial não configuram um direito fundamental, e muito menos um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, para efeitos do artigo 133.º do CPA.
De facto, e conforme defendem José Luís Arnaut, João Paulo Mioludo e Diogo Guia in Marcas & Patentes, Texto Editora,
"Há que referir que a tese que sustenta que os direitos de propriedade industrial revestem natureza de direitos de propriedade não é isenta de críticas. O Estado concede ao titular da patente um monopólio temporal quanto à sua exploração industrial ou comercial, exigindo em troca a divulgação da invenção".
Ou seja, os direitos de propriedade industrial não visam tutelar a apropriação individual de determinado bem imaterial, mas sim proteger a capacidade de inovação e a capacidade distintiva, sendo que o seu assento constitucional, quando muito, prende-se com a liberdade da iniciativa privada e com a tutela de mercado.
O que significa que com o direito de propriedade tem apenas a sua designação e o fato de constituir também um direito económico.
E sempre se diga, que ainda que se admita que o direito de propriedade industrial goze da aplicação do artigo 62.º da CRP, a verdade é que, sempre seria ilegítimo por esta via impedir atos de futura comercialização, porque o conteúdo da patente consiste no exclusivo temporário de comercialização e não inclui nenhum poder de vedar procedimentos preparatórios de futura entrada no mercado.
Como referem os Senhores Professores Oliveira Ascensão e Paulo Otero,
"Resta saber quais os efeitos desta integração do direito de patente na categoria de elemento patrimonial privado. A previsão constitucional da propriedade dá desde logo a este direito uma garantia institucional. Não pode realizar-se a supressão pela lei comum do instituto dos direitos patrimoniais privados.
Dá-lhe a categoria de direito fundamental, se considerarmos direito fundamental todo o que é previsto e garantido pela Constituição.
Mas a "propriedade", no sentido constitucional, não se integra sistematicamente na categoria privilegiada dos "direitos, liberdades e garantias': estabelecido no art. 18 e noutros preceitos da Constituição. O art. 62 está fora dessas provisões e é antes colocado entre os "Direitos e deveres Económicos". Por isso, à propriedade privada é atribuído um regime mais restrito, uma vez que o art. 62/1 apenas garante o direito à propriedade privada e a sua transmissão e, vida ou por morte "nos termos da constituição". É uma fórmula intencionalmente restritiva da proteção. Esta é assim a base constitucional da qualificação como propriedade, que fica na sua intencionalidade desvalorizada pela integração geral nos direitos patrimoniais privados. É protegida porque é um elemento do património, mas sem que haja a proteção absoluta que algumas vozes reclamam. A patente não dá um direito em posição de privilégio em relação aos restantes direitos patrimoniais. E que isso em nada inquina a subordinação da patente ao interesse público evidencia-se definitivamente, além de tudo o que já dissemos, pela previsão do art. 105/2 do Código de Propriedade Industrial-CPI: "Qualquer patente pode ser expropriada por utilidade pública mediante o pagamento de justa indemnização, se a necessidade de vulgarização da invenção, ou da sua utilização pelas entidades públicas, o exigir". Qualquer qualificação como propriedade não exclui a primazia constitucional do interesse coletivo. A regra está profundamente assente entre nós, sem contestação. A qualificação como propriedade nunca poderia transformar pois o direito industrial numa ocorrência ímpar, insensível à vinculação comunitária de tudo o que é jurídico" (v. págs. 13 e 14 do Documento n.º 1).
Ou seja, e conforme referiu o Senhor Professor Paulo Otero num parecer junto ao processo 674/11.7BELSB,
"a proximidade e a essencialidade da garantia da saúde com a dignidade da pessoa humana, num modelo de Estado em que as pessoas valem mais do que as coisas ou a propriedade, e o entendimento de que a limitação ou restrição dos direitos exclusivos decorrentes de patentes traduzam ampliação da liberdade, num modelo de Estado que privilegia a liberdade à propriedade, conduzem a uma solução constitucional abstrata que confere preferência à posição que defende a introdução no mercado de medicamentos genéricos, isto face à posição de conteúdo patrimonial defendida pelos titulares de patentes sobre medicamentos de referência. "
Pelo que, não obstante ser evidente a tutela constitucional das patentes e dos direitos delas decorrentes, é inequívoco que as mesmas cedem perante o direito fundamental da proteção da saúde.
Desta forma, no âmbito do procedimento de concessão de AIMs, o direito à patente nunca pode ser considerado como um direito absoluto, uma vez que há outros direitos e interesses a acautelar naquele procedimento administrativo.
De facto, e não obstante o Estatuto do Medicamento procurar definir uma solução harmoniosa entre as posições jurídicas em conflito nos processos judiciais relativos à alegada violação de patentes por atos de AIMs, é evidente que a existência de eventuais conflitos decorrentes da violação de direitos resultantes de patentes, traduzindo um litígio entre particulares, extravasa a esfera do poder administrativo, inserindo-se antes no âmbito da função jurisdicional.
Ou seja, apesar de o procedimento administrativo de concessão de AIMs envolver também a tutela do exercício da liberdade de criação e investigação científicas, os litígios entre particulares relativos a eventuais violações de direitos emergentes de patentes são da competência dos Tribunais e não da Administração Pública.
Neste sentido, o artigo 25. º/2 do Estatuto do Medicamento, na redação dada pela Lei 62/2011, não impede o exclusivo de comercialização que consubstancia o conteúdo da patente do medicamento de referência.
Aliás, a referida norma revela-se um meio idóneo para prevenir situações de impedimento de comercialização de medicamentos genéricos em cenários de caducidade da patente do medicamento de referência.
Do mesmo modo, sempre se diga que, a norma constante do artigo 25.º/2 do Estatuto do Medicamento, na redação dada pela Lei 62/2011, não tem qualquer efeito lesivo de direitos fundamentais dos titulares de medicamentos de referência, antes visa evitar que haja usurpação de poderes jurisdicionais pela Administração Pública.
Por outro lado, e_nas palavras de Jorge Miranda, in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3.ªEdição, Coimbra Editora, páginas 528:
"Da circunstância de o art. 62. o não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não pode extrair-se que elas sejam vedadas. Só assim seria numa visão fechada e absolutizante da propriedade, à margem do sistema constitucional.
Somente uma quimérica Constituição liberal radical se pretenderia que a propriedade não pudesse ser restringida senão nos casos nela direta e expressamente contemplados e se entenderiam proibidas quaisquer normas legais restritivas que lhes não cor respondessem.
Pelo contrário, qualquer Constituição positiva, ainda que imbuída de respeito pela propriedade, tem de admitir que a lei declare outras restrições - até por não poder prevê-las ou inseri-las todas no texto constitucional". (sublinhado nosso).
Desde logo, e mais relevante, há um interesse público a defender no procedimento de atribuição de AIMs, interesse esse consubstanciado, conforme já se referiu supra, em garantir a segurança, qualidade e eficácia dos medicamentos que estão no mercado. Por outro lado, há também um interesse público em garantir a sustentabilidade do SNS.
Aliás, quanto a este aspeto, refira-se exemplificativamente que, no Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica firmado pelo Governo Português com o FMI, a CE e o BCE, em 17.05.2011, na Medida n.º 3.60. acordou-se que incumbia ao Estado Português: "Remover todas as barreiras à entrada de genéricos, especialmente através da redução de barreiras administrativas/legais, com vista a acelerar a comparticipação de genéricos"
Por outro lado ainda, existe o interesse da ora Contrainteressada, e dos laboratórios produtores de medicamentos genéricos em comercializarem os seus medicamentos assim que as patentes caduquem ou assim que declaradas inválidas.
Recorde-se que a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 61.º/1, consagra o direito à iniciativa económica, ainda que nos termos da própria Constituição e da lei.
Ora, se os laboratórios produtores de medicamentos genéricos quiserem comercializar os seus medicamentos assim que a patente caduque, ou assim que seja declarada inválida, não há nenhum impedimento constitucional ou legal que impeça a comercialização dos seus genéricos.
Ou seja, e por outras palavras, o interesse dos laboratórios produtores de genéricos em comercializarem os seus medicamentos é digno de tutela, pelo que, resulta evidente que, o direito de propriedade industrial da Autora, e de uma forma geral dos titulares de patentes, não pode ser considerado como um direito absoluto, pelo menos no âmbito do procedimento de concessão de AIM.
E quanto ao que se acabou de referir, não se diga que a emissão de uma AIM implica a comercialização imediata do medicamento em causa porquanto, ainda que o artigo 77.º/3 do EM determine o ónus jurídico de o medicamento ser comercializado no prazo máximo de três anos, prevê também a sua inaplicabilidade quando a não comercialização se deva a uma imposição legal.
Desta forma, caso se verifique que de facto o medicamento de referência se encontra protegido por uma patente, a não comercialização do medicamento genérico que possa violar aquele direito de propriedade industrial é imposta por lei.
Ou seja, o referido ónus jurídico não é aplicável às situações em que o titular de AIM se encontra legalmente impedido de comercializar o seu medicamento.
Assim, não configuram obrigações do INFARMED decorrentes da Constituição da República Portuguesa, por não se tratar de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Aqui chegados, e em termos sumários, verifica-se que inexiste violação do princípio constitucional da tutela da confiança, subjacente ao limite da proibição das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias de alcance retroativo (artigos 2.º e 18.º, n.º 3 da CRP), ou violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que a nova lei veio clarificar o sentido das normas do Estatuto do Medicamento (versão anterior) que eram já colhidas pelo Requerido.
Mais acresce que, mesmo que os titulares da AIM entendessem iniciar a comercialização do seu medicamento genérico antes do terminus do prazo de proteção da patente do medicamento de referência, ainda assim os titulares desse direito de propriedade industrial nos termos do artigo 2.º da Lei 62/2011, têm agora um mecanismo célere de composição de litígios decorrentes de direitos de propriedade industrial, permitindo que se obtenha uma decisão célere que determine se existe ou não violação desses direitos por parte do medicamento genérico.
Além disso, a norma interpretativa constante do artigo 9.º/1 da Lei 62/2011, limitou-se a resolver, por via de interpretação autêntica, uma ambiguidade interpretativa relativa aos efeitos dos direitos de propriedade industrial sobre os procedimentos administrativos de concessão de AIM e fixação de PVP.
Sendo que, a retroatividade da Lei 62/2011 conferida pela referida norma interpretativa, não é inconstitucional na medida em que: i) não é violadora da tutela da confiança; ií) não lesa qualquer faculdade do titular de direitos de propriedade industrial; ííí) amplia o direito fundamental à proteção da saúde; e iv) satisfaz interesses públicos objeto de expressa proteção constitucional.
O que agora se referiu, vai ao encontro da posição deste Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido, quando referiu que, "Antes de mais, imposta reter que a «natureza interpretativa» das leges novae trazidas pela Lei 62/2011, relacionada com a desconsideração de patentes na emissão de AIM's, é insuscetível de controvérsia. É que tal índole interpretativa, para além de afirmada expressis verbis pelo legislador, corresponde à efetividade das coisas, pois que, sobre esse assunto, havia dúvidas manifestadas em duas correntes jurisprudenciais opostas. Sendo assim, aquela «natureza interpretativa» prevista no art. 9, n.º 1, da Lei 62/2011, de 12/12, é real, em vez de furtivamente acobertar uma intenção inovadora e uma simultânea, e dissimulada, cláusula de retroatividade.
Por outro lado, as leis interpretativas, embora tendam a vigorar ex ante, não são retroativas proprio sensu, porque se limitam a fixar um regime já aplicável no passado. Por isso mesmo, a proibição constitucional de que se atribua retroatividade a leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n. º 3) só abrange as leis inovadoras, como este STA já teve a oportunidade de dizer. Quanto às leis deveras interpretativas, a sua retroatividade imprópria está sujeita aos limites previstos no art. 13º, n. º 1, do Código Civil: a salvaguarda dos «efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza». Todas essas hipóteses traduzem situações juridicamente estabilizadas, que nada têm a ver com o caso discutido na ação a que respeitam os autos, em que estava em causa aferir da legalidade da AIM, por falta de ponderação da patente. Ora, o que a lei interpretativa indiretamente nos diz é que o INFARMED andou bem ao desconsiderar a patente, pois era assim que a legislação a convocar para a emissão dos impugnados atos devia ser interpretada ab initio. O que, como vimos, implica a improcedência da ação proposta, como decidiu o acórdão recorrido.
Portanto, a inconstitucionalidade que as recorrentes atribuem ao art. 9º, n. º 1, da Lei 62/2011 não tem razão de ser. Inseria-se seguramente nas prerrogativas do legislador emitir uma lei interpretativa em matéria controversa.
E a emissão de tal lei não fere qualquer direito das recorrentes em sede de propriedade industrial. Pois, seja ou não de reconhecer natureza de direito fundamental ao direito delas à patente, a lei interpretativa, precisamente por sê-lo, não restringiu o direito de propriedade industrial, limitando-se a esclarecer que a consideração e a defesa dele não podem ocorrer no procedimento administrativo de AIM, mas alhures, onde o direito é, aliás, suscetível de uma tutela jurisdicional efetiva, como antes já se viu".
Desta forma, deve ser julgado improcedente o presente recurso, dada a evidente constitucionalidade das normas ora em análise.
1.ª Os direitos de propriedade industrial não configurarem um direito fundamental, e muito menos um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, para efeitos do artigo 133.º do CPA.
2.ª No entanto, ainda que se entenda que os direitos de propriedade industrial gozam da aplicação do artigo 62.º da CRP, a verdade é que, sempre seria ilegítimo por esta via impedir atos de futura comercialização, porque o conteúdo da patente consiste no exclusivo temporário de comercialização e não inclui nenhum poder de vedar procedimentos preparatórios de futura entrada no mercado.
3.ª Além disso, não se pode considerar o direito de propriedade industrial como um direito absoluto em sede de procedimento de concessão de AIM, desde logo porque existe, acima de tudo, um interesse público a defender, que consiste em assegurar a qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos a serem colocados no mercado, e em garantir a sustentabilidade do SNS.
4.ª Além disso, também os laboratórios produtores de genéricos têm interesses legítimos a defender, como é o interesse de poderem comercializar os seus medicamentos logo que as patentes caduquem ou assim que sejam declaradas inválidas.
5.ª Assim, e tendo em conta que nomeadamente nos termos do artigo 2.º da Lei 62/2011, os laboratórios titulares de patentes têm forma de reagir à eventual violação dos seus direitos de propriedade industrial, sublinhe-se que num procedimento de concessão de AIM não há apenas estes interesses a ser considerados.
6.ª Pelo que, não se justifica que exista uma proteção especial dos interesses dos laboratórios titulares de patentes, principalmente face ao interesse público, mas também face aos legítimos interesses dos laboratórios produtores de genéricos.
7.ª Por outro lado, também a retroatividade da Lei 62/2011 conferida pela referida norma interpretativa, não é inconstitucional na medida em que: i) não é violadora da tutela da confiança; ii) não lesa qualquer faculdade do titular de direitos de propriedade industrial; iii) amplia o direito fundamental à proteção da saúde; e iv) satisfaz interesses públicos objeto de expressa proteção constitucional.
8.ª Face ao exposto, para além de resultar inequívoco que os direitos de propriedade industrial não são direitos fundamentais, resulta também que, ao contrário do defendido pela Recorrente, não há qualquer inconstitucionalidade da norma constante no artigo 9.º/1 da Lei 62/2011, que conferiu caráter interpretativo à nova redação dada aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento, por violação do artigo 18.º/3 da CRP.»
4 - Igualmente notificada para o efeito, a recorrida Generis veio apresentar contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«1 - É grave e inaceitável que as Recorrentes pretendam obscurecer a insustentabilidade jurídica da sua posição por detrás da invocação da existência de uma conspiração de todos os poderes do Estado (Presidente da República, Assembleia da República, Governo, Tribunais e Ministério Público), que teria por intento impedir a efetivação de um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, "in casu" o direito de propriedade na sua vertente de direito de propriedade industrial.
2 - Ao invés, a confluência comportamental objetiva que se verificou entre todas essas entidades, deve ser vista como o resultado de uma interpretação das normas aplicáveis à situação "sub iudicio" que, sendo autónoma, é a que melhor se coaduna com as exigências da lei fundamental, fragilizando por consequência as teses das Recorrentes.
3 - O que o Tribunal Constitucional é convocado a decidir, nos presentes autos, é se o direito de propriedade industrial tem natureza absoluta, sobrepondo-se a todo e qualquer outro direito fundamental ou interesse constitucionalmente protegido, e obrigando assim à desconsideração destes, a pontos de exigir que uma entidade pública seja obrigada a avaliar do respeito por ele no âmbito de um procedimento que nada tem que ver com esse mesmo direito e no exercício de atribuições que a lei lhe não confere.
4 - Apresentando o direito económico de patente algumas dimensões análogas aos direitos, liberdades e garantias, para o efeito de lhe ser aplicável o regime de garantia constitucional destes últimos (mormente o de não ser dela privado arbitrariamente), já não se considera aceitável considerar que da mesma garantia defluam, ao abrigo do n.º 1 do artº 18º da CRP, regras autoaplicativas que vinculem, sem mais, a Administração, já que semelhante posição desconsidera o facto de que a mesma garantia é passível de ser configurada e restringida, legitimamente, por lei.
5 - No que respeita, em concreto, à garantia do direito de propriedade industrial, admite-se que a Constituição possa conferir ao legislador ordinário, não apenas um maior ónus para assegurar a sua proteção, mas também uma maior discricionariedade para estatuir a sua configuração, do que a que outorga implicitamente à intervenção legislativa respeitante ao direito de propriedade em geral nos termos dos n.os 1 e 2 do artº 62º da CRP.
Com efeito, a liberdade de criação científica, prevista no n.º 1 e 2 do artigo 42º da CRP, compreende o "direito à invenção, produção e divulgação da obra científica", precisando o segundo preceito que esse direito envolve a "proteção legal dos direitos de autor".
Desta disposição é possível extrair que o reconhecimento do direito de patente industrial, a liberdade da sua exploração económica e igualmente a sua garantia jus-fundamental, deverá ser conformada e garantida por lei, na medida em que essa imediação legislativa decorre da fórmula constitucional "proteção legal".
6 - Os limites e restrições legais ao direito de patente, nomeadamente o direito relativo à propriedade industrial do medicamento de referência, justificam-se na necessidade de o harmonizar, atenta a sua função social constitucionalmente reconhecida, com:
d) Outros direitos análogos aos direitos liberdades e garantias, como é o caso da liberdade de concorrência e a liberdade de iniciativa privada das empresas de medicamentos genéricos, acolhida no artigo 61º da CRP;
e) Direitos sociais e económicos, como o direito à proteção na saúde previsto no artº 64º da CRP e os direitos dos consumidores, acolhidos no artº 60º;
f) Interesses públicos constitucionalmente qualificados do Estado, como o dever de defender e promover a proteção na saúde, mormente através da socialização dos custos do medicamento, nos termos do proémio do n.º 1 do artigo 64º CRP e da alínea c) do seu n? 3 e, ainda, o dever de garantir equilíbrio financeiro do Estado, de acordo com o n.º 4 do artº 105º da CRP.
7 - Não tem assim cabimento constitucional o entendimento segundo o qual o direito de patente de medicamento de referência, como direito "absoluto" de viés análogo aos direitos, liberdades e garantias, se aplicaria direta e imediatamente, em todas as suas dimensões, às esferas jurisdicionais e administrativas como se, porventura, a lei não pudesse introduzir-lhe restrições ou reduzir, no respeito do princípio da proporcionalidade, o seu âmbito de proteção.
8 - Do regime específico dos direitos, liberdades e garantias não é constitucionalmente legítimo retirar a conclusão de que outros direitos fundamentais, neles incluindo os direitos económicos sociais e culturais, ou outros interesses constitucionalmente tutelados tenham sempre de ceder - para não dizer ser negados - perante a força normativa daqueles.
9 - As restrições aos direitos, liberdades e garantias não se devem confinar às situações expressamente tipificadas no texto da lei fundamental, ou por esta autorizadas explicitamente, sendo' ainda constitucionalmente legítimas quando se configurarem como o caminho adequado - ou até mesmo indispensável - para salvaguardar outros direitos fundamentais ou bens que apresentam valor de primeira grandeza no imaginário constitucional.
10 - A concessão da AIM não confere, por si só, qualquer direito de comercialização, direito esse que só surgirá com o final do prazo de exclusividade que a patente confere. Por isso mesmo, os atos praticados no decurso do prazo de proteção não põem em crise qualquer direito de patente, uma vez que deles não decorre qualquer prejuízo, direto ou indireto, para o titular dessa mesma patente.
11 - A necessária conciliação entre dois direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias aqui em presença - o direito de propriedade industrial e a liberdade de iniciativa económica - consegue-se, por um lado, protegendo o direito de patente por via do exclusivo de comercialização por um prazo de 20 anos e, por outro, defendendo a liberdade de iniciativa económica (i) autorizando, no decurso desse período, a prática dos atos que em nada afetam o exclusivo, como sucede com a concessão da AIM e, (ii) após o decurso desse prazo, e a consequente caducidade da patente, permitindo a livre comercialização do produto.
12 - Na vigência da versão original do EM, o INFARMED sempre recusou a aplicação da lei no sentido pretendido pelas Recorrentes, limitando-se por isso, como era sua estrita obrigação, a conferir AIM se a legislação que lhe cabia fazer respeitar lho determinasse e recusando qualquer apreciação, para a qual era desprovido de competências, quanto à existência de direitos de propriedade industrial.
13 - A Lei 62/2011 clarificou, de forma incontroversa, que questões relativas aos direitos de propriedade industrial se encontram excluídos do âmbito de atribuições do INFARMED, bem como dos procedimentos administrativos que correm na sua esfera e dos pressupostos que vinculam os atos que esse Instituto pratica. E, por tal razão, não só se não regista qualquer violação ao dever de interpretação conforme como, bem pelo contrário, se pode apontar um exemplo de uma interpretação perfeitamente adequada e conforme à Constituição.
14 - Não assiste qualquer razão às Recorrentes quando sustentam que do princípio da constitucionalidade decorre, para a Administração Pública, um direito/dever de desaplicar normas legais supostamente inconstitucionais. De facto, uma adequada compreensão do sistema português de controlo da constitucionalidade, dimensão que as Recorrentes ignoram em absoluto, permitiria facilmente chegar à conclusão de que a Administração Pública não goza do poder para desaplicar normas inconstitucionais.
15 - O sistema português de controlo da constitucionalidade baseia-se, no que à sua natureza diz respeito, no caráter exclusivamente judicial. Dito de outra forma: (i) só os tribunais têm o direito e o-dever de desaplicar normas inconstitucionais; (ii) todos os tribunais são investidos desse poder/dever.
16 - E, dessa natureza, extrai a mais qualificada doutrina nacional a conclusão de que o princípio básico é o de recusar à administração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais.
17 - Não tem qualquer sustentação a crítica que as Recorrentes fazem ao STA, por ter baseado a sua desconsideração das pretensões daquelas na ideia de que a matéria da propriedade industrial se encontra fora das atribuições do INFARMED, não lhe cabendo por isso fazer qualquer apreciação sobre tal matéria em sede de concessão de AIM.
18 - De facto, o que se não entende é a tese das Recorrentes, para quem o INFARMED estaria obrigado a, no âmbito de um procedimento de AIM (ou a DGAE, a propósito da fixação do PVP), apreciar da eventual existência de direitos conferidos por uma patente, quando a apreciação dessas matérias está "ope legis" excluída da órbita das suas atribuições, encontrando-se antes entregue à responsabilidade do INPI.
19 - Em particular, não se compreende como é que similar leitura é compatível com a interpretação do princípio da legalidade, tal como acolhido na lei fundamental (n.º 2 do artigo 266.º) e plasmado no n.º 1 do artigo 3.º do CPA, que estipula que os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos. Ou com a alínea b) do n.º 2 do artigo 133.º do mesmo Código, que fulmina de nulidade os atos administrativos estranhos às atribuições da pessoa coletiva em que o seu autor se integra.
20 - Quer a partir dos fins das atribuições legais do INFARMED, quer das regras relativas ao procedimento relativo à AIM, não era possível sustentar, mesmo antes da entrada em vigor da Lei 62/2011, a validade de poderes de indeferimento que não resultassem dos objetivos da atividade de supervisão do Instituto tendo em vista a comercialização dos medicamentos e centrados no controlo da qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos.
21 - Não procede o argumento da vinculação do procedimento da AIM a um bloco difuso de constitucionalidade e de legalidade, que imporia ao INFARMED uma obrigação de tutela preventiva do direito de propriedade industrial, e que a lei sindicada seria inconstitucional por ofensa ao conteúdo mínimo da garantia se vedasse essa tutela ex ante, já que o procedimento de autorização não é lesivo da garantia constitucional do direito de patente e o INFARMED não pode exercer competências não previstas em lei que contrariem o objeto e o fim que presidiram à atribuição legal da sua missão e dos seus poderes.
22 - A normação europeia (artigo 126.º da Diretiva 2001/83/CE e n.º 2 do artigo 81.º do Regulamento 726/2004), enumera de forma taxativa as causas de indeferimento de uma AIM, dessas causas excluindo, expressamente, a averiguação da eventual existência de direitos de propriedade industrial sobre medicamentos de referência.
23 - Assim, a Administração e sobretudo os tribunais, mesmo que indevidamente não viessem a aplicar o EM, na interpretação autêntica que foi estabelecida pela Lei 62/2011, encontrar-se-iam sempre vinculados à aplicação dessas regras de direito europeu, à luz do qual devem interpretar a própria legislação ordinária em virtude do princípio do primado.
24 - A desaplicação da regra da taxatividade do elenco de fundamentos de indeferimento da AIM, tal como resulta das citadas normas de direito europeu, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação da garantia constitucional de direito de patente, para isso invocando a ofensa aos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático (n.º 4 do artigo 8.º da Constituição), seria de todo em todo insustentável, entre outras razões, porque a invalidade invocada não procede e, em qualquer caso, se procedesse, não seria manifesta nem atingiria objetivamente um bem de importância tão fundamental que justificasse uma solução tão extrema, como seria a inconstitucionalidade de direito europeu.
25 - Em consequência, deve ser rejeitada a pretensão das Recorrentes no sentido da desaplicação das normas questionadas da Lei 62/2011, com fundamento na sua pretensa inconstitucionalidade, impondo-se a prevalência de uma interpretação dessas mesmas normas feita em conformidade com a Constituição e com o direito da União Europeia, o qual seria objetivamente violado, caso procedesse a argumentação das mesmas Recorrentes.
26 - Não tem qualquer admissibilidade a pretensão das Recorrentes de extrair, da submissão da Administração Pública à Constituição (n.º 1 do artigo 266.º) e do dever genérico do Estado de defender e promover os direitos fundamentais (artigo 2.º, alínea b) do artigo 9.º e n.º 1 do art. 18), um suposto direito fundamental à garantia dos direitos fundamentais por parte dessa mesma Administração. Trata-se de uma construção artificiosa, destinada unicamente a salvar a fragilidade da posição jurídica das Recorrentes.
27 - O pretenso direito fundamental à garantia dos direitos fundamentais assenta numa errada perceção da distinção entre direitos - que apresentam natureza principal, por permitirem a realização das pessoas e se inserem imediatamente nas suas esferas jurídicas - e garantias - que revestem índole acessória e, muitas vezes adjetiva e que apenas se projetam nessas esferas jurídicas pelo nexo de ligação que apresentam face aos direitos.
28 - Para além das garantias particulares, que se destinam a proteger, no plano dos princípios, um específico direito, a Constituição consagra um elenco próprio de garantias de tipo geral, com especial destaque para o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º). Trata-se, como facilmente se aceitará, de uma das traves mestras do Estado de Direito, que pressupõe a afirmação do princípio da separação de poderes e da independência do poder judicial.
29 - É por essa via que os cidadãos poderão buscar, se necessário for, o respeito pelos seus direitos fundamentais, sobretudo quando em causa estejam os direitos, liberdades e garantias, atento até o regime de aplicabilidade direta que no n.º 1 do artigo 18.º se estipula. Não será exagero afirmar que tal direito se assume, no imaginário constitucional, como a garantia por excelência dos outros direitos fundamentais.
30 - Contrariamente ao que pretendem as Recorrentes, a Constituição não consagra, a par da tutela jurisdicional efetiva, uma tutela administrativa efetiva, que conduzisse a que, "sponte sua" ou a pedido dos interessados, a Administração Pública pudesse desaplicar normas legais com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação dos direitos fundamentais. A equiparação entre esses dois tipos de tutelas não só não tem qualquer assento constitucional como constituiria, de algum modo, uma violação da ideia de separação de poderes, por atribuir à Administração Pública o exercício de competências similares às dos tribunais.
31 - A Constituição delimita com clareza as tarefas dos tribunais e as da Administração Pública. Àqueles comete, entre outras, as tarefas de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 2 do artigo 202.º); a esta, a missão de prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (n.º 1 do artigo 266.º).
Aceitar-se-á, pois, que uma coisa é assegurar direitos, decidindo com caráter definitivo sobre as situações em que a sua violação ou desrespeito seja apreciado; outra bem diversa é, na realização do interesse público, e em subordinação permanente ao princípio da legalidade (n.º 2 do artigo 266.º da Constituição e art.3.º do CPA), agir com respeito por esses direitos.
32 - É certo que a prática pela Administração de atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental envolve a nulidade desses atos (alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA).
E que tal ofensa pode decorrer da aplicação de normas legais violadoras desse direito fundamental. Mas não é seguramente irrelevante, porque contradita diretamente os pressupostos do raciocínio das Recorrentes, que a verificação última dessa nulidade caiba aos tribunais administrativos, uma vez que tal facto reforça a conclusão de que a Administração Pública não é, nem pode ser, dotada de uma competência autónoma para aferir de tal violação e para, em consequência recusar, com tal fundamento, a aplicação de normas legais cuja desconformidade com a lei fundamental considerasse existir.
33 - Admitir que sobre a Administração Pública recai um dever de, por aplicação do suposto direito fundamental à garantia dos direitos fundamentais, desaplicar normas que repute inconstitucionais por violação de direitos, liberdades e garantias é, apenas, uma forma transviada de obter um objetivo que a Constituição interdita - a concessão à Administração Pública do poder de fiscalização de constitucionalidade. No fundo, o que as Recorrentes aqui postulam mais não é do que uma gritante "fraude à Constituição", tentando atingir por esta via os resultados a que não conseguem chegar por aquela.
34 - É perplexizante a ideia de que, por decorrência de um suposto direito fundamental à garantia dos direitos fundamentais, os órgãos e serviços da Administração Pública não estariam, sequer, condicionados, pelo respeito pelas atribuições e competências que lhe estão legalmente cometidos. Destarte, a salvaguarda de um direito, liberdade e garantia far-se-ia até por via da prática de atos nulos, porque estranhos a essas atribuições (alínea b) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA), não se compreendendo depois como é que um ato nulo - e, por natureza, de nenhum efeito - poderia consubstanciar uma adequada defesa desse direito, liberdade ou garantia.
35 - A discussão central dos presentes autos roda em torno, não daquilo que as Recorrentes pretendem (a absolutização dos direitos de propriedade industrial, que conduz à desvalorização ou, no limite, à destruição do conteúdo de qualquer outro direito fundamental ou interesse constitucionalmente protegido que com ele se cruzasse), mas da avaliação da compatibilidade constitucional do grau de proteção do direito de propriedade industrial que decorre da aplicação conjugada das normas do EM e da Lei 62/2011, de 12 de agosto (e isso independentemente de tal proteção ser assegurada no plano administrativo ou ao nível judicial).
36 - Importa, por isso, retomar a distinção essencial entre a concessão da AIM, da responsabilidade do INFARMED e a comercialização de medicamentos, da exclusiva responsabilidade do titular da AIM. Ora, ao conceder uma AIM, o INFARMED está apenas a afirmar que aquele concreto medicamento corresponde, certificadamente, às características químicas e farmacológicas que os seus requerentes lhe atribuem e que, em consequência, não só não haverá risco para a saúde pública, mas até consequências benéficas para os seus Sociedade de Advogados utilizadores. Em caso algum tal concessão pode ser vista como tendo por objeto mediato a permissão para a infração de uma patente.
37 - Insistindo neste ponto: autorização para introdução no mercado é uma coisa; autorização para comercialização é outra, bem distinta. Aquela permite que o medicamento possa vir a ser colocado no mercado, por força das características intrínsecas que apresenta, no momento em que a patente caducar. Esta autoriza a sua comercialização efetiva. Aquela decorre de um procedimento administrativo em que o produto é técnico-cientificamente testado e exige a emissão do correspondente ato administrativo. Esta decorre diretamente da lei, que apenas a permite a partir do momento da caducidade da patente, cuja duração é de 20 anos.
38 - Não cabendo ao INFARMED qualquer dever de prevenção de riscos ou de hipóteses probabilísticas de violação da garantia de propriedade industrial derivada do mau uso que os particulares possam fazer de uma AIM, não é possível sustentar que a norma legal que garante a necessária abstenção do INFARMED na realização dessa atividade preventiva viabilize a lesão do direito da propriedade industrial ou a prática de atos criminosos por parte de atos autorizativos que, em si mesmos, se mostram insuscetíveis de lesar desses direitos.
39 - Improcedem pois as razões de inconstitucionalidade invocadas em relação à nova redação dada ao n.º 8 do artº 19º e ao artº 25º do Decreto-Lei 176/2006, pelo artº 4º da Lei 62/2011 em eventual conjugação com o artigo 9º, na medida em que a mesma não habilita os particulares à violação de direitos nem à prática de outros atos ilícitos.
40 - Se não se verifica qualquer violação de direitos, por maioria de razão se não poria em crise um suposto direito fundamental à garantia dos direitos fundamentais, pois que, ainda que este decorresse da lei fundamental - coisa que, como se notou já, não ocorre -, não se tornaria aqui operativo, precisamente pelo facto de, inexistindo desconsideração de um direito, nada haver a garantir.
41 - Por paralelismo parcial de razão argumentativa, deve ser excluída da esfera da DGAE, no que concerne ao procedimento de aprovação do preço de venda ao público do medicamento genérico, a existência de idêntica obrigação de esse órgão administrativo ter de exercer um controlo preventivo sobre a eventual subsistência de direitos de propriedade industrial relativos a medicamentos de referência.
42 - Se a AIM não é, por si só, apta a ferir qualquer direito de propriedade industrial, não é necessário, nem se justifica, que ao ato de concessão da AIM seja aposto, como defendem as Recorrentes, um termo suspensivo, de acordo com o qual a AIM só produziria efeitos a partir do dia "x", data que corresponderia ao momento da caducidade da patente.
43 - Acresce que, no que toca à possibilidade de comercialização do produto, a concessão da AIM contém, por natureza, uma cláusula implícita de diferimento da sua eficácia, na medida em que tal comercialização só pode ocorrer após a caducidade da patente, pois que só produz todos os efeitos a que se destina no momento em que a comercialização se torna possível, isto é, aquando da caducidade da patente do medicamento de referência. Até lá, a AIM só significa que o medicamento genérico tem condições técnico-científicas para ser comercializado. Mas, por decorrência do disposto na própria lei [n.º 1 do artigo 14.º do EM), só no momento em que a patente caduca é que o fim último a que a AIM se destina pode ser atingido - a efetiva disponibilização aos utentes desse produto.
44 - O legislador não está vinculado pelo artº 62º da CRP da Constituição a assegurar um nível de proteção máximo da patente, sustentado num controlo administrativo prévio da existência de direitos de propriedade industrial a exercer pelo INFARMED no procedimento de concessão da AIM.
45 - A Lei 62/2011 logra assegurar aos titulares das patentes, a par de uma garantia jurisdicional efetiva, decorrente do disposto do seu artº 2º e demais legislação (mormente a que prevê a responsabilização civil e criminal da violação do direito de propriedade industrial), um relevante sistema aviso prévio que implica a publicação na página eletrónica do INFARMED de todos os pedidos de autorização e registo de introdução de genéricos (artº 15º-A, aditado ao EM pelo artigo 5º da mesma lei)
46 - O nível de proteção consagrado pela legislação aplicável ao direito de patente resulta ser suficiente e constitucionalmente adequado, não ofendendo o conteúdo da garantia da propriedade privada constante do artigo 62º da CRP.
47 - Mesmo que subsistissem dúvidas sobre a proporcionalidade da opção do legislador, quando optou por um nível de proteção da propriedade industrial que não atingiu um grau ou patamar máximo, haverá sempre que considerar que o critério de decisão por aquele adotado procurou acautelar um regime jurídico balanceado, onde a garantia desse direito teve de ser equilibrada com a garantia de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
48 - Assim, a opção compromissória que resulta do EM na sua nova redação exunda da necessidade de:
a) Compatibilizar a garantia do direito de propriedade industrial dos titulares de patentes dos medicamentos de referência, com a liberdade económica e de iniciativa privada dos titulares dos medicamentos genéricos;
b) Evitar que a existência de um controlo preventivo em sede do procedimento da AIM, em benefício dos titulares de patentes dos medicamentos de referência, comprimisse desproporcionadamente a liberdade de iniciativa privada do titular do genérico, ao retardar desnecessariamente a sua introdução legal no mercado, a ponto de afetar o núcleo da sua garantia (a qual consistirá em salvaguardar em tempo útil e razoável a comercialização do produto).
49 - Adicionalmente, também no contexto de ponderação de direitos e interesses que repousam, aliás, na exposição de motivos da lei sindicada, esta procurou alcançar um ponto de equilíbrio ente o nível de garantia do direito de propriedade industrial já anteriormente adotado pelo EM e a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionalmente protegidos, tais como:
a) A necessidade de redução expressiva das comparticipações financeiras do Estado com os medicamentos, como forma de redução impreterível do défice público num quadro de urgência, de forma a observar exigências imperiosas de equilíbrio financeiro constitucionalmente tuteladas (artigo 105º da CRP).
b) O imperativo de assegurar o cumprimento de obrigações internacionais do Estado nesse domínio, impondo-se elencar, a par das que decorrem das orientações da Medida 3.62 do Memorando de entendimento entre o Estado e o FMI, CE e BCE, (que fixa obrigações internacionais para a República Portuguesa no domínio da remoção de entraves à entrada de genéricos), também as que são impostas pelo direito europeu portador de eficácia direta vertical (mormente o artigo 126.º da Diretiva 2001/83/CE e o n.º 2 do artigo 81º do Regulamento 726/2004), de cuja violação decorreria, se aceite a interpretação sufragada pelas Recorrentes, a condenação do Estado por incumprimento de direito europeu e a sua responsabilidade civil extracontratual por danos causados;
c) A garantia do direito fundamental dos cidadãos à proteção na saúde (n.º 1 do artigo 64º da CRP,) numa situação excecional de carência de medicamentos em setores vulneráveis da população, a qual se deve conjugar com a especial obrigação assumida constitucionalmente pelo Estado na "socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentos" (alínea c) do n.º 3 do artigo 64 da CRP).
50 - A consagração, pelas Recorrentes pretendida, de um nível mais intenso da proteção do direito de propriedade industrial, assente num controlo preventivo do requerimento em função da existência de patentes, e desenvolvido no âmbito de um procedimento de AIM, violaria o princípio da igualdade, porquanto concederia às patentes de medicamentos de referência um regime de privilégio face a todas as demais patentes.
51 - Tal nível de proteção contraditaria igualmente esse princípio da igualdade, na medida em que da introdução desse controlo decorreria uma discriminação negativa para os requerentes da comercialização de genéricos junto do INFARMED, em contraposição com outros requerentes titulares de AIM europeias ou obtidas noutros Estados, que teriam a faculdade de efetuar a comercialização da mesma substancia ativa em território português, sem terem de se submeter a esse controlo prévio de caráter preclusivo.
52 - Em suma: ao contrário do que pretendem as Recorrentes, não padece de qualquer inconstitucionalidade a interpretação, feita pelo STA no Acórdão recorrido, segundo a qual as normas constantes dos n.º 1 e 2 do artigo 25.º e dos n.º 1 e 2 do artigo 179.º do mesmo diploma (na redação que lhes foi conferida pela Lei 62/2011, de 12 de dezembro), bem como as normas constantes do n.os 3 e 4 do artigo 8.º da mesma Lei 62/2011, não permitem que, no âmbito do procedimento de AIM ou de PVP, o INFARMED proceda à apreciação da existência de direitos de propriedade industrial.
53 - A diversa questão de constitucionalidade suscitada, segundo a qual a Lei 62/2011, em virtude da conjugação do seu art.º 8º com o artigo 4º, não seria uma verdadeira lei interpretativa, mas uma lei inovadora com caráter retrospetivo e desfavorável, que violaria o princípio da proteção da confiança (artigo 2º da CRP), bem como a proibição do caráter restritivo das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias [n.º 2 do artigo 18.º), tão pouco merece acolhimento.
54 - Do artigo 9º da Lei 62/2011 extrai-se a existência de uma normação legal genuinamente interpretativa, cuja relação de significado se integra na lei interpretada de acordo com o artº 13º do CC, com observância da doutrina assente sobre a natureza das normas interpretativas
55 - Isto, na medida em que incidiu sobre uma situação controvertida (pautada por um divergência jurisprudencial no TCA Sul) e, ao optar por uma das soluções interpretativas plasmadas na mesma jurisprudência, não excedeu os limites da interpretação nem criou qualquer critério de decisão inovatório que alterasse o espírito da lei antiga.
56 - A pretensão das Recorrentes de retirarem conclusões favoráveis à tese que sustentam do teor do Acórdão 172/2000, do Tribunal Constitucional, é desprovida de qualquer razoabilidade. Na verdade, nesse aresto o Tribunal Constitucional pronuncia-se apenas sobre a possível identidade de efeitos das leis retroativas e das leis interpretativas autênticas a propósito da expressa proibição constitucional da retroatividade das leis fiscais. Nessa medida, as conclusões a que chega não são importáveis para o caso "sub iudicio", sendo que a admissibilidade de uma lei interpretativa autêntica só poderá, neste contexto, ser analisada por referência ao respeito pelo princípio da proteção da confiança.
57 - Mesmo que fosse reconhecida à norma questionada eficácia retrospetiva "hoc sensu", esta não seria suscetível de abalar o princípio da proteção da confiança, já que:
a) A Lei 62/2011 não alterou substancialmente o regime dos artigos 19.º, 25º e 179º do decreto-lei na 176/2006, mas apenas ratificou uma das interpretações que deles defluía, precisamente a que mais se afeiçoava à sua letra e ao seu escopo como norma de transposição fiel de uma Diretiva da União Europeia, não se podendo falar em alteração e muito menos em "mutação na ordem jurídica" contida na lei nova;
b) Quaisquer expectativas quanto à subsistência da interpretação que as Recorrentes extraiam das referidas normas do decreto-lei na 176/2006, e que foi posta em causa pela solução interpretativa contrária ínsita na lei na 62/2011, não poderiam ter-se como legítimas e dignas de tutela, na medida em que: não se encontravam consolidadas; eram afrontadas por soluções interpretativas opostas aplicadas em juízo; contrariavam o direito europeu; não receberam por parte do Estado qualquer expectativa de manutenção; e suporiam o seu muito previsível questionamento, atentas as obrigações internacionais do Estado decorrentes da cláusula n.º 3.62 do "Memorando de Entendimento";
c) A existência de duas correntes jurisprudenciais opostas, portadoras de interpretações divergentes, reclamaria sempre, à luz da segurança jurídica do ordenamento e da própria tutela da confiança dos particulares, a adoção de uma única solução normativa a fixar mediante decisão de uniformização jurisprudencial ou por ato legislativo, pelo que, tendo ocorrido esta última solução mediante a fixação de interpretação autêntica, desaba o argumento de que o legislador teria frustrado qualquer expectativa jusfundamentalmente tutelada, apenas porque legitimamente optou pela solução interpretativa oposta àquela que a mesma sustentava;
d) Tão pouco pode ser reivindicado que o Estado tenha tolerado ou alimentado as suas expectativas na continuidade da solução interpretativa defendida pelas Recorrentes, na medida em que, ao revogar o Decreto-Lei 72/91 que transpôs indevidamente a diretiva n.º 65/65/CE e ao eliminar a possibilidade de indeferimento de AIM com fundamento na proteção de patente, o legislador assinalou no Decreto-Lei 176/2006 a sua intenção de pôr em crise essa solução interpretativa;
e) A solução interpretativa da Lei 62/2011 não implicou qualquer novidade ou qualquer mutação da ordem jurídica, e muito menos num sentido súbito ou inesperado, atentos os prévios compromissos e obrigações públicas de caráter internacional assumidos pelo Estado Português sobre a matéria.
58 - Contrariamente ao que também afirmam as Requerentes, o n.º 1 do artigo 9.º da Lei 62/2011 não representa qualquer intervenção do legislador na independência do poder judicial, uma vez que esse legislador, face às dúvidas provocadas pelas normas dele emanadas, recorreu ao meio adequado para lhes colocar um ponto final: a lei interpretativa autêntica.
59 - A acusação, feita pelas Recorrentes, de que existiria uma ingerência do poder executivo no poder judicial, pelo facto de a Lei 62/2011 ter na sua origem uma proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros não tem qualquer sentido, uma vez que a iniciativa legislativa parlamentar é desprovida de qualquer consequência jurídica, para além de desencadear um procedimento legislativo, não mudando em nada a ordem jurídica, nem se repercutindo das relações e situações da vida.
60 - Atenta a evidente ausência de similitude entre a situação no mesmo abordada e que deu origem aos presentes autos, não tem qualquer validade a invocação, pelas Recorrentes, do decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 28/83. É que, no caso vertente, não está em causa qualquer convalidação legislativa por parte da Administração Pública, ainda que agindo nas vestes de legislador, de atos eventualmente ilegais, mas antes a aprovação, pela Assembleia da República, e por decisão quase unânime, de uma lei interpretativa.
61 - Insistimos: o sentido da legislação interpretativa não foi o de convalidar qualquer ato administrativo ilegal, mas o de pôr fim à incerteza jurídica reinante, por via de uma interpretação autêntica que clarificou o sentido a dar a essas normas, em obediência ao direito nacional e ao direito europeu.
62 - O artº 2º da Lei 62/2011 não exclui o acesso à jurisdição administrativa relativamente a litígios que respeitem ao procedimento das AIM e PVP que digam respeito ao objeto dos respetivos procedimentos. De facto, arredadas que estão as questões de propriedade industrial dos procedimentos relativos às AIM, os atos administrativos envolvidos nesses procedimentos podem, naturalmente, ser impugnados nos tribunais administrativos, na medida em que os mesmos respeitem ao objeto e ao fim legal da AIM, tal como decorre da legislação aplicável.
63 - Não existe, por conseguinte, qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional garantida pela jurisdição administrativa, cabendo à lei regular o âmbito de competência da mesma jurisdição em razão do objeto e do fim do procedimento e da matéria que se encontra sujeita ao contencioso administrativo.
64 - A submissão da arbitragem necessária dos litígios relativos a questões que envolvem direitos de propriedade industrial não cria qualquer vazio de tutela jurisdicional, não nega o recurso a uma tutela jurisdicional efetiva e não restringe o acesso ao direito.
65 - Não cria um vazio de tutela jurisdicional na medida em que a lei remete, direta ou indiretamente, diferentes tipos de litígios para jurisdições diversas, em razão da matéria: litígios que tenham a ver com o escopo e objeto do procedimento administrativo da AIM para os tribunais administrativos; litígios respeitantes ao direito de propriedade industrial para jurisdições arbitrais necessárias com a faculdade de recurso para os tribunais cíveis; e crimes decorrentes da violação dos direitos de propriedade industrial para os tribunais criminais.
66 - Por seu turno, a submissão do litígio à via arbitral necessária não viola o direito de acesso à justiça, porque:
a) A norma do n.º 2 do artº 209º da CRP inclui explicitamente os tribunais arbitrais como uma de entre as diversas categorias de tribunais e a jurisprudência do Tribunal Constitucional ratifica este entendimento;
b) Como tal, o acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, na letra e na teleologia do n.º 1 do artº 20º da CRP não se restringe ao universo dos tribunais estaduais, mas abrange todas as categorias de tribunais previstos na Constituição;
c) Integrando os tribunais arbitrais o próprio sistema de justiça, não será inconstitucional, por colisão ou interferência com o princípio do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, uma norma legal que submeta necessariamente à via arbitral um determinado litígio, já que se trata de um dos modos possíveis de exercício desse direito;
d) A lei sindicada não estabelece uma proibição ou uma restrição à interposição de recurso ordinário da decisão final da instância arbitral para os tribunais estaduais, pois o seu artigo 3º estabelece, ao invés, que da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação competente, o que garante que o acesso aos tribunais judiciais.
67 - Estima-se, igualmente, que o prazo conferido pelo art.º 3º da Lei 62/2011 ao interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial e que é de 30 dias se revela, pelo menos razoável, não ostentando atributos de exiguidade que possam predicar uma constrição inadmissível no acesso ao direito.
68 - Devem, por conseguinte, ser rejeitados todos os fundamentos de impugnação do artº 9º da Lei 62/2011, conjugado com o artigo 4º da mesma lei, bem como do artigo 2º, com fundamento na sua inconstitucionalidade.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4 - Antes de mais, deve sublinhar-se que as questões de constitucionalidade objeto do presente recurso se interligam, necessariamente. Porém, por uma questão de facilidade de exposição, vamos tratá-las em separado.
Assim, a primeira questão versa sobre a norma extraída do artigo 9.º da Lei 62/2011, de 12 de dezembro, que determina a natureza interpretativa das normas cuja inconstitucionalidade se alega na segunda questão suscitada pelas recorrentes. É a seguinte a redação do referido preceito legal:
«Artigo 9.º
Disposições transitórias
1 - A redação dada pela presente lei aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa.
[...]»
A segunda questão de constitucionalidade incide sobre uma interpretação extraída de vários preceitos do Estatuto do Medicamento (e da lei que o alterou) segundo a qual o Infarmed não detém poderes para aferir de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial, por parte do medicamento objeto de procedimento de concessão de "Autorização de Introdução do Medicamento" (de ora em diante, apenas AIM) ou de fixação do "Preço de Venda ao Público" (PVP), encontrando-se obrigado a deferir esse pedido ou permanecendo impedido de alterar, suspender ou revogar uma AIM ou um PVP. Os preceitos a partir dos quais foi extraída esta interpretação encontram-se vertidos nos artigos 25.º, n.os 1 e 2, e 179.º, n.os 1 e 2, do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei 62/2011, de 12 de dezembro), que ora se transcrevem:
«Artigo 25.º
Indeferimento
1 - O requerimento de autorização de introdução no mercado é indeferido sempre que um dos seguintes casos se verifique:
a) O requerimento, apesar de validado, não foi apresentado em conformidade com o disposto no artigo 15.º;
b) O processo não está instruído de acordo com as disposições do presente decreto-lei ou contém informações incorretas ou desatualizadas;
c) O medicamento é nocivo em condições normais de utilização;
d) O efeito terapêutico do medicamento não existe ou foi insuficientemente comprovado pelo requerente;
e) O medicamento não tem a composição qualitativa ou quantitativa declarada;
f) A relação benefício-risco é considerada desfavorável, nas condições de utilização propostas;
g) O medicamento é suscetível, por qualquer outra razão relevante, de apresentar risco para a saúde pública.
2 - O pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 18.º.»
«Artigo 179.º
Suspensão, revogação ou alteração
1 - O INFARMED pode decidir a suspensão, por prazo fixado na decisão, a revogação ou a alteração dos termos de uma autorização ou registo concedido ao abrigo do presente decreto-lei, a retirada de um medicamento do mercado ou a proibição da sua dispensa sempre que o mesmo seja desconforme com as normas legais e regulamentares aplicáveis ou com as condições da respetiva autorização, designadamente quando se verifique:
a) Qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 25.º;
b) Que não foram efetuados os controlos sobre o produto acabado ou sobre os componentes e produtos intermédios de fabrico;
c) O desrespeito pela obrigação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 29.º;
d) O incumprimento do dever de requerer alterações, nos casos e termos previstos no presente decreto-lei ou na legislação comunitária aplicável;
e) A existência de alterações em desconformidade com o disposto nas normas constantes dos artigos 31.º a 39.º;
f) O incumprimento do disposto nos artigos 62.º a 72.º,bem como nas demais disposições relativas às boas práticas de fabrico de medicamentos ou de medicamentos experimentais.
2 - A autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial.»
Tal interpretação normativa resulta ainda da conjugação daqueles preceitos legais com o artigo 8.º, n.os 3 e 4 da Lei 62/2011, de 12 de dezembro, cuja inconstitucionalidade também é invocada. O preceito tem o seguinte teor:
«Artigo 8.º
Autorização de preços do medicamento
3 - O pedido que visa a obtenção da autorização prevista nos números anteriores não pode ser indeferido com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.
4 - A autorização do PVP do medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.»
Circunscritas as questões de inconstitucionalidade normativa invocadas, desde já avançamos que começaremos por esta última, deixando a apreciação do artigo 9.º da Lei 62/2011, de 12 de dezembro, para um segundo momento.
Antes, contudo, importa proceder ao enquadramento do regime jurídico do medicamento.
5 - O regime jurídico da introdução em mercado de medicamentos foi, pela primeira vez, consolidado num só instrumento jurídico, através do Decreto-Lei 72/91, de 08 de fevereiro, que veio transpor várias diretivas comunitárias sobre a matéria - entre as quais a Diretiva 65/65/CEE, de 26 de janeiro de 1965 - e que fundiu vários diplomas legais dispersos que remontavam (em alguns casos) ao ano de 1931. Assim sendo, o Decreto-Lei 72/91 corresponde, assim, ao primeiro "Estatuto do Medicamento", pleno e sistematizado, a vigorar no ordenamento jurídico português.
Com efeito, já esse diploma legal tomava em consideração a necessária relação entre a decisão administrativa de introdução em mercado do medicamento - isto é, uma AIM - e a proteção da propriedade industrial resultante de um direito de patente em vigor. Por exemplo, o artigo 7.º do Decreto-Lei 72/91 erigia, precisamente, o respeito por esse direito de patente como uma condição necessária da dispensa de realização de ensaios laboratórios, em alguns casos expressamente identificados:
«Artigo 7.º
Dispensa de ensaios
Sem prejuízo do direito relativo à proteção da propriedade industrial, o requerente fica dispensado de apresentar os ensaios farmacológicos, toxicológicos e clínicos, se puder demonstrar uma das seguintes condições:
a) O medicamento é essencialmente similar a outro autorizado e que o titular da autorização de introdução no mercado do medicamento original consentiu que se recorra, com vista à apreciação do pedido, à documentação farmacológica, toxicológica ou clínica constante do processo original;
b) Os componentes do medicamento destinam-se a um uso terapêutico bem determinado, apresentam uma eficácia reconhecida e um nível de segurança aceitável, os quais podem ser provados por documentação científica atualizada;
c) O medicamento é essencialmente similar a outro autorizado num dos Estados membros das Comunidades Europeias, a seguir designados por Estados membros, há pelo menos seis anos, segundo as disposições comunitárias em vigor e já comercializado em Portugal, ou há pelo menos 10 anos, quando se trate de medicamentos de alta tecnologia/biotecnologia.» (com sublinhado nosso)
Além disso, o artigo 9.º do mesmo diploma legal - ao contrário do que sucede com o regime jurídico vigente - fazia expressa referência à necessidade de produção de prova, perante o Ministro da Saúde, de que o pedido de registo da marca do medicamento havia sido apresentado ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (de ora em diante, designado apenas por INPI), dentro do prazo de 12 (doze) meses, fixado para a introdução do medicamente no mercado:
«Artigo 9.º
Prazos
1 - O prazo para autorizar a introdução no mercado de um medicamento é de 120 dias contados a partir da data de entrada do pedido.
2 - O prazo suspende-se sempre que, não estando o processo completo, o requerente seja notificado para o fazer.
3 - Em caso excecionais, o prazo previsto no n.º 1 pode ser prorrogado por um período de 90 dias, devendo o requerente ser notificado antes do fim do primeiro prazo.
4 - Concedida a autorização, o requerente dispõe de 12 meses, prorrogáveis por mais 12 quando devidamente justificados, para introduzir o medicamento no mercado, findos os quais caduca a autorização.
5 - Dentro do prazo previsto no número anterior, o requerente deve fazer prova do pedido do registo da marca do medicamento no Instituto Nacional da Propriedade Industrial.» (com sublinhado nosso)
Mais tarde, por força da entrada em vigor do novo "Estatuto do Medicamento", aprovado pelo Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, o regime de AIM de medicamentos foi profundamente alterado, tendo as competências para concessão daquelas autorizações administrativas sido legalmente transferidas para o órgão máximo do Infarmed (cf. artigo 14.º). Ora, entre os fundamentos de indeferimento dos pedidos de AIM não figurava, de nenhum modo, a verificação da eventual violação de direitos de propriedade industrial (cf., a contrario, artigo 25.º, n.º 1). Acresce que já se depreendia deste novo regime jurídico que a referida AIM estaria, forçosamente, dependente da não ofensa a outros preceitos legais que impedissem essa comercialização. O n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei 176/2006 determinava que o prazo de validade daquela autorização - de 5 (cinco) anos, eventualmente renovável - ficaria sempre condicionado ao respeito pelo "disposto na lei relativamente à comercialização efetiva do medicamento". Isto é, mesmo a redação originária do Decreto-Lei 176/2006 salvaguardava que a AIM não prejudicava a necessidade de verificação - por outro órgão administrativo ou jurisdicional competente - de outras vinculações legais que, eventualmente, impedissem a efetiva comercialização do medicamento beneficiário de uma AIM.
Precisamente para obviar aos inúmeros litígios emergentes de direitos de propriedade industrial sobre patentes de medicamentos, a Lei 62/2011, de 12 de dezembro, veio criar um regime especial de composição extrajudicial de litígios, quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, procedendo à quinta alteração ao Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto.A partir de então, o artigo 19.º, n.º 8, do Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, passou a ter a redação seguinte:
«Artigo 19.º
Ensaios
8 - A realização dos estudos e ensaios necessários à aplicação dos n.os 1 a 6 e as exigências práticas daí decorrentes, incluindo a correspondente concessão de autorização prevista no artigo 14.º, não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de proteção de medicamentos.»
Acrescente-se que, além das novas redações conferidas aos artigos 25.º, n.º 2, e 179.º, n.º 2, do Decreto-Lei 176/2006, a Lei 62/2011 aditou, expressamente, um novo preceito legal, que especificou o âmbito das competências a exercer pelo Infarmed, quando pondere uma eventual AMI:
«Artigo 23.º-A
Objeto do procedimento
1 - A concessão pelo INFARMED, I. P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objeto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento.
2 - O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial.»
No que diz respeito às vinculações normativas decorrentes do Direito da União Europeia, deve notar-se que, quer a versão originária do Decreto-Lei 176/2006, quer a que resultou da Lei 62/2011, visaram transpor a Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, que determina o seguinte, quanto aos fundamentos de recusa de AIM de medicamentos:
«Artigo 26.º
A autorização de introdução no mercado é recusada quando, após verificação das informações e documentos enumerados no artigo 8.º e no n.º 1 do artigo 10.º, se revelar:
a) Que a especialidade é nociva em condições normais de emprego; ou
b) Que falta o efeito terapêutico da especialidade ou está insuficientemente comprovado pelo requerente; ou
c) Que a especialidade não tem a composição qualitativa e quantitativa declarada.
A autorização será igualmente recusada se a documentação e as informações apresentadas em apoio do pedido não estiverem conformes com o disposto no artigo 8.º e no n.º 1do artigo 10.º»
«Artigo 126.º
A autorização de introdução no mercado apenas pode ser recusada, suspensa ou revogada pelas razões enumeradas na presente diretiva.»
6 - Uma vez terminado o excurso pelo regime jurídico da introdução em mercado de medicamentos, importa agora centrar-nos nas alegadas inconstitucionalidades.
Para facilitar a realização desta tarefa, comecemos pela interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 25.º, n.os 1 e 2, e 179.º, n.os 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, tal como consta do requerimento inicial, no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED afira, no contexto do processo de concessão de AIM, da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o, desse modo, a deferir o requerimento de concessão de AIM para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM, com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto, por violação dos artigos 17.º, 18.º, 42.º, 62.º, n.º 1, e 266.º da CRP.
Acrescente-se ainda que - porque se trata de questão que exige o mesmo tipo de ponderações - analisaremos, em simultâneo, a invocada inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8.º, n.os 1. 3 e 4, da Lei 62/2011, interpretada no sentido de que a mesma proibir que o INFARMED afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP, com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto, por violação dos mesmos preceitos constitucionais anteriormente invocados (artigos 17.º, 18.º,42.º,62.º, n.º 1 e 266.º da CRP).
Note-se que, em sede de alegações, as recorrentes vieram aditar aos parâmetros constitucionais, acima referidos, outros, designadamente, os artigos 2.º, 3.º, 9.º, alínea b), todos da CRP, o que é perfeitamente admissível, ao abrigo do princípio da cooperação leal com este Tribunal.
Vejamos se lhes assiste razão.
Antes de mais, cumpre notar que a invocação - como parâmetro de constitucionalidade - dos artigos 2.º, 3.º e 9.º, alínea b), da CRP ocorre apenas a título de reforço argumentativo, enquanto preceitos genéricos, os quais não são portadores de uma vinculatividade normativa especificamente dirigida para a questão normativa em apreço nos presentes autos.
Acresce que a invocação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) também não constitui o cerne da argumentação esgrimida pelas recorrentes. Aliás, apesar de, nas alegações para este Tribunal, afirmarem que "a interpretação oferecida pelo STA no acórdão recorrido vem colocar os titulares de direitos fundamentais emergentes de patentes farmacêuticas numa situação, perante a Administração, diferente daquela em que se situam os titulares de direitos de propriedade industrial relativos a produtos de outros domínios da técnica e da actividade económica", não demonstram minimamente onde se situa essa diferença, nem indicam qual o termo comparativo entre posições jurídicas concretas, no qual baseiam a sua afirmação. De qualquer modo, sempre se dirá que não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade, na medida em que, por um lado, independentemente da AIM, a proteção do direito de propriedade industrial se mantém e, por outro lado, os medicamentos gozam de características que os individualizam dos produtos de outros domínios da técnica e da atividade económica e, além disso, destinam-se a produzir efeitos em sede de saúde humana, o que não sucede com outros produtos.
Assim sendo, centremos a nossa análise no cerne da argumentação esgrimida pelos recorrentes, ou seja, a determinação acerca de uma eventual violação da proibição de restrição desproporcionada de direitos fundamentais.
Recapitulando, de acordo com as alegações das recorrentes, a opção legislativa - decorrente da transposição da opção normativa decorrente da Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, afeta, de modo desproporcionado, o "conteúdo essencial" dos seus direitos fundamentais à proteção da criação científica (artigo 42.º, da CRP) e da propriedade privada (artigo 62.º, da CRP), por permitir que sejam adotadas decisões administrativas de AMI, sem averiguação de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial.
7 - Antes de avançar, importa começar por caracterizar a natureza jurídico-constitucional do próprio "direito à propriedade industrial", para dele discernir (ou não) a sua específica tipologia de direito fundamental. Neste caso, as recorrentes não só o qualificam como um "direito, liberdade e garantia", por via direta - por decorrer diretamente da proteção que é conferida à liberdade de criação científica (cf. artigo 42.º da CRP) -, como por via indireta, por configurar uma manifestação do "direito à propriedade privada" (cf. artigo 62.º, da CRP), que - na sua ótica - se deve considerar um "direito análogo a direitos, liberdades e garantias" (cf. artigo 17.º, da CRP).
Anote-se, desde já, porém, que - quer se qualifique tal direito de um ou de outro modo -, certo é que a sua eventual restrição sempre implicaria ponderar se ela afronta, ou não, o "princípio da proporcionalidade". É certo que a fonte jusconstitucional desse princípio poderia variar consoante se qualifique o direito em causa como "direito, liberdade e garantia" (ou como "direito análogo") ou como "direito económico". No primeiro caso, a exigência de proporcionalidade resultaria diretamente do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, enquanto no segundo caso, essa mesma exigência extrair-se-ia, essencialmente, do "princípio do Estado de Direito" (cf. artigo 2.º, da CRP) - neste sentido, ver Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, 2004, p. 264; Paulo Otero, Direito Constitucional Português, Volume I, 2010, p. 104.
Antes de mais, importa averiguar se o direito de propriedade industrial se deve, ou não, incluir no direito de propriedade privada.
A jurisprudência constitucional tem vindo a densificar o conceito de "propriedade privada" nele incluindo "tanto o direito de propriedade - a propriedade stricto sensu e qualquer outro direito patrimonial - como o direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade" (cf. Acórdão 257/92, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, com sublinhado nosso). Daqui decorre que o próprio direito de propriedade privada tanto protege a propriedade privada previamente consolidada na ordem jurídica, como um potencial direito de aceder, "ex novo", a essa propriedade - de onde se poderia, extrair, de alguma medida, a própria proteção constitucional às empresas produtoras de medicamentos genéricos, que pretendem aceder ao conteúdo patrimonial decorrente do uso e comercialização de medicamento anteriormente patenteado, em função de determinada descoberta científica positivamente valorada pelo Estado, que a reconhece.
Mas, especificamente sobre o "direito de propriedade industrial", este Tribunal também já o incluiu no âmbito de proteção do "direito à propriedade privada" previsto no artigo 62.º da CRP. Por exemplo, no Acórdão 491/2002 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) expressamente se afirmou que:
«Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os "direitos sociais" - incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades (na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cf. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559).»
Seguindo orientação similar, referindo-se ao direito de propriedade intelectual, fazendo apelo não só ao direito de propriedade mas igualmente à liberdade de criação científica, tal como consagrada no artigo 42.º da CRP, ver ainda o Acórdão 577/2011 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
«O bem jurídico tutelado por esta incriminação reside nos direitos de autor, os quais se apresentam como valores constitucionalmente relevantes, nos termos dos artigos 42.º, n.º 2 e 62.º da Constituição. A tutela da propriedade intelectual apresenta-se, no plano da nossa Constituição, como uma tutela multifacetada. Com efeito, a propriedade intelectual é, antes de mais, propriedade privada, abrangida, portanto, no núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição (nesse sentido se pronunciou já o Tribunal no Acórdão 491/2002, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de janeiro de 2003).
Mas a tutela dos direitos de autor não se consome na proteção que o Estado concede à propriedade. A Constituição estabelece, no capítulo II do Título respeitante aos direitos, liberdades e garantias, sob a epígrafe "direitos, liberdades e garantias pessoais", que a liberdade de criação cultural inclui a proteção legal dos direitos de autor. A propriedade intelectual surge, assim, integrada no âmbito do regime específico dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, portanto, de uma tutela mais intensa do que a que, em primeira linha, a Constituição reserva aos direitos económicos, sociais e culturais, enquadrados no Título III (ressalvando-se as devidas equiparações no caso dos direitos análogos, nos termos do artigo 17.º).
7.2 - A proteção constitucional dos direitos de autor resulta, por conseguinte, não só da proteção da propriedade, entendida essencialmente como espaço de defesa pessoal perante a ingerência pública, mas também da tutela da personalidade, enquanto liberdade pessoal de criação. Trata-se da manifestação do direito ao desenvolvimento da personalidade, autonomizado, pela revisão constitucional de 1997, no artigo 26.º, n.º 1.
A propósito da natureza complexa da propriedade intelectual, Gomes Canotilho fala num direito de troncalidade autoral com várias irradiações: como direito unitário, como direito de personalidade, como direito humano, como direito de propriedade, como direito privado, como direito de liberdade e como direito exclusivo. Não se lhe oferecem, no entanto, quaisquer dúvidas de que se trata de um direito fundamental (cf. "Liberdade e exclusivo na Constituição", in Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra Editora, 2008, pp. 220-223).
7.3 - Para além da tutela interna, os direitos de autor beneficiam, entre nós, da tutela internacional resultante quer de documentos de índole convencional subscritos no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), quer da tutela específica no âmbito da ordem europeia. No primeiro caso, importa observar que o acordo ADPIC/TRIPS impõe já, no seu artigo 61.º, aos membros que estatuam sanções penais para a contrafação de marca e a pirataria em relação ao direito de autor em escala comercial. No mesmo artigo, prevê-se também a possibilidade de a tutela pena se alargar a outras áreas da proteção da propriedade intelectual, para além daquelas obrigações explícitas de criminalização, particularmente quando estiverem em causa ofensas voluntárias e em escala comercial.
Quanto ao segundo espaço normativo referido, saliente-se que a questão da proteção da propriedade intelectual na atual União Europeia por via da tutela penal, não é tema novo. Foi ponderado, num primeiro momento, a propósito da Diretiva 2004/48/CE, atualmente em vigor, tendo sido posteriormente retomado na proposta de Diretiva COM(2006)168 final, relativa às medidas penais destinadas a assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Na exposição de motivos desta proposta, dizia-se que a contrafação e a pirataria são fenómenos em expansão, com relevância internacional, que consubstanciam uma séria ameaça às economias nacionais (cf. a este propósito, Paulo de Sousa Mendes, "A tutela penal de direitos de propriedade intelectual na Proposta de Diretiva", in Direito da Sociedade da Informação, vol. VII, Coimbra Editora, 2008, pp. 319 e seguintes). Da proposta constava a obrigação, dirigida aos Estados-Membros, de qualificar como infração penal qualquer violação intencional de um direito de propriedade intelectual quando cometida a uma escala comercial. As sanções previstas abrangiam, a título principal, a pena de multa e a pena de prisão.
7.4 - A proteção da propriedade intelectual apresenta um caráter fundamental nas sociedades atuais. A ela se ligam considerações respeitantes ao desenvolvimento e progresso humano, muitas vezes em concorrência com valores de proteção dos direitos da personalidade, dos direitos patrimoniais dos criadores e, até, exigências de segurança dos consumidores. O encurtamento das distâncias resultante da globalização, e o surgimento de espaços de integração económica, ambos aliados ao esbatimento das fronteiras entre os Estados, potenciam o efeito nefasto para as economias que deriva de violações maciças e em escala à propriedade intelectual, facilitadas pelo desenvolvimento tecnológico e pela democratização do acesso às novas tecnologias. Estas considerações fundamentam, em muitos casos, a opção pela criminalização que os Estados adotam no que se refere a diferentes violações dos direitos de autor, atenta também a função dissuasora subjacente a esta opção político-legislativa.
A relevância que a tutela da propriedade intelectual assume na nossa ordem jurídica, tanto ao nível constitucional como ao nível internacional e europeu, conduz à conclusão de que se trata de bem jurídico dotado de especial significado. O que, aliado à constatação de um aumento significativo de violações à propriedade intelectual, normalmente associado a fenómenos de crime organizado e transfronteiriço, e com elevados prejuízos para as economias nacionais, atualmente tão fragilizadas, fornece ao legislador a legitimidade necessária para intervir na tutela da mesma por via da criminalização e da punição com as consequências jurídicas que lhe andam associadas, designadamente a previsão de penas privativas da liberdade e penas pecuniárias.»
Por último, o Acórdão 123/15 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), precisamente a propósito do direito de patente sobre um medicamento de referência, o qual está em causa nos presentes autos, afirma o seguinte:
"[...]
11.2 - Desde logo, pode ser relevante a invocação do direito fundamental contido no artigo 42.º, n.º 2, da Constituição, que, ao concretizar o âmbito normativo de proteção da liberdade de criação cultural, aqui compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteção legal dos direitos de autor.
Na sua complexidade, o direito de patente sobre um medicamento de referência afigura-se demandar, quanto ao âmbito de proteção normativa, a confluência do direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1, CRP) com o direito de criação cultural (artigo 42.º, idem), ambos protegidos pela Constituição portuguesa.
Numa primeira abordagem da fundamentalidade dos direitos em presença, já se escreveu no Acórdão 2/2013, «[...]Tais direitos de propriedade industrial, entre os quais os direitos fundados em patentes de medicamentos ou certificados complementares de proteção para medicamentos «encontram-se no domínio formalmente abrangido pelo preceito [constitucional que consagra o direito de propriedade como direito fundamental] e integram o conteúdo substancialmente protegido pela norma constitucional referente ao direito de propriedade privada» (J. C. Vieira de Andrade, A proteção de direito fundado em patente no âmbito do procedimento de autorização da comercialização de medicamentos, RLJ, n.º 3953, 2008, p. 71).».
E reportando-se os direitos de propriedade industrial à tutela da propriedade intelectual, cuja importância não deixou de ser sublinhada na jurisprudência constitucional portuguesa (como ilustrado com a seguinte passagem do Acórdão 577/2011: «[...] a relevância que a tutela da propriedade intelectual assume na nossa ordem jurídica, tanto ao nível constitucional como ao nível internacional e europeu, conduz à conclusão de que se trata de bem jurídico dotado de especial significado.»), pode mesmo requerer-se uma tutela acrescida àquela facultada pelo artigo 62.º da Constituição portuguesa. Assim, e em anotação ao artigo 42.º, da Constituição, escrevem Gomes Canotilho/Vital Moreira que: «[...] o autor dispõe de direitos de propriedade intelectual incluindo o direito de cobrar retribuição pela utilização da sua obra. Daqui não resulta imediatamente uma «valorização económica» e um direito à publicação do produto da criação cultural, mas é evidente que a sua utilização (para fins comerciais, industriais, publicitários, pedagógicos, etc.) cria um valor económico que cai também no âmbito de proteção do direito à criação cultural. De resto, o direito de propriedade intelectual, diretamente protegido pelo regime dos direitos, liberdades e garantias goza de uma proteção constitucional mais intensa do que o direito de propriedade sobre as coisas (artigo 62.º)» (Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 622), tese, aliás, já acolhida neste Tribunal (cf. Acórdão 577/2011):
«[...] O bem jurídico tutelado por esta incriminação reside nos direitos de autor, os quais se apresentam como valores constitucionalmente relevantes, nos termos dos artigos 42.º, n.º 2 e 62.º da Constituição. A tutela da propriedade intelectual apresenta-se, no plano da nossa Constituição, como uma tutela multifacetada. Com efeito, a propriedade intelectual é, antes de mais, propriedade privada, abrangida, portanto, no núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição (nesse sentido se pronunciou já o Tribunal no Acórdão 491/2002, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de janeiro de 2003).
Mas a tutela dos direitos de autor não se consome na proteção que o Estado concede à propriedade. A Constituição estabelece, no capítulo II do Título respeitante aos direitos, liberdades e garantias, sob a epígrafe "direitos, liberdades e garantias pessoais", que a liberdade de criação cultural inclui a proteção legal dos direitos de autor. A propriedade intelectual surge, assim, integrada no âmbito do regime específico dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, portanto, de uma tutela mais intensa do que a que, em primeira linha, a Constituição reserva aos direitos económicos, sociais e culturais, enquadrados no Título III (ressalvando-se as devidas equiparações no caso dos direitos análogos, nos termos do artigo 17.º).[...]».
Ora, mesmo não se configurando formalmente os direitos em presença como «direitos de autor», certo é que as patentes são direitos (exclusivos) que se obtêm sobre invenções (soluções novas para problemas técnicos específicos), quer se trate de produtos ou processos (e aqui se incluindo os processos novos de obtenção de produtos, substâncias ou composições já conhecidos), pelo que, em grande medida, a patente corresponde à tutela dessa invenção. Assim, é de admitir, na perspetiva da respetiva tutela jurídico-constitucional, o concurso de direitos de criação cultural (científica), consagrados no artigo 42.º da Constituição.
Acompanha-se aqui a reflexão de Gomes Canotilho (Cfr. «Parecer sobre o Novo Regime Legal de Resolução de Litígios Patentários», policopiado, fls. 25-26):
«Como princípio geral, pode, pois, dizer-se que o «direito à patente», isto é, o direito «a requerer a patente», pertence ao «criador intelectual ou aos seus sucessores», sendo que é naquele preceito que se determina «quem está legitimado a solicitar um pedido de patente de invenção em seu nome, vindo a figurar no pedido de registo como requerente do direito»(29 (29) Cfr. António Campinas e Luís Couto Gonçalves. Código da Propriedade Industrial. cit., pp. 215. e ss.). Em nosso entender, o «inventor» encontra-se legitimado ab initio, mesmo do ponto de vista jurídico-constitucional, para requerer a patente que lhe irá conferir o «exclusivo» do direito. Legitimação que lhe advém do fato de já lhe assistir um direito, concomitantemente pessoal e patrimonial, sobre a própria «invenção». O mesmo será dizer, em virtude de ser titular do «direito de troncalidade autoral», tendencialmente unificador do conteúdo essencial da Liberdade fundamental de criação cultural, constitucionalmente consagrada e que o legislador ordinário acabou por «dispersar» em sede de concretização sistemática-normativa(30 (30) Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Liberdade e Exclusivo na Constituição, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, Almedina. Coimbra Editora, 2004, pp. 219 e ss.) Este princípio geral conformador do direito de «invenção» a patentear apresenta-se, no plano da lei ordinária, como uma manifestação ou corolário do direito/liberdade fundamental pessoal de «criação cultural» - criação cultural, artística e científica -, consagrado no artigo 42.º da Constituição da República Portuguesa(31) (31) Convém lembrar desde já, que, nos termos do n.º 1 do artigo 42.º da Constituição da República Portuguesa. «É livre a criação intelectual, artística e científica». Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que «Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteção legal dos direitos de autor»). Na mesma ordem de ideias, entendemos que, em última ratio, também decorre deste normativo constitucional a qualificação simultânea dos direitos de propriedade industrial, ou, melhor dizendo, dos direitos de propriedade intelectual ou «espiritual», in totum, como direitos fundamentais de personalidade e como direitos fundamentais de propriedade sobre coisas incorpóreas, sendo certo que, como mais à frente se explicará, esta dúplice natureza emerge agora unificada por força do acolhimento de uma «teoria monista» que postula a consagração constitucional de um direito fundamental autoral «sui generis englobador de elementos jurídicos-pessoais e de elementos jurídico-patrimoniais»(32 (32) Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho. Liberdade e Exclusivo na Constituição. cit., loc. cit. p, 221. Vide infra, 1.4. Aludindo à convergência dos direitos de propriedade intelectual. cf. Kur in Schrickerl Dreierl Kur (org.). Geistiges Eigentum im Dienst der lnnovation, 2001. p. 23: Derclaye/ Leistner, Intellectual Property Overlaps - A European Perspetive, 2010), como parte integrante do conteúdo essencial da liberdade fundamental de criação cultural. Nesta linha, o fundamento último ou «radical» da dupla dimensão, «moral» e «patrimonial», caracterizadora do objeto de todos os direitos de propriedade intelectual, sejam eles direitos de propriedade industrial tout court, sejam direitos de autor em sentido estrito, rectius, que integra o objeto do «direito de troncalidade autoral», mergulha as suas raízes mais profundas no extenso e multifacetado conteúdo desta liberdade constitucionalmente consagrada. Isto, sem prejuízo de, como adiante se dirá, sempre existir a possibilidade de ancorar a sua fundamentalidade jurídico-constitucional no direito fundamental de propriedade privada, contemplado no artigo 62.º da Lei Fundamental Portuguesa(33).(33) Desde logo, porque no centro nevrálgico desta temática jus-fundamental, para além da «liberdade de criação intelectual, artística e científica», está presente indubitavelmente a "liberdade inerente à propriedade intelectual», E a verdade é que alguma «doutrina constitucional inclui no âmbito normativo dos direitos de propriedade "propriedade espiritual" ou "propriedade intelectual' de forma a alargar o âmbito de proteção deste direito aos direitos de autor, às marcas e às patentes». Ibidem, pp. 219-220)».
No mesmo sentido - ou seja, no sentido da inserção deste tipo de direitos autorais numa conceção ampla de "propriedade privada" -, também se tem pronunciado a doutrina: Fausto de Quadros, A Proteção da Propriedade Privada pelo Direito Internacional Público, 1998, pp. 190-220; Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, 2007, pp. 905-907, p. 935 e pp. 947-951.
Porém, a aceitação da jusfundamentalidade do "direito à propriedade industrial", por via da proteção simultânea dos artigos 42.º e 62.º da CRP não determina, necessariamente, que a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida seja contrária à Constituição, nem tão pouco que tal direito fundamental não possa ser objeto de restrição, desde que respeitando o "conteúdo essencial" do direito e o princípio da proporcionalidade para prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos.
Assim sendo, importa averiguar se a interpretação normativa adotada comporta uma ofensa ao "conteúdo essencial" daquele direito fundamental (artigo 18.º, n.º 3, da CRP), seja ele configurado como um "direito, liberdade e garantia", seja ele configurado como um "direito análogo". Isto porque, conforme o Tribunal tem notado, nem todas as faculdades extraídas do "direito à propriedade privada" integram o núcleo intrinsecamente característico daquele direito, sendo que apenas as faculdades por ele abrangidas beneficiam da aplicação análoga do regime dos "direitos, liberdades e garantias". Assim o afirmou o Acórdão 329/99, sem qualquer margem para dúvidas:
«[...] apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no Acórdão 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 7 de novembro de 1991), cabem na reserva legislativa parlamentar "as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos 'direitos análogos', por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias".»
Ora, conforme demonstra a decisão recorrida, a circunstância de as normas extraídas dos artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179.º, n.os 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, e do artigo 8.º, n.º 3, da Lei 62/2011 (que lhe deu a atual redação), determinarem que o competente órgão do Infarmed, ao ponderar uma decisão administrativa de AIM, não pode incluir, como fundamento de indeferimento (ou de futura suspensão ou revogação), a comprovação - por via meramente administrativa - de uma alegada violação de direitos de propriedade industrial nem sequer afeta o "conteúdo essencial" do direito fundamental em causa. Assim é porque não só a lei reserva para outras entidades - administrativas (no caso, o INPI) e jurisdicionais (os tribunais arbitrais, previstos pela Lei 62/2011) - a competência para conhecer de litígios quanto aos "direitos de propriedade industrial", como uma mera decisão administrativa de AIM não implica qualquer lesão daqueles direitos, simplesmente porque ela só produz efeitos plenos, quando tenha expirado o prazo decorrente do "direito de patente" respetivo. É, aliás, isso mesmo que se verifica quando se procede à leitura do artigo 77.º, n.º 3, do Estatuto do Medicamento, que determina:
«Artigo 77.º
Regime de comercialização
[...]
3 - A não comercialização efetiva do medicamento durante três anos consecutivos, por qualquer motivo, desde que não imposto por lei ou decisão judicial imputável ao INFARMED ou por este considerado como justificado, implica a caducidade da respetiva autorização ou registo, após a notificação prevista no n.º 3 do artigo seguinte.»
Ou seja, daqui decorre que a mera concessão de uma AIM não confere, por si só e automaticamente, qualquer direito de comercialização imediata. Pelo contrário, aquele preceito legal expressamente salvaguarda que não se pode proceder à comercialização imediata desse medicamento, salvo quando tenha expirado o prazo de exclusividade que a patente concede a outro fabricante. Só assim se pode interpretar a expressão "desde que não imposto por lei". Evidentemente, a lei que protege o "direito de propriedade industrial" das recorrentes impede, assim - por si só - a comercialização efetiva do medicamento. De onde se conclui que, em boa verdade, mesmo que o competente órgão do Infarmed concedesse uma AIM, relativa a medicamento cujo "direito de patente" estivesse ainda sob proteção, essa decisão não é apta a afetar, de modo concreto e efetivo, o direito das ora recorrentes (em sentido idêntico, ver Remédio Marques, Direito de patente sobre o medicamento de referência e os procedimentos de emissão de AIM e de fixação do preço respeitantes ao medicamento, in «Medicamentos Versus Patentes - Estudos de Propriedade Industrial», 2008, p. 146). De certo modo, pode mesmo afirmar-se que a referida decisão de concessão de AIM pode ser configurada como um verdadeiro "ato administrativo sob condição suspensiva (de fonte legal)". Apenas findo o prazo de proteção da patente, ficam os beneficiários daquela AIM autorizados a exercê-la plenamente.
Por essa razão, a interpretação acolhida pela decisão recorrida não ofende o "direito à propriedade industrial".
E ainda que houvesse tal afetação - o que se pondera por mera exaustão de fundamentação -, sempre se diria que ela não entra em colisão com o "conteúdo essencial do direito à propriedade industrial"" nem com "princípio da proporcionalidade" (cf. artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP). Assim sendo, mesmo que se admitisse que a mera concessão de uma AIM, sem comercialização efetiva, já seria apta a comprimir o "direito à criação científica" (cf. artigo 42.º, da CRP) e o "direito à propriedade privada" (cf. artigo 62.º da CRP) - na medida em que permitiria prognosticar, de forma bem mais concretizável, a perda da exclusividade da patente de que beneficiariam, fazendo, por essa via, diminuir o valor económico da mesma -, impor-se-ia reconhecer que essa compressão (mínima) do âmbito máximo daquele "direito à propriedade privada" estaria justificada pela necessidade de proteção de outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Desde logo, o "direito à iniciativa privada" das empresas concorrentes - e, em particular, as empresas produtoras e comercializadoras de medicamentos genéricos -; e igualmente, o próprio "direito à saúde" por parte dos indivíduos que carecem do acesso a medicamentos a preços mais baixos.
Isto é, nenhum direito fundamental se deve configurar como absoluto e irrestringível, face a outros direitos fundamentais igualmente tutelados pela Constituição. Ora, se assim é, a interpretação normativa, ora em análise, ao determinar que não cabe ao Infarmed o controlo, em sede de procedimento administrativo de concessão de AIM, de uma alegada violação do "direito de propriedade industrial" não está a amputar, de modo definitivo, o exercício desse mesmo direito de defesa.
Em primeiro lugar, porque a circunstância de o titular de uma direito a patente não poder discutir a alegada violação do seu "direito de propriedade industrial" naquela sede não o impede de reagir, jurisdicionalmente, contra os potenciais infratores, designadamente através de um pedido de constituição de tribunal arbitral, tal como previsto, precisamente, pelo artigo 2.º da Lei 62/2011, que optou - ao abrigo da liberdade de decisão política do legislador - por prever um mecanismo extrajurisdicional de litígios relativos à determinação da propriedade industrial de medicamentos. Em segundo lugar, o próprio artigo 321.º do Código da Propriedade Industrial (CPI) tipifica como crime essa ofensa ao referido "direito de propriedade industrial", facultando o Estado ao titular do direito de patente os meios indispensáveis à defesa dos seus direitos, designadamente, através da apresentação de queixa criminal e da eventual constituição como assistente no referido procedimento criminal. E aliás, em terceiro lugar, deve notar-se que a alínea c) do artigo 102.º do CPI expressamente exclui da proteção do direito de exclusividade resultante da patente "os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo experiências para preparação dos processos administrativos necessários à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, não podendo, contudo, iniciar-se a exploração industrial ou comercial desses produtos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege" (com sublinhado nosso).
Daqui decorre que tais atos de ensaio - com vista a posterior pedido de AIM - não configuram o ilícito típico penal previsto e punido pelo artigo 321.º do CP, precisamente porque não ofendem o bem jurídico "propriedade industrial". E é também por isso que o n.º 8 o artigo 19.º do Estatuto do Medicamento expressamente determina, em sentido idêntico, que os ensaios necessários a instruir o procedimento administrativo de concessão de uma nova AIM não são passíveis de ser configurados como uma ofensa ao "direito de propriedade industrial" de terceiros. Mais uma vez, só a comercialização efetiva desse medicamento lograria esse efeito ofensivo.
Com efeito, nem a mera submissão de requerimento de concessão de uma AIM, nem sequer o próprio ato autorizativo final são aptos a afetar a esfera jurídica dos titulares de alegado "direito de propriedade industrial", pela simples circunstância de que tal ato só incide sobre a verificação das caraterísticas técnicas do medicamento, mas não já sobre a sua aptidão para ser alvo de comercialização (assim, ver Remédio Marques, Direito de patente sobre o medicamento de referência e os procedimentos de emissão de AIM e de fixação do preço respeitantes ao medicamento, cit., p.77). E, aliás, como os artigos 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, bem ressalvam - determinando: "Sem prejuízo dos direitos de propriedade industrial" -, o requerente de uma nova AIM encontra-se proibido de encetar os actos associados à comercialização ou (muito menos) de comercializar efetivamente o medicamento que (ainda) se encontre protegido pelo direito de exclusividade concedido pela patente (assim, ver Remédio Marques, cit., p. 92).
Tudo visto, o requerente de uma nova AIM mantém-se adstrito a um dever de respeito desse exclusivo, que não é afetado pela mera apresentação de um pedido de concessão de AIM ou, tão pouco, pela efetiva concessão dessa autorização. Aliás, mal se perceberia - e, essa sim, poderia configurar uma solução normativa inconstitucional - que os potenciais interessados em comercializar um medicamento cujo direito de exclusividade estivesse prestes a esgotar-se não pudessem iniciar o procedimento administrativo tendente à obtenção de AIM, antes de esse direito de exclusividade ter efetivamente caducado. É que, recorda-se, o exclusivo decorrente da patente tem uma duração de 20 anos (cf. artigo 99.º do CPI), e o prazo máximo para a comercialização efetiva de um medicamento, após concedida uma AIM, é de 3 anos (cf. 77.º, n.º 3, do Estatuto do Medicamento). Ora, é perfeitamente racional - e compreensível, no plano da eficiência económica - que um interessado em comercializar um medicamento genérico possa dar início ao procedimento administrativo tendente à obtenção de uma AIM antes que o referido prazo de 20 anos tenha expirado. Em boa verdade, sujeitar esses interessados a aguardar o esgotamento do prazo do direito de exclusividade é que se configuraria como uma restrição desproporcionada do seu "direito à iniciativa privada" (cf. artigo 61.º da CRP) e, reflexamente, do "direito à saúde" (cf. artigo 64.º da CRP) dos potenciais interessados em adquirir esse medicamento a preços mais baixos.
Aliás, o regime jurídico da autorização de introdução no mercado de medicamento parece até ter bastante em conta a necessidade de compatibilizar os direitos conflituantes dos vários interessados. Isto porque, na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Estatuto do Medicamento, se esclarece que cabe ao titular da AIM, "[a]lém de outras obrigações impostas por lei" - isto é, incluindo as que são fixadas pelo regime jurídico da propriedade industrial -, comercializar o medicamento e assumir "todas as responsabilidades legais pela introdução do medicamento no mercado, no respeito pela lei" (com sublinhado nosso). Além disso, a concessão de uma AIM não isenta o respetivo titular de qualquer responsabilidade civil ou criminal, por violação de outros deveres jurídicos (cf. artigo 14.º, n.º 4, do Estatuto do Medicamento).
Em suma, a interpretação normativa extraída da conjugação entre os artigos 25.º, n.os 1 e 2 e 179.º, n.os 1 e 2, do Estatuto do Medicamento, no sentido de o órgão administrativo competente - v.g., o Infarmed - não dispor de poderes legais para recusar a concessão de AIM a um medicamento, com fundamento numa alegada violação de direitos de propriedade industrial, não afeta o conteúdo essencial do direito à criação científica (cf. artigo 42.º da CRP) nem do direito à propriedade privada (cf. artigo 62.º da CRP), nem tão pouco comporta uma restrição desproporcionada desses mesmos direitos.
Como atrás se disse, as mesmas ponderações são válidas para o artigo 8.º, n.º 3, da Lei 62/2011, quando interpretado no sentido de proibir que o INFARMED' afira, no contexto do processo de autorização do preço de venda ao público ("PVP"), da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento, obrigando-o, desse modo, a deferir requerimentos de aprovação de PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto.
8 - As recorrentes retiram ainda que a interpretação normativa que temos vindo a apreciar seria inconstitucional, por ofensa ao artigo 266.º da CRP, na medida em que dele pretendem extrair um "direito à tutela administrativa efetiva", de modo tal que a administração pública estivesse obrigada a proteger os seus (alegados) "direitos de propriedade industrial", mesmo contra a lei expressa. Ora, além da garantia genérica de "respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos" (cf. n.º 1 do artigo 266.º, da CRP), as recorrentes invocam igualmente o n.º 2 do artigo 266.º da CRP, que determina que a "[o]s órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei".
Tendo chegado à conclusão que não se verifica a violação de qualquer direito, liberdade e garantia, ou de direito de natureza análoga, a discussão desta questão mostra-se prejudicada.
9 - Somente aqui chegados, pensamos estar em condições de apreciar a primeira questão de inconstitucionalidade invocada pelas recorrentes, no seu requerimento inicial, ou seja, a de que o artigo 9.º da Lei 62/2011, por se tratar de uma norma interpretativa, incorporada por via da nova redação dos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento, também seria inconstitucional, quer por constituir uma restrição retroativa de "direitos, liberdades e garantias", quer por "representar uma ingerência do poder legislativo no poder judicial" (sic), na medida em que - na perspetiva das recorrentes - inviabilizaria o direito a impugnar, jurisdicionalmente, a decisão administrativa proferida em matéria de AIM.
Deve começar por notar-se que, por força do n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, a norma interpretativa integra-se na lei interpretada, formando com ela um todo de sentido prescritivo. Nesse sentido, pode mesmo afirmar-se que o sentido interpretativo revelado - ou, antes, reforçado - pela norma interpretativa já se encontrava presente no espírito da norma interpretada (ainda que imperfeito ou duvidoso), sendo ele passível de ser extraído do próprio "sentido possível das palavras" anteriormente contidas na lei interpretada (assim, ver Batista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, p. 285, nota). É esse também o entendimento de Oliveira Ascensão, quando a qualifica como um mecanismo privilegiado de "interpretação autêntica" (cf. O Direito - Introdução e Teoria Geral, 9.ª edição, 1995, pp. 500-501).
Ora, precisamente por esse sentido interpretativo já se encontrar, originariamente, impresso na norma interpretada, a própria lei portuguesa (cf. artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil), determina a sua retroatividade, mediante a sua integração na primeira e assim operando uma novação da fonte normativa originária (nesse sentido, ver Oliveira Ascenção, O Direito - Introdução e Teoria Geral, cit., pp. 502-503; Pires de Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição - reimpressão, 2010, p. 62). Acresce que o próprio n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil ressalva os efeitos jurídicos entretanto já produzidos, quer por força do cumprimento da obrigação, quer por sentença já transitada, quer por transação, ainda que não homologada. Daqui resulta que o próprio regime jurídico da lei interpretativa denota uma intensa preocupação em salvaguardar (e salvaguarda) o princípio da segurança jurídica, garantindo que essa retroatividade não é plena, afetando toda e qualquer situação passada.
Partindo deste enquadramento, importa notar que, de acordo com o que atrás se disse, nem sequer se pode afirmar que a redação conferida aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento se deva considerar como ofensiva do "conteúdo essencial" do direito à liberdade de criação científica e do direito à propriedade privada. O que, desde logo, afastaria a proibição de retroatividade desfavorável que as recorrentes extraem do n.º 3 do artigo 18.º da CRP.
Mas, mesmo que tal se admitisse - o que não sucede, mas por mera exaustão de fundamentação se pondera -, importaria sempre aferir se a medida legislativa em causa é verdadeiramente ofensiva do "princípio da segurança jurídica" e, como tal, da proibição de retroatividade desfavorável.
Tem vindo a ser entendido que o "princípio da segurança jurídica" se pode desdobrar numa "dimensão apriorística" e numa "dimensão aposteriorística". Na sua "dimensão apriorística", o princípio é entendido enquanto elemento de "certeza na orientação" (ou "certitudo") das condutas humanas (assim, ver Theodor Geiger, Vorstudien zu einer Soziologie des Rechts, 1987, 63-66; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, 2010, 215). Na sua "dimensão aposteriorística", ele impõe uma "segurança na implementação" (ou "securitas") das situações da vida já ocorridas, dentro de uma determinada ordem jurídica (assim, ver Theodor Geiger, Vorstudien zu einer Soziologie des Rechts, cit., 63-66; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, cit., 216). Através da "certeza na orientação", cabe aos poderes públicos adotar normas jurídicas suficientemente claras, precisas e esclarecedoras, que possam servir de parâmetro de reflexão e decisão pelo indivíduo, bem como garantir a estabilidade no método e conteúdo de tomada de decisões jurídico-públicas, sejam elas "atuações administrativas" ou "decisões jurisdicionais". Nesse sentido, ver, ver Andreas von Arnauld, Rechtssicherheit, 2006, 167-270; Christian Tietje, Internationalisiertes Verwaltungshandeln, 2002, 617-621; Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, 258; Eberhard Schmidt-A(beta)mann,La Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema, 2003, 205-206; Emanuel Towfigh,Komplexität und normenklarheit, in «Preprints of the Max Planck Institute for Research ond Collective Goods», Berlin, 2008/22, 4-6; Reinhold Zippelius, Filosofia do Direito, cit., 215-217; Freitas Rocha, Direito pós-moderno, patologias normativas e proteção da confiança, in «RFDUP», VII - Especial (2010), 384; Maria Lúcia Amaral, A proteção da confiança, in «V Encontro dos Professores de Direito Público», ICJP, Lisboa, 2012, 21.
Mas, o "princípio da segurança jurídica" exige ainda uma "segurança na implementação", de tal modo que o seu beneficiário possa estar seguro de que os poderes público intervirão, para garantia dos seus direitos subjetivos e interesses normativamente protegidos, em momento subsequente à consolidação da sua posição jurídica. No caso das decisões administrativas previamente tomadas, estas geram um efeito de consolidação jurídico-administrativa - mais ou menos intensa, consoante as suas especificidades - gerando um efeito de tendencial estabilidade da posição jurídica do interessado (por todos, ver Ernst Forsthoff, Traité de Droit Administratif Allemand, 1969, p. 247; Judith Martins-Costa, A ressignificação do princípio da segurança jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos, in «RCEJ-B», 27 (2004), p. 113).
Ora, no presente caso, nem uma nem outra dimensão do "princípio da segurança jurídica" se encontra afetada. Por um lado, começando pela "segurança na implementação", já se demonstrou que a entrada em vigor da nova redação do Estatuto do Medicamento não afeta, de modo algum, a concreta posição jurídica vantajosa das recorrentes, na medida em que o seu exclusivo de patente permanecerá em vigor até ao termo do prazo legal, não afetando a AIM de que beneficiam, por força de decisão administrativa anterior. Como já supra demonstrado (cf. § 6), a nova AIM conferida à recorrida Generis não a habilita a comercializar efetivamente o medicamento patenteado pelas recorrentes, salvo quando esse prazo de exclusividade decorrente do "direito de propriedade industrial" se tiver esgotado. Até lá, a administração pública e os tribunais portugueses garantem todos os meios procedimentais e processuais adequados à proteção de tal direito.
Por outro lado, nem sequer a "certeza na orientação" fica prejudicada por força da aplicação retroativa da lei interpretativa à redação dos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Estatuto do Medicamento. É que, mesmo em momento anterior à sua entrada em vigor, aquela já era a interpretação acolhida, de modo reiterado e consolidado, quer pela atuação quotidiana do Infarmed, quer pela jurisprudência administrativa portuguesa. Com efeito, a jurisprudência mais recentemente consolidada nos tribunais administrativos salienta que, já anteriormente à entrada em vigor das normas interpretativas constantes da Lei 62/2011, se podia entender que a aferição de alegada violação de "direitos de propriedade industrial" não constituía fundamento de indeferimento de pedido de AIM de medicamentos, ainda que houvesse controvérsia jurisprudencial sobre a matéria. Precisamente por subsistirem posições divergentes, a Lei 62/2011, mediante recurso a normas interpretativas, optou por clarificar qual a "interpretação autêntica" a conferir ao regime de AIM. Nesse sentido, já se pronunciaram quer o Supremo Tribunal Administrativo (para além da decisão ora recorrida, ver ainda os acórdãos proferidos em 09 de janeiro de 2013, Proc. n.º 0771/2012, e em 07 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 1256/12), quer o Tribunal Central Administrativo Sul (para além da decisão proferida nos autos recorridos, ver ainda os acórdãos proferidos em 07 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 1255/12 e Proc. n.º 09581/12, e em 21 de fevereiro de 2013, Proc. n.º 08914/12).
Face a esta divergência jurisprudencial não podem as recorrentes invocar qualquer situação de afetação da "certeza na orientação", por parte da norma interpretativa extraída do artigo 9.º da Lei 62/2011, precisamente porque ela veio fixar como autêntica determinada interpretação já anteriormente acolhida pelos tribunais administrativos portugueses, ainda que não unanimemente. Nesse sentido, pode afirmar-se - com Batista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, p. 285, nota - que a norma em causa nem sequer se apresenta como retroativa "proprio sensu", já que se limitou a fixar como autêntica uma interpretação normativa já aplicável no passado, visto que se coadunava com o "sentido possível das palavras" inscritas na lei interpretada.
Não pode, portanto, sequer falar-se em retroatividade "proprio sensu", visto que o parâmetro normativo clarificado e reafirmado pela norma interpretativa contida no artigo 9.º da Lei 62/2011 já podia ser, legitimamente, extraído do Estatuto do Medicamento, tal como vigente na redação do Decreto-Lei 176/2006. E, mais do que isso, tratando-se este último ato legislativo de um ato interno de transposição da Diretiva n.º 2001/83/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06 de novembro de 2001, mais razões havia para que não se tivesse consolidado, na esfera jurídica das recorrentes, qualquer expetativa jurídica (ou, muito menos, um interesse normativamente protegido) de que o Infarmed estive obrigado a apreciar uma alegação de violação de "direitos de propriedade industrial", no procedimento administrativo de concessão de uma AIM de medicamento. É que o texto de tal diretiva é inequívoco ao determinar que essas questões controvertidas não são objeto de apreciação quando o competente órgão administrativo ponderar a concessão de uma AIM.
Acresce ainda que, desde o Regulamento 1993/2309/CEE, de 22 de julho de 1993, que estabeleceu procedimentos comunitários de autorização e fiscalização de medicamentos de uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos, o Direito da União Europeia adotou o princípio - constante do preâmbulo daquele ato legislativo - que, com vista à proteção da saúde pública, é necessário que as decisões relativas à autorização dos referidos medicamentos assentem em critérios científicos objetivos de eficácia, qualidade e segurança do medicamento em questão, independentemente de questões de caráter económico ou outro. Ou seja, determinou que os procedimentos administrativos com vista à concessão de uma AIM se cingissem à apreciação de aspetos técnicos relativos à segurança para a saúde pública dos medicamentos em causa. Razão adicional para concluir que não existia qualquer proteção de uma expetativa jurídica das recorrentes no sentido de que se adotasse, no ordenamento jurídico português, uma posição oposta.
Por tudo isto, mais não resta do que concluir que não se verifica qualquer violação, por parte do artigo 9.º da Lei 62/2011, do "princípio da segurança jurídica", seja na sua forma de princípio geral (cf. artigo 2.º da CRP), seja na sua modalidade de proibição de restrição retroativa de direitos, liberdades e garantias ou de direitos análogos (cf. artigos 17.º e 18.º, n.º 3, da CRP).
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 25.º, n.os 1 e 2, e 179.º, n.os 1 e 2 do Estatuto do Medicamento (aprovado pelo Decreto-Lei 176/2006, de 30 de agosto, com a redação que lhes foi conferida pela Lei 62/2011, de 12 de dezembro) e do artigo 8.º, n.os 3 e 4, da Lei 62/2011, de 12 de dezembro, quando interpretada "no sentido de que a mesma proíbe que o INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. ("INFARMED") afira, no contexto do processo de concessão de AIM ou de PVP, da violação de direitos de propriedade industrial por parte do medicamento objeto desse procedimento e, desse modo, obrigando-o a deferir requerimento de concessão de AIM ou PVP para medicamento violador desses direitos ou impedindo-o de alterar, suspender ou revogar uma AIM ou um PVP com fundamento na violação dos mesmos direitos por parte do medicamento dela objeto";
ii) Não julgar inconstitucional o artigo 9.º, n.º 1, da Lei 62/2011, de 12 de dezembro;
E, em consequência:
iii) Não conceder provimento ao recurso.
Custas devidas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC's.
Lisboa, 8 de abril de 2015. - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208614459