Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional, I - Relatório 1 - Nestes autos, vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2 - O Município de Lisboa propôs procedimento cautelar comum contra os proprietários de um imóvel, requerendo a emissão de mandado judicial, autorizando o acesso ao imóvel, por parte dos seus funcionários, com o objetivo de fiscalização de operações urbanísticas.
Os aqui recorridos, proprietários do imóvel, deduziram oposição, invocando, nomeadamente, a inconstitucionalidade dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (doravante, designado por RJUE).
Discutida a questão da competência material dos tribunais administrativos, solucionada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que julgou competente a jurisdição administrativa para apreciar o pedido de emissão de mandado judicial, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, recusando a providência requerida.
Tal sentença, datada de 14 de agosto de 2013, fundamentou a solução dada ao caso na recusa de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro, por inconstitucionalidade orgânica.
O tribunal a quo, conhecendo da questão da inconstitucionalidade das normas dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do RJUE, suscitada pelos aqui recorridos, considerou, em síntese, que as normas em análise - prevendo a emissão de mandado judicial para permitir que os funcionários municipais, responsáveis pela fiscalização de operações urbanísticas, ou as empresas privadas habilitadas a efetuar fiscalização de obras, contratadas para o efeito pela câmara municipal, entrem no domicílio sem o consentimento do seu titular - limitam o direito à inviolabilidade do domicílio, plasmado no artigo 34.º, da Constituição da República Portuguesa, afetando, assim, igualmente a reserva da intimidade da vida privada, consagrada no artigo 26.º, do mesmo diploma. Tais normas, porém, - de acordo com o mesmo tribunal - não encontram suporte na autorização legislativa concedida pela Lei 110/99, de 3 de agosto, ao abrigo da qual foi elaborado o Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro.
Na verdade, concluiu o tribunal a quo que a Assembleia da República não autorizou o Governo a legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias, nomeadamente no âmbito de restrições ao direito à inviolabilidade do domicílio, que integra reserva de competência legislativa parlamentar, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Lei Fundamental.
Salienta ainda o mesmo tribunal que a circunstância de o aludido Decreto Lei 555/99 ter sido republicado, em anexo à Lei 60/2007, de 4 de setembro, não significa que o legislador parlamentar tenha feito suas as normas questionadas, como assinala o Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 145/2009.
Finaliza, assim, proferindo um juízo de inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 95.º do RJUE, por incidir sobre matéria compreendida no âmbito da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, sem que esteja legitimada por suporte bastante na autorização legislativa concedida pela Lei 110/99, de 3 de agosto. Em consequência, recusa a aplicação de tal norma e a requerida emissão de mandado judicial.
Acrescenta que igualmente se verifica uma inconstitucionalidade, por insuficiente densificação das condições em que pode ser autorizada a entrada no domicílio das pessoas, sem o seu consentimento, salientando que tal densificação incumbe ao legislador, nos termos do artigo 34.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
3 - Delimitando o objeto do recurso, refere o recorrente que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, da norma do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99, de 16 de outubro (RJUE), que prevê a possibilidade de realização de inspeções aos locais onde se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização nos termos do referido diploma, sem dependência de prévia notificação, embora sem a dispensa de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
4 - Nas alegações apresentadas, conclui o recorrente, nos termos seguintes:
“[...] O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, “nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) e 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 143/85, de 26.11, 85/89, de 1.09 e 13-A/98, de 26.2)”.
[...] Este recurso tem por objeto “a douta sentença [que] recusou a aplicação do artigo 95.º n.º 2 do decretolei [5]55/99, de 16 de [dezembro] (RJUE), no qual se prevê a possibilidade de realização de inspeções aos locais onde se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização nos termos do referido DL, sem dependência de prévia notificação, embora sem a dispensa de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento”. [...] O parâmetro constitucional cuja violação é invocada na decisão recorrida é o plasmado no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.
[...] O direito à inviolabilidade do domicílio, reconhecido no n.º 1, do artigo 34.º, da Constituição da República Portuguesa, é um direito fundamental, catalogável na categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais, acolhido no Capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais), do Título II (Direitos, liberdades e garantias pessoais), da Parte I da Constituição da República Portuguesa.
[...] O n.º 2, do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro, por sua vez, consagra uma restrição a este direito fundamental, limitando o seu âmbito de proteção.
[...] O direito à inviolabilidade do domicílio só pode ser restringido por lei de caráter geral e abstrato, não retroativa, que não diminua a extensão e o alcance essencial do preceito constitucional que o acolhe, apenas nos casos expressamente previstos na Constituição, e contendo-se nos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
[...] A expressa previsão constitucional da restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio encontra-se sediada no n.º 2, do artigo 34.º, da Constituição da República Portuguesa, e é apenas nela que, substantivamente, se pode fundamentar a norma desaplicada, contida no n.º 2, do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro (RJUE), cuja constitucionalidade é, aqui, impugnada.
[...] Porém, no caso vertente, a norma legal desaplicada por inconstitucionalidade não consta de lei da Assembleia da República mas sim de decretolei do Governo, o Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro (RJUE), emitido ao abrigo de autorização da Assembleia da República, emergente da Lei 110/99, de 3 de agosto.
[...] Analisando, por um lado, o conteúdo do artigo 1.º da Lei 110/99, de 3 de agosto, que delimita o objeto da autorização legislativa, e, por outro, as distintas alíneas do artigo 2.º, que enumeram o seu sentido e extensão, apura-se inexistir, nela, qualquer referência à regulação do direito à inviolabilidade do domicílio, designadamente à admissibilidade da imposição de restrições ao seu exercício.
[...] Consequentemente, e em conformidade com a jurisprudência expendida pelo Tribunal Constitucional, relativamente a realidade jurídica paralela, há que concluir, em primeira linha, que o Governo dispôs, em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sem a necessária autorização parlamentar, o que dita, em princípio, um vício de inconstitucionalidade orgânica. [...] Todavia, não basta, para a verificação do vício da inconstitucionalidade orgânica, que o Governo tenha disposto, em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da Repú-blica, sem a necessária autorização parlamentar. É, ainda, necessário, que a sua intervenção normativa tenha sido inovatória relativamente ao estado legislativo anterior.
[...] Ora, no caso vertente, a norma contida no n.º 2 do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro, é inovatória, uma vez que introduziu no ordenamento jurídico um comando normativo, até aí inexistente.
[...] Comprovando-se a inconstitucionalidade orgânica da norma ínsita no n.º 2 do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro, na versão original deste diploma, cabe, igualmente, apurar, se a republicação de tal diploma ordenado pela Lei 60/2007, de 4 de setembro, terá logrado sanar o vício identificado.
[...] Da análise do teor da referida Lei 60/2007, de 4 de setembro, resulta que esta, no que concerne à norma contida no n.º 2 do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro (RJUE), não procedeu a qualquer novação normativa, apurando-se, consequentemente, não ter ocorrido a sanação do vício que feria a referenciada norma.
[...] Por força do exposto, deverá, no nosso entendimento, ser declarada a inconstitucionalidade orgânica da norma contida no n.º 2 do artigo 95.º do Decreto Lei 555/99, de 16 de dezembro, por violação do disposto, conjugadamente, nos artigos 34.º, n.º 2; e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.”
5 - Os recorridos optaram por não juntar alegações. Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos 6 - No requerimento de interposição de recurso, o recorrente identifica o objeto respetivo como correspondendo à apreciação da constitucionalidade da norma, extraível do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99, de 16 de outubro (RJUE), que prevê a possibilidade de realização de inspeções aos locais onde se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização, nos termos do referido diploma, sem dependência de prévia notificação, embora sem a dispensa de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
Invoca o recorrente o vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Lei Fundamental.
Nestes termos, enfatizando essa específica dimensão problemática, poderemos dizer que o objeto da presente fiscalização corresponde à norma, extraída do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99, de 16 de outubro (RJUE), que permite a realização de inspeções ao domicílio de qualquer pessoa, sem o seu consentimento, nos termos e para os efeitos do referido diploma, ainda que sem a dispensa de prévio mandado judicial.
7 - A norma sob fiscalização contende com o direito à inviolabilidade do domicílio, consagrado no artigo 34.º, da Constituição da República Portuguesa.
O conceito de domicílio, pressuposto pela Lei Fundamental, corresponde a uma noção ampla, adequada à proteção reflexa de vários bens jurídicos fundamentais, como a dignidade da pessoa, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e, sobretudo, a garantia da liberdade individual, autodeterminação existencial e garantia da reserva da vida privada (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, p. 539).
Alude-se, a este propósito, à proteção de uma “esfera privada es-pacial”, reportada a locais funcionalmente conotados com a ideia de residência, ou seja, locais em que se pratiquem “atos relacionados com a vida familiar e com a esfera íntima privada” (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, p. 759).
Em consonância com a proteção da referida reserva, “[...] é possível extrair um requisito fundamental para a determinação do conceito de domicílio:
a existência de uma compartimentação espacial suscetível de evitar ou limitar a possibilidade de violações ou entradas” (Idem, ibidem).
Conclui-se, assim, que o conceito de domicílio, para efeito de proteção constitucional, corresponde ao espaço funcionalmente utilizado como habitação humana, ou seja, “aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar” (cf. Acórdão 452/89, disponível em www.tribunalconsti-tucional.pt, sítio da internet onde podem ser encontrados os restantes arestos deste Tribunal, doravante citados. Sobre o conceito de domicílio ver também, entre outros, os Acórdãos n.os 452/89, 507/94, 364/2006, 274/07, 216/2012).
O direito à inviolabilidade do domicílio, inserido no Título II, da Parte I, da Constituição, destinado aos direitos, liberdades e garantias, não consubstancia um direito absoluto ou ilimitado.
A própria Constituição, no n.º 2 do artigo 34.º, admite que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Fica, assim, definida uma autorização constitucional expressa para o estabelecimento de restrições à inviolabilidade do domicílio, que estão sujeitas à reserva de lei - que definirá os seus concretos termos - e ao controlo da autoridade judicial competente.
8 - Por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, é da competência da Assembleia da República legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias, podendo, porém, o Governo ser chamado a exercer tal faculdade, através de competente autorização legislativa.
Nestes termos, conclui-se que qualquer restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio está inserida no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo que a possibilidade de o Governo legislar, sobre essa matéria, está condicionada à existência de lei de autorização que abranja esse específico aspeto, no seu conteúdo.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre o âmbito da lei de autorização que legitimou a emanação do RJUE, a propósito de norma conexa com a que é, presentemente, submetida a apreciação.
De facto, no Acórdão 145/2009 - que julgou inconstitucional a norma do artigo 95.º, n.º 3, do RJUE, na redação anterior ao Decreto-Lei 214-G/2015, de 2 de outubro, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para conceder mandado para entrada de funcionários municipais, no domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, nos termos e para os efeitos da fiscalização prevista em tal diploma - pode ler-se:
“A norma que é objeto do presente recurso insere-se num diploma - o Decreto Lei 555/99 - editado ao abrigo da Lei 110/99, de 3 de agosto, que autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de urbanização e de obras particulares.
[...] Percorridas as alíneas do artigo 2.º da Lei, é de concluir que nenhuma delas constituía credencial parlamentar bastante para o Governo editar norma que atribuísse ao juiz da comarca competência para a concessão de mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam atividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais.
[...] O Governo dispôs, pois, em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sem a necessária autorização parlamentar, o que dita, em princípio, um vício de inconstitucionalidade orgânica (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP).”
Não resulta, nem do artigo 1.º da Lei 110/99, de 3 de agosto, que define o objeto da autorização, nem das várias alíneas do artigo 2.º, que delimitam o seu sentido e extensão, qualquer alusão à admissibilidade de restrições ao direito à inviolabilidade do domicílio, por força da realização de inspeções destinadas a sindicar a conformidade das operações urbanísticas e a prevenção de perigos para a saúde e segurança das pessoas.
Para que se conclua, porém, pela inconstitucionalidade orgânica, por falta de credencial parlamentar para a intervenção legislativa operada pela norma em apreciação, torna-se necessário averiguar se a mesma detém caráter inovatório.
Relativamente a este aspeto, também se pronunciou o Acórdão 145/2009, referindo o seguinte:
“Em princípio, porque é entendimento reiterado deste Tribunal que “para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. Com efeito, o facto de o Governo aprovar atos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente” (Acórdão 211/2007 [...]”.
No caso, constata-se que, anteriormente à entrada em vigor do RJUE, não existia qualquer preceito que regulasse a possibilidade e os termos da restrição a operar no direito à inviolabilidade do domicílio, por força da atividade inspetiva em análise. O que exclui a possibilidade de ter existido uma autorização constante de diploma parlamentar que previamente houvesse habilitado uma tal norma anterior que fosse, agora, meramente repetida no preceito que a suporta (o artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99).
Conclui-se, por isso, que a norma, cuja constitucionalidade se sindica, é inovatória, carecendo, por isso, de específica credencial parlamentar, que não foi concedida pela Lei 110/99, de 3 de agosto, quanto à admissibilidade de restrição ao direito à inviolabilidade do domicílio. Resta saber se se verificara, à data de aplicação da norma, uma sanação do vício de inconstitucionalidade, por força de lei posterior da Assembleia da República, que especificamente reiterasse e fizesse sua norma de conteúdo idêntico à da norma apreciada.
Quanto a este ponto, pronunciou-se o Acórdão 145/2009, mencionando o seguinte:
“O artigo 95.º, n.º 3, do Decreto Lei 555/99 não foi objeto de qualquer alteração ou reprodução por via de lei ou de decretolei au-torizado, nem tãopouco de qualquer proposta ou projeto de alteração que tivesse sido rejeitado em sede parlamentar (os trabalhos preparatórios daqueles diplomas estão disponíveis em www.parlamento.pt), pelo que a norma em apreciação não foi assumida pela Assembleia da República.
Por outro lado, a circunstância de o Decreto Lei 555/99 ter sido republicado em anexo à Lei 60/2007 (cf. artigo 4.º desta lei), não significa [...] que “o legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise”. Neste sentido depõe a “natureza instrumental e não inovadora da republicação”, que apenas visa garantir, de forma fácil e segura, o conhecimento do direito em vigor (cf. David Duarte/Sousa Pinheiro/Lopes Romão/Tiago Duarte, Legística - Perspetivas sobre a conceção e redação de atos normativos, Almedina, 2002, p. 196 e ss., e Blanco de Morais, Manual de Legística. Critérios Científicos e Técnicos para Legislar Melhor, Verbo, 2007, p. 557 e s.); bem como a própria Lei 74/98, de 11 de novembro - Lei da publicação, identificação e formulário dos diplomas (republicada, em anexo, pela Lei 42/2007, de 24 de agosto) -, quando, no artigo 6.º, especifica os casos de republicação integral dos diplomas, em anexo.”
O raciocínio exposto foi corroborado pelo Acórdão 160/2012, quanto à não sanação do vício de inconstitucionalidade orgânica, por força da republicação determinada pelo artigo 4.º da Lei 60/2007, de 4 de setembro, nos seguintes termos:
“Na verdade, a mera republicação de decretolei governamental, sem que seja acompanhada de alteração do(s) preceito(s) anteriormente ferido(s) de inconstitucionalidade orgânica, constitui um mero expediente de técnica legística, que visa facilitar a apreensão do conteúdo normativo dos atos legislativos, sem que signifique uma integral novação de toda e cada uma das normas constantes do diploma republicado. Diferente seria, caso a Lei 60/2007 tivesse procedido a uma revogação global do decretolei em causa, mediante aprovação de um novo texto normativo, ainda que este recuperasse uma parcela significativa das normas anteriormente vigentes. Não foi isso, porém, o que sucedeu.”
Por tudo quanto fica exposto, conclui-se que a norma, extraída do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99, de 16 de outubro (RJUE), na parte em que permite a realização de inspeções ao domicílio de qualquer pessoa, sem o seu consentimento, nos termos e para os efeitos do referido diploma, ainda que sem a dispensa de prévio mandado judicial, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa.
III - Decisão Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa, a norma, extraída do artigo 95.º, n.º 2, do Decreto Lei 555/99, de 16 de outubro (RJUE), que permite a realização de inspeções ao domicílio de qualquer pessoa, sem o seu consentimento, nos termos e para os efeitos do referido diploma, ainda que sem a dispensa de prévio mandado judicial;
b) e, em consequência, julgar improcedente o presente recurso.
Sem custas. Lisboa, 13 de abril de 2016. - Catarina Sarmento e Castro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria Lúcia Amaral.
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