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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2/2011, de 27 de Janeiro

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Sumário

Fixa jurisprudência no seguinte sentido: em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2011

Processo 287/99

Tribunal da Relação de Évora.

Relato n.º 327.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora veio interpor recurso obrigatório para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 446.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, formulando as seguintes conclusões:

1 - Vem o presente recurso obrigatoriamente interposto da decisão sumária proferida nos autos supramencionados, na qual se rejeitou o recurso da decisão proferida na 1.ª instância a fl. 52, com o fundamento em que, tendo tal despacho acolhido a pretensão do magistrado do MP na promoção que o antecedeu, por isso careceria este de legitimidade para dele recorrer por força do princípio da lealdade processual.

2 - Argumentando-se que o princípio da lealdade processual se impõe aos sujeitos e participantes processuais e, por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo e aquele que impugna decisão condenatória em pena ou medida de coacção menos grave do que aquela que requereu e que a ilegitimidade do Ministério Público para recorrer de decisões concordantes com posições anteriores assumidas é imposta pelo princípio de lealdade processual, ínsito ao Estado de direito e à legalidade democrática que compete ao Ministério Público defender.

3 - Sucede, porém, que a referida decisão foi proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal da Justiça no Acórdão 5/94, do respectivo Pleno, de 27 de Outubro, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 289, de 16 de Dezembro de 1994, que fixou a seguinte jurisprudência:

«Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.» 4 - Como se pode constatar da análise da respectiva fundamentação e conclusões, toda a argumentação em que assenta a decisão sumária sob recurso foi objecto de apreciação pelo acórdão que veio a fixar jurisprudência em sentido inverso.

5 - Não se detectando, na decisão sob recurso, sombra de qualquer outro argumento susceptível de fundamentar a divergência do Sr. Juiz recorrido quanto a tal fundamentação e conclusões, que se limita a afirmá-la.

6 - Ora, se é certo que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, não menos verdade é que estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (artigo 445.º, n.º 3, do CPP).

7 - A decisão sumária sob recurso violou, assim, o disposto no artigo 445.º, n.º 3, do CPP.

8 - Sendo certo que tais fundamentação e conclusões (do acórdão para fixação de jurisprudência) mantêm a sua total validade, não se vislumbrando qualquer argumentação nova que as possam pôr em crise.

Nesta instância o Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer referindo que:

A - 1 - Em 14 de Janeiro de 2010, veio o Ministério Público, nos termos do artigo 446.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário da decisão sumária de 12 de Novembro de 2009, proferida no processo acima identificado, alegando, em síntese, que aquela decisão contrariou a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão 5/94, de 27 de Outubro, in Diário da República, 1.ª série-A, n.º 289, de 16 de Dezembro de 1994, que estabeleceu:

Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.

2 - Segundo a certidão de fl. 18, a decisão sumária foi notificada ao Ministério Público, por termo nos autos, em 18 de Novembro, e aos mandatários dos sujeitos processuais, por via postal expedida em 18 de Novembro de 2009.

Presumindo-se notificada em 23 de Novembro (3.º dia útil seguinte ao da expedição), transitou decorridos 10 dias, ou seja, em 18 de Janeiro de 2010.

Tendo sido interposto em 14 de Janeiro de 2010, inscreve-se no prazo fixado no artigo 446.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo, por isso, tempestivo.

3 - Da oposição:

Decidiu a decisão sumária em causa, com fundamento no entendimento perfilhado por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., pp. 1021 a 1023, e sem qualquer referência ao Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 5/94, rejeitar o recurso do Ministério Público por entender resultar «[...] patente carecer o Ministério Público de legitimidade para o presente recurso, no qual, ao fim e ao cabo, intenta colocar em crise decisão inteiramente concordante com a posição que anteriormente assumiu».

Na verdade, considerando que a primeva promoção do Ministério (a de 16 de Outubro de 2008) fora no sentido de perdimento a favor do Estado, e respectiva destruição, da tesoura apreendida, e que a decisão que sobre ela recaiu (de 16 de Novembro), com fundamento no artigo 14.º do Decreto 12 487, foi a de decretar o perdimento a favor do Estado, designando data para a sua destruição, entendeu que o Ministério Público carecia de legitimidade para recorrer da decisão, posto que independentemente dos fundamentos por cada um perfilhados... a promoção do MP visava exactamente aquilo que veio a ser decidido no despacho judicial.

Ora, como salienta o Exmo. recorrente, a argumentação expendida no despacho recorrido foi objecto de análise detalhada no Acórdão do Pleno n.º 5/94 (quer no que respeita à violação do princípio de lealdade processual quer quanto à eventual falta de legitimidade para recorrer nestas situações), nada se aditando relativamente ao que dela consta, que, tão-pouco, é mencionada (quer a fundamentação quer o próprio acórdão).

Este entendimento contraria claramente a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no referido Acórdão 5/94, de 27 de Outubro.

4 - Consequentemente, ocorrendo oposição de julgados, traduzida, no caso, na não aplicação da jurisprudência fixada, deverá ser ordenado o prosseguimento do recurso.

5 - Reconhecida a oposição, o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (artigo 446.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

Não se vislumbrando qualquer razão para reexame, deverá ser aplicada a jurisprudência fixada.

Os autos tiveram os vistos legais.

Cumpre decidir.

A questão que é colocada ao Supremo Tribunal de Justiça desenvolve-se de uma forma linear e com singular simplicidade. Na verdade:

A fl. 50 dos presentes autos, o magistrado do Ministério Público da 1.ª instância promoveu que a tesoura de bicos que se encontrava apreendida nos autos fosse declarada perdida a favor do Estado (com fundamento em que servira para a prática do crime pelo qual a arguida fora condenada e ofereceria, pelas suas características, sério perigo de poder ser novamente utilizada na prática de crimes - artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal) e, ainda, que fosse desde logo ordenada a respectiva destruição, por termo no processo - artigo 109.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).

Embora com fundamento diverso, já que os invocados na aludida promoção foram indeferidos, o juiz da 1.ª instância acabou por declarar tal bem perdido a favor da Fazenda Nacional, ordenando também a sua destruição. Significa o exposto que a promoção do MP visava exactamente aquilo que veio a ser decidido no referido despacho judicial, mais concretamente a declaração de perdimento a favor do Estado da tesoura em causa e a sua posterior destruição.

Não obstante aquele magistrado, veio, então, defender que o despacho recorrido violara o disposto no artigo 186.º do Código Penal e que deveria ter sido ordenada a notificação da arguida para proceder, no prazo máximo de 90 dias, ao levantamento da referida tesoura, findo o qual passaria a suportar os custos resultantes do depósito e se tal levantamento não fosse efectuado no prazo de um ano a contar dessa notificação deveria, então, declarar-se o respectivo perdimento a favor do Estado, ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.os 1, 2 e 3, do CPP, na redacção da Lei 48/2007, de 29 de Agosto.

Tal recurso veio a ser rejeitado pela decisão sumária ora em análise, ao abrigo do artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por carecer o MP recorrente de legitimidade para interpor tal recurso, «no qual, ao fim e ao cabo, intenta colocar em crise decisão inteiramente concordante com a posição que anteriormente assumiu».

Argumentou a mesma decisão com o exposto por Paulo Pinto de Albuquerque no comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., 2009, em anotação ao artigo 401.º, pp. 1021 a 1023, de que, expressamente, cita alguns excertos e de que se extraem as seguintes conclusões fundamentadoras:

1 - O princípio da lealdade processual impõe-se aos sujeitos e participantes processuais e, por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo e aquele que impugna decisão condenatória em pena ou medida de coacção menos grave do que aquela que requereu.

2 - A ilegitimidade do Ministério Público para recorrer de decisões concordantes com posições anteriores assumidas é imposta pelo princípio de lealdade processual, ínsito ao Estado de direito e à legalidade democrática que compete ao Ministério Público defender.

Nestes dois argumentos se centra a decisão sob recurso.

Sucede, porém, que a questão de saber se o MP tem, ou não, legitimidade, e interesse em agir, para recorrer de decisões concordantes com a sua anterior posição assumida no processo foi objecto do Acórdão para fixação de jurisprudência 5/94, do Pleno do STJ, de 27 de Outubro, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 289, de 16 de Dezembro de 1994, segundo o qual: «Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.» Analisando tal acórdão (1), verifica-se que cada um daqueles fundamentos foi objecto de análise detalhada. Relativamente ao argumento da violação do princípio da lealdade processual (ou da boa fé), nele se afirma, efectivamente, que «a boa fé, o abuso de direito e outros princípios congéneres que têm a sua sede mais própria no direito civil não podem colocar-se relativamente à actuação do Ministério Público em processo penal já que os critérios por que esta magistratura se rege aqui são outros muito diferentes, como se viu, ou sejam, a defesa da legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.

Consequentemente, e como afirma o recorrente, é a própria lei processual que expressamente num caso permite ao Ministério Público o recurso interposto de uma decisão favorável, com base na prossecução de um determinado interesse relevante, pelo que se poderá adiantar que este princípio é passível de ser alargado a todos os casos de interesses relevantes sem que seja posta em causa a boa fé.

Assim, não pode invocar-se a infracção ao princípio da boa fé para justificar a impossibilidade de recurso por parte do Ministério Público de uma decisão que lhe seja favorável, já que tal recurso se poderá basear na defesa dos interesses acima assinalados e o princípio da boa fé não se coloca, nem pode colocar, relativamente à actuação de uma magistratura que está subordinada a princípios em que aquela está naturalmente sempre inerente e implícita.» O mesmo se diga quanto à questão da eventual falta de legitimidade para recorrer nestas situações pois que também ali se afirma que «do confronto dos artigos 48.º a 52.º do Código de Processo Penal não resultava qualquer restrição da legitimidade do Ministério Público para recorrer de decisão que houvesse sido favorável a uma anterior posição».

I - Da admissibilidade de recurso.

A) O primeiro tema que foi equacionado nos presentes autos incidiu sobre a questão da existência dos pressupostos formais do recurso interposto e, concretamente, a relevância da figura da «decisão sumária» com tal propósito. Sobre a mesma teceram-se as seguintes considerações:

Como nos dá notícia Paulo Pinto de Albuquerque (Comentários ao Código de Processo Penal, p. 1204) na versão inicial do CPP, previa-se que o recurso obrigatório do MP de quaisquer decisões proferidas contra a jurisprudência fixada pelo STJ, sendo o recurso sempre admissível. A jurisprudência polemizou em torno da natureza ordinária, ou extraordinária deste recurso, o que tinha consequências práticas diversas em relação ao prazo de interposição do recurso, à determinação do tribunal ad quem e à legitimidade para interposição do recurso.

Discutiu-se quando devia ser interposto este recurso: se no prazo geral de interposição dos recursos ordinários, previsto no artigo 411.º, n.º 1, contado desde a data da notificação da decisão que contrariou a decisão uniformizadora [Acórdão do STJ de 5 de Julho de 2000, e na doutrina, Maia Gonçalves e Simas Santos e Leal Henriques (2)], ou no prazo de 30 dias depois de aquela ter transitado em julgado, por aplicação do prazo de interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência previsto no artigo 438.º, n.º 1, ex vi do artigo 446.º, n.º 2 (Acórdão do STJ de 8 de Junho de 2000).

Tal questão foi objecto de reflexão pela Unidade de Missão para a Reforma de Processo Penal (acta 21) e a solução consagrada em forma de alteração legal - Lei 48/2007 -, dispõe que o recurso da decisão proferida contra jurisprudência fixada é dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça (recurso directo) e interposto no prazo de 30 dias a contar da data do trânsito em julgado da decisão recorrida. Como se refere na exposição de motivos que acompanhou a última proposta de lei de alteração do processo penal: «Em homenagem a um desígnio de economia processual, estabelece-se que o prazo de 30 dias para a interposição de recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada conta a partir do trânsito em julgado da decisão recorrida (artigo 446.º).» Está em causa no caso vertente uma decisão sumária que, eventualmente, colide com jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

A consagração da figura da decisão sumária corresponde a um objectivo estratégico do legislador bem delimitado na referida exposição de motivos, nomeadamente quando refere que com as alterações introduzidas na lei processual penal (Lei 48/2007) o tribunal de recurso passa a funcionar em três níveis. Competirá ao relator convidar a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas pelo recorrente, decidir se deve manter-se o efeito atribuído ao recurso e se há lugar à renovação da prova e apreciar o recurso quando este deva ser rejeitado, exista causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade e a questão a decidir já tenha sido apreciada antes de modo uniforme e reiterado (artigo 417.º-A). Do despacho do relator cabe sempre reclamação para a conferência. A conferência, por seu turno, passa a ter uma composição mais restrita, englobando apenas o presidente da secção, o relator e um vogal, competindo-lhe julgar o recurso quando a decisão do tribunal a quo não constituir decisão final e quando não houver sido requerida a realização de audiência (artigo 419.º). Só nos restantes casos o recurso é julgado em audiência. Com esta repartição de competências racionaliza-se o funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular.

Pretendeu-se, assim, racionalizar a tarefa decisória, resguardando a intervenção do juiz singular para as decisões que se caracterizam pela sua linearidade, ou manifesta simplicidade, e ou se situam numa fase prévia à decisão sobre o objecto essencial do recurso.

Os poderes do relator inscritos na decisão sumária cabiam, anteriormente, à conferência. Neste despacho, que envolve um exame preliminar cuidadoso, pretende-se que seja feito um saneamento do recurso, começando o relator, actuando singularmente e com poderes redobrados, por avaliar se sobre o recurso pode ser proferida decisão sumária, sem a natureza de um acórdão - artigo 97.º, n.º 2 - , que, em caso de rejeição, terá uma conformação muito limitada, como prevê o n.º 2 do artigo 420.º e deverá ser apenas notificada ao defensor e aos mandatários dos sujeitos processuais.

A decisão sumária será proferida se ocorrer alguma das situações a que aludem as alíneas do n.º 6 e não terá lugar se tiver sido requerida a renovação da prova - artigo 412.º, n.º 3, alínea c); ou a audiência - artigo 411.º, n.º 5, observando o requerente os requisitos aí previstos.

Trata-se de condicionalismos extremos, nos quais a linearidade da lógica argumentativa da decisão é manifesta, impeditivos do conhecimento do recurso, ou seja, da entrada no seu âmago, assumindo umas uma feição mais radical, como seja a verificação da extinção do procedimento criminal ou da responsabilidade, desde que tal causa ponha termo ao processo e estando outras a um nível menos profundo, entre elas as que são abrangidas nesse vasto conjunto designado por circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso.

Para um outro nível ficará o outro conjunto que abrange as situações de rejeição.

Finalmente está previsto um quadro em que é possível a decisão sumária, quadro esse com algum interesse jurisprudencial, até pela sua novidade na jurisdição comum, que é o da uniformidade, e persistência da resolução, do tipo de questão que está sob apreciação no recurso. Visa-se aqui a solução para as solicitações de massa em que a mesma questão, que já vem a ser resolvida de modo uniforme, e reiterado, teima em voltar a recurso, quiçá, por razões meramente dilatórias ou por simples desconhecimento do recorrente.

Trata-se de um quadro sem antecedentes, muito derivado da disciplina dos recursos no Tribunal Constitucional.

Delineados os contornos que assume a decisão sumária no sistema de recursos vigentes em processo penal, ponderou-se, então, sobre a circunstância de a mesma deter a qualificação que lhe permite ser considerada como pressuposto do recurso a que alude o artigo 446.º do Código de Processo Penal. Referiu-se, então, que:

No que respeita importa salientar que, contrariamente ao que sucede com o recurso para uniformização de jurisprudência - artigo 437.º do mesmo diploma - em que o pressuposto é a existência de dois acórdãos, no caso de decisão contra a jurisprudência fixada a lei usa a expressão «qualquer decisão». O legislador tem a perfeita noção do diferente significado que assumem as expressões utilizadas, o que aliás é bem patente no artigo 97.º, e não pode deixar de ter o significado de possibilitar uma reacção mais intensa por parte do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente em relação a decisões de qualquer tipo desde que firam o seu papel de orientação da jurisprudência.

A lei não faz qualquer destrinça sobre o tipo de decisão - singular ou colectiva - mas apela tão-somente ao seu conteúdo essencial de violadora da jurisprudência fixada. Na verdade, os efeitos nefastos de uma desobediência a tal jurisprudência apresentam o mesmo grau de nocividade, independentemente da forma como são desencadeados, e, como tal, exigem uma reacção rápida e eficaz, repondo a legalidade.

Nesta conformidade, considerou-se que a figura da «decisão sumária» se integra no conceito de «qualquer decisão» a que se refere o artigo 446.º do Código de Processo Penal como pressuposto do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada.

B) Nos termos do artigo 437.º do Código de Processo Penal, é admissível recurso extraordinário de fixação de jurisprudência quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas.

Como referia Alberto dos Reis (3), justifica-se a existência dos recursos extraordinários de fixação de jurisprudência, nos seguintes termos: «A máxima constitucional - a lei é igual para todos - fica reduzida a fórmula vã se, em consequência da liberdade de interpretação jurisdicional, a casos concretos rigorosamente iguais corresponderem soluções jurídicas antagónicas ou divergentes. O que importa essencialmente, para efeitos práticos, é a actuação concreta da lei e não a sua formulação abstracta.

Sente-se, pois, a necessidade de conciliar o princípio da liberdade de interpretação da lei com o princípio da igualdade da lei perante todos os indivíduos. Quer dizer, reconhece-se a conveniência de tomar providências tendentes a assegurar, quanto possível, a uniformidade da jurisprudência.» É nessa sequência que se suscita a necessidade de, em qualquer dos segmentos em que se decompõe a jurisdição, existir uma uniformidade de perspectiva na solução da mesma questão de direito. E, se tal circunstância assumia uma natural relevância no tempo do Ilustre Professor, hoje as exigências impostas pela evolução das estruturas sociais e económicas tornam imperiosa a existência de tal uniformização.

Não é tão-só uma questão de certeza, e segurança jurídica, atributos de um Estado de direito, mas, também, uma racionalidade imposta pela eficiência e produtividade do sistema judiciário e, no que interessa para o comum dos cidadãos e empresas, a existência de soluções rápidas e com critérios uniformes.

A importância da uniformização dos critérios de direito é enfatizada pela existência de uma pluralidade de soluções de direito incidindo sobre a mesma questão de facto.

O instituto da uniformização de jurisprudência surge nessa sequência tendo como pressuposto lógico, e requisito substancial de admissibilidade, a oposição de acórdãos - apenas a explícita - sobre a mesma questão fundamental de direito. Como refere o mesmo mestre (4): «Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas.» Salienta-se, assim, e realça-se, na esteira de Simas Santos e Leal Henriques, que a oposição susceptível de fazer seguir o recurso em apreço pressupõe os seguintes requisitos: manifestação explícita de julgamento contraditório da mesma questão - versando sobre matéria ou ponto de direito, que não de facto, identidade entre as questões debatidas em ambos os acórdãos, ao aplicarem a mesma legislação a situação idênticas. Esta identidade tanto se pode traduzir, pois, em uma mesma questão ou questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciaram de maneira oposta acerca de qualquer ponto jurídico neles discutido; carácter fundamental da questão em debate; inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação de ambos os acórdãos conflituantes. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados a factos idênticos.

O recurso de fixação de jurisprudência tem, assim, subjacente a existência de uma divergência no equacionar de uma mesma questão de direito.

Na verdade, e recolocando os conceitos, matéria de facto e matéria de direito são questões de alguma dificuldade de destrinça. Sem embargo, o eixo diferenciador foi por diversas vezes apreciado em sede doutrinária e de forma convergente. Assim, para o Prof. Paulo Cunha o critério geral para distinguir a matéria de facto da matéria de direito é o seguinte: há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, há a necessidade de recorrer a uma disposição legal - ainda que se trate de uma simples palavra da lei; há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende de nenhuma norma jurídica. Por outras palavras: deve afirmar-se que é de direito tudo aquilo - todos aqueles pontos - cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais seja qual for a espécie destas. Sempre que se discuta, ou possa discutir, a observância, ou violação, de uma disposição legal estaremos diante de matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto.

E, em nota de pé de página, conclui aquele mestre que: «Note-se que é preciso não confundir isto com o facto de que toda e qualquer averiguação de factos, por mais ajurídica que seja, se realiza por meio de processos regulados e prescritos na lei. Tal circunstância não interessa. Quando dizemos que há matéria de direito sempre que para se chegar a uma solução temos de recorrer a uma disposição legal, referimo-nos apenas às disposições legais que determinam a solução e não às disposições legais que regulam a actividade por meio da qual se chega a uma solução.» Para o Professor Alberto dos Reis, «é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei. Reduzido o problema à sua maior simplicidade a fórmula é esta:

a) É questão de facto determinar o que aconteceu;

b) É questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei do processo.» (5) No caso vertente o Ministério Público veio interpor recurso de decisão contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Concretamente está em causa uma decisão contrária ao teor do Acórdão 5/94, de 27 de Outubro, que decidiu que:

Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.

Assim, o pressuposto do presente recurso, em face do artigo 446.º do Código de Processo Penal, é saber se a decisão agora proferida pelo Tribunal da Relação de Évora contradiz, conflitua, viola aquela que foi a uniformização anteriormente decidida.

Refere a mesma decisão que:

A ilegitimidade do Ministério Público para recorrer de decisões concordantes com posições anteriores assumidas é imposta pelo princípio de lealdade processual, ínsito ao Estado de direito e à legalidade democrática que compete ao Ministério Público defender.

Assim sendo, resulta claro que independentemente dos fundamentos por cada um perfilhados - irrelevantes para a apreciação a levar a cabo nesta sede - a promoção do MP visava exactamente aquilo que veio a ser decidido no despacho judicial.

Daí que resulte patente carecer o MP de legitimidade para o presente recurso, no qual, ao fim e ao cabo, intenta colocar em crise decisão inteiramente concordante com a posição que anteriormente assumiu.

É liminar que estamos exactamente perante a mesma questão de direito, a qual foi objecto de soluções antagónicas nas duas decisões. A solução de direito consagrada no acórdão de uniformização de jurisprudência é frontalmente posta em causa pela decisão recorrida.

Foi exactamente esse o entendimento do Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto na Relação de Évora quando afirma que toda a argumentação em que assenta a decisão sumária sob recurso foi objecto de apreciação pelo acórdão que veio a fixar jurisprudência em sentido inverso, nela se não vislumbrando sombra de qualquer outro argumento susceptível de fundamentar a divergência do Sr. Juiz recorrido, que se limita a afirmá-la.

E, em sede de conclusão, mais afirmou o mesmo Ministério Público nas alegações de que integram interposição de recurso que:

3 - Sucede, porém, que a referida decisão foi proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal da Justiça no Acórdão 5/94, do respectivo Pleno, de 27 de Outubro, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 289, de 16 de Dezembro de 1994, que fixou a seguinte jurisprudência:

«Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.» 4 - Como se pode constatar da análise da respectiva fundamentação e conclusões, toda a argumentação em que assenta a decisão sumária sob recurso foi objecto de apreciação pelo acórdão que veio a fixar jurisprudência em sentido inverso.

Recebido os autos neste Supremo Tribunal pelo Exmo. Sr.

Procurador-Geral-Adjunto, foi emitido parecer referindo que:

Ora, como salienta o Exmo. recorrente, a argumentação expendida no despacho recorrido foi objecto de análise detalhada no Acórdão do Pleno n.º 5/94 (quer no que respeita à violação do princípio de lealdade processual quer quanto à eventual falta de legitimidade para recorrer nestas situações), nada se aditando relativamente ao que dela consta, que, tão, é mencionada (quer a fundamentação quer o próprio acórdão).

Este entendimento contraria claramente a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no referido Acórdão 5/94, de 19 de Outubro.

Proferida decisão preliminar no Supremo Tribunal de Justiça que afirmando a existência de uma evolução na jurisprudência deste Tribunal, colocando em causa os pressupostos da jurisprudência anteriormente fixada, ordenou o sequente prosseguimento dos autos, veio o Ministério Público alterar a posição previamente consignada, afirmando, agora, que:

Tratando-se, efectivamente, de recurso de decisão que não é concordante com a promoção do Ministério Público, que foi indeferida (apesar da afirmação constante da decisão sumária), mas de uma decisão que determinou o destino de objectos não reclamados, não foi ofendida a jurisprudência fixada no Acórdão 5/94, que assentou ter o Ministério Público legitimidade e interesse para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.

(Cremos que seria adequado, ter-se reclamado, na oportunidade, da decisão sumária, suscitando-se especificamente o facto de a decisão recorrida ser a que determinou o perdimento de objecto apreendido, sem cumprimento do formalismo imposto pelo artigo 186.º do Código de Processo Penal, e não a do perdimento do instrumento do crime, deixada cair pelo Ministério Público.) Como se referiu, o recurso extraordinário relativo a decisão proferida contra jurisprudência fixada tem como pressuposto uma decisão que colocou termo à divergência no equacionar de uma mesma questão de direito.

A questão de direito ficou definitivamente resolvida e quando uma outra posterior decisão vier, por alguma forma, a negar, ou contradizer, a solução está justificado o uso do instrumento ora usado. Esta decisão deverá ser apreciada, e valorada se, e na exacta medida, em que propõe uma outra solução diferente para a questão de direito que foi objecto de uniformização.

Ao afirmar-se na decisão recorrida que a ilegitimidade do Ministério Público para recorrer de decisões concordantes com posições anteriores assumidas é imposta pelo princípio de lealdade processual, ínsito ao Estado de direito e à legalidade democrática que compete ao Ministério Público defender. Assim sendo, resulta claro que independentemente dos fundamentos por cada um perfilhados - irrelevantes para a apreciação a levar a cabo nesta sede - a promoção do MP visava exactamente aquilo que veio a ser decidido no despacho judicial, contradiz-se frontalmente a matéria de fixação de jurisprudência.

Não está em causa a forma como a decisão recorrida desenhou os fundamentos que a informaram o que, para ser sindicado, justificaria o uso de outros instrumentos processuais, mas sim saber se a decisão recorrida contraria, ou não, a jurisprudência fixada.

Aí, não existe qualquer dúvida sobre tal contradição.

Aliás, por duas vezes o Ministério Público salientou a sua existência e nela assentou o recurso interposto.

II - Da lealdade processual. - De acordo com o disposto no artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de jurisprudência, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.

Sobre o sentido interpretativo daquela norma, permitimo-nos chamar à colação decisão deste Supremo Tribunal de 26 de Janeiro de 2006 onde se referiu que:

1 - A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do artigo 445.º do CPP).

2 - Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (artigos 97.º, n.º 4, e 374.º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.

3 - Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais judiciais, da jurisprudência fixada pudesse gerar uma «fiscalização difusa» da jurisprudência uniformizada (artigo 446.º, n.º 3, do CPP).

4 - Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia: haver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada» (artigos 446.º, n.º 3, e 447.º, n.º 2, primeira parte do CPP), as únicas razões, pois, que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.

5 - Isso sucederá, v. g. quando:

O tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;

Se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente, A alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.

7 - Mas seguramente não sucederá quando, como infelizmente se tem vindo a constatar suceder com frequência, o tribunal judicial não acata a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a «solução legal».

Na verdade, esta é a posição que se coaduna com a concepção vigente do Supremo Tribunal de Justiça como regulador e uniformizador da jurisprudência nacional, cabendo-lhe essencialmente a função de tribunal de revista (artigo 29.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).

É, pois, o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, isto é, um «tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela relação ou pelo tribunal da 1.ª instância, contribuindo para a uniformização da jurisprudência. Essa uniformização ocorre quer directamente, por via dos assentos, quer indirectamente.» (6).

Pelo facto de estar colocado no mais alto grau da hierarquia judicial, de ser tribunal único, e de ser presumível que a jurisprudência estabelecida pelos seus acórdãos venha a ser adoptada, de futuro, em casos semelhantes, é natural que os tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias se inspirem na interpretação e aplicação que o Supremo for dando aos textos legais.

Como refere Alberto dos Reis: «O que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal e de dever supor-se que o Supremo manterá, de futuro, a sua jurisprudência, em casos semelhantes. Esta força, senão de persuasão, ao menos de supremacia, tenderá a produzir o seguinte resultado prático: os tribunais inferiores, mesmo quando não concordem com a doutrina emitida pelo Supremo, serão levados naturalmente a aceitá-la e a aplicá-la. Podem, certamente, reagir contra ela, quando a considerarem errada; e a cada passo reagem. Mas se o Supremo insistir na sua jurisprudência, se se mantiver fiéis a ela, os tribunais inferiores acabarão por desarmar e por se submeter, certos de que a sua luta será inglória e inútil. A jurisprudência do Supremo acabará por triunfar contra as veleidades de resistência dos tribunais de instância.

Pouco a pouco, por uma lei natural do espírito humano, os juízes dos tribunais inferiores vão-se conformando com as directrizes traçadas pelo Supremo em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Este o mecanismo indirecto que conduz à uniformização da jurisprudência. Mecanismo lento, mas de resultado seguro. A acção deste mecanismo pressupõe a condição já assinalada: que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.» (7) Também Simas Santos se pronuncia sobre a matéria referindo que, «tem assim o Supremo Tribunal de Justiça como função própria e normal corrigir os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pelas instâncias, restabelecendo o império da lei e contribuindo para a uniformização da jurisprudência directamente (por via da jurisprudência fixada) e indirectamente, por via das suas decisões.

Já se viu que é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal nacional e de dever supor-se que o STJ de futuro manterá, em casos semelhantes, a sua jurisprudência, que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial. É que, sendo o mais alto grau da hierarquia judicial e tribunal único, é de esperar que no futuro os seus acórdãos e a jurisprudência que estabeleçam venha a ser adoptada em casos semelhantes, o que torna natural que as instâncias se inspirem na interpretação e aplicação dos textos legais que o STJ for fazendo.

As instâncias, ainda que não concordando com a doutrina emitida pelo Supremo, terão tendência a aceitá-la aplicando-a, independentemente de reagir contra ela num primeiro momento, quando a considerarem errada.

Mantendo o STJ a sua jurisprudência, os restantes tribunais acabarão por se conformar com ela. Mas este mecanismo indirecto e lento de uniformização da jurisprudência pressupõe que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.» (8) Face a tal entendimento uniforme, importa indagar se, no caso vertente, este Supremo Tribunal se deve limitar a aplicar a jurisprudência fixada, e supra-referida, ou se deve proceder ao seu reexame por entender que está ultrapassada. Dito por outras palavras, a questão nuclear que se depara é a de considerar se a jurisprudência constante do Acórdão 5/94, que determinou que «[e]m face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo», mantém validade perante a evolução posterior.

Como primeira referência relativa ao tema em apreço, saliente-se que, em nosso entender, a ultrapassagem dos pressupostos dogmáticos que informaram a fixação de jurisprudência pode advir de dinâmica que tem a sua génese na própria evolução do sistema normativo ou, também, das aquisições que resultaram da evolução doutrinal ou jurisprudencial. Na aplicação da norma, isto é, na «lei em acção», pode-se revelar um distanciamento em relação ao dogmaticamente aceite no passado que deriva não só da alteração legislativa como também da própria análise que, pela doutrina, ou pela jurisprudência, incidiu sobre a mesma.

Assim, aceite que a evolução que consubstancia a desadequação daquela jurisprudência pode consistir numa alteração jurisprudencial, importa agora analisar as premissas que informaram o referido acórdão de fixação.

Fundamentalmente, o mesmo assenta em duas traves mestras relativas, quer à configuração do processo penal num Estado de direito democrático, nomeadamente a valência do princípio da lealdade, quer na configuração processual da actuação do Ministério Público, nomeadamente o interesse em agir quando, como é o caso do venire contra factum proprium, recorre da decisão que lhe é favorável.

Relativamente àquele primeiro item, refere o referido acórdão de fixação de jurisprudência que:

Questão da boa fé.

Um dos argumentos mais impressionantes do ponto de vista da tese de que o Ministério Público não poderia recorrer de decisão que lhe fosse favorável e adoptada por um dos acórdãos em conflito (o recorrido) consistiu em que contraria abertamente os princípios da boa fé que possa ser dada oportunidade de recorrer de uma decisão a quem no processo, tendo adoptado posição com ela conforme, fica em posição de defender o contrário do que sustentara antes. Desta forma, quem obteve uma decisão favorável deve ser considerado sem interesse em contra ela recorrer.

Não se diz no acórdão quais sejam estes princípios da boa fé que possam estar em causa, para além de se entender como ilegítimo o recurso de uma decisão favorável. Portanto, parece nada mais estar em causa. Ora, em primeiro lugar, ocorre salientar que relativamente à actuação de uma magistratura que constitucional e legalmente se pauta pela defesa da legalidade democrática e cuja autonomia se caracteriza pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, não tem qualquer sentido falar-se em infracção dos princípios da boa fé.

Depois, e isto constitui um argumento deveras interessante, é o próprio Código de Processo Penal [artigo 401.º, n.º 1, alínea a)], que afasta implicitamente a infracção do princípio da boa fé, integrado pela possibilidade de o Ministério Público recorrer, de certa maneira contraditoriamente, de uma posição que lhe era favorável. Pois se se admite a legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido, permite-se o recurso em processo penal de uma decisão favorável ao Ministério Público, porque condenatória, embora desfavorável ao arguido. E favorável porque de acordo com a acusação.

Explicando melhor: se se admite um recurso de uma decisão penal é porque fatalmente foi produzida uma acusação contra um determinado arguido.

Havendo recurso, foi porque o arguido foi condenado e se se admite que o Ministério Público recorre no interesse do próprio arguido, na tese do acórdão recorrido, haveria sempre infracção do princípio da boa fé, isto porque se estaria a recorrer de uma decisão favorável ao recorrente, mas que a lei expressamente permite. O interesse do Ministério Público, na óptica do citado acórdão, só poderia coincidir com o interesse da acusação, com o interesse do exercício da acção penal e nunca compatibilizar-se com o interesse do próprio arguido.

Quer isto dizer, por conseguinte, que a boa fé, o abuso de direito e outros princípios congéneres que têm a sua sede mais própria no direito civil não podem colocar-se relativamente à actuação do Ministério Público em processo penal já que os critérios por que esta magistratura se rege aqui são outros muito diferentes, como se viu, ou sejam, a defesa da legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.

Em suma: é a própria lei processual que expressamente num caso permite ao Ministério Público o recurso interposto de uma decisão favorável, com base na prossecução de um determinado interesse relevante, pelo que se poderá adiantar que este princípio é passível de ser alargado a todos os casos de interesses relevantes, sem que seja posta em causa a boa fé.

Desta forma, não pode invocar-se a infracção ao princípio da boa fé para justificar a impossibilidade de recurso por parte do Ministério Público de uma decisão que lhe seja favorável, já que tal recurso se poderá basear na defesa dos interesses acima assinalados e o princípio da boa fé não se coloca, nem pode colocar, relativamente à actuação de uma magistratura que está subordinada a princípios em que aquela está naturalmente sempre inerente e implícita.

Ao pronunciar-se por tal forma a decisão em causa afasta, pelo menos em princípio, a possibilidade de aplicação de regras de boa fé que, também, consubstanciam o princípio da lealdade processual a um dos intervenientes do processo, nomeadamente o Ministério Público. E afasta esgrimindo, também, o argumento de que tais regras pertencem essencialmente ao domínio do direito civil.

Todavia, não foi nesse sentido que evoluiu a jurisprudência deste Supremo Tribunal como se constata da análise do Acórdão de 24 de Setembro de 2003 (9). Refere-se na mesma decisão que entre os princípios estruturantes do processo penal democrático deve salientar-se o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também no artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos - instrumentos internacionais de que Portugal é Parte - e que comanda toda a formulação das garantias inscritas no artigo 32.º da Constituição.

Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de «justo processo» (fair trial; due process), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

O processo equitativo, como «justo processo», supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

Aliás, tal foco na vigência do princípio da lealdade processual no domínio do processo penal está inscrito em diversas decisões deste Supremo Tribunal de Justiça entre as quais:

X - Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um 'trunfo', para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» - cf. Acórdão 429/95 do TC.

XI - Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência.

XII - E não se argumente com razões gongóricas de impossibilidade burocrática, uma vez que, realizada a respectiva diligência, impende sobre o tribunal que efectuou o registo a obrigação de facultar cópia no prazo máximo de oito dias após a realização daquele - artigo 7.º do aludido DL.

XIII - Por último, seria ofensivo do princípio da proporcionalidade o facto de, a pretexto de uma fracção milimétrica da gravação, cuja relevância nem sequer é averiguada, se anular um julgamento realizado com observância de todas as formalidades legais e com a possibilidade do mais amplo exercício dos direitos de defesa e do contraditório.

29 de Abril de 2009.

Processo 77/00.9GAMUR.S1 - 3.ª Secção.

[...] III - Na verdade, consubstanciaria uma afronta ao princípio da lealdade processual admitir que o requerente da revisão apresentasse os factos como novos não obstante ter inteiro conhecimento no momento do julgamento da sua existência. Tal entendimento, que não se sufraga, faria depender a revisão de sentença de um juízo de oportunidade do requerente formulado à revelia de princípios fundamentais como o da verdade material ou da lealdade.

Processo 1077/00.4JFLSB-C.S1 - 3.ª Secção.

[...] III - Há um elemento sistemático de interpretação que não pode ser ignorado a este propósito, e que resulta da redacção do artigo 453.º, n.º 2, do CPP. Por aqui se vê que o legislador não terá querido abrir a porta, com o recurso de revisão, a meras estratégias de defesa, ou dar cobertura a inépcias ou desleixos dos sujeitos processuais. O que teria por consequência a transformação do recurso de revisão, que é um recurso extraordinário, num expediente com risco de banalização, assim se podendo prejudicar o interesse na estabilidade do caso julgado, para além do aceitável, ou facilitar faltas à lealdade processual.

12 de Novembro de 2009.

Processo 228/07.2GAACB-A.S1 - 5.ª Secção.

[...] X - É que, para além da teleologia do processo penal, é o próprio dever de lealdade processual de todos os intervenientes no processo que impõe que a imperfeição seja suscitada por forma a causar o menor dano na tramitação processual e não como último argumento que se mantém resguardado para se utilizar como último recurso caso o resultado final não agrade.

2 de Abril de 2008.

Processo 578/08 - 3.ª Secção.

[...] II - Não há, pois, lacuna nas normas do processo penal. De resto, o CPP prevê expressamente uma situação de má fé processual na alínea c) do artigo 520.º do CPP (denúncia de má fé) e configura outras situações afins (artigos 45.º, n.º 5, 223.º, n.º 6, 456.º, para além do apontado artigo 420.º, n.º 3), o que não permite a afirmação de que há uma lacuna a este respeito no conjunto do processo penal.

VII - Por fim, se o tribunal entender que um advogado não usou de lealdade processual e que deliberadamente actuou com o intuito de obstar o exercício da justiça, nomeadamente, com a invocação dolosa de factos falsos, deve comunicar essa circunstância à Ordem dos Advogados, não para os fins do artigo 459.º do CPC mas para eventual procedimento disciplinar.

20 de Novembro de 2008.

Processo 3708/08 - 5.ª Secção.

[...] X - Sendo de realçar os deveres de diligência e de boa fé processual, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique no final da respectiva audiência, ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência, nem sequer se podendo argumentar com razões gongóricas de impossibilidade burocrática, uma vez que, realizada a respectiva diligência, impende sobre o tribunal que efectuou o registo a obrigação de facultar cópia no prazo máximo de oito dias após a realização daquele - artigo 7.º do mencionado diploma.

XI - É ainda de chamar à colação a eventual ofensa do princípio da proporcionalidade, que tem assento no processo penal, quando, a pretexto de uma fracção milimétrica da gravação, cuja relevância nem sequer é averiguada, se anula um julgamento realizado com observância de todas as formalidades legais e com a possibilidade do mais amplo exercício dos direitos de defesa e do contraditório.

13 de Setembro de 2006.

Processo 1934/06 - 3.ª Secção.

[...] IV - A lealdade e a boa fé na actuação dos sujeitos processuais supõe que a vontade que manifestem em declaração emitida no processo com efeitos prospectivos, unanimemente e com potencialidade para condicionar mutuamente as respectivas posições e actuações processuais, não deva ser posta em causa em momento posterior apenas por que, contingentemente e para além da declaração dos sujeitos processuais, o tribunal, oficiosamente, procedeu de modo a permitir que existissem os elementos que permitiam o exercício do direito que, antes, declararam não pretender exercer.

26 de Janeiro de 2005.

Processo 3785/04 - 3.ª Secção.

[...] IV - A lealdade, a boa fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

3 de Março de 2004.

Processo 4421/03 - 3.ª Secção.

[...] III - É o postulado do princípio elementar de lealdade e colaboração processual informador da disciplina de recursos, além da necessidade de evitar a prática de actos inúteis que a lei proíbe e pune.

20 de Fevereiro de 2003.

Processo 240/03 - 5.ª Secção.

[...] IV - A lealdade, a boa fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

V - O despacho do juiz da 1.ª instância, de 17 de Abril de 2002, que determinou a interrupção do prazo para interpor recurso, situa-se na interpretação do artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, não constituindo um despacho de mero expediente, ou acto que se insira na ordenação do processo segundo a prudente discricionariedade do juiz, pelo que, não tendo sido impugnado, fixou, de modo intraprocessualmente definitivo, a questão que constituiu o seu objecto: o prazo para interpor o recurso não conta enquanto não for disponibilizada a transcrição das gravações.

VI - Sendo assim, o processo justo e leal e a confiança como elementos do princípio do processo equitativo não permitem admitir outra solução que não seja a de que os interessados, que razoavelmente confiaram na interpretação do despacho de 17 de Abril, adquiriram o direito processual a interpor o recurso nos termos que fixou.

24 de Setembro de 2003.

Processo 243/03 - 3.ª Secção.

A constatação da evolução jurisprudencial, consubstanciada nas decisões em apreço, fundamenta a conclusão de que existe aqui uma forma qualitativamente diversa no encarar da mesma questão da vigência do princípio da lealdade, e da boa fé, no domínio do processo penal.

Constata-se, assim, uma diferente perspectiva sobre as coordenadas de aplicação de regras que significam lealdade processual: para o acórdão de fixação de jurisprudência o campo de aplicação, e vocação de aplicação do princípio referido, será o processo civil; para o acórdão citado será, também, o processo penal.

Acompanhamos, e subscrevemos, a lógica argumentativa da decisão por último citada.

Na verdade, princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade [mandato superior do direito processual penal como refere Roxin (10), é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas fundamentais do Estado de direito e do Estado social.

A ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma inegável relevância valores como a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais).

Na verdade, nenhum argumento, ou princípio, poderá ser mobilizado para provocar a erosão do pressuposto fundamental que se consubstancia na exigência de que todos os actores do processo penal tenham a sua actuação procedimental pautada pela finalidade última que é a de realização da justiça, e de procura da verdade material (11). Este objectivo teleológico não se compadece com a realização processual que visa a utilização estratégica do processo como instrumento acrítico e neutro, procurando outras finalidades laterais e, até, em clara oposição com aquela realização e procura.

Do juiz até ao mais anódino interveniente todos são construtores de um processo justo, necessariamente orientado, de forma linear e objectiva, para a procura da verdade (12). Tal princípio, e pressuposto, não admite inscrever no seu perfil a admissibilidade de condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores.

Refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2004 que a lealdade não é uma noção jurídica autónoma mas é sobretudo de natureza essencialmente moral e ética, e traduz uma forma de estar em conformidade com o respeito dos direitos do cidadão e a dignidade da pessoa e da justiça. A lealdade, a boa fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

A procura do processo justo e leal e a confiança como elemento do princípio do processo equitativo derrubam qualquer obstáculo formal e não nos permitem tomar outra decisão que não seja garantir aquela finalidade.

Na verdade, ousamos afirmar que o cumprimento do princípio da lealdade processual revela até que ponto se reflecte no processo a credibilidade de um regime democrático. O mesmo princípio, particularmente em processo penal, é revelador da forma, e condições, sobre as quais se concebem as relações do Estado e o cidadão. A natureza democrática, ou não, de um Estado depende também do estatuto do cidadão face ao poder público, especificamente face à instância de controlo reforçado, que é característica do processo penal, e da forma leal, ou desleal, como é tratado no seu catálogo de direitos e deveres.

O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na recolha de prova, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.

Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de direito (13).

Adquirido como elemento fundamental a incidência do princípio da lealdade em sede de processo penal, a questão que, então, se coloca é a de saber se é admissível, e conforme ao mesmo princípio, que a posição substancial do Ministério Público, e a sua pretensão de uma tutela judicial, sofra oscilações de sinal contrário ao longo do processo, ou seja, que, em momentos distintos se requeiram decisões opostas.

Porém, importa desde já salientar que a resposta a tal questão e os pressupostos em que deve ser encontrada a solução ultrapassam em muito a questão parcial, e redutora, da posição do Ministério Público e das suas contingências. Na verdade, o que verdadeiramente interessa, o que está verdadeiramente em causa, é saber se o princípio da lealdade representa, ou não, um princípio fundamental do processo penal válido convocado para todos os intervenientes.

A resposta frontal do acórdão de fixação de jurisprudência ora em análise é negativa.

Por nós estamos em crer não só numa resposta afirmativa como também que da afirmação da lealdade processual implica uma diferente forma de estar dos sujeitos, e intervenientes, no processo na qual o cumprimento de direitos processuais fundamentais não pode ser o pretexto para o entorpecimento para a duplicidade processual quando não a deslealdade manifesta. (v. g.: O oferecimento de centenas de testemunhas com o propósito de entorpecer a marcha do processo; o requerimento ou expediente meramente dilatório; a intervenção pautada pelo intuito de protelar, quando não de afectar, sem fundamento, e dolosamente, a credibilidade dos restantes interveniente no processo; a tentativa de manipular a opinião pública relativamente ao facto em julgamento de forma a criar um ambiente de pressão; a informação falsa ou parcial sobre o acto processual, etc.).

III - Sobre a jurisprudência fixada. - Recorrendo ao ensinamento de Figueiredo Dias, em recensão crítica ao acórdão de fixação de jurisprudência ora em análise (14), a solução defendida no acórdão de fixação de jurisprudência coloca abertamente o Ministério Público contra a proibição de venire contra factum proprium. Um instituto, este, que, na esclarecedora, e penetrante, lição de Baptista Machado, releva como «concretização do princípio ético-jurídico da boa fé» e se orienta para a «tutela da confiança engendrada na interacção comunicativa». Para além da falta de legitimidade objectiva - por evidente e insanável carência de interesse em agir -, o recurso do Ministério Público fundado numa alteração da concepção jurídica avançada num processo penal surge assim também a descoberto de legitimidade ética. Legitimidade sem a qual a acção de uma magistratura como a do Ministério Público perde toda a legitimação material e toda a justificação e acaba, nesta medida, por revelar-se sistemicamente disfuncional.

Surgem, assim, particularmente apropriadas as palavras de Eberhardt Schmidt, segundo as quais: «Representado pelos órgãos da perseguição penal, o Estado tem de demonstrar face ao arguido a correcção humana e, por isso, aquela superioridade ética por que Radbruch sempre se bateu.» De outra maneira, refere Figueiredo Dias - pudesse o Ministério Público livremente venire contra factum proprium - e ter-se-ia inclusivamente de suportar consequências que a prazo minariam a seriedade da instituição pelo absurdo. Teria de admitir-se, por exemplo, que o Ministério Público pudesse recorrer de decisões que houvessem sido tomadas a seu pedido ou sob seu requerimento.

Em todas estas hipóteses, e naquelas que assumem o mesmo perfil normativo, não tem qualquer sentido esgrimir com princípio da objectividade para legitimar o recurso do Ministério Público quando, em qualquer plano ético-jurídico e funcional, está em crise o interesse processual em agir.

Mas, sendo assim, como compatibilizar a conduta do Ministério Público, requerendo aquilo que anteriormente negou, com o princípio da lealdade ou, por outro lado, com a transparência e objectividade que deve orientar a sua actuação? Na verdade, neste domínio não tem aplicação a frase de Pascal: «Verdade para além dos Pirenéus; mentira aquém», ou seja, a verdade, isto é, a noção que temos da verdade, não flutua entre os diversos momentos do processo ao sabor de visões subjectivas e perspectivas pessoais.

Ainda numa outra dimensão se considera inaceitável a concessão ao Ministério Público de uma legitimidade que se recusa aos restantes sujeitos processuais, quer seja o arguido quer seja o assistente.

Na verdade, novamente na esteira de Figueiredo Dias, a igualdade de armas em processo penal deve ser entendida «quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. O que quer dizer que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada como violadora daquele princípio da igualdade quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária, como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que aquele está assinado ou dos referentes axiológicos que o comandam». (15) (16) (17) Sendo, assim, emerge a questão de saber como conciliar a admissão da possibilidade de duplicidade de pretensão processual do Ministério Público com a simultânea negação da mesma aos restantes sujeitos. Na verdade, ou existe razão válida e lógica para a validade de tal negação, ou a mesma constitui uma inegável afronta ao princípio da igualdade de armas.

Argumenta-se, a respeito, com os superiores interesses cuja prossecução cabe ao Ministério Público.

Na verdade, o artigo 219.º, n.º 1, da CRP atribui ao Ministério Público as funções de representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, de participar na política criminal definida pelos órgãos de soberania, de exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.

No domínio do processo penal, a intervenção do Ministério Público é multifacetada, em função das diferentes fases do processo penal. Na fase do inquérito, de que é o dominus (artigo 263.º do CPP), actua como autoridade judiciária; exerce poderes de decisão e de conformação processual, vinculado, como sempre, aliás, a critérios de legalidade e objectividade (artigo 2.º do EMP), dos quais decorre, naturalmente, o dever de imparcialidade e de objectividade. Nas fases posteriores, da competência do juiz, não tem poderes decisórios; tem, como é costume dizer-se, a posição de parte, enquanto se tomar o conceito num sentido puramente formal, já que o Ministério Público nunca prossegue no processo penal interesses particulares (18). Como órgão de justiça dotado de autonomia nos termos referidos, o CPP, no seu artigo 53.º, reafirma o princípio da objectividade por que deve pautar a sua intervenção: compete-lhe colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito.

Represtinando Figueiredo Dias, o Ministério Público configura uma instituição jurídico-constitucionalmente autónoma, monocrática, una e indivisível, hierarquicamente estruturada, a quem compete, para além de zelar pela observância da legalidade democrática, a titularidade da promoção penal e a realização da pretensão punitiva do Estado, ou seja, a prossecução da satisfação das expectativas comunitárias na validade e vigência efectivas das normas penais. Exactamente por tal motivo, aliado ao dever de legalidade e de objectividade que o Ministério Público assume no processo penal, resulta para ele um estrito dever de lealdade, de fair play do seu comportamento processual, que, refere o mesmo mestre, não se analisa numa qualquer atitude moral geral evanescente, mas se concretiza em exigências muito concretas de forma de actuação (19).

O Ministério Público, que assume, expressamente, em qualquer momento processual, uma posição de direito donde deriva; a inculpabilidade do arguido ou a sua menor culpabilidade, não pode, em momento posterior, modificar essa sua posição, alegando melhor juízo, em desfavor, ainda que só eventual, da posição do arguido.

Poderá argumentar-se que aquele melhor juízo será o que ajuda à descoberta da verdade material e da realização da justiça. Mas, em rigor, consubstancia uma negação dos princípios e valores que devem presidir ao processo penal próprio de um Estado de direito democrático.

Por outro lado, importa considerar que o vínculo existente entre exigência de legalidade, e objectividade, da actuação do Ministério Público e a natureza monocrática, una e indivisível desta magistratura, obriga a considerar a posição de cada representante do Ministério Público em processo penal - feita na sede e nos termos legais e no exercício de competência própria - como a posição definitiva (e, enquanto tal, sem alternativa) do Ministério Público.

Efectivamente, numa magistratura hierárquica, dotada daquelas características, impõe-se que a divergência de posições seja resolvida no interior da organização com recurso aos mecanismos próprios, entre os quais a disciplina hierárquica, e não numa inadmissível, e equívoca, dissonância de opiniões voltada para o exterior que, traduzindo a falta de coerência, contribuem para minar a credibilidade institucional.

As dissonâncias e conflitos eventualmente subsistentes no interior da magistratura só devem ser ultrapassadas através dos meios que a organização hierárquica propicia e entre os quais se inscrevem possibilidades legais expressas como as contidas nos artigos 276.º, n.º 4, e 278.º do Código de Processo Penal. Porém, como refere o mestre citado, nunca no sentido de apagar, neutralizar ou modificar o que a seu tempo foi sustentado como a posição do Ministério Público. E a que a lei atribui o significado unívoco da denegação do interesse em agir (20).

Aliás, adquirida a natureza monocrática da magistratura do Ministério Público, é imperativa a consideração de que as finalidades a que a mesma se propõe só têm razão de ser se pautadas pela rigorosa observância de critérios de legalidade e objectividade. A sua posição no processo penal como um órgão de administração da justiça tem presentes directivas que derivam de forma linear das razões de matriz jurídico-constitucional, como das de índole ordinária, máxime as pertinentes à Lei Orgânica do Ministério Público e as constantes do Código de Processo Penal.

Desta objectividade decorre, de forma inexorável, a inadmissibilidade de pretensões processuais contraditórias que não são uma exigência da procura da verdade material e da justiça mas derivam unicamente da necessidade de afirmação de perspectivas subjectivas.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 446.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, procede-se ao reexame da jurisprudência constante do Acórdão de fixação de jurisprudência 5/94, de 27 de Outubro, decidindo-se, em face da evolução jurisprudencial descrita, que:

«Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.» Consequentemente, improcede o recurso interposto.

Sem custas.

(1) Disponível em www.dgsi.pt - processo 046444, número convencional 8JI994 I 0270464443, de 27 de Outubro de 1994.

(2) Código de Processo Penal Anotado, em, respectivamente, pp. 909 e 1037.

(3) Código de Processo Penal Anotado, vol. vi, pp. 233-234.

(4) Alberto dos Reis, ob. cit., p. 234.

(5) Código de Processo Civil Anotado, vol. iii, pp. 206 e 207.

(6) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vi, p.

(7) Alberto dos Reis, loc. cit., pp. 1-15, cf., também, Karl Larenz, «A importância da jurisprudência para a actividade jurídica prática», in Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª ed., C. Gulbenkian,. 277.

(8) Medida Concreta da Pena, p. 74.

(9) Ref. 8365/2003 - Colectânea de Jurisprudência, n.º 171, t. iii/2003.

(10) Klaus Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 79.

(11) Como refere Figueiredo Dias - Direito Processual Penal, p. 30 - A realização da justiça e a descoberta da verdade material (ou mesmo só da primeira, já que também perante ela surge a descoberta da verdade como mero pressuposto) constituem, por consenso praticamente unânime, finalidade do processo penal. E assim é, por certo, logo no sentido de que o processo penal não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça e de verdade.

(12) Segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 36/04, de 14 de Janeiro, in Diário da República, 2.ª série, n.º 43, de 20 de Fevereiro de 2004, a p. 2916.6 - o que se denomina de fair process é o princípio base da sã convivência social, da transparência e da ética nas relações, relativamente às quais os tribunais e os seus «operadores» - quiçá por maioria de razão - de modo algum se podem considerar como meros espectadores.

(13) Também o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem implica o reconhecimento, a título de garantias não explicitas, de um princípio geral de lealdade processual que constitui fundamento de um processo justo.

A lealdade impõe-se porque é a garantia de aplicação das regras do processo justo como conditio sine qua non da igualdade de armas, noção autónoma em relação às disposições textuais da Convenção, mas considerada como essencial à realização do modelo processual equitativo. A integração da lealdade na noção de equidade e, em particular, da igualdade de armas transforma o princípio geral da lealdade inscrito no artigo 6.º da Convenção num valor supralegislativo com sujeição à jurisdição do TEDHC.

(14) Revista de Legislação de Jurisprudência, ano 126, pp. 332 e seg.

(15) Cf., Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no Novo Código de Processo Penal», Jornadas de Processo Penal, 1988, p. 30.

(16) Confrontar Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2004 (17) Como refere Figueiredo Dias, a «'igualdade' de armas processuais [...] só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. Com a consequência de que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora daquele princípio de igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável, ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado ou dos referentes axiológicos que comandam.».

O princípio da igualdade de armas não significa, pois, uma igualdade lógica ou matemática de «armas» uma vez que a própria lei processual penal atribui à acusação e à defesa armas desiguais. Na verdade, enquanto ao Ministério Público compete defender a legalidade democrática e exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219.º, n.º 1, última parte da CRP), devendo, nesta veste, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade (artigo 53.º, n.º 1, do CPP), o arguido tem o direito ao silêncio, cujo exercício nunca o pode desfavorecer [artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, do mesmo Código]. Por outro lado, enquanto à acusação compete o ónus da prova dos factos incriminadores, o arguido é protegido pela presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) - cf. Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, A Prova do Crime - Meios Legais para a Sua Obtenção, p. 48.

(18) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 14.ª ed., p. 249.

(19) Loc. cit.

(20) Ainda de acordo com Figueiredo Dias (loc. cit.): Aliás, sempre que o ministério público tenha tomado em um processo penal uma posição jurídica que determina, directa ou indirectamente, a inculpabilidade do arguido e essa sua posição venha a merecer a concordância plena do tribunal, o caso configura em toda a linha, para efeito de recurso, uma constelação paradigmática e particularmente impressiva da falta de interesse em agir.

Dir-se-ia mesmo que se o legislador teve no seu horizonte - como não poderia deixar de ter - uma hipótese de falta de interesse em agir do lado do Ministério Público, essa só poderia seguramente ser uma hipótese como a que se descreveu. Com efeito, a conclusão de que, neste caso, não assiste ao Ministério Público o interesse em agir, exigido pelo n.º 2 do artigo 401.º do Código de Processo Penal, decorre linearmente da concorrência de duas ordens de considerações: relativas, em primeiro lugar, ao estatuto do Ministério Público como sujeito do processo penal, e, em segundo lugar, ao sentido material-teleológico e ao alcance normativo da figura do interesse em agir no processo penal.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2010. - José António Henriques dos Santos Cabral (relator) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura (vencido conforme voto junto) - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Jorge Henrique Soares Ramos - Isabel Celeste Alves Pais Martins (acompanhando a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Arménio Sottomayor) - Manuel Joaquim Braz - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar (acompanho a declaração do Sr. Conselheiro Arménio Sottomayor) - António Artur Rodrigues da Costa (vencido quanto aos pressupostos; de acordo com a declaração do Exmo. Conselheiro Arménio Sottomayor) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor (vencido quanto à falta de pressupostos conforme declaração de voto anexa) - Luís António Noronha Nascimento.

Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Raul Eduardo do Vale Raposo Borges.

O Presidente, Luís António Noronha Nascimento.

Declaração de voto

Votei vencido pelas razões que sucintamente passo a expor:

1) No caso jurídico concreto, o MP não terá recorrido de decisão concordante com posição antes por si assumida no processo. A posição que antes pretendera fazer valer integra não apenas a decisão de perdimento de determinado objecto mas também um certo e concreto fundamento legal para esse perdimento, a saber, o artigo 109.º do CPP;

2) Ao declarar o perdimento ao abrigo do n.º 4 do artigo 186.º do CPP, haveria que observar o n.º 3 do preceito, ou seja, a notificação da pessoa a quem o objecto deveria ser restituído para que o pudesse levantar. Se isso não teve lugar, também por essa razão poderá ter ocorrido uma incorrecta aplicação do direito, devendo o MP recorrer da decisão;

3) Porque o facto de lhe caber o exercício da acção penal terá sempre de ser contemporizado, no processo penal, com o dever de defender a legalidade.

Assim o impõe o artigo 219.º, n.º 1, da CR ou a alínea f) do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto do MP. De acordo com este último preceito, o MP deve mesmo «velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis».

Quer dizer que, não é pelo simples facto de o resultado final de uma decisão judicial coincidir com uma pretensão anterior do MP, no processo, que este fica inibido de interpor recurso da decisão. Daí que não possamos concordar com a decisão recorrida, devendo a mesma ser revista. Ora, o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada era um instrumento de que o MP podia lançar mão para se alcançar tal desiderato;

4) No caso jurídico em apreço, os elementos disponíveis não permitem afirmar que tenha havido violação do princípio da boa fé ou da lealdade processual por parte do MP ou então acusá-lo de venire contra factum proprium. Daí que o presente acórdão surja como uma ocasião para alterar a jurisprudência fixada, mas com base em razões que nada têm a ver com a situação vivida no processo.

O acatamento da jurisprudência então fixada levaria à admissão do recurso, mas o que é certo é que essa admissão teria também de impor-se, em face da posição assumida na nova jurisprudência, tal como veio a ser reformada;

5) Com base na factualidade assente e que se não discute, a decisão recorrida fez, a nosso ver, uma menos correcta aplicação do direito ao rejeitar o recurso. Deveria ter sido admitido face à jurisprudência fixada à data, como aliás não poderia deixar de ser admitido, já se disse, perante a jurisprudência tal como foi reformada;

6) No caso jurídico em apreço, o MP não se propôs recorrer de uma decisão que tenha acolhido uma pretensão sua anterior mas também, tendo transitado em julgado a decisão recorrida, ao MP restava o presente recurso extraordinário, para ser reposta a legalidade, que a seu ver tinha sido postergada;

7) E não lhe era minimamente exigível que, suspeitando antecipadamente da opção do STJ pela reforma da jurisprudência fixada, deixando intocada a decisão recorrida, como veio a fazer, se devesse ter precavido antes, com uma reclamação para a conferência, da decisão sumária de rejeição.

Teria pois elaborado acórdão, em que o STJ se limitasse simplesmente a aplicar a jurisprudência já fixada, e reservaria a opção de reforma dessa jurisprudência, se fosse esse o caso, para o recurso de uma decisão que, contrariando jurisprudência fixada, se mostrasse de acordo com a jurisprudência tal como se pretendeu reformar. - José Souto de Moura.

Declaração de voto

Votei vencido pelas seguintes razões:

O Ministério Público interpôs recurso por violação de jurisprudência fixada nos termos do artigo 446.º do Código de Processo Penal, em virtude de não ter sido admitido o recurso que interpusera para a Relação de Évora de decisão que determinara a perda para o Estado de objecto apreendido em processo criminal.

No recurso previsto no mencionado artigo 446.º, o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar jurisprudência fixada ou proceder ao seu reexame se entender que esta se encontra ultrapassada. Este recurso extraordinário requer, porém, particulares exigências e cuidados na análise dos pressupostos de admissibilidade, especialmente quando se trate de reapreciar jurisprudência fixada, face às óbvias razões da certeza, segurança e fiabilidade nas decisões judiciais.

O pressuposto estabelecido no n.º 1 é, por isso, essencial, não podendo depender, nem de simples formalidade tabelar, de qualificação ou «nome» dado pelo recorrente, ou da simples afirmação do juiz, antes exige uma averiguação efectiva, material ou de substância, para determinar se, num caso, se está, ou não, perante uma decisão que efectivamente contrarie a jurisprudência anteriormente fixada. Averiguação que tem de ser autónoma e segundo os critérios objectivos do tribunal ad quem face ao conteúdo e o sentido da decisão recorrida, a tanto não obstando a circunstância de se tratar de decisão transitada em julgado visto o trânsito em julgado da decisão recorrida ser ele próprio também pressuposto do recurso extraordinário.

No caso em apreço, e segundo consta da decisão sumária aqui recorrida, o Ministério Público promoveu, na 1.ª instância, com fundamento no disposto no artigo 109.º do Código Penal, a perda a favor do Estado de uma tesoura de bicos, apreendida nos autos, por ter servido à prática do crime pelo qual a arguida fora condenada e por oferecer sério perigo de poder ser novamente utilizada na prática de crimes, dadas as suas características. Por despacho judicial subsequente, foi a tesoura de bicos declarada perdida a favor da Fazenda Nacional, mas com base no disposto no artigo 14.º do Decreto 12 487, de 14 de Outubro de 1927, com o argumento de que não se provara que a tesoura tivesse servido à prática de qualquer crime e por a arguida, quando ouvida nos autos, haver negado inclusive ser portadora da mesma, e também porque se entendeu que a tesoura em causa, de per si, não pode ser qualificada de perigosa.

O Ministério Público recorreu dessa decisão por considerar que, ao declarar a perda a favor da Fazenda Nacional do objecto apreendido, o despacho judicial não acautelou os interesses da arguida ou de quem devesse ser notificado para reclamar a entrega desse objecto uma vez que nenhum conhecimento tiveram de que o poderiam fazer. Por outro lado, o fundamento legal invocado - artigo 14.º do Decreto 12 487, de 14 de Outubro de 1926 - fora expressamente revogado pelo artigo 5.º da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, sendo substituído pelo artigo 186.º do Código de Processo Penal, que regula a restituição dos objectos apreendidos em processo criminal, norma esta que se apresenta violada pois devia ter sido ordenada a notificação da arguida para proceder, no prazo máximo de 90 dias, ao levantamento do objecto, passando a suportar os custos resultantes do depósito, e só se o levantamento não tivesse lugar dentro de um ano a contar da notificação referida é que seria declarado perdido a favor do Estado.

Atenta a posição e os deveres constitucionais do MP, o seu interesse público em agir não significa apenas obter um (qualquer) resultado mas um determinado desfecho de acordo com um determinado procedimento legal e com aplicação das normas legais adequadas. Com efeito, segundo o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ao Ministério Público compete «representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar», sendo uma das suas competências, nos termos do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15 de Outubro, e que neste aspecto não sofreu qualquer alteração nas revisões legislativas posteriores, «velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis» [artigo 3.º, n.º 1, alínea f)]. É neste enquadramento que tem de ser interpretado o artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que atribui ao Ministério Público legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido.

Por outro lado, dada a fundamentação primária - não o percurso metodológico nem os obiter dicta - que é lei, a norma ou as normas que directamente fundam a decisão integram o núcleo material da decisão, sendo, por isso, também decisão para determinar o interesse em agir em favor da legalidade.

Entendendo que a finalidade promovida pelo Ministério Público fora alcançada pelo despacho, a decisão sumária recorrida fundou-se na falta de legitimidade do Ministério Público para o recurso, citando em abono da posição que assumiu as anotações 1, 2, 4 e 6 ao artigo 401.º do Código de Processo Penal elaboradas por Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário ao Código de Processo Penal.

Ao recorrer no caso em apreço para o Tribunal da Relação de Évora, o Ministério Público não estava, porém, a violar qualquer princípio de lealdade processual ou a venire contra factum proprium, visto que o fundamento que invocara para pedir a declaração de perda do objecto apreendido para o Estado assentava, nos termos do artigo 109.º do Código Penal, na perigosidade do objecto, no risco de poder ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos se restituído à arguida. Não reconhecendo tal perigo, o que deveria ter levado ao indeferimento da promoção, a decisão de 1.ª instância veio a declarar a tesoura de bicos perdida para o Estado, com fundamento em norma revogada. Por outro lado, nem mesmo o preceito do Código de Processo Penal que actualmente regulamenta a entrega de objectos aprendidos (artigo 186.º) foi observado nos procedimentos prévios à possibilidade de declaração de perdimento para o Estado por abandono - restituição dos objectos apreendidos a quem de direito, após notificação para proceder ao seu levantamento.

Não tendo a função jurisdicional sido exercida em conformidade com a lei, ao Ministério Público, por dever de ofício, assistia, portanto, o poder-dever de recorrer, com a legitimidade que o citado preceito do Código de Processo Penal lhe atribui.

Todavia, numa análise mais cuidada, verifica-se que a decisão recorrida não foi proferida contra jurisprudência fixada pois nem expressamente contrariou a jurisprudência fixada nem chegou sequer a entrar no campo em que a jurisprudência fixada teria aplicação. Com efeito, existisse ou não a jurisprudência fixada, seria sempre recorrível uma decisão proferida contra a promoção do Ministério Público, com determinado fundamento legal que contrarie directamente a lei e, mais ainda, se aplica uma lei revogada.

Tal resulta ainda mais claro na demonstração por absurdo: se, no momento prévio de verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário e, em juízo de prognose, se fizesse um exercício de aplicação da nova jurisprudência que a final veio a ser fixada, então, contraditoriamente, teria de ser revogada a decisão pois, pelo seu conteúdo decisório essencial, para além de ter sido proferida «sem lei», que é outra modalidade de «contra lei», contrariava directamente a posição assumida no processo pelo Ministério Público, estando assim reunidos todos os ingredientes do «interesse em agir», com o sentido a que ficou na «nova» jurisprudência.

Deste modo, deveria o recurso extraordinário contra fixação de jurisprudência ter sido rejeitado, em vez de ter prosseguido para reexame da jurisprudência fixada anteriormente pelo Acórdão 5/94, a qual, se precisava de ser revista, deveria ter encontrado um melhor motivo e, sobretudo, legalmente fundado. - Arménio Sottomayor.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2011/01/27/plain-281896.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/281896.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1926-10-14 - Decreto 12487 - Ministério da Justiça e dos Cultos - Direcção Geral da Justiça e dos Cultos - 2.ª Repartição

    Esclarece dúvidas e providencia relativamente à execução do Decreto 11991 de 30 de Julho de 1926, que remodelou vários serviços judiciais - Extingue o tribunal especial criado pela Lei 922 de 30 de Dezembro de 1919.

  • Tem documento Em vigor 1986-10-15 - Lei 47/86 - Assembleia da República

    Aprova a orgânica do Ministério Público.

  • Tem documento Em vigor 1994-12-16 - Acórdão 5/94 - Supremo Tribunal de Justiça

    EM FACE DAS DISPOSIÇÕES CONJUGADAS DOS ARTIGOS 48 A 52 E 401, NUMERO 1, ALÍNEA A), DO CODIGO DE PROCESSO PENAL (APROVADO PELO DECRETO LEI NUMERO 78/87, DE 17 DE FEVEREIRO), E ATENTAS A ORIGEM, NATUREZA E ESTRUTURA, BEM COMO O ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL E LEGAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, TEM ESTE LEGITIMIDADE E INTERESSE PARA RECORRER DE QUAISQUER DECISÕES MESMO QUE LHE SEJAM FAVORÁVEIS E ASSIM CONCORDANTES COM A SUA POSIÇÃO ANTERIORMENTE ASSUMIDA NO PROCESSO. (PROC. NUMERO 46444)

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

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