Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2014
Processo 419/11.1tafaf.g-A.S1
Uniformização de Jurisprudência
Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No âmbito do processo 419/11.1TAFAF.G1, veio o arguido Mário Lourenço Moreira, em 07/11/2013, ao abrigo do disposto no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpor, para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com fundamento em oposição de acórdãos da relação - o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23/09/2013, proferido no processo supra identificado, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/02/2010, proferido no processo 102/07.2GAAFE.P1.
Em síntese, alegou que os identificados acórdãos estão em oposição sobre a mesma questão de direito pois que, relativamente ao vício da deficiente gravação da prova produzida em audiência, o acórdão recorrido decidiu tratar-se de nulidade a ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância enquanto no acórdão fundamento se decidiu que a nulidade pode ser suscitada em sede de recurso.
2. Em conferência, por acórdão de 29/01/2014, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se verificar oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito em situações factuais idênticas e no domínio da mesma legislação.
3. Determinou-se o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal.
4. Na sequência, o recorrente, o assistente e o Ministério Público apresentaram alegações.
4.1. O recorrente Mário Lourenço Moreira, em síntese conclusiva, sustentou que se deverá «concluir, a final, que o vício da deficiente gravação da prova produzida em audiência - nulidade prevista no artigo 363.º do CPP - poderá ser arguida em recurso, perante a Relação».
4.2. O assistente Orlando Joaquim da Silva Costa terminou as suas alegações concluindo que «o momento para arguir a nulidade decorrente da deficiente gravação da prova é, no prazo de dez dias, perante o tribunal de 1.ª instância».
4.3. O Ministério Público terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
«1- A falta de gravação de depoimento ou a sua inaudibilidade derivada a uma falha ou a uma deficiência no meio técnico (ou na sua utilização) ocorre, na audiência, durante o acto processual de gravação em suporte técnico, sendo este o acto processual que vê afectada a sua validade.
«2- Aquele vício constitui uma nulidade sanável que torna inválido o acto em que se verificou, no caso, a gravação, e só pode ser conhecida a requerimento do interessado.
«3- O reconhecimento do acto processual "gravação em suporte técnico" como sendo o acto processual afectado afasta a aplicação do regime específico de arguição das nulidades da sentença (art. 379º nº 1 do CPP) sendo a questão em apreço resolvida no âmbito do regime geral de arguição de nulidades.
«4- Não se tratando de uma decisão judicial que deva ser impugnada mas de uma nulidade ocorrida durante a prática de um acto processual, mais concretamente, durante a documentação das declarações, realizada pelo funcionário com os meios técnicos à disposição do tribunal, deve a mesma ser arguida perante o tribunal onde a mesma foi cometida de modo a que o juiz a quo a possa suprir.
«5- A arguição da nulidade perante o tribunal ad quem, contra o princípio da celeridade e economia processual, conduziria à prática de actos processuais inúteis já que o tribunal de recurso, ao verificar a inaudibilidade do depoimento, limitar-se-ia a mandar baixar o processo à primeira instância a fim de ali ser suprido o vício, suprimento esse que se traduziria tão só em proceder a regravar das declarações.
«6- O tribunal de recurso visa tão só corrigir eventuais erros mas não visa criar decisões novas sobre questões que não tenham sido suscitadas no processo.
«7- Se a nulidade for irregularmente arguida na própria motivação de recurso, perante o tribunal ad quem, ainda assim, deve o juiz a quo proceder à correcção oficiosa do meio processual (artº 193º nºs 1 e 3 do CPC, aplicável por força do artº 4º do CPP) conhecendo da nulidade desde que a sua arguição tenha sido tempestiva.
«8- Sendo a nulidade irregularmente arguida no recurso, deve considerar-se tempestiva a arguição efectuada até ao último dia do prazo para interposição do recurso desde que não haja elementos no processo que permitam saber qual o dia em que o interessado tomou efectivo conhecimento da mesma, na medida em que é legítimo admitir como possível que o sujeito processual só ouça as declarações no último dia do prazo.
«9- Caso o juiz a quo venha a reconhecer a nulidade, deverá, então, decidir, sanando-a e retomando os autos, só depois, a tramitação processual dos recursos. O mesmo será dizer que o juiz a quo, se verificar que o vício existe, mandará repetir o depoimento que ficou inaudível (art. 122º nº 2 do CPP); Caso não a reconheça, da decisão que indefere a pretensão caberá recurso para o tribunal ad quem.»
Terminou a propor que o conflito de jurisprudência seja resolvido, fixando-se jurisprudência no seguinte sentido:
«I- A falta ou deficiência de documentação das declarações orais, prevista no artigo 363º do CPP, constitui uma nulidade sanável devendo a mesma ser arguida, no prazo de 10 dias, a contar do seu conhecimento, perante o Tribunal onde tal nulidade foi cometida, nos termos conjugados dos artigos 120º nº 1 e 3 e 105º nº 1 do CPP, sob pena sanação.
«II- Caso a nulidade seja irregularmente arguida na motivação de recurso, se for desconhecido o dia em que o interessado dela teve conhecimento efectivo, tal não obsta ao seu conhecimento pelo tribunal a quo devendo, neste caso, o juiz proceder oficiosamente à correcção do meio processual indevidamente utilizado, nos termos dos artigos 193º nºs 1 e 3 do CPC, aplicável por força do artigo 4º do CPP, com o subsequente prosseguimento dos termos processuais adequados.»
II
1. Uma vez que a decisão tomada na secção criminal sobre a oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, há que reapreciar essa questão.
1.1. No acórdão proferido nos termos do artigo 441.º do Código de Processo Penal, entendeu-se que, em situações idênticas e no domínio da mesma legislação - especialmente, a norma do artigo 363.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei 48/2007, de 29 de Agosto -, os acórdãos recorrido e fundamento, ambos de tribunais da relação, estão em oposição quanto à mesma questão de direito.
Com efeito, enquanto no acórdão recorrido se decidiu que a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, sob pena de sanação, já o acórdão fundamento decidiu que a mesma nulidade pode ser arguida, em recurso, perante a relação.
Concluiu-se, por conseguinte, revelarem «os acórdãos recorrido e fundamento decisões expressas e antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito: a de saber se a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, sob pena de sanação, ou se pode, ainda, ser arguida, em recurso, perante a relação».
1.2. No processo 419/11.1TAFAF, no recurso interposto para a relação, o arguido Mário Lourenço Moreira, além do mais, arguiu a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal consistente na deficiência da gravação da prova dado o depoimento de certas testemunhas se encontrar totalmente inaudível e imperceptível.
A relação, quanto a essa questão, decidiu que «a nulidade apontada devia ter sido arguida perante o tribunal a quo, e da decisão sobre a mesma, dessa sim, é que caberia recurso» para a relação.
Mostrando-se, ainda, esclarecido que «o recorrente tinha o prazo de 10 dias após a detecção do vício para ter ido solicitar a sanação do mesmo, sendo certo que, na prática, tal prazo, por impossibilidade de prova do contrário, sempre se terá por extensível até ao último dia do prazo de recurso, in casu, o de 30 dias, pois é possível que só no último dia do prazo de recurso o recorrente, ao pretender ouvir a prova gravada se aperceba da inexistência ou deficiência da gravação.
«Além disso, o que está em causa é o prejuízo, por falta de instrumentos, para o direito de defesa, e nunca, como invoca o recorrente, algo que inquina o julgamento da matéria de facto e influi decisivamente no exame e na decisão da causa.»
No processo 102/07.2GAAFE, o arguido, no recurso interposto para a relação, suscitou a questão da deficiência da gravação da prova por ter sido omitida a gravação de determinado depoimento.
Vindo a relação, nesse ponto, a decidir que a imperceptibilidade da gravação - parcial ou totalmente não audível - deve ser equiparada à falta absoluta de documentação, consubstanciando a nulidade a que se refere o artigo 363.º do CPP, a qual pode ser arguida em sede de recurso.
Sustentando-se o seguinte, quanto ao regime de arguição da nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal:
«(...) posto que não consta do elenco das nulidades insanáveis (cfr. artigo 119.º do CPP), o seu regime decorre do estipulado no artigo 120.º, n.º 1, do mesmo diploma, e porque não sobressai dos casos específicos enumerados nas várias alíneas do n.º 3 deste último preceito citado (seria descabido enquadrá-lo na alínea a) pois que, como é sabido, e com excepção do funcionário que esteja a proceder às gravações, é impossível o controle permanente do estado da gravação, ao menos para os demais sujeitos processuais e, por isso, seria incoerente exigir que a questão fosse suscitada no acto) cremos que tal nulidade poderá ser suscitada em sede de recurso.
«Na verdade, entendemos também que não será exigível para as partes suscitarem tal questão no prazo supletivo a que alude o artigo 105.º, n.º 1, do CPP, ou seja, e em bom rigor, nos dez dias subsequentes à respectiva audiência, isto é, à sessão em que a testemunha em causa foi inquirida, mesmo que após o "terminus" de cada sessão se tenham solicitado e obtido cópias das correspondentes gravações.
«De facto e mesmo que os sujeitos processuais se tenham precavido antecipadamente providenciando e obtendo as cópias das várias sessões de julgamento, só a final, após análise da decisão final que venha a mostrar-se desfavorável, e, mesmo assim, se for caso disso, é que irá ser ponderada a hipótese de recorrer, ou não. E, assim sendo, não é exigível que antes dessa fase vão cuidando de ver se a gravação da prova já eventualmente obtida está correctamente gravada, ou não, sob pena de tal constituir um exagerado ónus para os sujeitos processuais, o qual, além de inadmissível, até em face da economia de tempo e de meios, contraria a filosofia subjacente ao próprio diploma que regula esta matéria, ou seja, o Dec.- Lei 39/95, de 15/02.
«De facto, aqui se estabelece que incumbe ao Estado fornecer os meios técnicos para que a gravação seja efectuada, os quais, de resto, deverão ser manipulados pelo oficial de justiça (cfr. artigos 3.º e 4.º do citado diploma, o qual, anote-se também nada prevê quanto ao início da contagem do prazo para a arguição referente à falta ou deficiência da gravação), daqui decorrendo igualmente que não está previsto um qualquer antecipado contraditório por parte dos sujeitos processuais. Ou seja, torna-se claro que com a imposição da sobredita documentação da prova se pretendeu assegurar um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pelo que, e mormente no evidenciado contexto de legal monopólio do tribunal, não faz sentido onerar os sujeitos processuais com o antecipado controle das efectuadas gravações.
«Assim sendo, temos como atempada a arguição da referida nulidade, a qual, de resto, podendo comprometer a própria sentença, há-de ter analógico aval na "ratio" subjacente ao artigo 379.º, n.º 2, do CPP.»
1.3. Mostram-se, assim, verificados os requisitos substanciais de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, âmbito em que releva a oposição de acórdãos, ou seja, verificarem-se em dois acórdãos [ambos do Supremo Tribunal de Justiça, ambos da relação ou um do Supremo Tribunal de Justiça e o outro da relação] soluções antagónicas da mesma questão fundamental de direito.
A oposição radica na questão de saber se a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, sob pena de dever considerar-se sanada, ou se pode, ainda, ser arguida, em recurso, perante a relação.
2. É abundante a jurisprudência das secções criminais das relações, sobre o tema, dando a mesma conta da polémica instalada.
No sentido do acórdão recorrido, por exemplo:
do Tribunal da Relação de Guimarães,
- acórdão de 18/01/2010 (processo 1508/04.4TAGMR.G1),
- acórdão de 03/05/2010 (processo 327/07.0GAPTL.G1),
- acórdão de 21/10/2013 (processo 211/10.0IDBRG-D.G1),
do Tribunal da Relação do Porto,
- acórdão de 25/11/2009 (processo 4/07.2TAMTR.P1),
do Tribunal da Relação de Coimbra,
- acórdão de 10/03/2009 (processo 4191/08),
do Tribunal da Relação de Lisboa,
- acórdão de 15/08/2010 (processo 5244/06.9TACSC.L1),
do Tribunal da Relação de Évora,
- acórdão de 05/11/2013 (processo 145/09.1TAELV.E1).
Na linha do acórdão fundamento, por exemplo:
do Tribunal da Relação do Porto,
- acórdão de 05/05/2010 (processo 507/08.1GBPRD.P1),
do Tribunal da Relação de Lisboa,
- acórdão de 14/04/2010 (processo 1156/07PSLSB.L1),
- acórdão de 19/05/2010 (processo 59/04.1PDCSC.L1),
- acórdão de 26/01/2012 (processo 281/08.1TAALM.L2),
do Tribunal da Relação de Évora,
- acórdão de 08/11/2011 (processo 431/02.1TAFAR.E1),
- acórdão de 14/12/2012 (processo 90/08.8GAGLG.E1),
- acórdão de 26/02/2013 (processo 445/12.GDPTM.E1),
- acórdão de 04/06/2013 (processo 299/09.7IDSTB-D.E1).
A divergência não se contém, porém, nas posições dos acórdãos recorrido e fundamento.
Com efeito, nem todos os que entendem que a nulidade deve ser arguida na 1.ª instância concedem que o prazo para a arguição, por falta de prova do momento em que o interessado dela teve conhecimento, se pode estender até ao limite do prazo de interposição de recurso.
Assim, nomeadamente nos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/04/2012 (processo 1037/08.7PBBGMR.G1) e de 15/10/2012 (processo 929/07.5TAFlg.G1) afirma-se simplesmente que a nulidade deverá ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, no prazo de 10 dias indicado no artigo 105.º do Código de Processo Penal, sem qualquer concretização, porém, quanto ao momento em que se inicia a contagem desse prazo.
Já no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11/04/2012 (processo 3/09.0PLPRT.P1) toma-se posição quanto ao prazo de 10 dias para a arguição da nulidade sanável prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal se contar a partir da publicitação da sentença na medida em que, não obstante a possibilidade consagrada no n.º 3 do artigo 101.º do Código de Processo Penal, «obviamente que os sujeitos processuais só após a leitura da sentença poderão aferir ou não do seu interesse em recorrer».
Noutra perspectiva, defendida, designadamente, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29/10/2008 (processo 0844934), o termo inicial do prazo de 10 dias ocorre no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição dos sujeitos processuais, aí se ponderando que «não se afigura razoável que, após cada sessão de julgamento, os sujeitos processuais sejam "onerados" com o controle da omissão ou deficiência da gravação que implica audição do respectivo suporte registral», com o que se estaria «a exigir ao sujeito processual, nos casos de audiências extensas e que ocupam o dia todo e várias semanas senão meses "uma super diligência"».
Na mesma linha, ainda, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/06/2009 (processo 9/05.8TAAND.C1), de 26/01/2011 (processo 68/10.1PBLRA.C1) e de 09/11/2011 (processo 2184/09.3TALRA.C1), e do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/04/2010 (processo 1156/07.7PSLSB.L1) e de 24/01/2012 (processo 143/11.5PGLRS.L1.S1), distinguindo-se, neste último, as hipóteses «de o tribunal não proceder, pura e simplesmente, à documentação da prova», caso em que «a nulidade respectiva deve ser arguida pelo interessado no próprio acto - até ao termo da audiência ou da sessão da audiência onde ocorrer -, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.os 1 e 3, alínea a), do CPP, por se tratar de omissão que é pública e notória» daqueles outros em que do que se trata é de uma falta ou deficiência de gravação que só poderá ser detectada com a análise das gravações «iniciando-se o referido prazo de dez dias no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição do sujeito processual interessado».
Por fim, v. g., na declaração de voto de vencido junta ao antes referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29/10/2008 (processo 0844934) sustenta-se o entendimento de «que o prazo de 10 dias para arguição da nulidade (que segue o regime das nulidades relativas) de omissão ou deficiência da gravação da prova oral, deve ser contado a partir do momento da prática do acto (desde que as gravações fiquem disponibilizadas ao sujeito processual, nele participante) e não a partir da data em que este, após as requerer, as vê entregues».
III
Definida a questão de direito que suscita a fixação de jurisprudência e enunciadas as posições em confronto, cumpre decidir.
1. O Código de Processo Penal de 1987(1) - aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro -, na versão primitiva, consagrou a regra de um único grau de recurso erigindo em elemento determinante da competência do tribunal de recurso o da natureza do tribunal recorrido: com excepção dos casos de decisões proferidas em 1.ª instância por tribunais superiores, os recursos "ordinários" eram interpostos do tribunal singular para o tribunal da relação e do tribunal colectivo ou do tribunal do júri para o Supremo Tribunal de Justiça.
As limitações do Supremo Tribunal de Justiça no conhecimento da matéria de facto implicavam que das decisões do tribunal do júri e do tribunal colectivo não houvesse, em rigor, um efectivo recurso em matéria de facto (era admissível uma revista alargada)(2).
Diversamente, no caso das relações - conhecendo de facto e de direito (artigo 428.º, n.º 1) - o duplo grau de jurisdição em matéria de facto só não existia se houvesse uma efectiva renúncia ao recurso em matéria de facto que passava pelo silêncio dos sujeitos processuais no início da audiência.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 428.º, n.º 2, 364.º, n.os 1 e 2, e 389.º, n.º 2, em audiência de julgamento perante tribunal singular, em processo comum ou em processo sumário, só se procedia à documentação em acta das declarações prestadas oralmente em audiência, se, até ao início das declarações do arguido, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente ou das partes civis, no tocante ao pedido de indemnização civil, declarassem que de tal não prescindiam.
Sendo feita essa declaração, era obrigatória a documentação(3), com a utilização dos meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações disponíveis e, na sua falta, através da mediação do juiz que ditaria para a acta o que resultasse das declarações prestadas (artigo 364.º, n.º 3).
Neste quadro, o artigo 363.º limitava-se a estabelecer um princípio geral relativo à documentação de declarações orais, como aliás, resultava da sua própria epígrafe.
«Artigo 363.º
«(Documentação de declarações orais: princípio geral)
«As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos ou estenográficos, ou de quaisquer meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.»
Sem divergências, entendia-se "não estar no espírito desta norma a sistemática redução a escrito das declarações", tratar-se de "uma norma programática, virada ao futuro", que "estabelece um princípio geral de documentação de declarações orais, portanto também aplicável aos julgamentos efectuados pelo tribunal colectivo e pelo júri", nela não se compreendendo, aliás, "um registo de prova para efeito de recurso, mas tão só de um meio de controlo da prova, em ordem a prevenir a correspondência entre a que é produzida e a que resulta do julgamento", "quer para avivar a memória da prova já produzida, quer para permitir a preparação das inquirições seguintes, razões que (...) justificam a sua aplicação perante o tribunal singular em que se prescindiu de documentação de declarações"(4).
Neste entendimento, o artigo 363.º continha, assim, um princípio geral, válido para a audiência de julgamento em 1.ª instância, segundo o qual as declarações prestadas na audiência deviam ser registadas (documentadas na acta) quando o tribunal pudesse dispor de meios idóneos para assegurar a sua reprodução integral.
Do artigo 363.º, conjugado com o artigo 364.º resultava, pois, que, sendo o julgamento realizado por um tribunal colectivo ou do júri, nunca a prova produzida em audiência era reduzida a escrito: ou era registada pelos meios técnicos que permitissem assegurar a sua reprodução integral, ou não o era.
Sendo o registo das declarações, nesse caso, um meio de controlo da prova posto ao serviço desse tribunal, nele não se compreendia a finalidade de permitir ao tribunal de recurso qualquer controlo do julgamento em matéria de facto realizado pelo tribunal recorrido.
2. A Lei 59/98, de 25 de Agosto, procedeu a importantes alterações, na matéria.
A documentação passou a ser obrigatória quando a audiência se realizasse na ausência do arguido, no caso do n.º 3 do artigo 334.º de notificação edital para julgamento (artigo 364.º, n.º 3(5) e foi alterado o paradigma no que toca ao efeito ao silêncio dos sujeitos processuais no início da audiência em processo comum, perante tribunal singular.
Enquanto antes, para que houvesse documentação, era necessária a declaração expressa dum dos sujeitos processuais de que não prescindia da documentação, com a nova redacção dos n.os 1 e 2 do artigo 364.º a possibilidade de não se proceder a documentação ficou dependente de, até ao início das declarações do arguido, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente ou das partes civis, no tocante ao pedido de indemnização civil, declararem unanimemente para a acta que prescindiam da documentação.
Em processo sumário e no novo processo abreviado, a documentação continuou a reclamar requerimento, nesse sentido, devendo, porém, o tribunal, logo no início da audiência avisar, sob pena de nulidade, quem tivesse legitimidade para recorrer da sentença de que podia requerer a documentação dos actos de audiência (artigo 389.º, n.º 3, e artigo 391.º-E, n.º 2).
Mas a grande alteração que com a Lei 59/98, de 25 de Agosto, se quis introduzir, em sede de recurso, foi a da admissibilidade do recurso para a relação, em matéria de facto, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo.
Como se refere, a dado passo, na fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência 3/2012, de 08/03/2012(6), a alteração do artigo 412.º visou tornar admissível o recurso para a relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do 2.º grau de jurisdição no julgamento da matéria de facto e possibilidade de recurso nesta matéria, na sequência do aditamento da expressão "incluindo o recurso" da parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, introduzida na 4.ª revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, que veio criar, pela primeira vez no nosso sistema processual penal, um verdadeiro direito a recurso em matéria de facto das decisões do tribunal colectivo.
E se explicita, ainda, no acórdão de fixação de jurisprudência 10/2005, de 20/10/2005(7), pelo qual foi fixada a seguinte jurisprudência:
«Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo.»
3. Embora a redacção do artigo 363.º tivesse permanecido inalterada, a admissibilidade do recurso em matéria de facto, quer de decisões do tribunal singular quer de decisões do tribunal colectivo, obrigou à conformação da interpretação do artigo 363.º com o direito ao recurso em matéria de facto.
O preceito, de norma programática, passou a norma de aplicação genérica e obrigatória de modo a viabilizar um efectivo grau de recurso em matéria de facto.
Se, na data da publicação da Lei 59/98, de 25 de Agosto, já a generalidade dos tribunais de 1.ª instância estava apetrechada com os meios técnicos adequados à gravação das provas, reconhecia-se que, na hipótese excepcional de falta de meios técnicos, não estaria necessariamente precludido o recurso em matéria de facto de decisões do tribunal colectivo(8), havendo sempre a possibilidade de o mecanismo do artigo 364.º, previsto para o tribunal singular, ser alargado aos julgamentos perante tribunal colectivo.
4. Surgiram divergências jurisprudenciais no plano das consequências jurídicas decorrentes da não documentação das declarações orais prestadas em audiência de julgamento, nos termos do artigo 363.º, na redacção que vigorou até à Lei 48/2007, de 29 de Agosto.
Na consideração do princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades, constante do artigo 118.º, n.º 1 («A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei»), sendo que, conforme estabelece o n.º 2 do mesmo artigo, «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular», formou-se um consenso alargado no sentido de a omissão de documentação da prova produzida em audiência constituir uma mera irregularidade.
Definido o vício processual, permaneceram, contudo, dúvidas e incertezas quanto às consequências jurídicas que implicava. Para uns, a irregularidade afectava o valor do acto praticado, só podendo ser sanada com a realização de novo julgamento, para outros a irregularidade, insusceptível de ser conhecida oficiosamente, devia ser arguida como determina o artigo 123.º, n.º 1, sob pena de se considerar sanada.
Daí que o Supremo Tribunal de Justiça tenha sido chamado a fixar jurisprudência, na matéria, vindo, pelo acórdão de uniformização de jurisprudência 5/2002, de 27/06/2002(9), a fazê-lo, como segue:
«A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º, do mesmo diploma, pelo que uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.»
Decorreu esta solução do entendimento de que a omissão de documentação das declarações prestadas em audiência, quando tal documentação é obrigatória, não afecta "a validade intrínseca e extrínseca da audiência".
Reconhecendo-se, embora, que a falta de documentação inviabiliza o recurso efectivo em matéria de facto, ponderou-se que "isso nada tem de peculiar ao ponto de dever suscitar a intervenção oficiosa do tribunal na reparação da irregularidade" na medida em que "o direito ao recurso em matéria de facto não é indisponível".
Para se concluir que "nos casos em que a documentação é obrigatória, a omissão da mesma constitui uma irregularidade que afecta exclusivamente um direito disponível - o de interpor recurso versando matéria de facto - não afectando, porém, a validade e eficácia da audiência de discussão e julgamento em si, pelo que arredada está a possibilidade de o tribunal poder oficiosamente conhecer da apontada omissão".
Pois, "mesmo a entender-se que a irregularidade em causa podia afectar a validade do acto praticado (artigo 123.º, n.º 2, do CPP) - o que, como ficou demonstrado, não sucede -, sempre caberia dizer que o referido vício só poderia ser oficiosamente reparado enquanto estivesse em curso a diligência processual em que o acto foi praticado e nunca em fase posterior, mormente em sede de conhecimento de recurso".
5. O Tribunal Constitucional, v. g., no acórdão 208/03, de 28/04/2003(10), procedeu à apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 363.º e 123.º do Código de Processo Penal "com a interpretação de que embora reconhecendo que a documentação da prova é obrigatória (artigo 363.º), a sua não observância constitui mera irregularidade, sanável nos termos do artigo 123.º, pois não foi suscitada em audiência", por alegada violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Não se deixando de observar que a questão de constitucionalidade está dependente de saber se a imposição ao arguido de que suscitasse, durante a audiência perante tribunal colectivo, o vício procedimental nela verificado e traduzido na omissão de documentação das declarações orais nela prestadas, traduz ou não uma "diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável" das suas garantias de defesa, foi negativa a resposta dada.
Pela seguinte ordem de razões:
Antes de mais, a solução justifica-se «por evidentes razões de celeridade e economia processual. Na realidade não se perceberia que, agindo o arguido ou o seu defensor com a devida diligência e boa fé e tendo detectado o vício procedimental, ou tendo obrigação de o detectar, nessa fase processual, pudessem deixar que a audiência continuasse a decorrer como se nada se passasse, para só mais tarde, em fase de recurso, o virem então invocar».
Acresce que «a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo por um defensor, do ónus de invocar, no decurso da audiência - que no caso se prolongou por vários meses - um vício procedimental que nela está precisamente a acontecer - manifestamente não implica um cerceamento inadmissível e insuportável das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente censurável, na perspectiva do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição».
6. Na redacção da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, os artigos 363.º e 364.º sofreram alteração de redacção, a qual passou a ser a seguinte:
«Artigo 363.º
«Documentação de declarações orais
«As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.
«Artigo 364.º
«Forma da documentação
«1 - A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efectuada, em regra, através de gravação magnetofónica ou audiovisual, sem prejuízo da utilização de meios estenográficos ou estenotípicos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daqueles. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 101.º
«2 - Quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado em acta o início e o termo da gravação de cada declaração.»
6.1. Concluiu-se, assim, o processo iniciado em 1998.
Com a redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, passou a ser obrigatória a documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência.
Refere, aliás, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X que «a audiência de julgamento passa a ser sempre documentada, não se admitindo que os sujeitos processuais prescindam de tal documentação, seja qual for o tribunal materialmente competente (artigos 363.º e 364.º)».
Toda a prova produzida oralmente na audiência de julgamento é documentada por meio de registo em suporte técnico idóneo a assegurar a reprodução integral.
Passa a haver um regime único de documentação de declarações orais na audiência de julgamento, sem qualquer distinção, quer se trate de julgamento perante tribunal singular, quer se trate de julgamento perante tribunal de composição plural, quer, finalmente, se trate de julgamento de arguido ausente.
A documentação é obrigatória, sem excepção. Não depende da concordância dos sujeitos processuais, nem pode ser por eles prescindida.
Só sendo admissível a documentação por meio técnico que garanta a reprodução integral, deixou de ser permitida a hipótese de síntese das declarações, por intermédio do juiz, nos termos anteriormente previstos no n.º 4 do artigo 364.º
6.2. O legislador construiu o sistema de vícios dos actos processuais atribuindo o carácter absoluto ou insanável a casos que enumera de forma taxativa. Constituem nulidades insanáveis, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, as constantes do elenco do artigo 119.º
O que significa que as situações que não se encaixem na lista que o legislador concebeu não sejam nulidades com essa natureza.
Ora, o artigo 363.º, na redacção que lhe foi dada pela Lei 48/2007, dispõe que «as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».
6.3. Tem-se entendido que à omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento(11).
É deficiente a documentação que não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes.
Deve, pois, considerar-se que também constitui a nulidade prevista no artigo 363.º uma documentação que não satisfaça a finalidade visada pela norma que é, justamente, a de permitir impugnar perante um tribunal superior a decisão proferida sobre matéria de facto(12).
Haverá, assim, que distinguir os casos da falta ou ausência de documentação e os casos em que se verifica a deficiência da documentação, ora por ser incompleta ora por ser inaudível(13).
A significar que a nulidade pode ser total ou parcial. Será de verificação rara a situação de falta ou deficiência de toda a documentação. As mais das vezes, poderão ocorrer casos de nulidade parcial, estes sim relativamente frequentes. A nulidade é parcial se for omitida a documentação de parte da prova produzida na audiência ou se a documentação deficiente disser respeito a parte da prova produzida na audiência(14).
6.4. Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º
Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência.
Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência.
Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. Nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2).
As demais nulidades devem ser arguidas, em requerimento autónomo, perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1.
Hoje em dia não nos parece sequer concebível a hipótese de o interessado assistir à prática da nulidade - para efeitos de a arguir nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º -, a pressupor que, contra lei e à vista de todos os intervenientes processuais, a audiência decorresse sem que, na sala, existissem quaisquer equipamentos adequados à gravação magnetofónica ou audiovisual ou houvesse funcionário a redigir o auto.
O vício da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência tem, pois, de ser arguido perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, no prazo geral de 10 dias, a partir do momento em que dele se toma conhecimento.
6.5. O funcionário de justiça que deva redigir a acta da audiência pode utilizar meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou audiovisual (artigos 99.º, 100.º e 101.º).
Na redacção do n.º 3 do artigo 101.º, dada pela Lei 48/2007, «sempre que for realizada a gravação, o funcionário entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário».
A novidade está na cessação do dever de transcrição dos registos gravados, em consonância com o novo regime de documentação das declarações prestadas na audiência e com o novo regime de impugnação da matéria de facto. A regra da transcrição foi substituída pela regra do acesso dos sujeitos processuais aos suportes técnicos que contenham a gravação da prova(15).
Quando a prova seja registada por gravação magnetofónica ou audiovisual não deve ser transcrita pois, em caso de recurso da matéria de facto, o tribunal superior procede ao controlo da prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (n.º 6 do artigo 412.º), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (n.º 4 do artigo 412.º), sendo, para esse efeito, postas à disposição dos sujeitos processuais que o requeiram cópias da gravação(16).
No caso de uma audiência que se prolonga por várias sessões, as cópias podem/devem ser pedidas pelos sujeitos processuais interessados logo após cada uma das sessões, devendo as cópias ser facultadas dentro do prazo de quarenta e oito horas contado da apresentação do requerimento acompanhado do suporte técnico.
O propósito da lei não pode ter sido outro que não o de permitir o controlo tempestivo da perceptibilidade da gravação pelos sujeitos processuais interessados e, desse modo, criar as condições de um regime eficaz e célere de suprimento de vícios da documentação de declarações orais.
Como se observou no acórdão deste Tribunal de 24/02/2010 (Processo 628/07.8S5LSB.L1.S1):
«É evidente a intenção do legislador, com a nova redacção do artigo 101.º, e nomeadamente do seu n.º 3, introduzida pela Lei 48/2007, de permitir às partes o acesso atempado à documentação da audiência para que elas possam exercer um controlo tempestivo e permanente (sobretudo no caso de audiências repartidas em várias sessões) sobre os vícios que essa documentação possa conter, em ordem à sua pronta reparação.
«Porém, dando-lhes acesso imediato à documentação atribui-lhes concomitantemente a responsabilidade de um controlo em tempo oportuno dos vícios. O interessado deverá, pois, solicitar atempadamente cópia das gravações e proceder de imediato à audição das mesmas. Caso o não faça, adopta um procedimento negligente que não recebe protecção legal.
«E esta interpretação não é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, dado que não lhe é negado, nem restringido o acesso à documentação da audiência; pelo contrário, esse acesso com o novo regime processual é mais extenso e rápido. É certo que simultaneamente o arguido fica obrigado a um dever de diligência no controlo da documentação, mas tal não é incompatível com os direitos de defesa, que se exercem necessariamente dentro de um quadro legal de regras e deveres processuais.»
6.6. A Lei 48/2007, de 29 de Agosto, alterou o regime de prazos de recurso, alargando o prazo de interposição dos recursos da decisão de 15 para 20 dias e, além disso, o prazo passa a ser de 30 dias quando o recurso tiver por objecto a "reapreciação da prova gravada" (artigo 411.º, n.º 4, do CPP). Prazos esses que, em si mesmos e na generalidade dos casos, não são, quanto à sua duração, inadequados ou exíguos. São bem mais favoráveis ao recorrente do que o anterior prazo de 15 dias(17).
O direito ao recurso implica que o interessado seja posto em condições de optar esclarecidamente por conformar-se com a decisão ou impugná-la.
Quando pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o acesso aos respectivos suportes de gravação é essencial para um "consciente e eficiente exercício desse direito"(18). O interessado necessita de dispor de cópias das provas gravadas, pois, mesmo tendo assistido à sua produção será temerário confiar na memória ou em apontamentos pessoais e seguramente não pode prescindir delas para cumprir os ónus impostos pelos n.os 3 e 4 do artigo 412.º
Nos termos do artigo 101.º, n.º 3, para prover a essa necessidade, sempre que tenha havido gravação audiovisual ou magnetofónica, o funcionário entrega, no prazo de 48 horas, uma cópia da mesmo ao sujeito processual que o requeira e forneça o suporte técnico adequado para a reprodução.
Por isso, como se reconheceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2012, num regular funcionamento das coisas, quando careça de tais elementos, o interessado terá, no máximo, o prazo afectado em 48 horas, «este encurtamento do prazo útil - supondo, o que não é necessariamente certo, que a indisponibilidade temporária dos elementos pretendidos equivalha à inutilização desse tempo para assegurar o recurso - não o reduz a ponto de afectar a exigência constitucional de que o processo assegure todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)».
Aí se adverte de que «é por referência a este significado constitucional, de um processo penal orientado para a defesa em que ao arguido não sejam colocados entraves a que possa defender a sua posição e contrariar a acusação e atacar a sentença condenatória, em matéria de direito e de facto, que há-de ser perspectivado o problema das repercussões das diligências necessárias a obter a reprodução dos registos de prova no prazo de recurso. O que a garantia constitucional exige é que o arguido não seja posto, em termos de disponibilidade de elementos, de tempo e de circunstâncias em que tais elementos lhe são fornecidos, em situação que lhe não permita uma opção esclarecida e eficaz quanto ao âmbito da impugnação da decisão condenatória (ou à defesa da decisão absolutória). Não decorre dela a incolumidade dos prazos fixados pela lei ordinária. O que o arguido não pode é ficar privado de obter os elementos que entenda necessários, permanecer na incerteza acerca do momento em que lhe são fornecidos ou a disponibilização destes consumir prazo substancial do prazo de modo a que deixe de ser idóneo para uma opção e preparação reflectida da motivação de recurso».
Para, em síntese, se afirmar que, «deste modo, face aos actuais prazos de recurso em processo penal e ao regime de disponibilização de cópias dos registos de prova gravada, que consomem, na pior das hipóteses dois dias desse prazo, não pode concluir-se que a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para a interposição de recurso, onde se impugne a decisão da matéria de facto cujas provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, [se conta] sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não a partir da data da disponibilização ao arguido dos suportes materiais da prova gravada, ainda que estes tenham sido diligente e tempestivamente requeridos por este último - por os considerar essenciais para o cabal exercício do direito de defesa mediante, se diligentemente facultados pelo tribunal, viole a exigência de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».
6.7. Da conjugação das normas dos artigos 101.º, n.º 3, e 364.º, n.º 1, resulta que, sempre que for realizada gravação, o sujeito processual interessado pode requerer a entrega de uma cópia facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, devendo o funcionário entregar uma cópia, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, o sujeito processual fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência(19).
Por isso, o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário (por lei, quarenta e oito horas).
Neste sentido, já se pronunciou o referido acórdão deste Tribunal de 23/11/2011 (processo 161/09.3GCALQ.L1.S1). Ponderando-se que, uma vez decorridas quarenta e oito horas sobre o termo do acto em que houve gravação das declarações orais, o sujeito processual interessado pode exigir a entrega de uma cópia, facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, ficando, nessa altura, em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência e porque, «de acordo com o disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei 39/95, de 25 de Fevereiro, que, regulando o registo da prova em processo civil, se aplica analogicamente ao processo penal, nos casos omissos, em conformidade com o disposto no artigo 4.º do CPP, a falta de gravação, ou a sua deficiência, implica a repetição da parte omitida, desde que "essencial ao apuramento da verdade" e essa repetição deve ser feita o mais rapidamente possível, sem afectação de direitos processuais, até porque em processo penal a celeridade constitui garantia de defesa com assento constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectivada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário».
Também na posição sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque(20), a nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias a partir da audiência acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido. Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
Oliveira Mendes(21), em comentário ao artigo 363.º, adverte que, «quanto à deficiente documentação, ou seja, a documentação que não possibilite, no todo ou em parte, a captação das declarações oralmente prestadas em audiência, há que considerar duas situações possíveis».
«Caso a deficiência da documentação impeça a captação do sentido das declarações prestadas, deve ser equiparada à falta de documentação, visto se tratar, verdadeiramente, de uma documentação inexistente ou ineficaz. A nulidade daí resultante, como o conhecimento da deficiência só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, deverá ser arguida no prazo de dez dias contados da data em que ao sujeito processual tenha sido entregue o respectivo suporte técnico, caso haja sido requerida a sua entrega - artigo 101.º, n.º 3; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do termo ou encerramento da audiência em que foi efectuada a deficiente documentação.
«Diferente será, porém, a situação em que se verifique deficiência menor, que não inviabilize a percepção do significado das declarações oralmente prestadas. Neste caso estamos perante mera irregularidade. Como o conhecimento da deficiência, como atrás referimos, só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, o prazo de três dias para arguir a irregularidade - parte final do n.º 1 do artigo 123.º - iniciar-se-á com a entrega do respectivo suporte técnico, caso a mesma haja sido requerida; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do encerramento da audiência em que foi efectuada a deficiente documentação das declarações oralmente prestadas.
6.8. Reconhecendo-se, como se reconheceu, que o acesso à gravação da prova produzida em audiência é indispensável ao exercício do direito ao recurso em matéria de facto, a imposição de que o interessado proceda ao controlo da qualidade dessa gravação, por via do procedimento instituído pelo n.º 3 do artigo 101.º, nada tem de ilegítimo por não prejudicar o "acesso ao direito" (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República) nem comportar qualquer prejuízo do "direito ao recurso" (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República).
Na verdade, particularmente no caso do arguido, a adopção desse procedimento não só não afecta as garantias de defesa como é o que melhor observa as exigências de celeridade processual, compreendidas como uma das garantias do processo criminal (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República).
Conclui-se, assim, na sequência de tudo o exposto, que a nulidade a que se refere o artigo 363.º deve ser arguida, perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1), a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º
7. Restará acrescentar que as alterações introduzidas aos artigos 101.º e 364.º pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro, não interferem com a solução a que chegámos.
IV
Com base no exposto, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:
1. Fixar jurisprudência nos seguintes termos:
A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.
2. Uma vez que no acórdão recorrido se reconheceu estar a nulidade sanada, embora na consideração de um prazo para a sua arguição diferente daquele que, agora, se estabelece, não há qualquer utilidade em ser proferida nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada (artigo 445.º do Código de Processo Penal).
Custas pelo recorrente, com 3 UC de taxa de justiça.
Cumpra-se, oportunamente, o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
(1) Diploma a que respeitarão todos os artigos daqui em diante referidos sem qualquer outra menção.
(2) Cunha Rodrigues, «Recursos», Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina Coimbra, p. 381 e ss., dá conta de que uma das críticas à nova regulamentação era, justamente, a de que ela, obliquamente, esvaziava a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, uma vez que "as limitações do Supremo Tribunal de Justiça no conhecimento da matéria de facto significariam a eliminação da garantia de recurso relativamente à culpabilidade, ao arrepio do que hoje seriam aquisições comuns aos sistemas de processo penal e aos instrumentos internacionais sobre direitos e liberdades".
(3) Em processo sumário, com a especialidade de ser efectuada, por súmula (artigo 389.º, n.º 2, parte final).
(4) Assim, v.g, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 3.ª edição, Livraria Almedina, anotações 3. e 4. ao artigo 363.º, p. 486; M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II volume, 2.ª edição, 2000, Rei dos Livros, anotação ao artigo 363.º, pp. 480-481.
(5) O Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, alterou a redacção do n.º 3 do artigo 364.º de modo a que as declarações prestadas oralmente em audiência fossem sempre documentadas, quando a audiência se realizasse na ausência do arguido, nos casos previstos nos n.os 1 ou 4 do artigo 333.º (na redacção introduzida pelo mesmo diploma).
(6) Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 77, de 18/04/2012, no qual se procedeu à análise da evolução legislativa da matéria de recurso em matéria de facto, tanto no domínio do processo penal como no domínio do processo civil, com amplas referências aos contributos jurisprudenciais pertinentes.
(7) Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 234, de 7 de Dezembro de 2005, para cuja fundamentação, agora, se remete.
(8) Assim, José Damião da Cunha, «A estrutura dos recursos na proposta de revisão do CPP - algumas considerações», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc.2, Abril-Junho 1998, Coimbra Editora, p. 251 e ss.
(9) Publicado no Diário da República, I Série A, n.º 163, de 17/07/2002.
(10) Proferido no processo 645/01, 3.ª secção.
(11) Assim, v. g., acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/02/2010 (processo 628/07.8LSB.L1.S1).
(12) Diferente será a situação em que se verificam deficiências menores, que não inviabilizam a percepção do significado das declarações contidas no depoimento gravado, caso em que não há verdadeiramente omissão de documentação mas apenas uma documentação deficiente que, por não comprometer a captação do sentido essencial desse depoimento, constitui uma mera irregularidade, como se sustentou no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo 161/09.3GCALQ.L1.S1).
(13) Neste ponto, cfr., v.g., Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal Notas e Comentários, 2.ª edição, Coimbra Editora, anotação 2 ao artigo 363.º, p. 1025.
(14) Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, anotação 8 ao artigo 363.º, p. 944.
(15) Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anotações 2 e 5 ao artigo 101.º, pp. 284 e 285.
(16) Ficou, assim prejudicada a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça fixada pelo "assento" n.º 2/2003, de 16/01/2003, publicado no Diário da República, I - Série, n.º 25, de 30/01/2003, segunda a qual «sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida cabe ao tribunal».
(17) Que o Tribunal Constitucional não julgou desconforme às exigências constitucionais do direito ao recurso e ao processo equitativo (cfr., v.g., acórdão 542/04).
(18) Como se disse, v.g., no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2012, de 27/06/2012 (Processo 80/12, 3.ª secção).
(19) Como se escreveu no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo 161/09.3GCALQ.L1.S1).
(20) Comentário cit., anotação 7 ao artigo 363.º, p. 943.
(21) Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 2014, Almedina, p. 1140.
Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Julho de 2014. - Isabel Celeste Alves Pais Martins (Relatora) - Manuel Joaquim Braz - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).