I - A questão
1 - O procurador-geral da República, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, veio requerer a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade formal originária de todas as normas das Portarias n.os 5/84, 7/84 e 8/84, datadas de 30 de Dezembro de 1983, expedidas pelas Secretarias Regionais das Finanças e dos Assuntos Sociais da Região Autónoma dos Açores, invocando para tanto os fundamentos seguintes:As Portarias n.os 5/84, 7/84 e 8/84, reportando-se a «critérios de comparticipação dos utentes» ou «comparticipação dos utentes», vieram fixar «os valores das comparticipações dos utentes a vigorar nos estabelecimentos hospitalares dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais» (Portaria 5/84), as «taxas moderadoras» para «acesso a cuidados de saúde nos Serviços Médico-Sociais e hospitais concelhios» (Portaria 7/84) e «os valores das taxas moderadoras» aplicáveis a determinados exames e tratamentos (Portaria 8/84);
A doutrina dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 24/83 e 92/85 aponta claramente para a solução de que «é inconstitucional o estabelecimento de taxas moderadoras que não seja feito por decreto-lei», o que no caso implicaria um decreto legislativo regional, por força do disposto nos artigos 229.º, alínea b), e 234.º da Constituição e 26.º, n.º 1, alínea d), e 28.º da Lei 39/80, de 5 de Agosto;
Faltando o título de habilitação legal necessário para estabelecer valores condicionantes do acesso de utentes a cuidados de saúde, pois as portarias em causa apelam apenas para «as faculdades conferidas pelo Estatuto da Região Autónoma dos Açores na Lei 39/80, de 5 de Agosto», estão elas feridas na sua fonte de vício formal.
2 - Em obediência ao disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, foi notificado o Governo Regional dos Açores, como órgão autor das normas impugnadas, havendo produzido a competente resposta, que assim se pode sintetizar:
A inconstitucionalidade que se invoca é apenas de natureza formal, não tendo sido posta em causa a legitimidade das denominadas taxas moderadoras;
Mas as disposições conjugadas dos artigos 31.º, n.º 1, e 3.º do Decreto Regional 32/80/A, de 11 de Dezembro, constituem o título de habilitação legal necessário à legitimidade constitucional daqueles diplomas;
As Portarias n.os 5/84, 7/84 e 8/84 limitam-se a regulamentar o Decreto Regional 32/80/A, sendo formalmente constitucionais.
Cumpre agora decidir.
II - A fundamentação
1 - A Portaria 5/84, na sua parte dispositiva, reza do modo seguinte:1 - São fixados os valores das comparticipações dos utentes a vigorar nos estabelecimentos hospitalares dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, bem como as normas que orientam o seu pagamento.
2 - Consultas externas:
Hospitais de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada - 180$00.
Nestes valores não estão compreendidos os meios complementares de diagnóstico referidos no número seguinte.
3 - Meios complementares de diagnóstico:
Por cada exame realizado nos Hospitais de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada, em regime de ambulatório, é devida pelo utente a seguinte comparticipação:
Exames laboratoriais, por análise (ver nota *) - 40$00;
Exames radiológicos, por película - 100$00;
Por electroencefalograma - 250$00;
Por electrocardiograma -120$00;
Ecografias, por exame - 100$00;
Endoscopia, por exame- 300$00;
Electromiografia, por exame - 250$00.
(nota *) Estão isentos os exames histológicos e citológicos.
4 - Urgência:
São fixadas ao utente as seguintes comparticipações:
Hospitais de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada - 250$00;
Hospitais concelhios - 150$00.
Estes valores compreendem toda a assistência prestada na urgência, designadamente assistência médica e de enfermagem, medicamentos, tratamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica.
Não há lugar ao pagamento da comparticipação, quando da observação do utente resultar o internamento, mesmo que em «sala de observações».
5 - As comparticipações dos utentes no pagamento de consultas realizadas nos hospitais concelhios e dos meios complementares de diagnóstico neles prescritos são as estabelecidas para a área extra-hospitalar.
6 - Isentos:
Ficam isentos do pagamento das comparticipações referidas nos números anteriores:
a) As mulheres na assistência pré-natal e no puerpério;
b) Os filhos dos utentes até completarem 3 anos de idade;
c) Os dadores de sangue desde que devidamente identificados;
d) Os pensionistas da pensão social;
e) Os pensionistas da pensão de invalidez, por velhice, sobrevivência e orfandade;
f) Os cônjuges dos pensionistas por velhice, por invalidez e da pensão social;
g) Os beneficiários do abono complementar a crianças e jovens deficientes;
h) Os beneficiários do subsídio mensal vitalício;
i) Os utentes não contributivos do sistema de segurança social;
j) Os internados em estabelecimentos oficiais ou instituições privadas de solidariedade social sem fins lucrativos.
7 - Identificação:
7.1 - Os doentes terão sempre de se identificar, podendo caber em qualquer dos seguintes grupos:
a) Isentos;
b) Inscritos nos centros de prestações pecuniárias da Direcção Regional de Segurança Social - utentes do sistema de saúde;
c) Beneficiários de subsistemas de saúde;
d) Acidentados por responsabilidade de terceiros.
7.2 - As isenções definidas no n.º 6 só se aplicam aos utentes do sistema de saúde.
8 - Aos beneficiários de subsistemas de saúde e acidentados por responsabilidade de terceiros é aplicável a tabela hospitalar total, constante de portaria publicada nesta data, a facturar directamente à entidade responsável.
8.1 - No caso de falta de identificação por parte do utente ser-lhe-á facturada a conta hospitalar total.
8.2 - A não identificação de qualquer utente que resulte de situação que comprovadamente não lhe seja imputável não implica o agravamento previsto no número anterior, desde que posteriormente assegurada.
9 - O acesso aos cuidados diferenciados dos Hospitais de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada, com excepção das situações de urgência, pressupõe que o utente seja devidamente referenciado pelos serviços de saúde não hospitalares, sendo-lhe em caso contrário facturado o valor total da tabela hospitalar respeitante à situação.
10 - A presente portaria entra em vigor no dia 1 do mês seguinte ao da sua publicação.
2 - E a Portaria 7/84 preceitua nos termos que seguem:
1 - O acesso a cuidados de saúde nos Serviços Médico-Sociais e nos hospitais concelhios faz-se mediante o pagamento das seguintes taxas moderadoras:
a) Consultas - 40$00;
b) Visitas domiciliárias - 180$00.
2 - Ficam isentos do pagamento das taxas moderadoras referidas no número anterior:
a) As mulheres na assistência pré-natal e no puerpério;
b) Os filhos dos utentes até completarem 3 anos de idade;
c) Os pensionistas da pensão social;
d) Os pensionistas da pensão de invalidez, velhice, sobrevivência e orfandade;
e) Os cônjuges dos pensionistas por velhice, por invalidez e da pensão social;
f) Os beneficiários do abono complementar a crianças e jovens deficientes;
g) Os beneficiários do subsídio mensal vitalício;
h) Os utentes não contributivos do sistema de segurança social;
i) Os internados em estabelecimentos oficiais ou instituições privadas de solidariedade social sem fins lucrativos.
3 - A presente portaria entra em vigor no dia 1 do mês seguinte ao da sua publicação.
3 - Finalmente, a Portaria 8/84 contém o seguinte conjunto normativo:
1 - São os seguintes os valores das taxas moderadoras aplicáveis aos exames e tratamentos abaixo discriminados:
a) Exames laboratoriais, por análise (ver nota *) - 40$00;
b) Exames radiológicos, por película - 100$00;
c) Por cada sessão de medicina física e de reabilitação - 125$00;
d) Por electrocardiograma - 120$00;
e) Por electroencefalograma - 250$00;
f) Ecografia, por exame - 100$00;
g) Exame de radiodiagnóstico cujo preço seja superior a 100$00 - comparticipação do utente em l0% do custo total;
h) Endoscopia, por exame - 300$00;
i) Electromiografia, por exame - 250$00;
j) Restantes traçados e provas funcionais - 150$00.
(nota *) Estão isentos os exames histológicos e citológicos.
2 - Ficam isentos de pagamento das taxas moderadoras prescritas no número anterior:
a) As mulheres na assistência pré-natal e no puerpério;
b) Os filhos dos utentes até completarem os 3 anos de idade;
c) Os pensionistas da pensão social;
d) Os pensionistas da pensão de invalidez, velhice, sobrevivência e orfandade;
e) Os cônjuges dos pensionistas por velhice, por invalidez e da pensão social;
f) Os beneficiários do abono complementar a crianças e jovens deficientes;
g) Os beneficiários do subsídio mensal vitalício;
h) Os utentes não contributivos do sistema de segurança social;
i) Os internados em estabelecimentos oficiais ou instituições privadas de solidariedade social sem fins lucrativos.
3 - A presente portaria entra em vigor no dia 1 do mês seguinte ao da sua publicação.
4 - O artigo 64.º da Constituição, depois de asseverar no seu n.º 1 que «todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover», acrescenta no seu n.º 2 que «o direito à protecção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito, pela criação de condições económicas, sociais e culturais que garantam a protecção da infância, da juventude e da velhice e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo».
Na sequência desta disposição constitucional foi editada a Lei 56/79, de 15 de Setembro, criando o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
No seu artigo 7.º prescrevia esta lei que «o acesso ao SNS é gratuito, sem prejuízo do estabelecimento de taxas moderadoras diversificadas tendentes a racionalizar a utilização das prestações».
E nos artigos 8.º a 17.º desenvolviam-se e enumeravam-se os direitos e garantias dos utentes do SNS e dos cuidados que lhes deviam ser prestados pelo respectivo Serviço.
Este T. Const., tratando de matérias próximas daquela que agora está em apreciação, teve já ensejo de acentuar que a Lei 56/79 é uma lei de bases, isto é, uma daquelas leis que se limitam a definir as bases gerais dos regimes jurídicos, estando a sua implementação dependente não apenas de execução regulamentar, mas sim de um prévio e intermédio desenvolvimento legislativo, mediante decreto-lei (cf. Acórdãos n.os 24/83, 39/84 e 92/85, Diário da República, 1.ª série, respectivamente de 19 de Janeiro de 1984, 5 de Maio de 1984 e 24 de Julho de 1985).
Com efeito, a lei em causa, depois de dispor no seu artigo 62.º que «o SNS para os Açores e Madeira será objecto de diploma especial informado pelos princípios constantes das presentes normas e pelas que decorrem da autonomia dessas regiões», estabeleceu no artigo 65.º, n.º 1, que «o Governo elaborará, no prazo de seis meses a contar da publicação da presente lei, os decretos-leis necessários à sua execução».
5 - Contudo, e não obstante a imposição adveniente das normas citadas, não foi aprovado pelo Governo diploma especial de que seria objecto o SNS para os Açores e Madeira.
Foi editado, sim, o Decreto Ragional n.º 32/80/A, instituindo um Serviço Regional de Saúde de todo em todo independente do SNS, representando e traduzindo em boa verdade uma réplica regional paralela do Serviço criado pela Lei 56/79, dotado embora, relativamente a este, de total autonomia.
Assinale-se que os únicos pontos de interdependência ali estabelecidos se situam no domínio do estatuto do pessoal, prescrevendo-se sucessivamente nos artigos 28.º e 29.º que o pessoal do Serviço Regional de Saúde terá o regime jurídico e a formação técnica idênticos aos do pessoal do SNS, sendo-lhe facultado o ingresso nos quadros de pessoal deste último e vice-versa, beneficiando de remunerações e regalias idênticas às estabelecidas para o pessoal do SNS, sem prejuízo da criação de incentivos suplementares destinados a fixar pessoal nas ilhas mais carecidas de assistência médica e paramédica.
No âmbito das condições de acesso aos cuidados de saúde e ao estabelecimento de taxas moderadoras, aquele decreto regional limita-se, nos seus artigos 3.º e 31.º, n.º 1, a reproduzir, quase textualmente, o que os artigos 7.º e 54.º, n.º 1, da Lei 56/79 prescrevem sobre idêntica matéria. Não se pode assim afirmar aqui, num puro plano de explicitação material, a existência de um qualquer desenvolvimento ou acréscimo de concretização que o diploma regional haja empreendido relativamente à lei da Assembleia da República.
6 - Os diplomas impugnados reportam-se às condições de acesso de doentes aos Hospitais de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada, bem como aos critérios de comparticipação relativa aos cuidados de saúde prestados naqueles Hospitais em regime de ambulório (Portaria 5/84), às tabelas das taxas moderadoras para acesso a cuidados de saúde nos Serviços Médico-Sociais e nos hospitais concelhios (Portaria 7/84) e aos valores dessas mesmas taxas moderadoras relativamente ao recurso a elementos complementares de diagnóstico e terapêuticos, tratamentos de radioterapia e de medicina física e de reabilitação à responsabilidade dos hospitais concelhios e Serviços Médico-Sociais ou outras entidades que actuam no domínio da prestação de cuidados primários de saúde (Portaria 8/84).
Todos eles foram expedidos sob a mera invocação «das faculdades conferidas pelo Estatuto da Região Autónoma dos Açores - Lei 39/80, de 5 de Agosto», omitindo-se assim, por inteiro, a citação da lei habilitante.
Com efeito, em conformidade com o disposto no artigo 115.º, n.º 7, da Constituição, «os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão».
Os diplomas regulamentares sob sindicância, buscando apoio tão-somente na Lei 39/80, e ignorando qualquer referência às leis que os poderiam legitimar, carecem de um elemento formal constitucionalmente necessário, padecendo assim, e desde logo, de inconstitucionalidade formal.
7 - Já antecedentemente se deixou afirmado que a lei que criou o SNS é uma lei de bases, sujeita a um ulterior desenvolvimento legislativo, a efectuar através de decretos-leis.
Por outro lado, também se reconheceu que o Decreto Regional 32/80/A não representa qualquer desenvolvimento ou extensão das bases daquela lei, ao menos no domínio das matérias que interessam à questão em presença.
Com efeito, mesmo na eventualidade de se aceitar - contra a opinião dominante neste Tribunal - que as leis de bases da Assembleia da República possam ser desenvolvidas por via de diploma legislativo regional, quando tal seja expressamente consentido pela própria lei de bases e se trate de matéria de interesse específico regional - suposto que aqui se verificam estes dois requisitos (ponto que aqui se deixa em suspenso) -, sempre haverá de se reconhecer que o decreto regional em causa não constitui desenvolvimento da lei do SNS no tocante à regulamentação do acesso aos cuidados de saúde e às taxas moderadoras, pois que, como já antes se assinalou, nada ali se acrescenta, nesta matéria, ao disposto na Lei 56/79.
Há-de assim concluir-se que a ausência de mediação legislativa entre a lei de bases do SNS e o conteúdo regulamentar das portarias sindicadas envolve e determina para estas a existência de uma outra causa de inconstitucionalidade por violação do princípio decorrente do disposto nos artigos 115.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
8 - Tendo em atenção o disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, e porque razões de segurança jurídica e de interesse público o justificam, a inconstitucionalidade apenas produzirá efeitos a partir da publicação do presente acórdão, não havendo lugar à restituição das taxas moderadoras entretanto cobradas pelos serviços.
III - A decisão
Nestes termos, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das Portarias n.os 5/84, 7/84 e 8/84, das Secretarias Regionais das Finanças e dos Assuntos Sociais da Região Autónoma dos Açores, todas de 30 de Dezembro de 1983, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 7, e no princípio decorrente dos artigos 115.º, n.º 2, e 201.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.Decide-se mais que a presente declaração de inconstitucionalidade só produzirá efeitos a partir da publicação deste acórdão.
Lisboa, 25 de Junho de 1987. - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - Mário Afonso - José Manuel Cardoso da Costa - Mário de Brito - José Magalhães Godinho - Vital Moreira - Raul Mateus Armando Manuel Marques Guedes.