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Acórdão 683/2014, de 27 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma extraída do artigo 215.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que "pode ser declarada a excecional complexidade do processo já depois de terminada a fase de julgamento e depois de depositado o acórdão final condenatório"

Texto do documento

Acórdão 683/2014

Processo 826 2014

Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - Nos presentes autos, em que são recorrentes Luís Carlos Macias Nieto e Edil Alberto Sua Luna, arguidos presos, e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido pela 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 8 de julho de 2014 (fls. 765 a 770), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 215.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que "pode ser declarada a excecional complexidade do processo já depois de terminada a fase de julgamento e depois de depositado o acórdão final condenatório" (fls. 783), por alegada violação dos artigos 18.º, 27.º, n.º 1, 28.º, n.os 2 e 4, 29.º, n.os 1 e 3 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2 - Notificados para o efeito, os recorrentes produziram as seguintes alegações, que ora se sintetizam:

«Em primeiro lugar, cumpre evidenciar alguns factos:

. O processo foi remetido ao tribunal de julgamento em 17.6.2013;

. O julgamento foi marcado para se iniciar em 8.10.2013;

. O julgamento decorreu ao longo de 4 sessões - 8.10,21.10, 18.11 e 3.12;

. O acórdão foi lido e depositado no dia 14.1.2014;

. O despacho judicial que declarou os autos como de excecional complexidade foi proferido em 11.2.2014.

É sempre importante não pode perder-se de vista que o prazo de duração máxima da prisão preventiva tem de mostrar-se comunitariamente suportável face à possibilidade de esta medida estar a ser aplicada a um inocente, pelo que a interpretação e aplicação do artigo 215.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Penal só pode ser particularmente exigente, cautelosa e restritiva.

Por outro lado, para a nossa C.R.P., a liberdade é a regra.

Isto é, como decorre do n.º 3 do artigo 27.º da C.R.P., a liberdade só pode ser restringida nos casos expressamente previstos e apenas pelo tempo e na condições que a lei determinar.

A partir daqui, o imperativo do princípio da reserva de lei, não deixa ao intérprete e aplicador outra alternativa se não considerar apenas e somente a limitação ínsita no n.º 3 e n.º 4 do artigo 215.º do CPP para que a prisão preventiva possa aumentar na sua duração.

As normas processuais que disciplinam a intromissão nos direitos fundamentais devem ser objeto de uma interpretação restritiva - ou pro libertate.

Assim se considerando, estão há que procurar no n.º 3 e no n.º 4 do artigo 215.º do CPP como cumprem o princípio de reserva de lei, ou seja, quais as condições estritas em que pode ser declarado um processo como de excecional complexidade e aumentado o prazo de prisão preventiva.

E de acordo com os preceitos do CPP acima citados, essas condições são as seguintes:

. O processo se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime

. apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância.

A declaração de excecional complexidade tem assim que ver unicamente com as fases de inquérito, instrução e julgamento e sempre por questões relacionadas com a prova: elevado número de meios de prova ou dificuldades acrescidas na investigação de crimes executados de modo altamente sofisticado, número de arguidos, testemunhas ou ofendidos a serem ouvidos em instrução ou julgamento.

Isto é, o n.º 3 do artigo 215.º do CPP restringe a aplicação da excecional complexidade aos momentos em que se adquire prova ou se a produz.

Pelo que só com uma interpretação extensiva dos n.º 3 e n.º 4 do CPP, se pode aceitar que o processo pode ainda ser excecionalmente complexo, e assim prolongar a prisão preventiva, depois de encerrada a audiência de discussão de julgamento e proferido acórdão final pelo tribunal.

Neste caso concreto, dúvidas não existem de que o tribunal após ter proferido acórdão final e de o ter depositado, prolongou a prisão preventiva dos recorrentes quando nenhuma das condições previstas no n.º 3 do artigo CPP se preenchia.

Isto, tendo como farol os artigos 18.º, 27.º e 28.º da CRP.

Acresce a tudo isto, que com a prolação de acórdão e o seu depósito, o tribunal de julgamento encerra a sua atividade interna. Isto é, deixa de poder apreciar qualquer questão relacionada com a prova e com a sua maior ou menor complexidade.

Pelo que também nesta vertente, é para os recorrentes desproporcional a sua intromissão numa atividade - objeto do julgamento, inquérito e instrução - já encerrada.

CONCLUSÕES:

1 - São materialmente inconstitucionais as normas do artigo 215.º, n.º 3 e n.º 4 do CPP, segundo a qual a pode ser declarada a excecional complexidade do processo já depois de terminada a fase de julgamento e depois de depositado o acórdão final condenatório.

2 - Está em causa o primado pela liberdade e as condições e tempo em pode sofrer limitação.

3 - Violou-se o princípio de reserva de lei pois as condições de prorrogação do tempo de duração da prisão preventiva não vem indicada no n.º 3 e n.º 4 do CPP, na dimensão com que foram aplicados, sem se efetuar uma interpretação extensiva.

4 - Pois o julgamento estava terminado, o acórdão final lido e depositado.

5 - A interpretação com que foram aplicadas as normas do C.P.P. acima referidas, é inconstitucional, por limitar de uma forma desproporcional e intolerável os direitos à Liberdade e de Defesa do arguido, violar o princípio da legalidade e assim contende com as normas constantes nos artigos 18.º, 27.º, n.º 1, 28.º n.os 2 e 4, 29.º n.os 1 e 3 e 32.º n.1 da C.R.P.

Nestes termos devem ser declaradas materialmente inconstitucionais as normas constantes dos artigos acima mencionados quando interpretadas nos termos referidos.» (fls. 815 a 820)

3 - Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou contra-alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:

«51.º

Em face de todo o exposto, julga o signatário que não assistirá razão aos recorrentes, para a interposição do seu recurso de constitucionalidade.

Desde logo, a «excepcional complexidade do procedimento» foi decretada pelo juiz do tribunal de julgamento, a requerimento do magistrado do Ministério Público na 1.ª instância.

A referida declaração foi, assim, decretada por quem tinha competência para o efeito, ou seja, o digno magistrado judicial.

Nas palavras do Acórdão 614/2012 (cf. supra n.º 49 das presentes contra-alegações):

"A qualificação do procedimento como de excecional complexidade pressupõe sempre uma decisão judicial proferida em função de critério material prudencial, de razoabilidade e de justa medida, assente em factores objetivos que revelem e projectem dificuldades acrescidas de investigação, com reflexos nos termos e na duração do procedimento, justificativas da concreta elevação dos prazos máximos de prisão preventivo (cf. Acórdãos n.º 287/05 e 555/08). [...]

A qualificação do procedimento como de excecional complexidade adquire-se sempre ope judicis ...".

Ora, foi isso que aconteceu no caso dos presentes autos.

[...]

52.º

Por outro lado, a declaração de especial complexidade foi proferida em 1.ª instância, como a lei exige.

Por um lado, os próprios arguidos não deixam de reconhecer que o processo ainda estava na 1.ª instância, quando foi declarada a «excepcional complexidade do procedimento» (cf. supra n.º 13 das presentes contra-alegações).

Por outro lado, apesar de considerarem que «já o tribunal de 1.ª instância tinha esgotado o seu poder jurisdicional», acabam por admitir que «o juiz titular do processo ...pode admitir» «despachos de natureza urgente».

53.º

Por seu lado, o digno magistrado do Ministério Público, na 1.ª instância, não deixou, a este propósito, de destacar (cf. supra n.º 19 das presentes contra-alegações):

"Com efeito, segue-se com a devida vénia o Ac. do S.T.J. de 24.10.2007, onde se refere, com plena aplicabilidade ao caso concreto o seguinte: "... a declaração tem de ser feita durante a 1.ª instância, isto é, no decurso da tramitação do processo na 1.ª instância, tramitação que finda quando o processo é remetido para processamento da 2.ª instância ou noutra superior. Portanto é irrelevante para esse efeito que o juiz da 1.ª instância declare a excepcional complexidade do processo que se encontra em tramitação noutra instância pois o que se exige é que a declaração seja feita durante a 1.ª instância...".

A lei processual penal consagra que a declaração seja feita durante a 1.ª instância, isto é, mesmo após a prolação da sentença/acórdão, mas antes da remessa dos autos ao Tribunal Superior.

Não têm, por isso, os arguidos qualquer razão no alegado.

Pode desta forma concluir-se que o Mmo Juiz da 1.ª instância proferiu, em tempo oportuno, o despacho de que se recorre."

E o Tribunal da Relação de Lisboa, pelo seu lado, no Acórdão recorrido de 8 de Julho de 2014, não deixou igualmente de concluir (cf. supra n.º 25 das presentes contra-alegações):

"Como primeira constatação cumpre observar que o processo tendo tido leitura da decisão final condenatória a 14 de Janeiro de 2014, não se encontrava ainda em fase de recurso, porquanto estes não se encontravam ainda interpostos na data da prolação do despacho recorrido (11 de Fevereiro de 2014).

E mesmo que já tivessem sido interpostos recursos da decisão final condenatória, a declaração de excepcional complexidade do processo, prevista no artigo 215.º do Código de Processo Penal, o qual se encontra sistematicamente inserido no capítulo II (Das condições de aplicação das medidas de coacção) do Livro IV (Das medidas de coacção e de garantia patrimonial) do Código de Processo Penal, comete ao juiz livre competência para declarar, substituir, modificar ou extinguir tais medidas a qualquer tempo, sem óbices ou limitações, sempre que verificados os seus legais requisitos.

Equivale isto a dizer que, com a prolação da sentença final condenatória não se encontra o poder jurisdicional do tribunal esgotado quanto â aplicação, revisão, modificação ou extinção dos regimes previstos no referido Livro IV do Código de Processo Penal, entre os quais figura o do regime de prisão preventiva, o qual foi aos recorrentes imposto desde 8 de Agosto de 2012, sendo, outrossim, a sua constante reapreciação e controle de caracter obrigatório, até para que nunca se excedam os prazos legais.

Tendo o despacho recorrido sido proferido no âmbito das competências do tribunal de 1.ª instância improcedem os argumentos "de que se encontraria esgotado poder jurisdicional do tribunal, assim como a alegação de que o despacho recorrido enfermaria de nulidade por ter sido decidido por Juiz que já não tinha competência para esse acto".

Não oferece, pois, dúvidas, o facto de a «excepcional complexidade do procedimento» ter sido decretada em 1.ª instância, por magistrado judicial, que tinha a necessária competência para o efeito.

Na verdade (cf. supra n.º 26 das presentes contra-alegações), os recursos dos arguidos, tendo por objecto o acórdão condenatório da 1.ª instância, apenas vieram a ser interpostos em 14 de Fevereiro de 2014 (cf. supra n.os 4 e 5 das presentes contra-alegações), ou seja, 3 dias depois de proferido o despacho que declarou a excepcional complexidade dos autos.

Por outras palavras, mesmo utilizando a argumentação dos recorrentes, estaremos perante uma situação em que o processo ainda estava plenamente em 1.ª instância, e não «em trânsito» para o Tribunal da Relação de Lisboa.

54.º

Depois, há, nos autos, razões mais do que suficientes para justificar uma tal declaração de «excepcional complexidade do procedimento».

[...]

Parece-nos indiscutível estarmos perante uma situação integradora do conceito de carácter altamente organizado do crime.

[...]

55.º

Ideias, estas, por outro lado, confirmadas pelo despacho do digno magistrado judicial, de 11 de Fevereiro de 2014, que apreciou o requerimento do Ministério Público e acabou por decretar a «excepcional complexidade do procedimento» (cf. supra n.º 8 das presentes contra-alegações):

[...]

56.º

Vemos, pois, da análise do despacho judicial em apreciação (cf. supra n.º 9 das presentes contra-alegações), que o Meritíssimo Juiz, face à factualidade concreta dos autos, foi sensível ao facto de os autos terem um elevado número de arguidos (5 estrangeiros: 2 colombianos e 3 espanhóis), se reportarem à apreensão de uma quantidade significativa de produtos estupefacientes (uma quantidade superior a 300 kg de cocaína), terem envolvido significativa e complexa cooperação internacional entre vários países e departamentos policiais (por exemplo, DEA, PJ, Polícia espanhola), terem exigido a intervenção de «agentes infiltrados», que acompanharam o transporte do produto estupefaciente da América do Sul para a Europa, terem implicado a realização de inúmeras e diversificadas diligências probatórias durante a fase de inquérito, bem como a realização de diversas sessões de audiência de discussão e julgamento.

Por último, como é usual neste tipo de crimes, assistiu-se à legítima interposição de diversos recursos, por parte dos diversos arguidos intervenientes, quer de despachos intercalares, quer do acórdão condenatório proferido em 1.ª instância.

Por todas estas razões, quiçá para evitar que a apreciação de todos estes recursos permitisse esgotar o prazo máximo de prisão preventiva, com a consequência de os arguidos se poderem ausentar irremediavelmente para fora do país, o digno magistrado judicial considerou justificado o pedido, formulado pelo Ministério Público, de declarar a «excepcional complexidade do procedimento».

Declaração, essa, que, em face da factualidade representada nos presentes autos, e da sua conflitualidade processual, se afigura, ao signatário, como inteiramente legítima e reveladora do mais elementar bom senso.

57.º

[...]

58.º

[...]

59.º

[...]

60.º

Já se viu que a preocupação fundamental dos arguidos, com o seu recurso de constitucionalidade, tem a ver com a inevitável prorrogação do prazo de prisão preventiva a que se vão encontrar sujeitos.

Como anteriormente referido (cf. supra n.os 11 e 16 das presentes contra-alegações), os arguidos reconhecem, na sua interposição de recurso, para o Tribunal da Relação de Lisboa, do despacho que declarou a «excepcional complexidade do procedimento»:

"A gravidade das consequências que decorrem para os arguidos da declarada excecional complexidade dos autos - a também excecional prorrogação dos prazos - impõe que ela só ocorra nos termos restritos e de natureza extraordinária em que a norma os prevê.

Usar a excecional complexidade, para encaixar o prazo destes arguidos na atual redação dos n.º 3 é esquecer todos os ensinamentos e jurisprudência sobre direitos fundamentais."

É, pois, este, afinal, o busílis da questão, a prorrogação do prazo máximo de prisão preventiva, indispensável para se poder apreciar, sem risco de fugas dos arguidos para os respectivos países de origem, os inúmeros recursos por eles já interpostos ou a interpor, até ao final dos presentes autos.

61.º

No entanto, como já anteriormente referido (cf. supra n.º 38 das presentes contra-alegações), no caso dos presentes autos, ainda nem sequer se constatou nenhuma situação anómala de arrastamento dos autos. Muito pelo contrário, os arguidos têm feito diversas referências à forma particularmente expedita como os autos se têm processado.

Nessa medida, a sua preocupação, sobre o eventual alargamento dos prazos de prisão preventiva, embora legítima, é, talvez, prematura, incidindo sobre uma situação que nem sequer se sabe se irá alguma vez ocorrer.

Sublinha-se que já houve lugar, em prazo relativamente curto, ao julgamento em 1.ª instância, que condenou os arguidos e, bem assim, à confirmação do acórdão condenatório, pelo tribunal de 2.ª instância.

Nessa medida, a argumentação dos arguidos é, no mínimo, excessiva, senão mesmo inteiramente deslocada.

[...]

68.º

Crêem-se, ainda, mutatis mutandis aplicáveis à situação dos autos, as considerações produzidas no Acórdão 603/2009, deste Tribunal Constitucional, onde se afirmou (cf. supra n.º 48 das presentes contra-alegações):

"Como é sabido, o direito à liberdade admite as restrições que se encontram previstas nos n.os 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição, entre as quais se conta a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos. Constituindo as restrições ao direito à liberdade restrições a um direito fundamental integrante da categoria de direitos, liberdades e garantias, estão sujeitas às regras do artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, o que quer dizer que «só podem ser estabelecidas para proteger direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger» (nestes precisos termos, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob cit., pág. 479).

Por outro lado, como decorre do artigo 28.º, n.º 4, do texto constitucional, «[a] prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei», o que significa que não pode deixar de ser temporalmente limitada de acordo com a sua natureza. Cabendo à lei a fixação dos prazos de prisão preventiva, como resulta desse preceito, dispõe o legislador ordinário, nessa matéria, de uma relativa margem de liberdade de conformação, ainda que deva respeitar o princípio da proporcionalidade (idem, pág. 490; no mesmo sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., pág. 321; entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/99).

Ora, não se vê, no caso concreto, em que medida é que a interpretação adoptada pelo tribunal recorrido poderá ferir o princípio da proporcionalidade. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça assentou na ideia de que há confirmação da sentença condenatória quando o tribunal superior mantém a pena aplicada ou estabelece pena superior. Considerou, por outro lado, que, tendo havido um agravamento da pena em sede de recurso, a elevação do prazo máximo de prisão preventiva, por efeito do disposto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, passaria a ser metade da pena agravada.

Independentemente da correcção da interpretação efectuada, no plano do direito ordinário, aspecto que ao Tribunal Constitucional não cabe apreciar, o certo é que a interpretação adoptada é congruente com o espírito do sistema e corresponde a uma solução proporcionada em relação aos objectivos que o legislador pretendeu atingir com a ampliação do prazo para a prisão preventiva.

O recorrente parece defender o entendimento de que só uma decisão confirmativa que se mostrasse ser inteiramente coincidente, quanto à medida da pena, com a sentença condenatória da primeira instância é que poderia preencher os pressupostos da ampliação do prazo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 6, do Código de Processo Penal. Já se viu, no entanto, que a solução legislativa assenta em dois diferentes fundamentos: a confirmação do juízo de culpabilidade é motivo bastante para a prorrogação do prazo da prisão preventiva; a medida da pena (aqui relevando a variação para mais ou para menos resultante do julgamento efectuado pelo tribunal de recurso) determina o prazo pelo qual a prisão preventiva será prorrogada.

Neste contexto, tem pleno cabimento (sobretudo à luz do princípio da proporcionalidade) que ao agravamento da pena em recurso corresponda um agravamento do limite temporal da duração da prisão preventiva. O que não faz qualquer sentido, e seria flagrantemente contrário ao dito princípio da proporcionalidade, é que a medida legislativa - que tem um objectivo de evitar a eventual libertação de réus presos já condenados por simples efeito da utilização de expedientes dilatórios - apenas pudesse ser aplicada quando houvesse uma absoluta sobreposição entre a decisão de recurso e a decisão de primeira instância, e não já em todos os demais casos que justificam idêntico tratamento (por envolverem um duplo juízo condenatório), mas relativamente aos quais, em razão do poder de reapreciação do tribunal superior, tenha havido uma ligeira discrepância quanto à dosimetria da pena.

A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura no plano jurídico-constitucional."

69.º

Assim, em face de todo o alegado nas presentes contra-alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:

a) negar provimentoao recurso de constitucionalidade oportunamente interposto pelos arguidos Luís Carlos Macias Nieto e Edil Alberto Sua Luna;

b) confirmar, nessa medida, o Acórdão recorrido, de 8 de Julho de 2014, do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou o despacho do digno magistrado judicial, de 11 de Fevereiro de 2014, do 1.º juízo de Competência Criminal do Tribunal de Comarca e de Família e Menores de Almada, que decretou a excepcional complexidade do procedimento.» (fls. 893 a 918)

Posto isto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

4 - Discute-se nos presentes autos a constitucionalidade de norma extraída da conjugação entre os n.os 3 e 4 do artigo 215.º do CPP, que determina o seguinte:

«Artigo 215.º

Prazos de duração máxima da prisão preventiva

[...]

3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

4 - A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.»

A questão normativa que constitui objeto do presente recurso cinge-se à determinação sobre se a interpretação da condição temporal de prolação de despacho de declaração da excecional complexidade de um concreto processo penal se coaduna com a Lei Fundamental, quando a expressão "declarada durante a 1.ª instância" seja interpretada no sentido de incluir o tempo que medeia o depósito de acórdão condenatório e a data de interposição de recurso ou a consequente subida desses autos para o tribunal de recurso. Enquanto os recorrentes entendem que a prolação de acórdão condenatório esgota o poder jurisdicional do tribunal de 1.ª instância e, por conseguinte, impediria a declaração de excecional complexidade do processo, após aquele momento, o recorrido contrapõe que o sentido literal do n.º 4 do artigo 215.º do CPP aponta para a admissibilidade de tal juízo, desde que o processo em causa ainda se encontrasse pendente, perante o tribunal de 1.ª instância.

Vejamos, então.

Desde logo, importa frisar que não cabe a este Tribunal conhecer de questões que não se cinjam ao estrito objeto do recurso interposto, tal como fixado pelos recorrentes. Assim sendo, tudo se resume a determinar se o momento processual da prolação de tal despacho pode (ou não) corresponder a uma fase processual posterior ao depósito de acórdão condenatório, mas imediatamente anterior à interposição de recurso do mesmo.

Ora, sobre este tópico, importa frisar que o acórdão condenatório foi objeto de leitura pública e de depósito em 14 de janeiro de 2014, sendo que os respetivos recursos ordinários foram interpostos em 14 de fevereiro de 2014; isto é, dentro do prazo legal para o efeito, cujo incumprimento conduziria ao trânsito em julgado daquele. Por sua vez, o despacho que declarou a excecional complexidade do processo foi proferido em 11 de fevereiro de 2014. Portanto, antes da interposição dos competentes recursos.

É certo que o Tribunal Constitucional nunca se pronunciou, expressamente, sobre a específica questão normativa ora em apreço. Porém, ainda na vigência da redação do CPP anterior à Reforma de 2007 (aprovada pela Lei 48/2007, de 29 de agosto), a sua 2.ª Secção já teve oportunidade de apreciar a questão relativa ao momento temporal de declaração da excecional complexidade de um concreto processo penal. Com efeito, de acordo com a redação anteriormente vigente (do artigo 215.º do CPP) não se estabelecia, de modo expresso, qual o momento processual adequado para a prolação de tal despacho e, muito menos, qual o prazo-limite para esse efeito. No Acórdão 287/2005, este Tribunal considerou que nem sequer uma declaração de excecional complexidade que tivesse lugar na fase recursiva se afiguraria contrária à Lei Fundamental:

«Refira-se, a final, que a circunstância de a declaração ocorrer na 2.ª instância não é relevante para efeito do presente juízo de não inconstitucionalidade, já que as dificuldades de um processo quanto à caracterização e compreensão dos factos podem manifestar-se em qualquer fase do respectivo decurso.»

Ora, ainda que o referido acórdão não se tenha debruçado, especificamente, sobre a presente questão normativa, certo é que dele se pode extrair um sentido geral concordante com a possibilidade de apreciação, a todo o tempo, da necessidade de declaração da excecional complexidade de um concreto processo penal.

Não foi, porém, esse o entendimento vertido pelo legislador de 2007 na lei processual penal, que passou a mencionar a necessidade de prolação desse tipo de despacho de modo a que a excecional complexidade fosse "declarada durante a 1.ª instância" (cf. artigo 215.º, n.º 4, da CPP). Importa, portanto, verificar se uma interpretação, dele extraída, no sentido de que a expressão "1.ª instância" abrange qualquer momento da tramitação processual perante o tribunal de 1.ª instância e não apenas a fase de julgamento (e de prolação da correspondente decisão condenatória) se pode considerar conforme à CRP. E mais importa ponderar se a primeira daquelas interpretações contenderia com o princípio da legalidade penal (28.º, n.º 1, da CRP), extensivamente aplicável às "normas processuais materialmente penais" e com a proibição de restrição desproporcionada das garantias de defesa dos arguidos (artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, ambos da CRP), incluindo as garantias em matéria de prisão preventiva (artigo 28.º, n.os 2 e 4, da CRP).

As normas relativas à duração da prisão preventiva têm vindo a ser entendidas como "normas processuais materialmente penais", o que significa que se lhes aplicam, com as devidas adaptações, as exigências constitucionais correspondentes às normas penais. Poderia, assim, discutir-se se a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida resvalaria no princípio da legalidade penal, por corresponder a uma interpretação por via analógica (ou, pelo menos, a uma interpretação extensiva) da letra da lei. Sucede, porém, que o legislador processual penal não distinguiu as fases da tramitação processual junto do tribunal de 1.ª instância, não operando qualquer cisão entre a fase de julgamento e a fase posterior, incluindo a de interposição de recurso e de verificação da admissibilidade do mesmo, pelo Juiz-Relator junto do tribunal de 1.ª instância. Pelo contrário, bem sabendo que a tramitação em 1.ª instância não culmina com a leitura e depósito de decisão condenatória (ou absolutória), o legislador optou por referir-se, de modo genérico, à possibilidade de a excecional complexidade de um concreto processo ser "declarada durante a 1.ª instância", sem distinguir. Assim sendo, uma leitura contextualizada da letra da lei permite considerar que aquela referência ampla pode incluir toda a tramitação decorrida perante o tribunal de 1.ª instância e não apenas a fase de julgamento e de publicitação da sentença.

Aliás, em sentido próximo - ainda que a propósito de outra interpretação normativa do artigo 215.º, n.º 6, do CPP -, este Tribunal já esclareceu, através do Acórdão 603/2009, que:

«Aplicados tais princípios às normas processuais penais substantivas, como antes se expôs, seria sustentável afirmar-se que as normas que definem a duração do prazo de prisão preventiva, e, designadamente, a do artigo 215.º, n.º 6, aqui particularmente em foco, não poderão ser objecto de interpretação analógica no ponto em que uma tal interpretação pode pôr em causa o direito à liberdade do arguido. E poderia ainda fazer-se equivaler a essa situação uma interpretação extensiva que, tendo embora no texto legal um mínimo de correspondência verbal, excedesse o sentido possível das palavras da lei, por ser ela ainda assim incompatível com o fundamento da segurança jurídica que está ínsito no princípio da legalidade penal (neste sentido, Sousa Brito, A lei penal na Constituição", in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., pág. 253; admitindo, em geral, a interpretação extensiva em processo penal, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2004).

No caso vertente, porém, não subsiste qualquer lacuna que careça de ser integrada pelo intérprete através da analogia, nem tão-pouco se adoptou uma interpretação que ultrapasse o que resulta estritamente da letra da lei, limitando-se o tribunal recorrido a escolher, no quadro de uma interpretação declarativa, um dos sentidos literais possíveis, que está ainda coberto pela formulação verbal da norma.

[...]

O Supremo Tribunal de Justiça, no caso em apreço, optou pela primeira dessas possíveis interpretações, mas trata-se, sem sombra de dúvida, de um entendimento que cabe na letra da lei e corresponde a uma forma de interpretação declarativa.

A interpretação efectuada não envolve, por conseguinte, o recurso à analogia ou sequer uma interpretação extensiva, pelo que não há nenhuma razão para considerar verificada a violação do princípio da legalidade penal.»

Ora, também nos presentes autos, não se vislumbra que subsista qualquer lacuna que careça de ser integrada, mediante recurso a um raciocínio de tipo analógico. Com efeito, a interpretação normativa adotada pela decisão recorrida desprende-se, diretamente, da letra da lei, que consente a interpretação por ela acolhida. Aliás, no fundo,são os recorrentes quem pretende que seja feita uma verdadeira interpretação corretiva, de modo a que, onde se lê "1.ª instância" tivesse de ler-se "declarada até ao final da fase de julgamento, com o depósito da sentença".

Por fim, não se vislumbra que garantias de defesa possam ter ficado em crise, visto que os recorrentes tiveram plena oportunidade para impugnar a declaração de excecional complexidade, direito esse que exerceram e que conduziu à prolação da decisão recorrida, que lhes foi desfavorável.

Assim sendo, não subsistem razões para que se julgue inconstitucional a norma extraída do artigo 215.º, n.os 3 e 4 do CPP, quando interpretada no sentido de que "pode ser declarada a excecional complexidade do processo já depois de terminada a fase de julgamento e depois de depositado o acórdão final condenatório" (fls. 783).

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional anorma extraída do artigo 215.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que "pode ser declarada a excecional complexidade do processo já depois de terminada a fase de julgamento e depois de depositado o acórdão final condenatório" (fls. 783).

E, em consequência:

d) Julgar improcedente o recurso.

Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC's, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 303/98, de 07 de outubro.

Lisboa, 15 de outubro de 2014. - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.

208239526

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/382150.dre.pdf .

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