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Acórdão 128/2010, de 8 de Junho

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Sumário

Decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias [aprovado pelo Decreto-Lei nº 15/2001 de 5 de Julho], na medida em que inclui no seu âmbito incriminatório a figura do administrador de facto de uma sociedade. (Proc. nº 441/09)

Texto do documento

Acórdão 128/2010

Processo 441/09

Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é Recorrente Armindo Henriques David e Recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 25 de Março de 2009.

2 - Por sentença de 28 de Março de 2008, o Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-a-Nova condenou o Recorrente pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível no artigo 105.º, n.os 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).

Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, este Tribunal, pelo acórdão agora recorrido, negou provimento ao mesmo, confirmando a sentença recorrida.

Tendo sido dado como provado que Armindo Henriques David exercia a administração de facto da sociedade XISTRACTOR - Comércio de veículos, S. A., foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, ao abrigo do disposto nos artigos 105.º, n.os 1 e 5, e 6.º do RGIT e 30.º, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP). Da decisão importa reter o seguinte:

"2. O recorrente Armindo David argumenta que o artigo 6.º do RGIT não abrange a responsabilidade dos administradores de facto.

Prescreve tal preceito:

[...]

A disciplina normativa pré-vigente, do RJIFNA, era idêntica.

Segundo o recorrente, só os gerentes e administradores que o sejam pela forma legal ou contratualmente estabelecida, a que por comodidade chamaremos de direito, e não já os que o sejam apenas de facto, podem ser sujeitos activos do crime de abuso de

confiança fiscal.

Trata-se de questão controversa.

Disse, a este respeito, a Relação do Porto, no seu Acórdão de 24 de Março de 2004

(Processo: 0342179):

'Este entendimento da recorrente esbarra com a literalidade do artigo 6.º de ambos os diplomas. Este normativo, artigo 6.º - na senda do artigo 12.º do Código Penal - alarga a responsabilidade penal e consequentemente a punibilidade pela actuação em nome de outrem, quando o agente actuou voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva, mesmo quando o respectivo tipo de crime exija certos elementos que a lei descreve. A formulação legal inculca o contrário do alegado pela recorrente: a lei diz muito claramente, naquele português claro, para militar entender, na impressiva formulação de Antunes Varela, que os crimes de que tratam o RJIFNA e o RGIT, e concretamente os crimes de abuso de confiança contra a segurança social, podem ter como sujeitos activos gerentes de facto, como é o caso da recorrente. Para tanto basta, além do mais que agora irreleva referir, que essas pessoas actuem voluntariamente como se tivessem essas qualificações e como se fossem titulares de órgãos ou representantes da pessoa colectiva ou sociedade.

O legislador, avisado como é e conhecedor de que nesta área as cifras negras são grandes [Cf. Preambulo do Código Penal e Lopes Rocha, A responsabilidade das Pessoas Colectivas, CEJ 1085, pág. 110], no desenho do ilícito típico das condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas, desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto. A vingar a tese da recorrente, como justamente acentua o assistente, certamente se generalizariam as situações de facto destinadas a eximir os agentes de factos delituosos às sanções penais. A informalidade, referida no conhecido relatório Mckinsey, dominaria então a

economia.

A eficaz solução legislativa, ditada por conhecidas e acima referidas razões de política criminal, não viola pois os princípios da legalidade e do estado de direito.'

Concordamos com este entendimento.

No plano não já da responsabilidade individual do administrador de facto, mas antes da imputação à pessoa colectiva e entidade fiscalmente equiparada, julgamos ser dominante na jurisprudência o entendimento de que tal imputação ocorre por infracções praticadas por meros dirigentes ou representantes de facto, posição que teve o assentimento do Tribunal Constitucional, que no seu Acórdão 395/2003 considerou não ser inconstitucional a interpretação do artigo 7.º do RJIFNA segundo a qual a expressão «órgãos ou representantes» incluía os órgãos ou representantes de facto.

Em todo o caso, existem duas questões distintas: a dos critérios de imputação de responsabilidade às pessoas colectivas e equiparadas, que constam do artigo 7.º do RGIT; a questão da responsabilidade dos agentes individuais por factos praticados em nome e no interesse da pessoa colectiva, regulada no artigo 6.º do RGIT - que é a norma correspondente ao artigo 12.º do Código Penal. Nada obriga a que existam soluções simétricas para as duas questões - que são claramente distintas.

O artigo 12.º do Código Penal teve sobretudo em vista alargar a responsabilidade de determinadas pessoas singulares aos crimes próprios ou específicos em que os respectivos elementos típicos se não verificam na pessoa do agente, mas na do representado - tem, por isso, a natureza de uma cláusula de extensão da

responsabilidade penal ou da punibilidade.

A expressão adverbial 'mesmo quando' empregue no n.º 1 do artigo 12.º, significa que há responsabilidade por actuação em nome de outrem também nas hipóteses indicadas

nas respectivas alíneas a) e b) do artigo.

Assim, o artigo 12.º do Código Penal e o artigo 6.º do RGIT definem a responsabilidade penal de quem actua como titular de órgãos, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, nos casos em que, agindo nessa qualidade, a sua acção corresponda a um tipo de crime, mesmo quando o respectivo tipo legal prevê a punição de crime próprio, isto é, crime que exige a verificação de determinados elementos pessoais ou uma actuação no interesse próprio e esses elementos concorram na pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto e não naqueles administradores ou representantes.

Afigura-se-nos que o referido artigo 12.º - a que corresponde o artigo 6.º do RGIT -, no texto resultante da revisão levada a efeito pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, ao delimitar o círculo de sujeitos que agem em nome de outrem que são jurídico-penalmente responsáveis, mediante as expressões actuação «como titular de um órgão de uma pessoa colectiva» e «em representação legal ou voluntária», abrange a actuação de administradores de facto, sendo certo que nem o artigo 12.º, n.º 1, do Código Penal, nem o artigo 2.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro (Delitos económicos), nem o artigo 6.º do RGIT se referem aos órgãos, mas a quem agir

voluntariamente como órgão.

Por outras palavras: seguindo a letra da lei, o artigo 7.º do RGIT, tal como o artigo 3.º do Decreto-Lei 28/84, só responsabilizam as pessoas colectivas pelas infracções praticadas pelos seus órgãos, diferentemente do que acontece no artigo 6.º do RGIT e no artigo 2.º do Decreto-Lei 28/84, em que basta que o agente actue como órgão,

arrogando-se essa qualidade.

Agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas antes exercer um poder correspondente ao do órgão.

O recorrente Armindo David, não sendo administrador «de direito» da sociedade-arguida, exercia, «de facto» essa administração, conjuntamente com o seu co-arguido, conforme resulta da matéria de facto provada.

Ainda que lhe competisse, essencialmente, a área comercial da empresa, a decisão de não entregar o IVA é de ambos os arguidos e ambos co-dirigiam e partilhavam os destinos da sociedade, sendo ambos responsáveis, nos termos dos factos assentes, não se podendo dizer que estivesse fora da sua disponibilidade providenciar, no âmbito da co-administração, para que o IVA fosse entregue.

Havendo co-administração, entre um administrador de direito e um administrador de direito, ainda que estejamos perante um crime omissivo puro ou próprio - como é o crime de abuso de confiança fiscal -, entendemos que nada obsta à co-autoria do ilícito por ambos, posto que ambos exerciam a administração, ainda que repartindo áreas, e ambos co-decidiram a actuação a tomar em termos de cumprimento das obrigações

fiscais em sede de IVA.

Não identificamos que com tal entendimento se origine qualquer contradição dentro do

sistema.

Repare-se que o n.º 5 do artigo 227.º do Código Penal, relativo à insolvência dolosa, que efectivamente menciona «quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva» foi introduzido apenas pela Lei 65/98, de 2 de Setembro.

Antes, o n.º 3 do mesmo artigo já previa a punição do «terceiro que praticar algum dos

factos descritos no n.º 1».

Esse n.º 3 consentia o entendimento de que abrangia a actuação de todas as pessoas singulares que agissem em nome do devedor (com conhecimento e em beneficio deste), pois tais pessoas podiam ser consideradas «terceiros» em relação ao devedor, sendo,

então, a pena especialmente atenuada.

O novo n.º 5 introduzido pela Lei 65/98, de 2 de Setembro, pretendeu, a nosso ver, esclarecer cabalmente a questão, de forma a afastar aquela atenuação da pena nas

situações aí previstas.

Por outro lado, o artigo 8.º, n.º 1, do RGIT, não rege sobre responsabilidade criminal, mas antes sobre responsabilidade civil por substituição, compreendendo-se que a sua redacção contraste com a do n.º 1 do artigo 6.º, que rege sobre responsabilidade

criminal.

Assim interpretados os preceitos legais em apreço, não se identifica, a nosso ver, qualquer inconstitucionalidade do artigo 6.º do RGIT na acepção de que abrange a punição do administrador de facto, designadamente por violação dos princípios da tipicidade e da legalidade criminal (sobre a responsabilidade dos administradores de facto, ver Germano Marques da Silva, Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pp. 234, 243 a 245, 294 e segs.,

especialmente pp. 315 e segs.).

Improcede, pois, a pretendia exclusão da responsabilidade do recorrente Armindo David, com fundamento em ser administrador de facto."

3 - Desta decisão foi interposto o presente recurso para apreciação da conformidade constitucional da norma (ou interpretação da norma) do artigo 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na medida em que esta inclui no seu âmbito incriminatório a figura do "administrador de facto", por desrespeitar "o princípio da segurança jurídica, o da tipicidade e o da legalidade criminal (artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República

Portuguesa)."

4 - Notificado para alegar, o Recorrente concluiu o seguinte:

"I - O recorrente suscitou oportunamente a questão da inconstitucionalidade do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT ao Tribunal da Relação de Coimbra.

II - O Tribunal da Relação de Coimbra veio confirmar a validade da norma impugnada por Acórdão que não admite recurso ordinário.

III - Recorre-se agora ao Tribunal Constitucional com fundamento no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da lei do Tribunal constitucional.

IV - A norma do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT em momento algum menciona a figura do

administrador de facto.

V - Sendo o ordenamento jurídico um todo unitário, resulta óbvio que se o legislador desejasse a punição dos meros 'administradores de facto' pela prática de crimes fiscais, a norma do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT faria referência expressa aos mesmos ou, em alternativa, como se fez no código penal, cada tipo específico em que essa incriminação fosse recomendável incluiria essa menção na sua redacção tal como consta no artigo

227.º, n.º 5 do CP.

VI - Não existe no ordenamento jurídico português a definição do que é que possa ser (ou de que é o que faz) um administrador de facto.

VII - A inclusão jurisprudencial do administrador de facto na previsão da norma do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT deverá ser julgada inconstitucional por configurar um caso de

autêntica analogia incriminatória.

VIII - Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a norma em causa possui um âmbito incriminatório extremamente vago que não permite a delimitação exacta dos casos em que a actuação em nome outrem é relevante para efeitos da prática de crimes

de natureza fiscal.

IX - Ambos cenários ofendem o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático e o princípio da legalidade criminal.

X - Por conseguinte, a punição do 'administrador de facto' consentida pelo artigo 6.º, n.º 1 do RGIT, torna essa disposição legal materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.º 1 da nossa lei fundamental.

XI - Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade parcial da norma constante no artigo 6.º, n.º 1 do RGIT com a consequente projecção dos respectivos efeitos a nível do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, Tribunal que deverá acatar o juízo de inconstitucionalidade expresso reformulando, em conformidade, a decisão proferida."

5 - O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

"1 - Apesar do artigo 6.º do RGIT ter uma redacção idêntica à do artigo 12.º do Código Penal, os elementos de interpretação - independentemente do seu valor - utilizados para a interpretação do referido artigo 12.º, não devem ser acriticamente transpostos para a interpretação daquele artigo 6.º 2 - Na verdade, estando em causa a responsabilidade penal de pessoas colectivas e estando o artigo 6.º do RGIT integrado no direito penal fiscal, estas especificidades implicam a adopção de critérios menos formalistas na interpretação daquela norma.

3 - Neste contexto - e tendo em atenção que o essencial é a "relação material que o representante estabelece com o bem jurídico" que a norma visa proteger -, a extensão da responsabilidade criminal aos "administrados de facto" da sociedade, surge como

algo de lógico e natural.

4 - Dada a natureza da criminalidade em que nos situamos (n.º 2), a interpretação normativa em causa é a adequada às finalidades do sistema punitivo.

5 - A norma objecto de recurso, não viola, pois, nem o artigo 2.º, nem o artigo 29.º, n.º 1 (princípio da legalidade), ambos da Constituição.

6 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

6 - O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, para apreciação do artigo 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na medida em que este inclui no seu âmbito incriminatório a figura do administrador de facto [de

uma sociedade].

O artigo 6.º do RGIT tem a seguinte redacção:

(Actuação em nome de outrem)

1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:

a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do

representado;

b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no

interesse do representado.

2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos

respectivos poderes.

O Recorrente indica como parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, de acordo com o

qual:

Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer pena ou medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

A questão de constitucionalidade posta a este Tribunal é a de saber se o artigo 6.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de a expressão "quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade" abranger o administrador de facto viola ou não um dos corolários do princípio da legalidade em matéria criminal - a proibição do recurso à analogia incriminatória (nullum crimen sine lege stricta).

Trata-se, no caso, à semelhança do que sucedeu nos autos que deram origem aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 395/2003 e 183/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), "da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas", que é por isso mesmo susceptível de controlo por

parte do Tribunal Constitucional.

7 - Atento o teor do acórdão recorrido é de concluir que para o Tribunal da Relação de Coimbra a expressão, constante do artigo 6.º, n.º 1 do RGIT, "quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade" abrange o administrador de facto, bastando "que o agente actue como órgão, arrogando-se essa qualidade. Agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas antes exercer

um poder correspondente ao do órgão."

Em abono deste entendimento estaria a comparação da letra dos artigos 7.º do RGIT e 3.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, com a do artigo 6.º (nos primeiros, responsabilizam-se as pessoas colectivas pelas infracções praticadas pelos seus órgãos;

no segundo, basta que o agente actue como órgão, arrogando-se essa qualidade); a introdução do n.º 5 do artigo 227.º do CP, por via da Lei 65/98, de 2 Setembro; e a irrelevância do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, por este reger sobre "responsabilidade civil por substituição." Da adesão aos fundamentos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Março de 2004 resulta, ainda, que aquele entendimento seria imposto pela letra do artigo 6.º; pelo elemento histórico, na medida em que "no desenho do ilícito típico das condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas o legislador desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto"; e pela justificação político-criminal da

solução.

8 - A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente, se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, se transpõe a barreira da moldura semântica do texto, "criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais e consequentemente privando estas normas da possibilidade de cumprirem a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos" (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/2003). O fundamento e o conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria criminal impõem que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de a interpretação permitida dar lugar à analogia proibida.

9 - Como é sabido, a letra do artigo 7.º do RGIT não tem obstado a que o intérprete lá inclua o representante de facto, apesar de a lei referir as infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas (nesse sentido, pronunciando-se pela conformidade constitucional de tal interpretação, cf. o citado

Acórdão 395/2003).

Enquanto que ali se questionou a imputação das pessoas colectivas por infracções cometidas por administradores de facto, a questão que se coloca agora é precisamente a inversa, importando aferir se, face ao artigo 6.º do RGIT, é admissível a imputação de quem exerceu a administração de facto da sociedade.

10 - O problema da imputação dos gerentes e administradores de facto é discutido na doutrina a propósito do artigo 12.º do CP, que tem a seguinte redacção:

Artigo 12.º

Actuação em nome de outrem

1 - É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou

voluntária de outrem [...]

2 - A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a

aplicação do disposto no número anterior.

10.1 - Através desta norma pretendeu-se "estender a punibilidade dos tipos legais da parte especial, que supõem determinados elementos pessoais ou uma actuação no interesse próprio, também àquelas pessoas em que tais elementos típicos se não verificam (e que portanto não são destinatários próprios ou possíveis da norma incriminadoras), mas que todavia actuaram como órgãos ou representantes de uma pessoa relativamente à qual se verificavam aqueles elementos pessoais ou aquele interesse próprio" (Figueiredo Dias, "Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa", Jornadas de Direito Criminal. O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 51. Cf., ainda, "Introdução" constante do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, ponto 15.).

10.2 - A inclusão dos administradores ou representantes de facto na previsão da norma foi discutida logo na Comissão Revisora do Código Penal, demonstrando as respectivas Actas que "o problema do eventual alargamento do conceito de representação de facto é conhecido do legislador e foi por ele resolvido no sentido de que é necessário que haja um título que confira poderes ao representante, excluindo, deste modo, um conceito de representação que abrangesse a representação de facto."

(cf. Germano Marques da Silva, Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Lisboa, Editorial Verbo, 2009, p. 242).

10.3 - No sentido de que este artigo 12.º do CP não inclui a punibilidade dos administradores de facto, pronuncia-se Pedro Caeiro, sustentando que só assim se compreende a alteração aos crimes falenciais resultante da Lei 65/98, de 2 de Setembro. Desta alteração legislativa resultou a inclusão do então n.º 5 do artigo 227.º do CP [actual n.º 3], correspondentemente aplicável aos artigos 228.º e 229.º [bem como ao artigo 227.º-A], nos termos do qual:

Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.os 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva [...].

Assim, para este autor, "tal inovação só faz sentido se se entender que a actuação dos chamados gerentes e administradores de facto não se encontra coberta pela disposição do artigo 12.º" (cf. "A responsabilidade dos gerentes e administradores por crimes falenciais na insolvência de uma sociedade comercial", Colóquio "Os quinze anos de vigência do Código das Sociedades Comerciais", Coimbra, Fundação Bissaya Barreto, 2001, p. 93. Cf. igualmente, do mesmo autor, a anotação ao artigo 227.º do CP no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra,

Coimbra Editora, 1999, pp. 411-412).

10.4 - Embora não se referindo à situação específica dos administradores ou gerentes de facto, Teresa Serra sustenta uma interpretação deste artigo 12.º do CP focada na posição material que o agente em questão tem relativamente ao bem jurídico, posição essa que lhe permite agredi-lo de modo privilegiado: "A ampliação da autoria realizada pela cláusula de actuação em nome de outrem tem de se fundar em princípios e estruturas próprias do direito penal. [...] [O] centro de gravidade da actuação em nome de outrem não é colocado na relação interna de representação, mas reside correctamente na relação material que o representante estabelece com o bem jurídico.

Assim, não se imputa ao representante nada que lhe seja alheia ou estranho: a sua responsabilidade resulta, única e exclusivamente, de fundamentos que nele próprio concorram material e pessoalmente." (cf. "Actuação em nome de outrem no âmbito empresarial, em especial no exercício de funções parciais. Observações breves", Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp.

608-609).

10.5 - Já Germano Marques da Silva sustenta que "no caso do denominado administrador de facto [...] o intérprete não é chamado a qualquer juízo de integração, simplesmente deve clarificar se a expressão 'age voluntariamente como titular de um órgão' pode compreender ainda o caso de quem pratica efectivamente actos em nome da sociedade embora o acto fonte dos respectivos poderes não seja perfeito ou nem sequer exista segundo o direito privado." (cf. Responsabilidade penal das sociedades...,

cit., p. 316).

Este autor enfatiza igualmente a especial posição dos agentes em causa para a lesão do bem jurídico: "agente destes crimes só pode ser quem tenha o domínio para realizar a conduta típica ou quem infrinja um dever especial requerido pelo tipo, com independência do regime jurídico obrigacional interno (relativo à sociedade) e externo (relativamente a terceiros com quem mantém relações jurídicas)." (ob. cit., p. 317).

Conclui então que a responsabilidade penal dos administradores a que se referem os artigos 12.º do CP e 2.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, "não se limita aos administradores e representantes de direito, mas abrange também os administradores de facto [...]" (ob. cit., pp. 317 e seguintes). Nesse sentido concorrem não só interesses de política criminal como o próprio elemento literal do tipo. Por um lado, a ocorrência frequente de situações em que a nomeação do administrador enferma de vícios jurídicos - designadamente culposos - justifica a não existência de tal lacuna de punibilidade. Por outro lado, o que o tipo exige é a actuação voluntária como órgão. Ora, "agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas exercer um poder correspondente ao do órgão e por essa via lesar o bem jurídico. Trata-se agora de responsabilidade por facto próprio e se o agente voluntariamente viola o bem jurídico, actuando como se fosse efectivamente titular do órgão social, não há razão substantiva, nem formal, para excluir a sua responsabilidade." (cf. ob. cit., p. 319).

10.6 - A propósito dos crimes falenciais, também Maria Fernanda Palma entende ser de prescindir da formalização jurídica da representação, impondo-se, no mínimo, "a aparência de representação ou de actuação como titular de órgão da pessoa colectiva.

A aparência jurídica permitirá, aliás, que meros sócios ou outros agentes que não sejam titulares, do ponto de vista jurídico, dos órgãos da pessoa colectiva, mas o sejam apenas de facto, realizem o tipo." (cf. "Aspectos penais da insolvência e da falência", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, volume XXXVI, n.º 2,

1995, p. 412).

11 - Regressemos ao objecto do presente recurso, focado no artigo 6.º do RGIT.

Sublinhe-se que as considerações expendidas a propósito da interpretação de normas do direito penal clássico não são susceptíveis de uma transposição acrítica para áreas

do direito penal tributário.

11.1 - Neste campo específico da fiscalização judicial da não violação do princípio da tipicidade, o Tribunal Constitucional deve restringir a sua actividade à averiguação da conformidade da interpretação normativa em causa com o alcance semântico do tipo.

A intentio legislatoris apenas releva se e na medida em que alcança correspondência na "letra" da lei. O mesmo se diga relativamente ao elemento sistemático e a considerações de índole teleológica. A certeza e previsibilidade do tipo incriminatório apenas se atém ao conteúdo que é possível extrair directamente do mesmo. A exigência de cognoscibilidade prévia das condutas incriminadas não pode abranger um esforço exegético tal que integre considerações relativas a outros elementos de interpretação jurídica, nomeadamente sistemáticos e históricos, que não os que se relacionem com o conteúdo semântico do ilícito. Não significa isto que tais elementos não são relevantes na interpretação de preceitos criminais. São-no, não só a propósito de formulações de iure condendo mas também enquanto auxiliares da tarefa prévia de averiguação do sentido normativo dos mesmos. Mas, em sede do princípio constitucional da tipicidade criminal, não podem ser apresentados como argumentos decisivos da asserção final que conclua pela violação, ou não, daquele princípio fundamental.

11.2 - Assim, o que interessa apurar é se a expressão Quem agir voluntariamente como titular de um órgão engloba, ou não, os casos dos administradores de facto.

De modo a consagrar a punibilidade de tais administradores, a única obrigação que impende sobre o legislador é a de formular um preceito-tipo que contenha na sua previsão a actividade característica da administração de facto, não se encontrando o mesmo vinculado às construções dogmáticas de outros ramos do direito.

11.3 - Semanticamente, a expressão Quem agir voluntariamente como titular de um órgão apenas impõe a actuação (voluntária) em determinadas vestes (i.e. como titular de um órgão). Não exige nem a detenção de título suficiente nem a validade de tal título. Como realça Germano Marques da Silva, "agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas exercer um poder correspondente ao do órgão e por essa via lesar o bem jurídico." (cf. ob. cit., p. 319, sublinhado adicionado).

Deste modo, a conduta típica apresenta-se apta a integrar, no seu elemento semântico, não só a conduta de quem age nas vestes de titular de um órgão como quem se apresenta nessa aparência, independentemente da inexistência de qualquer ligação funcional formal efectiva ou de eventuais vícios que rodeiam a mesma. O que o tipo exige, de modo a permitir uma imputação integrada nas fronteiras do princípio da tipicidade, é a actuação voluntária como ou enquanto titular do órgão. Esta previsão abrange assim os casos em que, como sucede nos autos, pelo exercício de facto das funções de administração societária é lesado o bem jurídico tutelado. O preenchimento do tipo prescinde, deste modo, de uma qualquer formalização, ainda que incompleta ou irregular, da relação de administração ou gerência societária.

12 - A averiguação da (in)constitucionalidade de interpretações normativas em face do princípio da legalidade criminal na vertente de tipicidade deve focar-se na determinação do alcance semântico do tipo criminal, verificando se a interpretação em causa ultrapassa, ou não, tais fronteiras. O que não se verifica no caso em apreço.

Não se encontrando ultrapassada a "barreira semântica", a interpretação normativa em causa cabe no leque de sentidos que é possível assacar ao preceito. Deste modo, resta concluir pela não verificação da violação princípio da legalidade criminal consagrado no

artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.

III - Decisão

13 - Nestes termos acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional, negar

provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC.

Lisboa, 13 de Abril de 2010. - José Borges Soeiro - Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento do recurso, conforme declaração anexa) - Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração de voto que se anexa) - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido, nos termos da declaração que junto) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso, no essencial, pelas razões constantes, entre muitos outros, dos acórdãos 674/99, 331/2003, 336/2003 e 494/03, entendendo que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa, sobre a qual possam recair os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, a fiscalização de um alegado processo interpretativo que conduziria a uma aplicação de uma norma que, por força do princípio da legalidade penal, ultrapassasse o campo semântico dos conceitos que o legislador penal terá utilizado; ou seja, entendendo que não é constitucionalmente permitido a este Tribunal a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação («extensiva», «analógica» ou «actualista») de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade.

Na sequência, não sendo o alegado processo interpretativo susceptível de ser sindicado por este Tribunal, está o mesmo, então, confrontado com uma norma - assumida como um dado - que, pura e simplesmente, estatui a responsabilidade do administrador de facto. Ora, quanto a uma norma com um tal teor, voto a decisão de não

inconstitucionalidade. - Gil Galvão.

Declaração

Votei vencida por entender que o artigo 6.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, quando interpretado no sentido de a expressão "como titular de um órgão de uma sociedade"

abranger o administrador de facto, é inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

1 - Um Estado de direito (artigo 2.º da CRP) deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin, Strafrecht.

Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre, München, 1992, p.

67). O que supõe que, a par de outros princípios, a intervenção penal seja submetida ao princípio da legalidade (artigo 29.º da CRP), cujo conteúdo essencial, em matéria incriminatória, se traduz em que não pode haver crime que não resulte de lei prévia, escrita, certa e estrita (sobre isto, Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2007, p. 177 e ss.).

No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 conclui-se relativamente a este princípio constitucional, com relevo para a questão de constitucionalidade a decidir,

que:

«Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma "garantia dos cidadãos", uma garantia que a nossa Constituição - ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional - explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).

Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras "entorses" à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.

Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.

O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção "axiológica" de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.

Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos

pelo intérprete contra o arguido.

É o que bem explica Figueiredo Dias (Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., p.

180):

Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de v.

Liszt segundo a qual a lei penal constitui a magna Charta do criminoso.

No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho (Direito Penal, I, Porto 2003, p) 210 s.):

O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal [...].

Responde-se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal.

A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível - uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político - criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)».

A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente, se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, se transpõe a barreira da moldura semântica do texto. Para uma resposta negativa em nada contribui a argumentação do tribunal recorrido.

2 - Como é sabido, a letra do artigo 7.º do RGIT não tem obstado a que o intérprete lá inclua o representante de facto, apesar de a lei referir as infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas (neste sentido, pronunciando-se pela conformidade constitucional de tal interpretação, cf. Acórdão do

Tribunal Constitucional n.º 395/2003).

A circunstância de o legislador, em 1998, ter aditado ao artigo 227.º do CP o n.º 5 (n.º 3 na redacção vigente), nos termos do qual, sem prejuízo do disposto no artigo 12.º do CP, é punível [...] quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva [...], só pode ser entendida no sentido de a actuação dos administradores de facto não se encontrar coberta pelo artigo 12.º do CP (neste sentido, Pedro Caeiro, "A responsabilidade dos gerentes e administradores por crimes falenciais na insolvência de uma sociedade comercial", Colóquio "Os quinze anos de vigência do Código das Sociedades Comerciais", Fundação Bissaya Barreto, 2001, pp. 93 e 96 e s.).

A irrelevância do elemento sistemático retirado do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT só é procedente, nos termos em que é invocada na decisão recorrida, se, de facto, se tratar aqui de norma em matéria de responsabilidade civil, o que é discutível doutrinal e jurisprudencialmente (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; e, ainda, João Matos Viana, "A (in)constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicadas à sociedade" e Germano Marques da Silva, "Responsabilidade subsidiária dos gestores por coimas aplicadas a pessoas colectivas", Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 2, Números 2, p. 199 e ss., e 3, p. 297 e ss.,

respectivamente).

O elemento histórico da interpretação aponta antes no sentido de o legislador não ter desconsiderado a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto. Foi desconsiderada, isso sim, a constituição regular ou irregular da pessoa colectiva, bem como o facto de se tratar de mera associação de facto, mas tal ocorreu por via de referência expressa no artigo 12.º, n.º 1, do CP e 6.º, n.º 1, do RGIT, não se podendo retirar daqui que, então, também se abrange o titular meramente de facto.

Quer uma quer outra disposição legal pressupõem a distinção entre quem é punível por actuação em nome de outrem - no caso, quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade - e a pessoa em nome da qual se actua - no caso, uma sociedade, relativamente à qual se verificam determinados elementos pessoais exigidos pelo tipo legal de crime, praticando o agente o facto no seu próprio interesse -, sendo que somente quanto a este último aspecto há extensão expressa à sociedade irregularmente constituída e à mera associação de facto.

A propósito da justificação político criminal de norma que puna a actuação do administrador de facto em nome de uma sociedade é de reafirmar que o fundamento e o conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria criminal impõem que tal norma - ainda que político-criminalmente justificada - se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de a interpretação permitida dar lugar à analogia proibida. "Em rigor, o princípio da legalidade e o seu corolário da tipicidade sobrepõem-se absolutamente à necessidade político-criminal" (declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma aposta ao Acórdão 395/2003).

3 - O artigo 6.º, n.os 1 e 2, do RGIT estende a punibilidade do abuso de confiança, previsto e punido no artigo 105.º, n.os 1 e 5, do mesmo regime, a quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade, ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.

Destas palavras da lei resulta que a referência à actuação do agente como titular significa que o tipo legal de crime só é preenchido quando o agente pratica a conduta proibida enquanto titular (de direito) de um órgão de uma sociedade. Não quando o agente se faz passar por titular, isto é, quando pratica a conduta proibida como se fosse titular. É este, aliás, o sentido do n.º 2 do artigo 6.º, nos termos do qual é sempre necessário um acto jurídico que seja fonte dos poderes do agente. Ainda que se trate de acto jurídico ineficaz, pois "não se compreenderia que o dever penal estivesse dependente da regularidade jurídico-comercial das deliberações que nomeiam a gerência ou a administração" (Pedro Caeiro, loc. cit., p. 94, a propósito do n.º 2 do

artigo 12.º do CP).

4 - Também a expressão "quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto", constante do n.º 1 do artigo 12.º do CP, é interpretada, embora não de forma unânime, no sentido de que esta disposição legal, "ao referir as pessoas que actuam como titulares...etc., não pretende responsabilizar aqueles que, não o sendo, se fazem passar por tal, mas sim os agentes que praticam as condutas proibidas enquanto titulares..., etc." (Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, 1999, comentário ao artigo 227.º, § 9. Cf, ainda, no mesmo sentido, declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma aposta ao Acórdão 395/2003).

Para além do elemento sistemático, já referido, que se retira do artigo 227.º, n.º 3, do CP na redacção vigente, abonam também no sentido desta interpretação as Actas da Comissão Revisora do Código Penal, de acordo com as quais "o problema do eventual alargamento do conceito de representação até à representação de facto é conhecido do legislador e foi por ele resolvido no sentido de que é necessário que haja um título que confira poderes ao representante, excluindo, deste modo, um conceito alargado de representação que abrangesse a representação de facto" (Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, p. 242, não obstante o defendido na p. 315 e ss.). Embora o n.º 2 do artigo 12.º se reporte expressamente aos casos de representação, a regra que aí se contém oferece um critério interpretativo de acordo com o qual o n.º 1 se refere ao titular (de direito) do órgão da pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ainda que seja ineficaz o acto de que depende a titularidade do órgão (neste

sentido, Pedro Caeiro, loc. cit., p. 94).

Diferentemente da posição que fez vencimento, entendemos que "as considerações expendidas a propósito da interpretação de normas do direito penal clássico" são transponíveis "para áreas do direito penal tributário", com o limite de não ser ultrapassado o sentido possível das palavras da lei. Relativamente à norma em apreciação nos presentes autos, deve até concluir-se que a interpretação no sentido de a expressão "como titular de um órgão de uma sociedade" (artigo 12.º do CP) não abranger o administrador de facto é a que vai ao encontro da letra do n.º 2 do artigo 6.º do RGIT, a qual é mais abrangente do que a do n.º 2 do artigo 12.º do CP.

5 - Entendo, pois, que a interpretação do artigo 6.º, n.º 1, do RGIT no sentido de a expressão "como titular de um órgão de uma sociedade" abranger o administrador de facto, ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, colocando o intérprete no domínio da analogia proibida pelo princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29.º, n.º 1, da CRP). - Maria João Antunes.

Declaração de voto

Votei vencido por entender, em primeiro lugar, que o Tribunal não deveria ter conhecido por recurso. Com efeito, não tendo sido impugnada a norma incriminadora, ou seja, a que consta do artigo 105.º n.os 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001 de 5 de Junho), a verdade é que, isoladamente, do n.º 1 do artigo 6.º deste diploma não é possível, salvo melhor opinião, retirar a norma com o

conteúdo sindicado.

Ultrapassado este obstáculo, votei no sentido da inconstitucionalidade da norma aderindo às razões invocadas no projecto apresentado pela primitiva Relatora, para cuja declaração de voto remeto, com a devida vénia, nesta parte. - Carlos Pamplona

de Oliveira.

203319878

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/06/08/plain-275466.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/275466.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1984-01-20 - Decreto-Lei 28/84 - Ministérios da Justiça, da Saúde, da Agricultura, Florestas e Alimentação, do Comércio e Turismo e da Qualidade de Vida

    Altera o regime em vigor em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1998-09-02 - Lei 65/98 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

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