Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos, vindos do 1.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, em que são recorrentes o Ministério Público e o Município de Lisboa e é recorrida IMOEF - Sociedade Mobiliária, S. A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Juízo de 17 de Abrilde 2008.
2 - O tribunal recorrido decidiu não aplicar, porque ferido de inconstitucionalidade orgânica, o artigo 95.º, n.º 3, do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro; declarar o Tribunal incompetente - em razão da matéria - para conhecer da providência requerida pelo Município de Lisboa; e, em consequência, absolver a requerida, IMOEF - Sociedade Mobiliária, S. A., da instância.
É a seguinte a fundamentação da decisão:
«De harmonia com o preceituado no artigo 95.º/l do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, os funcionários municipais incumbidos da fiscalização de obras podem realizar inspecções aos locais sujeitos a fiscalização. Nos termos do n.º 2 da citada norma, tal não dispensa a obtenção de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento. «O mandado previsto no número anterior é concedido pelo juiz da comarca respectiva a pedido do presidente da câmara municipal e segue os termos do procedimento cautelar comum».A pretensão do Requerente deste procedimento cautelar consubstancia-se na emissão de mandado judicial, para permitir que a Câmara Municipal de Lisboa exerça as suas atribuições de fiscalização de obras, uma vez que esta alega que - para tal - existe a necessidade de entrar no prédio dos autos, que é propriedade privada.
A actividade camarária referida, inserida na regulação do urbanismo, integra-se na ordenação geral da vida colectiva, com vista a assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no território, mesmo que sem meios de coerção. Estes poderes são poderes administrativos das autarquias locais, ao abrigo dos quais estas praticam actos administrativos - actos jurídicos unilaterais, para produzir efeitos jurídicos numa situação individual, no caso concreto (acórdão 579/95 do Tribunal Constitucional, citado no acórdão 229/2007, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, II, n.º 99, de 23 de Maio de 2007).
São da competência dos Tribunais judiciais apenas as matérias que a lei não atribua a outra ordem jurisdicional (artigo 66.º do Código de Processo Civil e artigo 18.º/1 da
Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).
Da análise da lei de autorização legislativa - Lei 110/99, de 3 de Agosto - resulta que é concedida ao Governo, pelo Parlamento, autorização para prever, em matéria de garantias dos particulares, a possibilidade de recurso a intimação judicial para a prática de acto legalmente devido [artigo 2.º, alínea t)]; e ainda para cometer competências em razão da matéria e do território aos tribunais judiciais para conhecer das acções, bem como disciplinar a sua tramitação, em que se requeira autorização judicial para a promoção directa da execução das obras de urbanização, nos casos em que as mesmas não sejam realizadas pelos loteadores, nem pelas câmaras municipais [alíneax)].
Na alínea x) não vem contemplada a hipótese dos autos, uma vez que vem contemplada a atribuição de competência para conhecer de acções, e ainda porque se refere directamente a promoção da execução das obras de urbanização, quando estas não sejam executadas pelos loteadores, nem pelas autarquias.Na situação da citada alínea t) são referidas as garantias dos particulares, e outorga-se ao Governo competência para prever a possibilidade de recurso a intimação judicial para a prática de acto legalmente devido. Ainda que a situação em apreço possa ser assimilada à do n.º 3 do artigo 95.º do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, a garantia a que se refere a autorização legislativa está plasmada no n.º 2 do artigo 95.º citado - a necessidade de mandado judicial - , sendo certo que o conteúdo do n.º 3, embora reportado à garantia dos particulares, exorbita este domínio, porque confere a competência material para concessão do referido mandado.
A hipótese aqui configurada não pode ser olhada como uma situação do Direito privado, tendo que ver com a prossecução do interesse público e a eventual necessidade do sacrifício de determinados interesses particulares, em nome do bem comum. As competências a que se refere o n.º 1 do artigo 95.º citado são, assim, claro exercício de poderes públicos (função administrativa integrante do poder autárquico).
Verificado este pressuposto, e sendo os actos em questão actos de gestão pública, concluir-se-á com algum grau de certeza que o salto lógico dado pelo n.º 3 do artigo 95.º do diploma citado não está contemplado pela autorização legislativa, sendo a solução encontrada nessa norma divergente da que resulta dos critérios gerais (da contraposição gestão privada - gestão pública), o que intensifica a necessidade de
autorização expressa para legislar.
Diz o requerente que não se discute neste acto a legalidade do acto administrativo, mas apenas o meio de efectivação da fiscalização das «obras ilegais». Entendemos que tem razão, neste aspecto, mas haverá que ponderar as consequências práticas e jurídicas daposição do requerente.
Assim, remetendo o n.º 3 do artigo 95.º do diploma em apreço para o procedimento cautelar comum, os Tribunais judiciais seriam também os competentes para a acção (definitiva), nos termos do artigo 383.º/1 do Código de Processo Civil, que aqui só poderia ser vista como o recurso contencioso da decisão administrativa final. Ora esta «acção definitiva» pertenceria claramente à jurisdição administrativa, nunca aosTribunais comuns.
Consabidamente, a reserva de lei integra a competência material dos Tribunais. A norma do n.º 3 do artigo 95.º do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, é organicamente inconstitucional, por estar inserida num decreto-lei editado pelo Governo, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, sem a autorização legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 1 68.º/1,alínea q), da Constituição.
A consequência adjectiva da incompetência em razão da matéria, nos termos do n.º 1 do artigo 105.º do Código de Processo Civil, e ultrapassada a fase liminar, é aabsolvição da instância do demandado».
3 - Notificado para alegar, o Ministério Público concluiu nestes termos:
«1.º
A matéria da organização e competência dos tribunais situa-se no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que só é possível dispor inovatoriamente sobre tal tema quando o Governo se haja munido da indispensável autorização legislativa, cujo sentido e extensão o habilitem a legislar específica e directamente sobre o tema da competência dos tribunais.
2.º
A norma constante do artigo 95.º, n.º 3, do Decreto-Lei 555/99, de 16/12, ao atribuir competência ao foro cível para a decisão jurisdicional que legitime os serviços inspectivos da autarquia a entrarem coercivamente nos edifícios ou fracções onde decorram obras presumivelmente ilegais, com vista à preparação do acto administrativo que, no exercício das funções autárquicas no âmbito do urbanismo, reponha a legalidade violada - não encontrando suporte bastante na respectiva autorização legislativa - padece de inconstitucionalidade orgânico-formal.
3.º
Tal vício não pode considerar-se sanado ou precludido pela simples circunstância de um diploma legal - ulteriormente editado sobre a matéria do regime de urbanização e edificação, com a forma de lei - ter procedido à republicação do texto do Decreto-Lei 559/99, com as posteriores alterações, não tendo estas qualquer conexão com o problema de competência material solucionado pela norma desaplicada4.º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado peladecisão recorrida».
4 - Notificado para alegar, o Município de Lisboa concluiu da forma seguinte:«I - O Recorrente peticionou a emissão de mandado judicial para entrada no imóvel dos autos, com o propósito de fiscalizar as obras em curso sem licença municipal, ao abrigo das disposições conjugadas dos n.os 2 e 3 do artigo 95.º do R.J.U.E. e dos
artigos 381.º e seguintes do C.P.C.;
II - Nos termos conjugados no disposto nos artigos 211.º n.º1 e 212.º n.º 3 da C.R.P., os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, sendo da competência dos Tribunais Administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto a apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicasadministrativas e fiscais;
III - A situação em apreço não se subsume no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que se conclui pela competência residual dos tribunaiscomuns;
IV - São competentes para conhecer dos pedidos de emissão de mandado judicial os tribunais judiciais, nos termos dos artigos 62.º, 64.º e 65.º da L.F.O.T.J. - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2006;V - Não se discute nos presentes autos a legalidade ou oportunidade da acção fiscalizadora que a lei comete às autarquias mas tão só o meio para a efectivar, que no caso dos autos corresponde à autorização judicial peticionada no requerimento inicial;
VI - O artigo 95.º, n.º 3, do R.J.U.E. não padece de inconstitucionalidade orgânica por não interferir com o sistema de repartição das competências dos Tribunais, antes constitui mais um exemplo do princípio constitucional da Reserva do Juiz;
Ainda que assim se não entenda,
VII - O artigo 95, n.º 3, do D.L. n.º 555/99, de 16 de Dezembro, que a reforma levada a cabo pelo D.L. n.º 177/2001, de 04 de Junho deixou inalterada, consta actualmente do novo R.J.U.E., em vigor pela redacção introduzida pela Lei n.º60/2007, de 04 de Setembro;
VIII - A referida norma, ora reproduzida pela Lei 60/2007, é, mutatis mutandis, a mesma que vigorou desde 1999, permanecendo igualmente inalterados a letra, oespírito e a sua inserção sistemática;
IX - O legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise, ao reproduzi-la nos precisos termos em que já vigorava no ordenamento jurídico, ocorrendo por essa via uma sanação da eventual inconstitucionalidade orgânica de que pudesse padecer;X - A douta sentença incorreu numa interpretação errónea ao emitir um juízo de desvalor constitucional sobre a norma constante do artigo 95.º, n.º 3, do R.J.U.E., o qual, foi maxime sanado por força da Lei 60/2007, de 04 de Setembro».
5 - Notificada, a recorrida contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade orgânica
da norma questionada.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1 - A decisão recorrida recusou a aplicação do artigo 95.º, n.º 3, do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro - Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O artigo 95.º tem a seguinte redacção:
«Artigo 95.º
Inspecções
1 - Os funcionários municipais responsáveis pela fiscalização de obras ou as empresas privadas a que se refere o n.º 5 do artigo anterior podem realizar inspecções aos locais onde se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização nos termos do presente diploma, sem dependência de prévia notificação.2 - O disposto no número anterior não dispensa a obtenção de prévio mandado judicial para a entrada no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento.
3 - O mandado previsto no número anterior é concedido pelo juiz da comarca respectiva a pedido do presidente da câmara municipal e segue os termos do procedimento cautelar comum» (itálico aditado).» A decisão recorrida recusou a aplicação do n.º 3 deste artigo, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para conceder mandado para a entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais, por falta de autorização legislativa da Assembleia da República. Segundo a mesma decisão, o n.º 3 do artigo 95.º "não está contemplado" nas alíneas t) e x) do artigo 2.º da Lei 110/99, de 3 de Agosto, lei ao abrigo da qual foi editado o diploma onde se insere a norma que é objecto do
presente recurso.
Com relevo para a decisão importa transcrever da Lei 110/99 o seguinte:
Objecto
É concedida ao Governo autorização para legislar em matéria da competência dos órgãos das autarquias locais e dos tribunais, de definição e regime dos bens do domínio público e do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social no âmbito do regime jurídico das operações de loteamento, das obras de urbanização, das obras particulares e da utilização de edifícios, bem como a estabelecer um adequado regimesancionatório.
Artigo 2.º
Sentido e extensão
A legislação a estabelecer pelo Governo nos termos do artigo anterior terá os seguintessentido e extensão:
(...)
t) Prever, em matéria de garantias dos particulares, a possibilidade de recurso a intimação judicial para a prática de acto legalmente devido;
(...)
x) Cometer competências em razão da matéria e do território aos tribunais judiciais para conhecer das acções, bem como disciplinar a sua tramitação, em que se requeira autorização judicial para a promoção directa da execução das obras de urbanização, nos casos em que as mesmas não sejam realizadas nem pelos loteadores, nem pelascâmaras municipais;
(...)».
A questão de constitucionalidade que importa apreciar e decidir é então a de saber se o Governo, ao editar o n.º 3 do artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, atribuindo ao juiz da comarca competência para conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais, invadiu a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP, na numeração vigente à data da emissão do diplomaque contém aquele regime).
2 - De acordo com o então estabelecido na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, cuja redacção se manteve desde a Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, era da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a competência dos tribunais, salvo autorização ao Governo. O Tribunal Constitucional tem vindo a entender, de forma reiterada, que esta reserva de competência legislativa da Assembleia da República abrange toda a matéria relativa à competência dos tribunais, o que inclui, nomeadamente, a definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a daquelas cujo conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais (cf., entre outros, Acórdãos n.º s 36/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Março de 1987, 476/98, 211/2007 e 218/2007, disponíveis emwww.tribunalconstitucional.pt).
Por conseguinte, a norma em apreciação, na medida em que atribui ao juiz da comarca competência para a concessão de mandado para entrada em domicílio onde se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização municipal, só podia constar, em princípio, de lei ou de decreto-lei autorizado.3 - A norma que é objecto do presente recurso insere-se num diploma - o Decreto-Lei 555/99 - editado ao abrigo da Lei 110/99, de 3 de Agosto, que autorizou o Governo a legislar, no âmbito do desenvolvimento da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo, em matéria de atribuições das autarquias locais no que respeita ao regime de licenciamento municipal de loteamentos urbanos e obras de
urbanização e de obras particulares.
Foi concedida autorização ao Governo para legislar em matéria da competência dos tribunais (artigo 1.º). Ponto é que o sentido e a extensão da autorização (artigo 2.º) comportem a norma cuja apreciação foi requerida.Percorridas as alíneas do artigo 2.º da Lei, é de concluir que nenhuma delas constituía credencial parlamentar bastante para o Governo editar norma que atribuísse ao juiz da comarca competência para a concessão de mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais. Como bem nota o Ministério Público, as únicas normas da Lei 110/99 que se referem à adopção de medidas legislativas em matéria da competência dos tribunais - as mesmas que são destacadas na decisão recorrida - "são absolutamente estranhas à questão dirimida pelo n.º 3 do artigo 95.º do Decreto-Lei 555/99, por se reportarem a causas perfeitamente distintas do procedimento cautelar a que os autos se referem; assim, a alínea x) do n.º 2 reporta-se à acção visando a promoção de obras de urbanização, não devidamente executadas; e a alínea f) do mesmo preceito legal refere-se à intimação judicial para a prática de acto legalmente devido, na óptica da efectivação das garantias dos particulares no confronto com a Administração, ou seja em que a Administração figura como requerida pretendendo o particular a prática por esta de acto legalmente devido".
O Governo dispôs, pois, em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sem a necessária autorização parlamentar, o que dita, em princípio, um vício de inconstitucionalidade orgânica (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da
CRP).
4 - Em princípio, porque é entendimento reiterado deste Tribunal que "para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. Com efeito, o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente" (Acórdão 211/2007, onde se conclui que a norma em apreciação não era inovadora. No mesmo sentido, cf. Acórdãos n.º s 579/95 e 229/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, que concluíram pelo carácter inovador das normas cuja constitucionalidade era questionada, por referência ao "sistema geral de repartição de competências vigente", resultante de normas de direito ordinário - do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho, e do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, respectivamente).Importa, por isso, averiguar se a norma que é objecto de apreciação criou ou não um ordenamento diverso do então vigente. Se se trata ou não de norma inovadora em
matéria de competência dos tribunais.
5 - Anteriormente à entrada em vigor do n.º 3 do artigo 95.º do Decreto-Lei 555/99 não havia qualquer preceito de direito ordinário que atribuísse a determinada jurisdição competência para conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais. Nomeadamente não constava do Decreto-Lei 445/95, de 20 Novembro, revogado por aquele diploma, qualquernorma com este teor.
Estando em causa o exercício de função administrativa integrante do poder das autarquias locais, na ausência de previsão legal expressa e face ao disposto no artigo 212.º, n.º 3, da CRP tal competência cabia aos tribunais administrativos (no sentido desta conclusão, Vieira de Andrade, A justiça administrativa (Lições), Almedina, 2007, p. 103 e ss., Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, TomoIII, anotação ao artigo 212.º, ponto IV).
Com relevo para esta conclusão, lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º218/2007 que:
«(...) a par da possibilidade de o legislador ordinário atribuir pontualmente a tribunais não administrativos o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, desde que tais "desvios" se mostrem providos de fundamento material razoável e desde que, pelo seu número ou importância, não esvaziem do seu âmago essencial a competência dos tribunais administrativos [entendimento este que tem sido adoptado pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.os 746/96, 965/96, 347/97, 253/98 e 458/99], resulta da revisão constitucional de 1989 que a jurisdição administrativa passou a ser a jurisdição "comum" para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas: assim, enquanto anteriormente, nos casos em que não resultava expressamente da lei qual a jurisdição competente para decidir determinada causa, se entendia que eram competentes os "tribunais judiciais", depois da revisão constitucional de 1989, não existindo norma legal a definir concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a natureza da relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que possui natureza administrativa, então impõe-se o reconhecimento de que competente é a jurisdição administrativa, como jurisdição "comum" para a apreciação dos litígios emergentes de relaçõesjurídicas administrativas.
Reiterando a formulação de José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 8.ª edição, Coimbra, 2006, p. 114), o artigo 212.º, n.º 3, da CRP serve ainda para delimitar o sentido da parte final do n.º 1 do artigo 211.º da CRP ("os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais"), continuado no artigo 66.º do Código de Processo Civil ("São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional"), que atribui aos tribunais judiciais uma competência jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa passa a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente atribuída a nenhuma jurisdição. É esta também a posição de Sérvulo Correia (Direito do Contencioso Administrativo, I vol., Lisboa, 2005, p. 586), que (...) sublinha que "a Constituição atribui ao juiz administrativo o papel de juiz comum ou ordinário da justiça administrativa, cabendo-lhe, sem necessidade de atribuição específica, a competência para julgar os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas"».Em suma, a Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho "constitucionalizou uma jurisdição administrativa autónoma, tornando os tribunais administrativos e fiscais os tribunais comuns para o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais" (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Assim sendo, os tribunais judiciais deixaram de exercer jurisdição em matéria de relações jurídicas administrativas, quando não haja norma que atribua competência a determinada jurisdição. Com efeito, anteriormente à Revisão constitucional de 1989, na falta de norma, valia a regra da competência residual dos tribunais judiciais, constante do artigo 66.º do Código de Processo Civil e do artigo 14.º da Lei 38/87, de 23 de Dezembro - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - , com a consequência de não ser afinal inovadora norma que atribuísse competência aos tribunais da ordem dos tribunais judiciais (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que não julgou organicamente inconstitucional o artigo 18.º, n.º 5, do Decreto-Lei 96/87, de 4 de Março).Por outro lado, quando o legislador ordinário "pretenda estabelecer um desvio à ordem constitucional típica, terá de ser obviamente o órgão competente para legislar sobre competência dos tribunais, isto é, em regra, a Assembleia da República, salvo autorização ao Governo - artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição", sob pena de inconstitucionalidade orgânica (Vieira de Andrade, ob. cit., p. 103, nota 158. No mesmo sentido, também Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo
212.º, ponto IV).
6 - Face ao exposto, há que concluir que a norma que é objecto do presente recurso é inovadora, na medida em que criou um desvio à ordem constitucional de distribuição de competências judiciais. É, por isso, organicamente inconstitucional, uma vez que o Governo dispôs em matéria de competência dos tribunais sem a necessária autorização parlamentar (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP).7 - Esta conclusão em nada é abalada com a publicação de diplomas que, entretanto, alteraram o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação: Lei 13/2000, de 20 de Julho, Lei 30-A/2000, de 20 de Dezembro, Decreto-Lei 177/2001, de 4 de Junho, Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro, Lei 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e
Lei 60/2007, de 4 de Setembro.
O artigo 95.º, n.º 3, do Decreto-Lei 555/99 não foi objecto de qualquer alteração ou reprodução por via de lei ou de decreto-lei autorizado, nem tão-pouco de qualquer proposta ou projecto de alteração que tivesse sido rejeitado em sede parlamentar (os trabalhos preparatórios daqueles diplomas estão disponíveis em www.parlamento.pt), pelo que a norma em apreciação não foi assumida pela Assembleia da República.Por outro lado, a circunstância de o Decreto-Lei 555/99 ter sido republicado em anexo à Lei 60/2007 (cf. artigo 4.º desta lei), não significa, diferentemente do sustentado pelo recorrente município de Lisboa, que "o legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise". Neste sentido depõe a "natureza instrumental e não inovadora da republicação", que apenas visa garantir, de forma fácil e segura, o conhecimento do direito em vigor (cf. David Duarte/Sousa Pinheiro/Lopes Romão/Tiago Duarte, Legística - Perspectivas sobre a concepção e redacção de actos normativos, Almedina, 2002, p. 196 e ss., e Blanco de Morais, Manual de Legística. Critérios Científicos e Técnicos para Legislar Melhor, Verbo, 2007, p. 557 e s.); bem como a própria Lei 74/98, de 11 de Novembro - Lei da publicação, identificação e formulário dos diplomas (republicada, em anexo, pela Lei 42/2007, de 24 de Agosto) - , quando, no artigo 6.º, especifica os casos de republicação integral dos diplomas, em anexo.
Resta, assim, concluir pela inconstitucionalidade orgânica do n.º 3 do artigo 95.º do Decreto-Lei 555/99, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º
da CRP.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional o artigo 95.º, n.º 3, do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, enquanto atribui competência ao juiz da comarca para conceder mandado para entrada em domicílio de pessoa que não dê o seu consentimento, no qual se desenvolvam actividades sujeitas a fiscalização por parte de funcionários municipais, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição daRepública Portuguesa; e, consequentemente,
b) Negar provimento aos recursos, confirmando a decisão recorrida no que diz respeitoao juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 24 de Março de 2009. - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - José Borges Soeiro - Rui Manuel Moura Ramos.
201775872