Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório.
Nos autos de impugnação de aplicação de coima n.º 39/08.8TTBRR, do Tribunal de Trabalho do Barreiro, interpostos pela RTP - Rádio e Televisão de Portugal, S. A., após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença, com a seguinteconclusão:
"a) Declaro ilegal e inconstitucional a norma vertida na alínea e) do n.º 3 do artigo 12.º na versão constante da Declaração de Rectificação 21/2009 de 18 de Março de 2009 e como tal decido não a aplicar ao presente caso;b) Declaro extinto o procedimento contra-ordenacional quanto à prática da contra-ordenação prevista no artigo 671.º do Código de Trabalho anterior à Lei n.º
07/2009 contra a recorrente".
O Ministério Público recorreu desta sentença para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da C.R.P., por nela se ter recusado a aplicação da declaração de rectificação 21/2009, de 18 de Março de 2009, comfundamento na sua inconstitucionalidade.
Apresentou alegações em que concluiu do seguinte modo:"1 - A Lei 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 2/2005, de 24 de Janeiro, n.º 26/2006, de 30 de Junho e n.º 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações aos
2 - Subjacente a tal quadro jurídico está a garantia de que, por meios ínvios, não se alterem diplomas - fora dos requisitos constitucionais e legais.3 - A Declaração de Rectificação 21/2009, ao proceder às "correcções" nos termos em que o fez, "recuperando" matéria contra-ordenacional que deixara de vigorar no ordenamento jurídico por força da Lei 7/2009, viola os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa (artigos 13.º, 29.º,
n.os 1, 3 e 4).
4 - Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do n.º 3 do artigo 12.º do Código do Trabalho na versão constante da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março de 2009, mantendo-se o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais."A recorrida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
"I - Com o Ministério Público se conclui que «[a] Lei 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 2/2005, de 24 de Janeiro, n.º 26/2006, de 30 de Junho e n.º 42/ 2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações aos diplomas legais».
II - Com o Ministério Público se conclui que «subjacente a tal quadro jurídico está a garantia de que, por meios ínvios, não se alterem diplomas - fora dos requisitos
constitucionais e legais».
III - Mais se conclui que uma vez que, a coberto de uma rectificação, se está a alterar a lei, é violado o artigo 161.º, alínea c), da Constituição, sendo certo que o carácter inovador da pretensa rectificação obrigaria a um processo legislativo que não ocorreu, o que conduz à inexistência jurídica do acto de rectificação.IV - Com o Ministério Público se conclui que «[a] Declaração de Rectificação 21/2009, ao proceder a "correcções" nos termos em que o fez, "recuperando" matéria contra-ordenacional que deixara de vigorar no ordenamento jurídico por força da Lei 7/2009, viola os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa (artigos 13.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4)".
V - Com o Ministério Público se conclui que «deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º do Código do Trabalho na versão constante da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março de 2009, mantendo-se o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as
consequências legais».
Fundamentação.
1 - Da delimitação do objecto do recurso.
Na sentença recorrida escreveu-se que se recusava a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade da norma vertida na alínea e) do n.º 3 do artigo 12.º, na versão constante da Declaração de Rectificação 21/2009 de 18 de Março de 2009.Conforme resulta da fundamentação desta sentença, o artigo 12.º ali referido pertence ao Código de Trabalho, na versão dada pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, e a alínea do n.º 3 deste artigo, cuja aplicação se recusou foi a alínea a), resultando a referência à alínea e) de um simples lapso de escrita.
O Ministério Público interpôs recurso desta desaplicação normativa, a qual incide sobre a redacção daquela alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, conferida pela Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março de 2009, e não sobre toda esta Declaração de Rectificação, pelo que importa reduzir o objecto do recurso à norma cuja aplicação
a sentença recorrida efectivamente recusou.
Assim, deve neste recurso ser fiscalizada a constitucionalidade da norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação 21/2009 de 18 de Março de 2009.
2 - Do mérito do recurso.
Nos presentes autos estava em causa a prática pela recorrida de uma contra-ordenação pela violação do disposto nos artigos 273.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1, ambos do Código de Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto.No referido artigo 273.º, n.º 1, dispunha-se que "o empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho". E o artigo 671.º, n.º 1, estatuía que "constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no artigo 273.º, na alínea b) do n.º 1 do artigo 274.º e nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 275.º".
O primeiro dos citados preceitos consagrava um dever do empregador nas relações laborais, enquanto o segundo tipificava como contra-ordenação muito grave a violação
desse dever.
O artigo 12.º, n.º 1, a), da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, revogou a referida Lei 99/2003, tendo, contudo, o n.º 3, do mesmo artigo, excepcionado que "a revogação dos preceitos a seguir referidos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria: a) artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida naactual redacção do Código".
No dia 18 de Março de 2009 foi publicada a Declaração de Rectificação 21/2009, na qual se declarou que a Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009, havia saído com inexactidões que importava rectificar. Assim, e em conformidade com esta declaração de rectificação, e ao que aqui nos interessa, "na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º, "Norma revogatória", onde se lê: "a) artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;"deve ler-se: "a) artigos 272.º a 280.º e 671.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, na parte não referida na actual redacção do Código...".Nos termos da Lei 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a identificação e formulário de diplomas), dispõe o artigo 5.º, o seguinte:
"1 - As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1.ª série do Diário da República e são feitas mediante declaração do órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série.
2 - As declarações de rectificação devem ser publicadas até 60 dias após a publicação
do texto rectificando.
3 - A não observância do prazo previsto no número anterior determina a nulidade doacto de rectificação.
4 - As declarações de rectificação reportam os efeitos à data da entrada em vigor dotexto rectificado."
Se a redacção original da Lei 7/2009 revogava imediatamente a tipificação, como contra-ordenação, da inobservância pelo empregador do dever de assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, constante do Código do Trabalho de 2003, a redacção resultante da rectificação operada com a Declaração 21/2009 diferia essa revogação para momento posterior (quando entrasse em vigor o novo diploma que iria reger essa matéria), mantendo entretanto vigente a punição, como contra-ordenação,da violação daquele dever do empregador.
Conforme resulta do debate parlamentar que antecedeu a aprovação da referida Declaração (vide a acta 84/X148, da Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, acessível em www.parlamento.pt), a mesma visou colmatar um esquecimento do legislador da lei rectificada e não corrigir qualquer lapso material de redacção ou erro na publicação, pelo que se traduziu no preenchimento duma lacuna legislativa involuntária, visando manter a tipificação duma determinada conduta como contra-ordenação após essa tipificação ter sido eliminadapor lapso legislativo.
Na verdade, considerando os efeitos retroactivos das Declarações de Rectificação (artigo 5.º, n.º 4, da Lei 74/98, de 11 de Novembro), verificamos que, no presente caso, a rectificação da redacção da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, da Lei 7/2009, resulta na manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.º, n.º 1, apesar da revogação genérica deste diploma efectuada pelo artigo 12.º, n.º 1, a), da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro.Sendo a segurança jurídica um dos fins do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.), "a actuação dos poderes públicos, incluindo o poder legislativo, deve ser sempre uma actuação antevisível, calculável e mensurável. Num Estado de direito as pessoas devem saber com o que contam. As relações entre o poder e os seus destinatários têm por isso que ser fundadas a partir da ideia segundo a qual o comportamento dos poderes públicos deve ser um comportamento confiável." (Maria Lúcia Amaral, em "A forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional", pág. 178, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
Neste sentido, para que as pessoas devam saber com o que contam, as normas jurídicas não devem, em princípio, ter efeito retroactivo.
Correspondendo a esta ideia, o artigo 29.º, da C.R.P., proíbe que a lei possa qualificar e punir como crime factos passados, impedindo-se, assim, que o poder legislativo do Estado possa atingir de forma arbitrária, abusiva e direccionada a liberdade, a segurança e outros direitos fundamentais dos cidadãos.
Esta proibição estende-se a outros domínios do direito sancionatório, nomeadamente ao direito de mera ordenação social, impondo a não retroactividade das leis que tipifiquem certas condutas como contra-ordenações (vide, neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em "Constituição da República Portuguesa anotada", vol. I,
p. 498, da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
Constituiria uma violação da confiança legítima que as pessoas devem depositar na ordem jurídica a punição como contra-ordenação de comportamentos ocorridosanteriormente à sua tipificação legal.
Ninguém pode agir em conformidade ou de acordo com o direito se este não for atempadamente cognoscível, pelo que uma punição daqueles comportamentos constituiria um abuso intolerável do Estado.Contudo, neste caso, não é esse o efeito retroactivo da norma impugnada.
Ela não determina a punição de conduta ocorrida em época em que a lei não a tipificava como contra-ordenação, uma vez que o acto imputado ao arguido neste processo foi praticado quando o artigo 671.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2003,
estava em vigor.
Ela repõe a punição como contra-ordenação daquela conduta, após o legislador ter afastado o seu sancionamento contra-ordenacional, retroagindo essa reposição ao momento desse afastamento, mantendo, assim, sem qualquer interrupção, tal sanção.Aqui o efeito retroactivo da lei não determina a punição de um facto praticado anteriormente à sua tipificação como contra-ordenação, mas elimina a descontra-ordenação de uma determinada conduta efectivada pelo legislador em data
posterior à prática do facto.
Ora, vigorando em matéria contra-ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável (artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 433/82), em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de descontra-ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei.E este compromisso não pode ser quebrado, apesar do Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contra-ordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático.
Ora, da redacção rectificada da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, da Lei 7/2009, resulta a manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.º, n.º 1, retirando, assim, qualquer efeito à descontra-ordenação operada pela redacção primitiva do referido artigo 12.º, n.º 1 a) e n.º 3, a), o que viola o principio da segurança jurídica, inerente ao modelo de Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da C.R.P.
Por este motivo, deve ser julgado improcedente o recurso, confirmando-se a declaração de inconstitucionalidade da decisão recorrida.
Decisão.
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, da C.R.P., a norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março de2009.
b) E, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade adoptado na decisão recorrida, negando desta forma provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Setembro de 2009. - João Cura Mariano - Benjamim Rodrigues - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos.
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