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Acórdão 90/88, de 13 de Maio

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Sumário

DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, PARCIAL DAS NORMAS CONSTANTES DOS ARTIGOS 76 E 82 DO REGULAMENTO DE DISCIPLINA MILITAR, APROVADO PELO DECRETO LEI NUMERO 142/77, DE 9 DE ABRIL, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 18, NUMERO 2, 52, 32, NUMERO 3 E 269, NUMERO 3, DA CONSTITUICAO, E NAO DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA CONSTANTE DO NUMERO 2 DO ARTIGO 119 DO CITADO REGULAMENTO.

Texto do documento

Acórdão 90/88

Processo 149/84

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional (T. Const.):

I - Relatório

1 - De harmonia com o disposto no artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º da Constituição da República, o Provedor de Justiça requereu ao T. Const. que declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 76.º, 82.º e 119.º, n.º 2, do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril.

Em síntese, alega o requerente:

a) Muito embora o artigo 74.º do RDM, concretizando o direito conferido no n.º 1 do artigo 52.º da lei fundamental, estabeleça que «a todo o militar assiste o direito de queixa contra superior quando por este for praticado qualquer acto de que resulte para o inferior lesão de direitos prescritos nas leis e nos regulamentos», a verdade é que o artigo 76.º do mesmo diploma prevê que o militar que tiver usado daquele meio será punido disciplinarmente,«quando manifestamente se reconheça que não houve fundamento para a queixa», o que, pelo receio que pode causar, e de molde a limitar o exercício daquele direito, com violação da citada norma constitucional;

b) O artigo 82.º do RDM, ao determinar que «o processo disciplinar não admite qualquer forma de representação, excepto nos casos de incapacidade do arguido, por anomalia mental ou física, bem como de doença que o impossibilite de organizar a defesa, casos em que, não havendo defensor escolhido, será nomeado pelo chefe competente um oficial, como defensor oficioso», está em contradição com o disposto no n.º 3 do artigo 32.º da Constituição, porquanto o direito à assistência de defensor, ali garantido expressamente para o processo penal, tem de ser entendido como aplicável ao processo disciplinar;

c) O n.º 2 do artigo 119.º do mesmo RDM, ao estabelecer que a decisão que julgar o recurso hierárquico interposto em processo disciplinar «é definitiva», viola o preceituado nos artigos 20.º, n.º 2, e 27.º, n.º 3, alínea c), da lei fundamental, dado que, nos termos do questionado Regulamento (artigo 120.º), só cabe recurso contencioso para o Supremo Tribunal Militar (STM) das decisões proferidas em matéria disciplinar pelos chefes de estado-maior, não se prevendo recurso contencioso das decisões proferidas pelas restantes entidades com competência para decidir os mencionados recursos hierárquicos.

2 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, veio aquele a responder, juntando um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros que merecera a sua concordância.

Nesse parecer sustenta-se que:

a) O artigo 76.º do RDM não é inconstitucional, na medida em que se limita a prever a punição disciplinar do queixoso que tenha agido com má fé, «à semelhança, aliás, do que acontece com os demais funcionários públicos, da administração pública estadual, regional ou local», «só assim se evitando queixas arbitrárias e caluniosas»;

b) O artigo 82.º do RDM é efectivamente inconstitucional, conforme requer o Provedor de Justiça, pois que, sendo o processo disciplinar militar susceptível de culminar na aplicação de penas tão gravosas como a detenção e a prisão, parece que deve haver especiais cuidados no que concerne à organização da defesa do arguido, a qual só estará devidamente acautelada, pelo grau de tecnicidade requerida, se for permitida a intervenção de defensor, como, aliás, acontece no processo disciplinar comum, que é bem menos gravoso;

c) O n.º 2 do artigo 119.º do RDM não viola a garantia constitucional de recurso contencioso, porquanto se há-de entender que as decisões proferidas em recurso hierárquico por entidade diversa dos chefes de estado-maior são recorríveis para os tribunais administrativos de círculo, nos termos do preceituado na alínea j) do artigo 51.º do Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril, segundo a qual cabe àqueles tribunais conhecer «dos recursos e das acções pertencentes ao contencioso administrativo para que não seja competente outro tribunal».

Cumpre, agora, decidir.

II - Fundamentação

A) Artigo 76.º do RDM

3 - Segundo se encontra preceituado no n.º 1 do artigo 52.º da Constituição, «todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral».

Vê-se aqui, pois, que o direito de queixa recebeu assento constitucional, como uma das vertentes do direito de petição, constituindo um dos «direitos, liberdades e garantias de participação política», pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da lei fundamental, só pode ser restringido «nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

No artigo 76.º do RDM estabelece-se que «quando manifestamente se reconheça que não houve fundamento para a queixa ou se mostre que houve propósito malicioso da parte do queixoso na sua apresentação, será o militar que tiver usado deste meio punido disciplinarmente, devendo tomar a iniciativa, para esse fim, a autoridade a quem for dirigida a queixa».

Será que existe aqui uma restrição inadmissível do direito de queixa, enquanto componente do direito de petição? Em primeiro lugar, cumpre assinalar que não é invocável, no caso vertente, o disposto no artigo 270.º da Constituição. Com efeito, este permite que a lei estabeleça restrições ao exercício de certos direitos por parte dos «militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas funções próprias», mas, se entre tais direitos se encontra o direito de petição colectiva, já se não encontra o de petição (ou queixa) individual. Não há, pois, como já se referiu, que recorrer ao referido artigo 270.º para lobrigar fundamento constitucional para a norma em apreço do RDM.

Alega o Primeiro-Ministro, todavia, que a disposição em causa não é inconstitucional porque apenas prevê que seja punido disciplinarmente aquele que tenha agido de má fé, apresentando queixa com intenção caluniosa.

No fundo, o que desta forma, embora implicitamente, se pretende sustentar é que no artigo 76.º do RDM tão-só se explícita, afinal, um verdadeiro limite imanente do referido direito de queixa.

Na verdade, tem-se afirmado que a lei pode «revelar limites que não se encontram previstos ou mencionados na Constituição, mas que hajam de entender-se implicitamente decorrentes do seu texto, designadamente por efeito de colisão de direitos» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p. 168). Assim, «se num caso concreto se põe em causa o conteúdo essencial de outro direito, se se atingem intoleravelmente a moral social ou valores e princípios fundamentais da ordem constitucional, deverá resultar para o intérprete a convicção de que a protecção constitucional do direito não quer ir tão longe» (J.

C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 219).

4 - Nesta perspectiva, o direito de petição ou queixa há-se encontrar-se negativamente delimitado, de forma a não atingir, designadamente, o direito ao bom nome e reputação, consignado no n.º 1 do artigo 26.º da lei fundamental.

É por isso que, por exemplo, o artigo 408.º do Código Penal (CP) manda punir com prisão até dois anos «quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita de que esta praticou crime, contravenção, contraordenação ou uma falta disciplinar, com intenção de conseguir que contra ela se instaure o respectivo procedimento». E, na mesma linha, o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (EDFAACRL), aprovado pelo Decreto-Lei 24/84, de 16 de Janeiro, estabelece, no n.º 5 do seu artigo 46.º, que, «quando conclua que a participação é infundada e dolosamente apresentada no intuito de prejudicar o funcionário ou agente e contenha matéria difamatória ou injuriosa, a entidade competente para punir participará o facto criminalmente, sem prejuízo de adequado procedimento disciplinar quando o participante seja funcionário ou agente».

Uma análise conjugada do CP e do Estatuto Disciplinar permite concluir que, de acordo com aqueles diplomas, quando um cidadão utiliza formalmente o direito de petição para atingir fins que são manifestamente alheios à razão de ser da sua protecção constitucional, a lei não o protege, porquanto, no fundo, ele não está a exercer esse direito, cujos limites imanentes foram excedidos.

Em ambos os casos, porém, o cidadão recorre abusivamente ao direito de petição, sabendo que os factos apontados na queixa são falsos e com o intuito doloso de prejudicar o denunciado ou participado.

5 - O artigo 76.º do RDM, no entanto, prevê duas hipóteses distintas: a primeira hipótese é idêntica àquelas de que tratam o CP e o Estatuto Disciplinar, pois prevê a punição do queixoso, quando se mostre que houve, da sua parte, propósito malicioso na apresentação da queixa; a segunda hipótese, porém, é radicalmente diversa, pois que para que a punição se verifique basta que «manifestamente se reconheça que não houve fundamento para a queixa».

Acontece que a fundamentação aduzida pelo requerente no sentido de ser declarada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 76.º do RDM só abrange a parte em que se prevê esta segunda hipótese. Há, pois, que entender que só pretende ver declarada a inconstitucionalidade da referida norma nessa parte.

Ora, na parte em causa, a situação é - como já se referiu - profundamente distinta daquelas que anteriormente se analisaram.

Com efeito, e desde logo, a punição do queixoso é independente de qualquer intenção maliciosa, isto é, o que se pretende punir é a mera apresentação de queixas infundadas, e não o intuito de prejudicar o superior contra quem a queixa é apresentada.

Mas, e este ponto é igualmente relevante, para que possa haver punição não se exige, sequer, que o queixoso tenha tido consciência de que estava a apresentar uma queixa sem fundamento. Basta que tal circunstância seja manifesta para a entidade a quem ela foi apresentada - repare-se, para essa entidade, e não para o queixoso - para que a infracção disciplinar seja dada como verificada.

Não se vê, assim, que se possa, no caso vertente, considerar que a norma em apreço haja tão-só procedido à concretização de um limite imanente do direito de petição.

Nestes termos, o artigo 76.º, na parte que ora nos interessa, pela forma e pelas circunstâncias em que prevê a punição disciplinar do queixoso, constitui uma efectiva restrição ao direito de petição, «pelo medo que pode causar no militar de ver instaurado contra si ulterior processo disciplinar», restrição essa que tem como única razão de ser uma certa concepção da hierarquia militar, mas que - como se viu - não pode encontrar arrimo no artigo 270.º da lei fundamental.

É que, em geral, não se exige que as queixas (ou petições) sejam pertinentes:

«O teor e os termos da petição podem pesar na sua apreciação, mas não na licitude do seu exercício.» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p.

287.) Assim sendo, a norma constante do artigo 76.º do RDM, na parte em que prevê a punição do militar queixoso, quando manifestamente se reconheça que não houve fundamento para a queixa, viola o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 52.º da Constituição.

B) Artigo 82.º do RDM

6 - O artigo 82.º do RDM estabelece que, salvo «nos casos de incapacidade do arguido, por anomalia mental ou física, bem como de doença que o impossibilite de organizar a defesa», o processo disciplinar não admite qualquer forma de representação.

Esta disposição não pode ser interpretada senão no sentido de excluir qualquer possibilidade de o arguido ser assistido por defensor no processo disciplinar, salvo nos casos ali expressamente ressalvados.

Para o processo criminal, a Constituição é explícita, ao determinar, no n.º 3 do seu artigo 32.º, que «o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo». Todavia, para o processo disciplinar, o n.º 3 do artigo 269.º apenas garante ao arguido «a sua audiência e defesa», não esclarecendo se esse direito de defesa pressupõe, sempre ou nalguns casos, a assistência de defensor.

Este Tribunal já teve ocasião de afirmar que, por vezes, se há-de entender que certos princípios expressamente consagrados para o processo criminal são igualmente válidos, «na sua ideia essencial, nos restantes domínios sancionatórios, e agora, em particular, no domínio disciplinar» (cf. o Acórdão 103/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Maio de 1987).

No entanto, muito embora a assistência de defensor se encontre prevista no EDFAACRL (artigo 37.º, n.º 6), daí não decorre necessariamente que o referido direito deva ser considerado como constitucionalmente garantido no âmbito da generalidade dos procedimentos disciplinares.

Acontece, porém, como bem se assinala no parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, que no processo disciplinar militar podem ser aplicadas penas privativas ou restritivas da liberdade, o que, normalmente, só poderia ocorrer em processo criminal. Ora, tal facto parece impor que, nesses casos, o arguido possa, em princípio, escolher defensor e ser por ele assistido, à semelhança do que se verifica no referido processo criminal.

Objectar-se-á, contudo, que a celeridade e o carácter sumário que o processo disciplinar tem necessariamente de assumir no foro militar, em função das exigências próprias da natureza das operações militares e da consequente prevalência, naquele foro, do princípio do comando, são objectivamente incompatíveis com a garantia de um tal direito. Todavia, só parcialmente a mencionada objecção se afigura relevante.

Na verdade, como se sabe, é geralmente em relação às pequenas infracções, a que correspondem penas menos graves, que a respectiva punição, para assegurar um efectivo cumprimento do referido princípio do comando, exige um procedimento sumário que possibilite uma rápida actuação disciplinar. Ora, assentando a razão de ser da aplicação do preceituado no artigo 31.º, n.º 3, da Constituição ao processo disciplinar militar no facto de em tal processo poderem ser impostas penas privativas ou restritivas da liberdade, uma tal aplicação não será exigida naqueles concretos processos em que as penas impostas assumirem uma diversa natureza, ou seja, exactamente naqueles processos mais expeditos referentes à imposição de penas menos graves - e isto porque não há agora que discutir se o direito de escolher defensor e ser por ele assistido não será também constitucionalmente garantido nos casos em que são aplicáveis penas muito gravosas não privativas nem restritivas da liberdade (reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação de serviço), já que tais penas só podem ser aplicadas após apreciação dos conselhos superiores de disciplina respectivos e nos processos que correm perante estes órgãos a lei admite sempre a representação por um oficial de qualquer ramo das Forças Armadas (cf. os artigos 34.º, n.º 2, e 138.º, n.º 2, do RDM).

Por outro lado, como o artigo 32.º, n.º 3, da lei fundamental não é directamente aplicável aos processos disciplinares, nada impede que a sua aplicação, por via analógica, em certos casos, ao processo disciplinar militar seja afastada sempre que se verifiquem situações especiais e ocorram circunstâncias extraordinárias que exijam que a acção disciplinar se possa efectuar de forma extremamente célere, de modo a permitir que a aplicação da pena se processe imediatamente. Neste contexto, importa reconhecer que, quando se verifiquem quaisquer das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 83.º do RDM - isto é, «quando em campanha, em situações extraordinárias ou estando as forças fora dos quartéis ou bases» - e ocorram circunstâncias relacionadas com a operacionalidade das Forças Armadas que tornem objectivamente impossível a escolha ou a assistência de defensor, o direito em causa não pode ser considerado como constitucionalmente exigível no âmbito do processo disciplinar militar, ainda que a pena aplicada seja privativa ou restritiva da liberdade.

Assinale-se, no entanto, que na apreciação concreta da ocorrência das mencionadas circunstâncias extraordinárias será sempre necessário ter em conta, por um lado, que a assistência de defensor não implica obrigatoriamente a existência de um processo disciplinar escrito, antes se podendo verificar no decurso de um processo meramente oral, e, por outro lado, que a escolha de um defensor não pressupõe o recurso a entidades alheias à instituição militar, já que parece que a exigência constitucional se pode considerar satisfeita, in casu, desde que a representação seja assegurada por um outro militar (cf., aliás, o artigo 138.º, n.º 2, do RDM, cit.).

Nestes termos, a norma constante do artigo 82.º do RDM é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 3, e 269.º, n.º 3, da lei fundamental, na parte em que não permite ao arguido escolher defensor e ser por ele assistido nos processos em que sejam aplicadas penas disciplinares privativas ou restritivas da liberdade, salvo se tal aplicação ocorrer quando se verifiquem os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 83.º do mesmo diploma e as circunstâncias objectivamente não permitirem a escolha ou a assistência de defensor.

C) Artigo 119.º, n.º 2, do RDM

7 - No seu artigo 20.º, n.º 2, a Constituição estabelece que «a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos». Esta garantia da via judiciária pressupõe, designadamente, «uma protecção judicial sem lacunas, não podendo a repartição da competência jurisdicional pelos vários tipos de tribunais deixar nenhum espaço sem cobertura» (cf. J. J.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 181).

Aliás, a garantia constante do artigo 268.º, n.º 3, ao assegurar «aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios», mais não é do que um desenvolvimento do referido n.º 2 do artigo 20.º Nos casos em que a punição disciplinar, no âmbito militar, implique a privação da liberdade, a possibilidade de recurso encontra-se expressamente prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º da lei fundamental, onde se admite, entre as diversas hipóteses de privação da liberdade sem prévia decisão judicial condenatória em pena de prisão ou em medida de segurança, a «prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente».

Esta expressa garantia de recurso para o tribunal competente, no caso de aplicação da pena de prisão disciplinar, apenas tem o sentido de assinalar o carácter excepcional que assume no nosso ordenamento jurídico a possibilidade de se ser condenado a uma privação da liberdade sem prévia decisão judicial e, provavelmente, o de apontar para a conveniência de a lei prever, neste caso, um recurso de âmbito mais vasto que o mero recurso contencioso de anulação, com fundamento em ilegalidade, garantido no artigo 268.º, n.º 3. De qualquer forma, o alcance do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º da lei fundamental só pode ser o de reforçar a garantia constitucional do recurso contencioso, e nunca o de, a contrario sensu, vir eliminar essa garantia no que respeita às decisões disciplinares, no âmbito militar, que não apliquem penas privativas da liberdade.

Com efeito, encontrando-se o direito ao recurso contencioso constitucionalmente consagrado com carácter geral, só pode o mesmo ser restringido nos casos expressamente previstos na Constituição (artigo 18.º, n.º 2); no caso vertente, porém, apenas se poderia pretender fundar tal restrição, deduzindo-a implicitamente do disposto no referido artigo 27.º, n.º 3, alínea c), o que não é constitucionalmente admitido. Por outro lado, não se vê por que motivo os militares não poderiam recorrer contenciosamente das decisões que lhes aplicassem penas disciplinares não privativas da liberdade, quando esse direito é indiscutivelmente assegurado a todos os outros funcionários e agentes da Administração Pública: é que nem as punições disciplinares revestem menor importância para os militares, designadamente no que se refere aos eventuais reflexos sobre a respectiva carreira profissional, como a experiência o demonstra, nem a restrição em causa pode encontrar fundamento no já citado artigo 270.º da Constituição, onde se compendiam as restrições que a lei pode estabelecer ao exercício de certos direitos por parte dos militares.

Pode, assim, ter-se por seguro que a Constituição impõe que os actos administrativos definitivos e executórios que se traduzam na aplicação de sanções disciplinares - ainda quando no âmbito da instituição militar - sejam susceptíveis de recurso contencioso. Isto, de resto, em consonância com os princípios do Estado de direito democrático.

Vejamos, pois, se o sistema de recursos plasmado no RDM respeita o quadro constitucional em vigor.

8 - Aplicada uma punição disciplinar, pode o militar punido reclamar para o chefe que impôs a pena (artigos 112.º e 113.º do citado diploma). Quando a reclamação não for julgada procedente, assiste ao reclamante o direito de recorrer para o chefe imediato da autoridade que o puniu (artigo 114.º), o qual decide definitivamente (artigo 119.º).

É esta última norma, constante do n.º 2 do artigo 119.º do RDM, que estabelece que a decisão que julga o recurso hierárquico interposto em processo disciplinar é definitiva, que vem impugnada pelo Provedor de Justiça, com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Cumpre averiguar se essa definitividade significa que o acto é um acto administrativo definitivo recorrível para os tribunais competentes, ou se, pelo contrário, se pretendeu significar que o referido acto não é contenciosamente impugnável e, nesse sentido, definitivo porque, em qualquer circunstância, inalterável.

Propende o Primeiro-Ministro para a primeira solução, sustentando que os actos em causa são recorríveis, nos termos do preceituado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), para o tribunal administrativo de círculo.

Sustenta, pelo contrário, o Provedor de Justiça que se pretendeu, com a norma em apreço, subtrair as decisões em causa a qualquer controle jurisdicional, porquanto só se prevê o recurso contencioso para o STM das decisões proferidas em matéria disciplinar pelos chefes dos estados-maiores dos ramos das Forças Armadas (artigo 120.º).

Este último entendimento - que conduz a que se interprete o conceito de acto definitivo do artigo 119.º no sentido de acto irrecorrível - apresenta, desde logo, a dificuldade de a própria Constituição utilizar a noção de definitividade em sentido radicalmente incompatível com a de irrecorribilidade. Como vimos, no citado n.º 3 do artigo 268.º estabelece-se exactamente o princípio da recorribilidade contenciosa dos actos administrativos definitivos e executórios.

Por outro lado, este mesmo entendimento só deverá ser perfilhado se o outro entendimento possível da norma se revelar manifestamente inadequado e incompatível com o sistema de recursos perfilado no RDM. É que entre duas interpretações possíveis da mesma norma se há-de necessariamente optar por aquela que a torna compatível com a Constituição, salvo se essa mesma interpretação se revelar como inequivocamente incomportável face à letra e ao espírito do preceito em causa.

9 - Dois grandes argumentos se poderiam adiantar contra o conhecimento pelos tribunais administrativos de círculo dos recursos interpostos das decisões previstas no artigo 119.º do RDM.

O primeiro consiste no facto de à data em que foi publicado o RDM ainda não se encontrar em vigor o ETAF, pelo que o legislador nunca poderia ter tido em mente a possibilidade de recursos aberta pela norma de competência constante do mencionado artigo 51.º, alínea j), daquele Estatuto.

Este argumento, porém, não tem o valor que, à primeira vista, se lhe poderia conceder. É que, com efeito, o intérprete há-de procurar o sentido objectivo e actual da norma, não lhe cabendo reconstituir o sentido que subjectivamente lhe tenha sido atribuído pelo seu legislador histórico.

Ora, hoje em dia, a interpretação de qualquer norma que pressuponha, de um ponto de vista sistemático, o recurso ao enquadramento legal do nosso sistema de contencioso administrativo não pode ignorar a existência de uma competência residual deferida aos tribunais administrativos de círculo pela referida alínea j) do artigo 51.º do mencionado Estatuto.

Mas, por outro lado, dir-se-á que se não afigura minimamente plausível imaginar que o legislador possa pretender distribuir por tribunais de duas ordens diferentes - a administrativa e a militar - o conhecimento de recursos da mesma índole e incidindo sobre matérias da mesma natureza, e isto apenas em função da entidade que haja proferido a decisão recorrida.

A verdade, porém, é que a atribuição ao STM de competência para conhecer dos recursos interpostos das decisões proferidas em matéria disciplinar é sempre determinada, exclusivamente, em função da qualidade da entidade que proferiu a decisão [isto se se entender que tal atribuição de competência é compatível com a Constituição, o que alguns autores configuram como muito problemático (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 1.º vol., pp. 200 e 201, e 2.º vol., pp. 335 e 336)].

Ora, qualquer decisão em matéria disciplinar, quer tenha sido proferida no âmbito de administração pública civil, quer no âmbito das Forças Armadas, assume sempre o carácter de um acto administrativo, e os recursos delas interpostos integram-se, indubitavelmente, no âmbito do contencioso administrativo.

Assim sendo, ainda que se entenda que a competência em causa pode ser deferida aos tribunais militares ao abrigo do preceituado no n.º 3 do artigo 218.º da CRP - «a lei pode atribuir aos tribunais militares competência para aplicação de medidas disciplinares» -, a verdade é que a Constituição seguramente não impõe que tal competência lhes pertença, pelo que a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento dos recursos das decisões proferidas em matéria disciplinar pelas autoridades militares é uma competência que sempre lhes caberia no âmbito do contencioso administrativo, salvo se a lei expressamente a deferisse aos tribunais militares (se se considerar uma tal lei constitucionalmente admissível).

Nesta conformidade, uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 119.º, n.º 2, do RDM teria como necessária consequência, em primeiro lugar, a recorribilidade das decisões nela previstas.

Mas, em segundo lugar, teria também como necessária consequência que o recurso em causa só pudesse ser interposto para o tribunal administrativo de círculo, uma vez que, não havendo lei a atribuir competência na matéria aos tribunais militares, seria indispensável preencher a lacuna legislativa que assim se criaria através do recurso à norma supletiva do citado artigo 51.º, alínea j), do ETAF.

Ou seja, no caso vertente, a declaração de inconstitucionalidade teria, na prática, o mesmo efeito que a proposta interpretação conforme à Constituição e sempre conduziria a que os recursos interpostos das decisões proferidas em matéria disciplinar, no âmbito militar, viessem a ser conhecidos por tribunais de ordem diferentes, conforme a entidade que tivesse proferido a decisão recorrida.

Não se vê, assim, que a única interpretação da norma em apreço compatível com a Constituição se tenha de considerar como insustentável. Aliás, talvez menos sustentável fosse a interpretação contrária, já que levaria a considerar que as decisões proferidas, em última instância administrativa, pelos CEMs - ou seja, pelas entidades da mais elevada hierarquia - eram susceptíveis de recurso contencioso, enquanto idênticas decisões proferidas por entidades subordinadas eram irrecorríveis.

10 - Em virtude do exposto, entende-se que o artigo 119.º, n.º 2, do RDM não prejudica a recorribilidade para o tribunal administrativo de círculo das decisões nele previstas e não abrangidas pelo preceituado no artigo 120.º E, consequentemente, que a norma em causa não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade.

III - Conclusão

11 - Nestes termos, decide-se:

a) Declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 76.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, na parte em que prevê a punição do militar queixoso, quando «manifestamente se reconheça que não houve fundamento para a queixa», por violação do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 52.º da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 82.º do mesmo Regulamento, na parte em que não permite ao arguido escolher defensor e ser por ele assistido nos processos em que sejam aplicadas penas disciplinares privativas ou restritivas da liberdade, salvo se tal aplicação ocorrer quando se verifiquem os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 83.º do referido diploma e as circunstâncias objectivamente não permitirem a escolha ou a assistência de defensor, por violação do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 3, e 269.º, n.º 3, da Constituição;

c) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 119.º do citado RDM, com a interpretação que lhe foi dada.

Lisboa, 19 de Abril de 1988. - Luís Nunes de Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - José Magalhães Godinho - Mário de Brito (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - José Martins da Fonseca (vencido em parte, nos termos da declaração junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, nos termos da declaração junta) - Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Vital Moreira [vencido quanto à decisão constante da alínea b), em parte, nos mesmos termos da declaração de voto do juiz conselheiro Raul Mateus] - Armando Manuel Marques Guedes.

Declaração de voto

1 - Concordei com a declaração de inconstitucionalidade da primeira parte do artigo 76.º do RDM, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, por violação do direito de petição consagrado no n.º 1 do artigo 49.º da Constituição, na sua redacção primitiva, a que corresponde, na redacção resultante da Lei 1/82, de 30 de Setembro (primeira revisão constitucional), o n.º 1 do artigo 52.º 2 - Quanto ao artigo 82.º do citado Regulamento.

Dispõe-se nele que «o processo disciplinar não admite qualquer forma de representação, excepto nos casos de incapacidade do arguido, por anomalia mental ou física, bem como de doença que o impossibilite de organizar a defesa, casos em que, não havendo defensor escolhido, será nomeado pelo chefe competente um oficial, como defensor oficioso».

De acordo com o preceito, só, portanto, nos casos de incapacidade, derivada de anomalia mental ou física, ou de doença que o impossibilite de organizar a defesa, o arguido tem direito a defensor oficioso; em todos os outros casos não tem o arguido direito a defensor.

Ora, em meu entender, a regra desta norma é (toda ela) inconstitucional, por violação das disposições conjugadas do n.º 3 do artigo 32.º e do n.º 3 do artigo 270.º da Constituição, na sua redacção primitiva, a que correspondem, na redacção actual, o n.º 3 do artigo 32.º e o n.º 3 do artigo 269.º 3 - Finalmente, quanto ao artigo 119.º, n.º 2:

Segundo este preceito, a decisão «proferida nos termos do número anterior», isto é, a decisão que julga o recurso hierárquico em matéria disciplinar, é «definitiva».

Penso que o que se quis dizer com tal norma foi que a decisão a que ela se refere não admite recurso contencioso.

Ora, assim interpretada, não oferece dúvida a sua inconstitucionalidade, por violação do direito ao recurso contencioso consagrado no n.º 2 do artigo 269.º da Constituição, na sua versão originária (n.º 3 do artigo 268.º, na sua versão

actual). - Mário de Brito.

Voto de vencido

No acórdão decidiu-se, em relação ao artigo 82.º do RDM, que a norma dele constante é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 3, e 269.º n.º 3, da lei fundamental, na parte em que não permite ao arguido escolher defensor e ser por ele assistido nos processos em que sejam aplicadas penas disciplinares privativas ou restritivas da liberdade, salvo se tal aplicação ocorrer quando se verifiquem os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 83.º do mesmo diploma e as circunstâncias objectivamente não permitirem a escolha ou a assistência de defensor.

Entendo que a inconstitucionalidade, embora continue a ser parcial, é mais vasta do que se decidiu.

Considerou-se, e bem, que, quando em processo disciplinar militar se apliquem penas privativas da liberdade, se deverá fazer uso, por analogia, do disposto no n.º 3 do artigo 32.º da Constituição. Mas, em seguida, em homenagem ao princípio da celeridade processual, acabou por concluir-se que, nas hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 83.º do RDM, o direito em causa não pode ser considerado como constitucionalmente exigível no âmbito do processo disciplinar militar, ainda que a pena aplicada seja privativa ou restritiva da liberdade.

Para já, uma observação se me impõe: é indiferente que o artigo 32.º, n.º 3, da CRP seja aplicável à hipótese directamente ou por analogia. O que importa é que a uma determinada situação jurídica seja aplicado certo regime legal. É irrelevante que a aplicação seja directa ou por via de analogia. O intérprete, confrontado com uma lacuna da lei, pode concluir pela aplicação analógica ao caso de certa norma jurídica, se nada a tal obstar. Se isso acontecer, não pode posteriormente vir concluir que haverá nuances não abrangidas pela norma por a aplicação ter sido feita por analogia.

Por outro lado, subordina-se um direito garantido pela Constituição a um princípio de celeridade processual, o que se me afigura, salvo o devido respeito, inaceitável.

O n.º 2 do artigo 3.º do RDM contempla as seguintes situações:

a) Em campanha;

b) Situações extraordinárias;

c) Forças fora dos quartéis ou bases.

Não se vê em que medida as hipóteses previstas nas alíneas b) e c) sejam incompatíveis com a escolha de defensor, que poderá ser um outro militar. Já o mesmo se não dirá em relação à prevista na alínea a), ou seja, à da campanha, quando entendida a expressão como em «guerra». Aí compreende-se, efectivamente, que não se reconheça ao militar o direito em processo disciplinar de escolher defensor; fora destes casos, sempre que se aplique pena privativa de liberdade a um militar, o artigo 82.º do RDM é inconstitucional.

Por estes fundamentos votei parcialmente vencido em relação à alínea b) da decisão.

Lisboa, 19 de Abril de 1988. - Martins da Fonseca.

Declaração de voto

Não votei a alínea c) das conclusões do acórdão.

1 - Tendo por insustentável a «interpretação em conformidade com a Constituição» do artigo 119.º, n.º 2, do RDM que a mesma pressupõe. E isto seja considerado só esse preceito em si, seja, em particular, considerado o sistema de garantia contenciosa previsto em tal Regulamento - e que é aquele, de resto, para que, no mínimo, aponta a própria Constituição no artigo 218.º, n.º 3. De facto, afigura-se-me incongruente que, estando reservada ao STM a competência para o recurso contencioso das decisões em matéria disciplinar dos chefes dos estados-maiores dos ramos das Forças Armadas (artigo 120.º do RDM), se leia o artigo 119.º, n.º 2, em termos de nele se abrir (e garantir) a possibilidade de recurso para os tribunais administrativos comuns de decisões em matéria disciplinar proferidas por autoridades militares de grau hierárquico inferior. E é isso tanto menos congruente quanto, por um lado, tal solução, além de recusar, de algum modo (contra a evidência das coisas), qualquer especificidade à disciplina militar, não é decerto a mais harmónica (se é que é mesmo compatível) com o princípio da unidade das Forças Armadas; e quanto, por outro lado, a Constituição, no citado artigo 218.º, n.º 3 (credenciando, a meu ver claramente, não só a referida competência do STM, como a eventual atribuição de uma competência similar a outras instâncias jurisdicionais castrenses), se mostra, ela mesma, sensibilizada para a conveniência, e porventura a necessidade, de manter dentro do foro militar, em exclusivo, a tutela contenciosa da acção disciplinar no âmbito das Forças Armadas.

Assim, entendi que havia que interpretar o artigo 119.º, n.º 2, do RDM no sentido de que nele se exclui não só o recurso hierárquico, mas também o recurso contencioso das decisões a que respeita - sentido esse que julgo ser o que decorre directamente quer da sua letra, quer da subjacente mens legis ou mens legislatoris.

2 - Interpretado assim o preceito em questão, cumpriria então tirar a consequência da sua inconstitucionalidade. Mas tal consequência, em meu modo de ver, e diversamente do que se diz no acórdão, não conduziria - ou, pelo menos, não teria de conduzir - ao mesmo resultado que a interpretação em conformidade com a Constituição, perfilhada pelo Tribunal.

É que, se semelhante inconstitucionalidade radicava directamente na exclusão do recurso contencioso, não deixava de radicar também, ao menos indirectamente, na exclusão do recurso hierárquico, na medida em que, afastado este último, eliminada fica a possibilidade de obter uma decisão contenciosamente recorrível, como seria, em derradeiro termo, a do chefe do estado-maior do respectivo ramo das Forças Armadas. Ora, julgado inconstitucional o preceito em toda a medida deste seu complexo alcance e sentido, ficaria então, por força dessa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a vigorar uma norma segundo a qual caberia sempre recurso hierárquico, até ao chefe do estado-maior do ramo, de qualquer decisão disciplinar de uma autoridade militar - e, por último, por consequência, recurso contencioso para o STM, nos termos do artigo 120.º do RDM.

Objectar-se-á que seria este um regime excessivo - por poder obrigar à intervenção das mais altas autoridades militares em questões disciplinares da mais pequena monta. Mas, de qualquer modo, sempre seria um regime mais consequente e harmónico com o sistema do que aquele que resulta da interpretação firmada pelo Tribunal - e que poderia vigorar com menos inconvenientes até que o legislador venha reformular um tal sistema (o sistema da garantia contenciosa da actuação disciplinar no domínio castrense), colmatando de outro modo a «omissão» (no fundo, é disso que se trata) que o mesmo sistema apresenta no quadro do RDM em vigor.

3 - Dito isto, devo ainda ressalvar que, aderindo assim, de qualquer modo, ao entendimento do Tribunal segundo o qual a garantia consignada no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição vale também no âmbito disciplinar das Forças Armadas, não o faço, todavia, sem alguma reserva no tocante à extensão dessa validade. Interrogo-me, com efeito, sobre se um tal princípio tem aí de considerar-se aplicável em termos absolutos, abrangendo todo e qualquer nível da acção disciplinar, e em todas as circunstâncias, ou se não ocorrerá nesse domínio algum «limite», ou alguns «limites», decorrendo da especificidade (apesar de tudo) da «administração militar».

É este, pois, um ponto que deixo a benefício de melhor estudo. - José Manuel Cardoso da Costa.

Declaração de voto

1 - Acompanhei o acórdão enquanto nele se argumentou e concluiu pela declaração de inconstitucionalidade parcial da norma do artigo 76.º do RDM e pela não declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 119.º, n.º 2, do RDM [alíneas a) e c) da decisão]. Mas já não o acompanhei plenamente enquanto nele se argumentou e concluiu pela declaração de inconstitucionalidade parcial da norma do artigo 82.º do RDM [alínea b)].

2 - Relativamente a esse ponto, aceitei, é certo, o postulado inicial de que no acórdão se partiu para desenvolver a linha argumentativa que veio a desembocar na declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 82.º do RDM. Isto é, aceitei que, podendo ser aplicadas, em processo disciplinar militar, penas privativas ou restritivas da liberdade, o que, em regra, só deveria ocorrer em processo criminal, se justificava então a aplicação analógica ao domínio disciplinar militar do princípio consignado expressamente para o processo penal no artigo 32.º, n.º 3, da CRP, princípio segundo o qual «o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo».

No entanto, entendi ainda que, se tal princípio deve valer em processo disciplinar militar, desde que se anteveja a possibilidade de o infractor ser sancionado com penas privativas ou restritivas de liberdade, por maioria de razão deve ele ainda valer, em tal espécie processual, sempre que em causa esteja a potencial aplicação de penas mais graves, como sejam, segundo a hierarquia classificativa do próprio RDM, as penas de inactividade, reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação de serviço (artigo 34.º, n.º 1).

3 - Observa-se no acórdão que não há que tomar posição quanto à extensão de tal princípio constitucional aos casos em que, em processo disciplinar militar, sejam aplicáveis penas mais gravosas, como as de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação do serviço (não se considerou, e inexplicavelmente, a pena de inactividade), porquanto tais penas, diz-se, só podem ser aplicadas após apreciação dos conselhos superiores de disciplina respectivos, e nos processos que correm perante estes órgãos a lei admite sempre a representação por um oficial de qualquer ramo das Forças Armadas (artigos 34.º, n.º 2, e 138.º, n.º 2, do RDM).

Assim, e na perspectiva do acórdão, quando em causa estivesse o sancionamento do infractor com as penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação do serviço, o artigo 82.º do RDM - ainda que se tivesse por translatamente aplicável, nestas circunstâncias, o princípio do artigo 32.º, n.º 3, da CRP - não poderia, de modo algum, ser considerado inconstitucional. É que, embora proibindo o artigo 82.º do RDM, à partida, e em qualquer caso, a representação do arguido por defensor, o certo é que, por via transversa, ou seja, por força do disposto nos artigos 34.º, n.º 2, e 138.º, n.º 2, do RDM, tal representação sempre ficaria assegurada quando houvesse lugar à aplicação das penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação do serviço.

Não se perfilha inteiramente este ponto de vista. É que os artigos 34.º, n.º 2, e 138.º, n.º 2, do RDM só asseguram o direito do arguido a ser assistido por defensor de sua escolha em certa fase do processo disciplinar militar, ou seja, enquanto ele corre termos, para efeitos de parecer, no respectivo conselho superior de disciplina, e o artigo 32.º, n.º 3, da CRP, na sua aplicação translata, garante aquele direito para todos os actos do processo disciplinar militar.

4 - Assim, e considerado todo o exposto, a norma do artigo 82.º do RDM deveria ter sido declarada inconstitucional, por infracção a princípio analogicamente deduzível do artigo 32.º, n.º 3, da CRP, nos seguintes segmentos:

Enquanto proíbe que, em qualquer acto do processo disciplinar militar, o arguido passível de ser punido em penas privativas ou restritivas de liberdade ou com a pena de inactividade seja assistido por defensor de sua opção; e Enquanto proíbe ainda que, nos actos do processo disciplinar militar não decorrentes nos conselhos superiores de disciplina, o arguido passível de ser punido com as penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação de serviço seja assistido por defensor de sua escolha.

Do sentido do meu voto - ora acabado de exprimir - já decorre que não considerei justificável «salvar» a norma do artigo 82.º do RDM, como se fez no acórdão, na parte em que veda ao arguido a escolha e assistência de defensor nos processos em que sejam aplicáveis penas disciplinares privativas ou restritivas de liberdade, desde que, verificando-se os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 83.º do RDM, concorram ainda circunstâncias objectivas impeditivas da escolha e assistência desse mesmo defensor.

E, sem esquecer que o relacionamento humano (seja a nível militar, seja a qualquer outro nível) é susceptível de se exprimir, pela sua natural complexidade, em uma colecção potencialmente infinita de situações, antes entendi que em caso algum, mesmo em campanha, em situações extraordinárias ou com as forças fora dos quartéis ou bases (pressupostos do n.º 2 do artigo 83.º), se possam vir a conjugar circunstâncias objectivas que, consentindo embora a instauração, o desenvolvimento e a decisão do correspondente processo disciplinar militar, impeçam, do mesmo passo, a intervenção de um defensor da escolha do arguido, que, como se nota no acórdão, pode simplesmente ser outro militar. Por muito rápido e sumário que haja de ser, nessas particulares situações operacionais, e face ainda às mais desvairadas e esquisitas condições, o processo disciplinar militar, teve-se, pois, por certo que, se então ainda há condições mínimas para o iniciar, instruir e decidir, necessariamente as há-de haver também para a participação, ainda que breve e curta, do defensor do arguido.

Considerei, pois, e em síntese, que no acórdão se extraiu aquela conclusão decisória partindo de um «modelo da realidade» de todo em todo inverificável.

Daí que a não tivesse podido acompanhar.

Por fim, não se quer deixar de notar que, nessas muito peculiares circunstâncias, em que tudo se desenrola celeremente, em que não há um suficiente distanciamento em relação à conduta infractora, em que a decisão disciplinar se toma, em suma, «a quente», é que mais se justificará - por mais em perigo estar a justiça da decisão - que nele intervenha um defensor escolhido pelo próprio arguido.

A aplicação translata do princípio contido no artigo 32.º, n.º 3, da CRP não deveria, pois, ter sido aqui afastada. - Raul Mateus.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1988/05/13/plain-42530.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42530.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-04-09 - Decreto-Lei 142/77 - Conselho da Revolução

    Aprova o Regulamento de Disciplina Militar e publica-o em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1982-01-14 - Lei 1/82 - Assembleia da República

    Suspensão de mandato de deputados.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-01-16 - Decreto-Lei 24/84 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Administração Interna

    Aprova o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1987-05-06 - Acórdão 103/87 - Tribunal Constitucional

    Declara, ou não, conforme as partes, a inconstitucionalidade do artigo 69.º, n.º 2, da Lei n.º 29/82, na sua redacção inicial e na redacção dada por outras leis; declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 440/82, bem como do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (RDPSP) por ele aprovado; declara, ou não, a inconstitucionalidade de algumas normas do RDPPSP, aprovado pelo Decreto n.º 40118; não toma conhecimento do pedido de apreciação da cons (...)

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2002-06-25 - Acórdão 207/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 127.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril.

  • Tem documento Em vigor 2012-05-23 - Acórdão do Tribunal Constitucional 229/2012 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da parte final do n.º 1 do artigo 51.º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho, na medida em que prevê que o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico apresentado, sem que seja garantida, no Regulamento de Disciplina Militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo útil.

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