Acórdão 54/87
Processo 118/86
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional (T. Const.):
1 - Relatório
O procurador-geral da República-adjunto em exercício no T. Const., por delegação do procurador-geral da República, vem, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), conjugado com o n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (CRP), requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei 437/75, de 16 de Agosto (Lei da Extradição), no segmento em que define a ordem de intervenção das partes para alegar em processo de extradição, norma essa que, nessa parte, já foi julgada inconstitucional em três recursos de constitucionalidade, a saber, os Acórdãos n.os 45/84, 192/85 e 147/86 (publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente, de 10 de Novembro de 1984, 10 de Fevereiro de 1986 e 31 de Julho de 1986).
Solicitado a pronunciar-se sobre o pedido, nos termos do artigo 54.º da LTC, o Governo nada veio dizer.
Cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - Sentido da norma em causa
Dispõe a norma em exame:
Artigo 33.º
Produção de prova
1 - ...
2 - Terminada a produção da prova, o defensor ou o advogado do extraditando e o procurador da República terão sucessivamente vista do processo por três dias para alegações.
O pedido de declaração de inconstitucionalidade só incide naquele elemento da norma que define a ordem de intervenção para alegações, dando a última palavra ao Ministério Público (MP). Com efeito, só nessa parte é que se pode questionar se a norma é compatível com o n.º 1 e o n.º 5 do artigo 32.º da CRP, que dão aos arguidos todas as garantias de defesa e que fazem subordinar o processo criminal ao princípio do contraditório.
Torna-se necessário situar a norma no contexto do diploma legal em que se integra, a fim de apreender todo o seu sentido e alcance.
O Decreto-Lei 437/75 é o diploma que regula o processo de extradição. Esse compreende duas fases: uma fase administrativa, que se inicia com o pedido de extradição feito por um Estado estrangeiro e termina com uma decisão do Governo, indeferindo-o ou mandando-o prosseguir; neste último caso, segue-se a fase judicial, destinada a apurar se se verificam as condições legais da extradição e que termina pela decisão do tribunal concedendo ou negando a extradição.
A fase judicial é introduzida pelo MP no tribunal da relação (TR). Capturado o extraditando, pode este opor-se à extradição. Efectuadas as diligências de prova a que houver lugar, vêm as alegações: primeiro o extraditando, depois o MP. Seguem-se os vistos e o julgamento, concedendo ou denegando a extradição.
Fácil é verificar que o processo de extradição garante sem dúvida o direito de intervenção do extraditando, o qual é ouvido pelo relator, pode apresentar oposição à extradição, oferecer testemunhas, requerer diligências, alegar o seu ponto de vista. Mas é igualmente indiscutível que não lhe cabe a ele a última palavra antes do julgamento, visto que quem intervém em último lugar para alegações é o MP, não tendo o extraditando possibilidade de contestar os elementos trazidos ao processo pelo MP nessa derradeira intervenção.
2.2 - A natureza penal do processo de extradição
O processo judicial de extradição visa decidir da legitimidade da entrega de um cidadão estrangeiro às autoridades de um Estado estrangeiro, para aí ser julgado por certo crime ou para cumprir pena a que tenha sido condenado (Decreto-Lei 437/75, artigo 2.º). É, portanto, um processo de escopo inquestionavelmente penal. No processo de extradição não se julga criminalmente nem se condena o extraditando, mas é manifesto que é através da extradição que o extraditado pode vir a ser julgado e condenado ou obrigado a cumprir uma pena.
Por conseguinte, o processo judicial de extradição tem a ver directamente com a liberdade pessoal do extraditando. Não apenas porque em consequência da extradição pode vir a ser condenado a prisão ou ter de cumprir a pena a que já tenha sido condenado, mas também, e desde logo, porque a extradição implica a sua saída forçada do País e a sua transferência para outro país, o que tudo se traduz em sacrifícios da sua liberdade pessoal. Aliás, o processo de extradição integra naturalmente como acto necessário a prisão do extraditando [Decreto-Lei 437/75, artigos 11.º, 12.º e 28.º, n.º 3, e CRP, artigo 27.º, n.º 3, alínea b)].
A natureza criminal do processo de extradição revela-se também em alguns aspectos do seu regime legal. A lei processual penal comum é referida em várias disposições a título supletivo (cf. os artigos 14.º, 34.º, n.º 2, e 50.º, n.º 1, do Decreto-Lei 437/75). O recurso das decisões da relação faz-se para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) (artigos 26.º, n.º 3, e 33.º, n.º 2).
A favor da natureza penal do processo judicial de extradição pronuncia-se a melhor doutrina. No Acórdão 192/85 transcreve-se a seguinte posição de um autor, que não é de mais reproduzir também aqui:
A fase judicial do processo de extradição fundado num crime é sem dúvida, tanto formal como substancialmente, processo penal, mesmo no seu sentido mais estrito: por isso mesmo, a tendência é hoje para integrar as normas do processo de extradição nos códigos de processo penal [...] ou, pelo menos, para fazer constar daqueles uma norma de reenvio para legislação especial em matéria de extradição. [J. Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, p. 14, n.º 3.]
Foi com base neste conjunto de considerações que os acórdãos que estão na base do presente pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral concluíram pela caracterização penal do processo de extradição.
Sendo assim, então tem de entender-se que valem para o processo de extradição os princípios constitucionais em matéria de processo criminal, especialmente enunciados no artigo 32.º («Garantias de processo criminal»), de tal modo que ao extraditando assistem os direitos e garantias do arguido em processo penal, designadamente os dos n.os 1 e 5 daquele preceito constitucional. Aplicado ao processo de extradição, tais normas estabelecem que ele há-de, do mesmo modo, assegurar «todas as garantias de defesa» e que também ele «tem estrutura acusatória», estando a fase de julgamento igualmente «sujeita ao princípio do contraditório».
2.3 - Garantias de defesa, princípio do contraditório e ordem para alegar
Nos termos da norma em apreço, é o MP - que pugna pela extradição - que alega em último lugar; e é o extraditando - que se opõe à extradição - que alega antes dele. Salta à vista que, segundo essa regra, quem tem a última palavra é o MP e que o extraditando não tem oportunidade de contestar as alegações finais daquele.
Um tal regime não pode deixar de considerar-se flagrantemente atentatório dos direitos de defesa do extraditando e do princípio do contraditório. As garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação; o princípio do contraditório não pode deixar de compreender a possibilidade de contraditar as alegações finais do MP. Ou seja: da conjugação dos dois princípios decorre seguramente que é ao defensor do arguido (na extradição: do extraditando) que deve caber a última palavra em matéria de alegações.
No Acórdão 27/85 pode ler-se:
Cabe ao MP, como já atrás se referiu, promover o cumprimento do pedido extraditivo junto da relação competente.
Ocupa assim no processo de extradição o lado activo; é o MP que inicialmente cria, frente ao extraditando, uma tensão em torno do binómio autoridade-liberdade, pertencendo àquele, que se situa no lado passivo do processo, opor-se, criando uma tensão de sinal contrário.
Este ritmo dialéctico, como manifestação do princípio do contraditório, tem muito especialmente de ser acatado na fase de julgamento do processo de extradição. Só o seu acatamento permitirá, de facto e em perspectiva constitucional, a justa definição da causa.
A alteração de ordem das posições processuais, determinada pelo n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei 437/75, opõe-se à lógica interna que rege a sucessão dos actos processuais, contraria o esquema dialéctico traçado e viola, por isso, o princípio do contraditório.
O mesmo ponto é sublinhado, com outra formulação, no Acórdão 192/85:
Significa isto que, primeiro, alega o extraditando, e depois, o MP.
Ora, como atrás se viu, é o MP quem desencadeia o processo promovendo o cumprimento do pedido de extradição formulado contra o extraditando. Este, quando se opõe ao pedido, pode requerer a realização de diligências e produzir provas, com vista a convencer da inverificação dos respectivos pressupostos. A essa oposição pode o MP responder com perfeita igualdade.
Assim sendo, permitir que, depois, na fase do julgamento, se invertam estas posições processuais, surgindo o MP a alegar em último lugar, é abrir a porta à possibilidade de frustração do direito de defesa do extraditando. Basta, para tanto, que este se veja na necessidade de contrariar os argumentos e as conclusões apresentados pelo MP: num tal caso, com efeito, o extraditando não poderá dar qualquer resposta, uma vez que já alegou.
O princípio do contraditório exige, assim, que no processo de extradição o extraditando possa alegar em último lugar. De contrário, haverá um inadmissível e injustificado encurtamento das garantias da defesa, pois que o extraditando se verá colocado numa posição de «sensível desigualdade» em face do MP.
Esse ponto é ainda retomado como ponto saliente na argumentação do Acórdão 147/86:
Na dinâmica deste dispositivo, o extraditando, sujeito passivo da relação processual penal estabelecida na fase judicial do processo extraditivo, alega antes do MP «autor», nessa relação, a quem cabe, assim, a última «palavra.
Esta atitude legislativa afronta por forma inequívoca o direito fundamental de defesa por violação do princípio do contraditório.
Na verdade, este princípio impõe, como acentuámos, se conceda ao extraditando o direito de se defender, impugnando o pedido da sua extradição.
As alegações constituem a última peça processual onde, antes da decisão final (artigo 34.º, n.º 2), se fará o juízo crítico da prova e se extrairão as conclusões finais conducentes à concessão da extradição ou à procedência da respectiva oposição.
Ora o ritualismo estatuído na norma sindicanda nega ao extraditando a possibilidade de contraditar a posição assumida pelo MP nas suas alegações.
Impõe-se, portanto, a conclusão de que ao estabelecer a ordem de alegações, colocando o MP em último lugar, a norma em apreciação desrespeita as garantias de defesa do extraditando, bem como o princípio do contraditório (que, aliás, é também uma expressão das garantias de defesa).
2.4 - Garantias constitucionais e direitos dos estrangeiros
A extradição só pode aplicar-se a estrangeiros (e a apátridas), não podendo nenhum cidadão português ser extraditado do território nacional (CRP, artigo 33.º, n.º 1). Mas o facto de a extradição não poder envolver cidadãos portugueses não tem a mínima relevância quanto à aplicabilidade dos princípios constitucionais do processo criminal ao domínio do processo judicial de extradição.
É que os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam em princípio dos direitos do cidadão português (CRP, artigo 15.º, n.º 1) e, embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses (CRP, artigo 15.º, n.º 2, in fine), não pode obviamente fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses. Ora não se vê como é que seria de alguma forma defensável a restrição dos direitos dos estrangeiros em matéria de garantias de defesa em processo criminal. Estando em causa a liberdade das pessoas, enquanto tais, seria seguramente ilegítima toda e qualquer discriminação de tratamento com base na cidadania.
Enfim, nenhuma consideração especial merece o facto de o processo de extradição envolver estrangeiros e apátridas. Os seus direitos nesta área não podem ser menos do que os dos cidadãos portugueses. O regime da norma aqui em apreciação não ofende menos a Constituição quando aplicado à extradição de estrangeiros do que a ofenderia se porventura se aplicasse também a cidadãos portugueses.
Face à lei fundamental, em matéria de extradição os estrangeiros não gozam apenas dos direitos e garantias consignados directamente nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 33.º da CRP (entre os quais se conta justamente o de que a extradição só pode ser decidida por autoridade judicial); no processo judicial da extradição gozam também das garantias que decorrem da natureza criminal desse processo, em pé de igualdade com os cidadãos portugueses.
Ora são justamente algumas dessas garantias que são violadas pelo preceito em juízo.
3 - Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que ele estabelece a ordem de intervenção do extraditando e do MP para alegações, por violação do n.º 1 e do n.º 5 do artigo 32.º da CRP.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1987. - Vital Moreira - Raul Mateus - Antero Alves Monteiro Diniz - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - José Joaquim Martins da Fonseca - Mário Afonso - José Manuel Cardoso da Costa - Mário de Brito - José Magalhães Godinho - Armando M. Marques Guedes.