Acórdão 400/91
Processo 226/90
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1 - O Procurador-Geral-Adjunto em exercício no Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 da base V da Lei 7/70, de 9 de Junho, «enquanto não permite a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que queiram constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes não particulares».
Justifica aquele magistrado do Ministério Público a sua pretensão no facto de o segmento normativo assinalado já ter sido julgado inconstitucional por este Tribunal no Acórdão 24/88, da 1.ª Secção (por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 2, da Constituição, na redacção decorrente da revisão constitucional de 1982), e nos Acórdãos n.os 450/89 e 99/90, da 2.ª Secção, e 194/90, da 1.ª Secção (em todos estes casos por violação do artigo 13.º da lei fundamental).
2 - Com efeito, o Acórdão 24/88, da 1.ª Secção, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1988, julgou inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 2, e 13.º, n.º 2, da Constituição, a norma do n.º 4 da base V da Lei 7/70, de 9 de Junho, na parte em que proíbe a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que queiram constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos, tendo-se registado um voto de vencido, que entendia que o dispositivo em causa apenas contraditava o teor do artigo 13.º e já não o do artigo 20.º da lei fundamental.
Os acórdãos da 2.ª Secção referenciados (n.os 450/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Janeiro de 1990, e 99/90, publicado no mesmo local, 2.ª série, de 4 de Setembro de 1990) julgaram inconstitucional a mesma norma por violação apenas do artigo 13.º da Constituição, o primeiro na parte em que não permite a concessão de assistência judiciária aos particulares ofendidos por crime público que se queiram constituir assistentes nos autos e o segundo na parte em que não permite a concessão de assistência judiciária aos particulares ofendidos por crime semipúblico.
Em ambos os casos houve votos de vencido com fundamento na violação concomitante do artigo 20.º da Constituição.
Finalmente, o Acórdão 194/90 (ainda inédito) julgou, por unanimidade, inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o segmento normativo em causa, na parte em que proíbe a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que queiram constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos. Neste acórdão entendeu-se ainda que, uma vez alcançado o julgamento de inconstitucionalidade por violação do referido artigo 13.º da lei fundamental, não era de ter por indispensável a confrontação autónoma da norma questionada com o princípio contido no artigo 20.º, n.º 2, da Constituição, por já ter sido atingido o efeito útil do recurso em causa.
3 - Ouvido o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio este oferecer o merecimento dos autos.
Assim exposta a questão em apreço, cumpre decidir.
II
1 - A primeira questão que suscita o pedido do Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal respeita à caracterização do pedido e respectiva delimitação.
Com efeito, ao invocar o disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, estamos perante uma pretensão deduzida ao abrigo do mecanismo de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral decorrente do julgamento de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional sobre uma dada norma em, pelo menos, três casos concretos.
Contudo, como já se deixou explanado, o segmento normativo em causa foi objecto de julgamento por este Tribunal em situações dissemelhantes entre si. Senão, vejamos.
Desde logo, quanto ao parâmetro constitucional utilizado, verifica-se a seguinte situação:
Num caso, o do Acórdão 24/88, identificaram-se como normas violadas os artigos 13.º e 20.º da Constituição;
Em dois outros casos, os dos Acórdãos n.os 450/89 e 99/90, apenas se teve por violado o artigo 13.º da Constituição, tendo sido afastada a violação do artigo 20.º;
No último caso, o do Acórdão 194/90, apenas foi tido por violado o artigo 13.º, não se chegando a apreciar a questão (suscitada pela então recorrente) da violação do artigo 20.º da Constituição.
Por outro lado, quanto à delimitação do segmento normativo em crise, o panorama traduz-se:
Em três casos (nos Acórdãos n.os 24/88, 450/89 e 194/90) estava em causa a proibição constante da norma sub specie de usufruírem do benefício da assistência judiciária os ofendidos por crime público que se pretendessem constituir assistentes nos processos;
Num único caso, o do Acórdão 99/90, foi julgada inconstitucional a referida norma por proibir a concessão de assistência judiciária aos ofendidos por crime semipúblico que pretendessem constituir-se assistentes.
Acresce na situação ora em apreço que a Lei 7/70 já se encontra neste momento revogada pelo Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro, que entrou em vigor em 25 de Novembro de 1988, diploma este que não prevê qualquer restrição à concessão de apoio judiciário aos ofendidos por crimes não particulares que pretendam constituir-se assistentes em processo penal.
Analisemos, pois, cada uma destas questões prévias, começando pela enunciada em último lugar, por anteceder logicamente as demais.
2 - Com efeito, qualquer que seja o âmbito do pedido ou a sua própria natureza - questões a que adiante se dará resposta -, importa apurar se subsiste interesse em tomar conhecimento do mesmo, em virtude de a norma questionada constar de legislação neste momento já revogada, isto é, presentemente já inexistente no ordenamento jurídico.
Tem sido entendimento deste Tribunal que a revogação de uma norma, por si só, não é suficiente para que um pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral careça de interesse ou utilidade (cf. os Acórdãos n.os 238/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 1988, 73/90, publicado no mesmo local, 2.ª série, de 19 de Julho de 1990, e 135/90, publicado também no jornal oficial, 2.ª série, de 7 de Setembro de 1990). No primeiro daqueles arestos sublinhou-se que «o facto de uma determinada norma ter sido, entretanto, revogada não é, de per si, suficiente para obstar à sua eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
É que, operando tal declaração, em princípio, ex tunc, produz ela efeitos que retroagem à data da entrada em vigor da norma em causa (cf. o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição). Por isso, como se escreveu no Acórdão 17/83 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., pp. 93 e segs.), haverá interesse na emissão de tal declaração, justamente toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado durante o tempo que este vigorou.» (Cf. também o Acórdão 103/87, no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Março de 1987.)
Tais considerações parecem de todo atendíveis no caso em apreço, pelo que é de concluir que subsiste ainda interesse em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada pelo requerente, na medida em que podem ainda encontrar-se pendentes processos judiciais onde tal norma tenha sido aplicada e para cuja resolução relevará a decisão que a tal propósito este Tribunal venha a tomar.
Com efeito, tendo a Lei 7/70 vigorado até há bem pouco tempo (24 de Novembro de 1988), ao abrigo do disposto no artigo 293.º, n.º 1, da Constituição, na sua redacção originária (artigo 293.º, na redacção decorrente da revisão constitucional de 1982), que determinava que o direito anterior à entrada em vigor da Constituição se mantinha, desde que não fosse contrário à Constituição e aos princípios nela consignados, é de configurar que subsista ainda um interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido formulado, na precisa medida em que subsistam porventura decisões judiciais fundadas no n.º 4 da base V que tenham sido constituídas ao seu abrigo em contravenção do disposto na Constituição, decisões essas em relação às quais ainda pode vir a ser deduzido o pertinente recurso de constitucionalidade, para cuja apreciação poderá relevar uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Assim sendo, passaremos a analisar o âmbito e a natureza do pedido do Procurador-Geral-Adjunto.
3 - Nos termos dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, este tipo de processos de fiscalização abstracta sucessiva são desencadeados na sequência do julgamento pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos da inconstitucionalidade de qualquer norma.
Para efeitos de interpretação destes normativos é de entender que a reapreciação da questão pelo Tribunal Constitucional, agora em sede de fiscalização abstracta, assenta apenas no pressuposto de preexistirem três julgamentos de inconstitucionalidade, em casos concretos, para os quais se afigura irrelevante o parâmetro constitucional invocado em cada um deles. Dito de outro modo, nem a Constituição nem a lei impõem que nos três casos concretos «pretexto» da fiscalização sucessiva o julgamento de constitucionalidade tenha o mesmo fundamento constitucional, isto é, decorram da violação da mesma norma constitucional. Este entendimento parece ser o mais conforme com a natureza «não automática» da declaração com força obrigatória geral após três julgamentos em concreto, ou seja, com o reconhecimento de que a passagem à fiscalização sucessiva origina um novo juízo de constitucionalidade, não estando o Tribunal vinculado às suas anteriores decisões quanto ao sentido da sua decisão.
A este propósito escreveu-se no Acórdão 93/84, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 16 de Novembro de 1984, que, «uma vez declarada a inconstitucionalidade num terceiro caso concreto, a apreciação é obrigatória, mas pode desembocar ou não em declaração de inconstitucionalidade.
Tal faculdade de não declaração enquadra-se, desta feita, nas tradicionais funções de apreciação de todo e qualquer tribunal e permite que o juiz, liberto dos aspectos casuísticos e interesses individualizados dos casos concretos, tenha agora em conta as próprias exigências e interesse de todo o sistema jurídico; e que, apenas a esta luz, possa declarar ou não a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma determinada norma, podendo até recorrer, no caso afirmativo, por exigência da 'segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo', à modulação dos efeitos da sua declaração de inconstitucionalidade (cf. o artigo 282.º, n.º 4, da Constituição)».
Com efeito, o objectivo desta via de acesso à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apresenta uma dupla vertente:
Por um lado, visa-se permitir um alargamento das entidades que podem desencadear o processo de fiscalização abstracta sucessiva, conferindo o correspectivo poder de iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional e ao Ministério Público; e
Por outro lado, visa-se expurgar do ordenamento jurídico, por via de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, uma norma em relação à qual o Tribunal Constitucional já tenha decidido por três vezes que prefigurava uma violação da Constituição, norma essa que aparece assim como «condenada» ou, no mínimo, «sob suspeição», na óptica da sua (des)conformidade com a lei fundamental, e isto independentemente do vício que, em cada caso concreto, o Tribunal lhe tenha efectivamente imputado.
Conforme resulta da construção da figura em apreço, o nosso ordenamento jurídico não acolheu um sistema de passagem automática dos três juízos de inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta para um processo de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (cf. o já citado Acórdão 93/84). Na realidade, entre nós exige-se um específico impulso, uma iniciativa adequada para provocar uma decisão em sede de fiscalização abstracta sucessiva, impulso ou iniciativa que prefiguram um verdadeiro e próprio pedido, sujeito às regras comuns aplicáveis quer da Lei 28/82, quer do próprio Código de Processo Civil, nos termos por aquela definidos.
Esta «ponte» entre a fiscalização concreta e a fiscalização abstracta origina um novo processo de fiscalização, o qual pode, inclusivamente, ter um desfecho contrário ao dos processos de fiscalização concreta que estiveram na sua origem, isto é, a uma nova apreciação da conformidade à Constituição das normas questionadas, podendo o Tribunal, inclusive, analisá-las quer face aos parâmetros constitucionais que relevaram nos juízos de fiscalização concreta, quer face a outros normativos ou princípios constitucionais (cf. o artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82).
Assim sendo, não se vislumbra que obste a que o Tribunal Constitucional aprecie e declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma impugnada (ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82) o facto de o parâmetro constitucional violado não ser o mesmo nos três casos concretos que permitiram a abertura desta via de controlo de constitucionalidade.
4 - Chegados a este ponto, para que o pedido proceda é condição impostergável que a norma em crise tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos.
Ora, quanto a este requisito, é forçoso reconhecer que o pedido do Procurador-Geral-Adjunto tem um âmbito mais vasto do que o decorrente dos três julgamentos concretos que constituíram a «ponte» para a fiscalização abstracta.
Com efeito, o pedido abrange a apreciação da norma do n.º 4 da base V quando proíbe a concessão do benefício da assistência judiciária aos ofendidos por crimes não particulares, entenda-se, quer por crimes públicos, quer por crimes semipúblicos. Ora, na verdade, o requisito constitucional e legal da prévia existência de três julgamentos concretos de inconstitucionalidade só se encontra preenchido quanto àqueles (crimes públicos), já que quanto a estes (crimes semipúblicos) apenas incidiu um único julgamento (o constante do Acórdão 99/90).
É bem certo que há quem entenda que o princípio do pedido em sede de controlo da constitucionalidade deveria ser admitido com alguma flexibilidade, decorrente da especificidade deste meio de garantia da Constituição (cf. Vitalino Canas, Os Processos de Fiscalização da Constitucionalidade e da Legalidade pelo Tribunal Constitucional. Natureza e Princípios Estruturantes, Coimbra, 1986, p. 140), mas o que é facto é que, nestas situações em que a Constituição e a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional pretendem permitir a passagem da fiscalização concreta para a fiscalização abstracta, o pedido (seja ele formulado por qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional, seja ele deduzido pelo Ministério Público) só pode ser admitido se respeitar precisamente à norma sobre a qual já incidiram três julgamentos concretos de inconstitucionalidade, isto é, quanto à específica norma em relação à qual já se haja sedimentado uma situação de «mácula» constitucional que justifica presuntivamente a pluralização de entidades que permitem a via de acesso à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral que pressupõem os artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82.
Ora, tal «mácula», tal «suspeição», no caso vertente, só se pode identificar com a intensidade mínima requerida pela Constituição quando reportada a crimes públicos, sendo ainda apenas um único caso que se reporta a crimes semipúblicos, pelo que é de concluir que o requisito constitucional só se encontra preenchido cabalmente por referência àquela primeira situação, a ela se devendo reconduzir por redução o entendimento que o Tribunal faz do pedido do Procurador-Geral-Adjunto.
Acresce ainda que, nos quatro casos concretos referenciados, o Tribunal teve sempre o cuidado de identificar com grande rigor e precisão o sentido do normativo em apreço, tendo sempre em cada caso reportado o seu julgamento a cada um dos segmentos normativos que o n.º 4 da base V da Lei 7/70 comporta, pelo que apenas o segmento referente aos crimes públicos preenche efectivamente o requisito das três decisões anteriores de inconstitucionalidade.
É bem verdade que a este entendimento se poderia obtemperar com base num raciocínio «por maioria de razão», mas tal será também de afastar neste caso, além do mais porque se trata de delimitar um pedido onde a própria legitimidade do requerente se afere (e depende), nos termos constitucionais, pelo específico requisito da preexistência de decisões de inconstitucionalidade sobre a norma em crise (ou o segmento normativo em crise) em três casos concretos.
Nestes termos, deve entender-se que o pedido formulado de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apenas abrange o n.º 4 da base V da Lei 7/70 na parte em que proíbe a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que queiram constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos.
III
1 - O n.º 4 da base V da Lei 7/70 tem a seguinte redacção:
4 - Nos processos criminais a assistência apenas pode ser concedida aos acusados e àqueles de cuja acusação depende o exercício da acção penal pelo Ministério Público.
O que foi equacionado nos julgamentos de inconstitucionalidade que fundam o presente pedido foi precisamente a parte da norma em causa que regulava a concessão de assistência judiciária «àqueles de cuja acusação depende o exercício da acção penal pelo Ministério Público».
Com efeito, no quadro da legislação penal aplicável à data da emissão da Lei 7/70 (o Código Penal de 1886, o Código de Processo Penal de 1929 e o Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945), os crimes eram objecto de uma classificação tripartida: crimes públicos (em relação aos quais o exercício da acção penal pelo Ministério Público era livre e apenas sujeito ao princípio da legalidade), crimes semipúblicos (em que o exercício da acção penal pelo Ministério Público dependia de queixa) e crimes particulares (no âmbito dos quais o exercício da acção penal em causa pressupunha ainda a prévia dedução de acusação particular).
Esta classificação subsiste à luz do disposto nos artigos 111.º a 116.º do Código Penal de 1982.
Estando, pois, como vimos, apenas em causa a valência da norma referida na parte aplicável aos crimes públicos, é dela apenas que ora se passará a curar.
2 - Num primeiro momento, importa apurar a evolução do tratamento legal da figura do «assistente» em processo penal, evolução essa que foi detalhadamente explanada no Acórdão 24/88 e cujo fio condutor essencialmente se irá seguir.
Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 35007, o regime jurídico da intervenção dos particulares (não arguidos) no processo criminal era marcado por um conjunto amplo de poderes processuais de participação que colocavam tal intervenção numa situação quase paralela à do próprio Ministério Público.
Reagindo contra tal modelo de participação, o Decreto-Lei 35007 veio restringir as condições de participação desses particulares na acção penal, podendo ler-se no respectivo preâmbulo:
O exercício da acção penal pertence ao Ministério Público como órgão do Estado. O direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determinar, coloborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exercê-la como direito próprio. O direito não legitima a vingança privada.
Esta lógica levou o legislador a sublinhar a natureza pública da acção penal, tornando como regime-regra o da iniciativa pública.
Mas, como salienta Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1.º vol., Coimbra, 1974, pp. 120 e segs.), «o princípio da promoção processual oficiosa não se afirma sem limitações, limitações de ordem legal, por um lado, derivadas da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares. Limitações de ordem jurisprudencial, por outro lado, derivadas de continuar a admitir-se amplamente a possibilidade de os particulares assistentes acusarem, por crimes públicos, ainda quando o MP se tenha abstido de deduzir acusação».
Como se sublinhou a este propósito no Acórdão 24/88 «o Decreto-Lei 35007, relativamente aos crimes públicos, pretendeu publicizar inteiramente a iniciativa processual, colocando-a sem excepções na dependência do Ministério Público ou de entidades oficiais subordinadas, na sua actuação, a um estrito princípio de legalidade. Não curou, porém, simultaneamente, do controlo judicial de tal legalidade, pretendendo deixar tudo na dependência de uma fiscalização hierárquica (artigos 27.º a 29.º)».
Contudo, este tipo de fiscalização hierárquica, por si só, não se mostrou suficiente para garantir as expectativas legítimas dos ofendidos, circunstância que levou a própria jurisprudência a conferir aos assistentes legitimidade para darem acusação por crime público, mesmo naqueles casos em que o Ministério Público se tivesse abstido de a formular. Como sublinha Figueiredo Dias (op. cit., loc. cit.):
[Tal jurisprudência] criou uma lata e importantíssima excepção ao princípio da oficialidade, no sentido de que a decisão sobre a submissão de um facto a julgamento reverte à vontade dos particulares e pode prevalecer sobre a do MP; tão lata e importante que, com ela, se dirá com razão que a princípio da oficialidade tem no direito processual penal português de hoje valor apenas tendencial e continua a coordenar-se com o princípio supletivo da acusação particular.
Esta evolução jurisprudencial não terá sido alheia à alteração do artigo 388.º do Código de Processo Penal operada pelo Decreto-Lei 377/77, de 6 de Setembro, o qual, ao adaptar a legislação processual penal vigente aos princípios da Constituição de 1976, passou a admitir expressamente a possibilidade de os assistentes deduzirem acusação por crimes públicos, ainda que o Ministério Público se abstenha de o fazer.
Debruçando-se sobre esta solução, João Castro e Sousa (A Tramitação do Processo Penal, Coimbra, 1983, p. 243) escreve que «[ela é] a mais consentânea com a privatização para o exercício da acção penal para que nos parece inclinar-se a Constituição de 1976; já, porém, põe em causa o princípio da oficialidade da acusação».
O regime jurídico decorrente da revisão de 1977 do Código de Processo Penal reconhece, assim, aos ofendidos a possibilidade de, em certas situações, se tornarem nos verdadeiros titulares da acusação por crimes públicos perante a decisão de não acusação do Ministério Público.
Esta solução, aliás, insere-se numa preocupação mais geral de protecção dos interesses do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento dos autores de crimes de que foi vítima, de que são exemplos a autonomia de que o assistente goza em matéria de audiência, de interrogatório, de alegações e de recursos relativamente ao Ministério Público. O que levava o Acórdão 24/88 a concluir que «este interesse [do ofendido] é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece.
E a ponderação de que, no caso de crimes públicos, a acção penal exercida para defesa do interesse público violado pela conduta criminosa se há-de considerar como da própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa protecção».
Ora, se é verdade que no plano processual criminal a relevância crescente da protecção dos interesses do ofendido foi sendo objecto de um reconhecimento progressivo que culminou com a referida alteração legislativa de 1977, forçoso é reconhecer que a solução da Lei 7/70, no domínio da concessão do benefício da assistência judiciária, se pode considerar mais próxima do modelo introduzido em 1945 do que daquele que decorreu da adaptação da legislação processual penal aos valores fundamentais da Constituição de 1976.
O que importa, pois, verificar de seguida é se tal distanciamento, no âmbito da assistência judiciária, do estatuto jurídico do ofendido face ao seu tratamento pela legislação processual criminal comporta alguma violação autónoma dos princípios e regras constitucionais.
3 - Desde já se adianta que a norma em causa, no segmento em causa, viola o princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
O normativo constitucional em causa dispõe no seu n.º 1 que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» e no seu n.º 2 explicita que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social».
Como é generalizadamente sublinhado pela doutrina, o reconhecimento da igualdade como valor constitucional converte-a em critério geral que modela o ordenamento jurídico no seu conjunto e releva como elemento de interpretação e de integração desse mesmo ordenamento, logo, por isso, também da própria Constituição.
Na sua origem, com as primeiras revoluções liberais, a consagração do princípio da igualdade marcou sobretudo uma rotura com um passado desigualitário típico da sociedade estamental: visava-se então afirmar a recusa do privilégio e das situações de excepção, passando a submeter-se a um mesmo ordenamento jurídico o conjunto dos cidadãos. Uma tal preocupação traduziu-se progressivamente na afirmação do primado do direito e a igualdade passou cada vez mais a ser entendida como pressuposto do próprio Estado de direito democrático.
A este propósito escrevem Miguel Rodríguez-Piñero e Maria Fernanda Fernández López (in Igualdad y Discriminación, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, pp. 20 e segs.):
Nada há de estranho que na época liberal a igualdade perante a lei significasse pouco mais que um carácter de mandato legal, a inexistência de privilégios, a eficácia erga omnes, e, em consequência, a generalidade e a impessoalidade na delimitação dos pressupostos da sua aplicação. O entender a igualdade perante a lei como consequência da generalidade própria da norma legal (além do mais expressão da vontade geral) pressupõe que todos se submetam igualmente ao ordenamento e que todos têm igual direito a receber a protecção dos direitos que esse ordenamento reconhece.
Mas essa igualdade perante a lei vai produzir efeitos significativos no plano da execução da própria lei, quer dizer, no momento de aplicação da lei. A igualdade perante a lei passará progressivamente a ser entendida (e isso mais como fruto do direito administrativo do que do direito constitucional) como igualdade na aplicação da lei: já não se trata de a lei ser geral e impessoal, mas que a sua aplicação pelos poderes públicos encarregues de tal tarefa seja feita «sem excepções, sem considerações pessoais» (Heller). A igualdade perante a lei interpreta-se assim como «aplicação da lei conforme à lei» (Kelsen), como uma aplicação regular, correcta, das disposições legais, sem outras distinções de pressupostos ou de casos que não as determinadas pela norma legal. Violar-se-ia assim a igualdade não apenas se a lei, por não ser uma norma geral, não contivesse uma possível igualdade, mas também por, ao aplicar-se essa norma geral, essa aplicação não ser feita de maneira geral, com abstracção das pessoas concretas afectadas (Lebon).
O desenvolvimento social e político envolvente comina, portanto, uma evolução da própria noção de igualdade e do tratamento jurídico, passando-se de uma noção de igualdade perante a lei para uma igualdade na lei, o que coloca o princípio da igualdade não apenas ao nível do legislador, mas ao nível do próprio direito (cf. João Martins Claro, «O princípio da igualdade», in Nos Dez Anos da Constituição, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1986, p. 36).
A aplicação prática do princípio da igualdade na lei suscita diversas questões de relevo, porquanto do mero enunciado do princípio não resulta o que é igual, mas tão-somente que o que é igual deve ser tratado de forma igual e, inversamente, o que não é igual deve ser tratado desigualmente.
Como escreveu Christian Starck («Gleichheit als Mass des Rechts. Probleme der Anwendung des Gleichheitsatzes», in L'Égalité, vol. VIII, Bruxelas, 1982, p. 567), «o problema central do princípio constitucional geral da igualdade consiste em que, embora vincule imediatamente o legislador, o executivo e a jurisprudência, do mesmo não é deduzível como conteúdo nenhum critério de medida».
A ausência de tal critério de medida impõe ao intérprete um processo de reconstrução do conceito de igualdade inserido nos valores do ordenamento constitucional no seu conjunto. Processo esse que assenta na natureza relacional do próprio conceito, quer por força da perspectiva da sua evolução histórica, quer em virtude da diversidade das suas manifestações concretas.
Como recorda Heller [Der Gleichhteitsgrundsatz im Staatsrecht, Archiv des offentlichem Rechts, 77 (1951-1952), p. 238], a medida do que é igual e deve ser tratado como igual depende do ponto de vista de que se estabeleça a comparação, tendo em vista determinar as características essenciais ou não essenciais a ter em conta, quer dizer, as notas comuns deduzíveis para equiparar situações ou para estabelecer diferenciações.
Esta operação, em si mesma, pode considerar-se facilitada quando o legislador constitucional, além do enunciado do princípio geral da igualdade, «especifica os títulos - ou alguns deles - que não podem fundar um tratamento diferenciado entre os cidadãos» (cf. o parecer da Comissão Constitucional n.º 1/76, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º vol., p. 9). Conforme se refere no citado parecer, «quando isto acontece, tem de entender-se, em princípio, que viola a regra constitucional da igualdade o preceito que dá relevância a um desses títulos para, em função dele, beneficiar ou prejudicar um grupo de cidadãos perante os restantes».
Nesta vertente, o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo.
Esta ideia fundamental tem encontrado acolhimento pacífico e uniforme na abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional que versa sobre a temática da aplicação do princípio da igualdade (cf. José Casalta Nabais, «Les droits fondamentaux dans la jurisprudence du Tribunal Constitutionnel», in La justice constitucionnelle au Portugal, Paris, 1989, pp. 246 e segs.), designadamente nos Acórdãos n.os 39/88 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Março de 1988) e 157/88 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988) e ainda, entre outros, nos Acórdãos n.os 76/85 (Diário da República, 2.ª série, de 8 de Junho de 1985), 142/85 (Diário da República, 2.ª série, de 7 de Setembro de 1985), 309/85 (Diário da República, 2.ª série, de 11 de Abril de 1986) e 186/90 (Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
Ora, revertendo ao caso sub judice, cumpre recordar que o n.º 2 do artigo 13.º da Constituição dispõe que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social» (sublinhado nosso).
Neste quadro, forçoso é de concluir, como se escrevia no Acórdão 24/88, que «quando no n.º 4 da base V da Lei 7/70 se proíbe a concessão de assistência judiciária aos ofendidos por crimes públicos que queiram constituir-se assistentes, cria-se, com base num factor de ordem meramente económica, uma causa impeditiva ou ao menos geradora de grave dificuldade no acesso àquele instituto processual penal».
Assim sendo, estamos perante uma diferenciação de situações criada pelo legislador exclusivamente em função do status económico dos ofendidos, porquanto aqueles que possuírem meios económicos próprios poderão constituir-se assistentes, enquanto os ofendidos que careçam desses meios já o não poderão fazer ou verão tal possibilidade significativamente cerceada em virtude da proibição legal em causa.
Nisto se consubstanciando um factor de discriminação constitucionalmente inadmissível, porquanto falho de qualquer base material razoável e objectiva, pelo que há-de concluir-se que a norma em causa, conferindo a uns (os economicamente capazes) o direito de se constituírem assistentes e negando, no plano da sua efectiva concretização, a outros (os economicamente desfavorecidos) esse mesmo direito, viola o disposto no artigo 13.º da Constituição, ao fazer assentar uma discriminação de tratamento num título que expressamente a lei fundamental afasta como fundamento de uma diferenciação de situações pessoais iguais ou idênticas.
4 - Chegados a este ponto, que funda a pretendida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, porque identificada a violação da Constituição emergente do contraste entre a norma impugnada e o disposto no artigo 13.º da Constituição, não se tem já por indispensável a confrontação autónoma da norma questionada com o princípio contido no artigo 20.º da lei fundamental.
IV
Termos em que se declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 4 da base V da Lei 7/70, de 9 de Junho, na medida em que proíbe a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que queiram constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos, por violação do disposto no artigo 13.º a da Constituição.
Lisboa, 30 de Outubro de 1991. - António Vitorino - Luís Nunes de Almeida - Bravo Serra - Mário de Brito - Fernando Alves Correia - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - José de Sousa e Brito - Vítor Nunes de Almeida - Alberto Tavares da Costa - Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Subscrevi a tese geral do acórdão sobre a inconstitucionalidade da norma do n.º 4 da base V da Lei 7/70, de 9 de Junho. Julgo, porém, que o Tribunal não deveria circunscrever a abordagem do problema, nem, assim, a decisão, ao «segmento da norma que abrange os crimes públicos».
Tenho para mim que a estrutura da norma apreciada não legitima a sua divisão em segmentos (separando crimes públicos e semipúblicos), no plano da fiscalização abstracta da constitucionalidade. Dispõe assim:
Nos processos criminais a assistência apenas pode ser concedida aos acusados e àqueles de cuja acusação depende o exercício da acção penal pelo Ministério Público.
A norma exclui do benefício da assistência judiciária todos os que pretendem exercer a acção penal por crimes não particulares. Determina para os ofendidos que queiram constituir-se assistentes, em processo penal por crimes públicos ou semipúblicos, o mesmo regime de diferenciação face aos assistentes que exercem a acção penal por crimes particulares e face aos acusados.
Ora, a unicidade do regime é indiferente às variáveis da sua aplicação concreta. Por isso, afigura-se-me incorrecto a asserção de que «apenas o segmento referente aos crimes públicos preenche efectivamente o requisito das três decisões anteriores de inconstitucionalidade».
É que as decisões do Tribunal Constitucional proferidas em via de recurso sofrem a impostação das situações concretas em que se suscitam as questões de constitucionalidade. O Tribunal julgou inconstitucional a norma do n.º 4 da base V da Lei 7/70, de 9 de Junho, em três recursos interpostos por quem pretendia constituir-se assistente no exercício da acção penal por crimes públicos e num outro recurso interposto por quem pretendia constituir-se assitente para o exercício da acção penal por crime semipúblico. Ao julgar da inconstitucionalidade, o Tribunal referiu a norma a cada situação concreta em que fora aplicada.
Mas isso não pode significar a cindibilidade da norma no plano da fiscalização abstracta da constitucionalidade da mesma norma. Aqui não é possível separar o inseparável.
Sendo convocado, como é, o princípio constitucional da igualdade e estando em causa a subavaliação pelo legislador da inciativa particular na acção penal quando ela coexiste com a acusação necessária do Ministério Público, afigura-se-me excessivamente formalista uma solução que venha referir a inconstitucionalidade da norma apenas a certas entidades que nem o teor literal da mesma autonomizou. - Maria da Assunção Esteves.