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Acórdão 1/2009, de 29 de Maio

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Sumário

Fixa jurisprudência no seguinte sentido: não julga inconstitucional a norma do artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de permitir a recusa a depor por parte da irmã do arguido, arrolada por este como testemunha.

Texto do documento

Acórdão 1/2009

Processo 1063/2007

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Joaquim Maria Botelho Sousa Cymbron, foi condenado pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de (euro) 10, no total de (euro) 500, bem como ao pagamento ao demandante Augusto Botelho Cymbron da quantia de (euro) 1500, a título de

indemnização por danos morais.

Desta decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Penal, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, quando interpretado no sentido de que a testemunha pode recusar-se a depor, apesar

de ter sido o arguido quem a arrolou.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Setembro de 2007, decidiu rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.

2 - O arguido interpôs recurso deste acórdão, nos termos de fls. 527/528 e 533, o qual foi admitido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido que permita a sua aplicação sendo a testemunha arrolada pelo arguido, por violação do artigo 32.º, n.º 1,

da Constituição.

3 - Nas respectivas alegações, o recorrente sustenta as seguintes conclusões:

«1 - O ora recorrente entende que a norma ínsita no CPP art.134.º, n.º 1. al. a), sempre que interpretada de forma que permita a sua aplicação quando a testemunha é arrolada pelo arguido, é inconstitucional por violação do princípio consagrado na CRP

art.32.º, n.º 1.

2 - Deste modo, a lei pretende evitar que a testemunha se debata no dilema que se lhe poderia apresentar e que se traduz por este binómio: dever de lealdade à verdade; e

dever de lealdade aos afectos.

3 - Simplesmente, esta teleologia, no caso em apreço, e pelas mesmíssimas razões válidas para o quod plerumque accidit, impõe solução diferente.

4 - Uma vez que é propósito do legislador que a testemunha não tenha de escolher entre faltar à verdade para não trair o arguido; ou prejudicar este por amor à verdade, não faz sentido que a testemunha se possa recusar a depor quando é arrolada pelo

arguido.

5 - É clara a mensagem do arguido, nestas circunstâncias: as declarações verdadeiras por parte da testemunha só irão beneficiá-lo; e o prejuízo só poderá surgir do silêncio

da mesma.

6 - Consentir que a testemunha arrolada pelo arguido se recuse a depor, ao abrigo de uma regalia prevista para o comum dos casos, é o mesmo que autorizá-la a negar-se ao cumprimento do dever geral de testemunhar, o que repugna porque só o arguido sabe o que tem a ganhar com o depoimento da testemunha por ele arrolada.

7 - Isto permite a completa subversão da ratio legis.

8 - A testemunha não arrolada pelo arguido pode achar-se dividida entre o dever de lealdade à verdade e o dever de lealdade aos afectos.

9 - Mas já a testemunha arrolada pelo arguido não tem de sentir estes escrúpulos porque o arguido é que sabe as razões, que tinha, quando a arrolou.

10 - Nestes casos, deixar a testemunha decidir o que é melhor para o arguido, é pôr o

destino deste nas mãos daquela.

11 - Imagine-se esta situação bem possível: A testemunha sabe que um seu depoimento verdadeiro vai beneficiar o arguido. No entanto, não quer isso. Mas também não envereda pela mentira, com temor das sanções penais que possa vir a sofrer. Perdida, acaba por se agarrar à faculdade concedida por lei.

12 - Eis aqui consumada a alegada subversão da finalidade da norma.

13 - Norma que existe para sossego da testemunha dividida entre dois deveres ponderosos e atendíveis, mas nunca como valhacouto de um comportamento

censurável.»

O Ministério Público contra-alegou, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 134.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a sua aplicação não é afastada no caso de a testemunha ter sido indicada pelo arguido, e pela improcedência do recurso.

O assistente Augusto Botelho de Sousa Cymbron não contra-alegou.

Cumpre decidir:

II - Fundamentos

4 - O artigo 134.º do Código de Processo Penal, na redacção aplicável aos autos (anterior à alteração introduzida pela Lei 48/2007, de 27 de Agosto, que aditou na alínea b) do n.º1 a expressão «sendo do mesmo ou de outro sexo») tinha o seguinte

teor:

«Artigo 134.º

Recusa de parentes e afins

1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:

a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao segundo grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;

b) Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às do cônjuge, relativamente a factos ocorridos durante o

casamento ou a coabitação.

2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem

depoimento.»

Em análise está, apenas, a norma do n.º 1 deste artigo, mais precisamente da respectiva alínea a), enquanto permite a recusa das pessoas nele mencionadas a depor como testemunhas, quando tenham sido arroladas pelo arguido. No caso recusou-se a depor uma irmã do arguido, por este arrolada como testemunha, num processo por crime de injúrias em que é ofendido e assistente um outro seu irmão.

Entende o recorrente que uma tal faculdade de recusar a prestação de depoimento, que é concedida à testemunha que se debata entre o dever de lealdade à verdade e o dever de lealdade aos afectos, não faz sentido quando a mesma é arrolada pelo próprio arguido e viola os seus direitos de defesa em processo penal. Um tal entendimento ancora-se na ideia de que é ao arguido que compete decidir qual a melhor estratégia a seguir na sua defesa e que é ele quem sabe o que tem a ganhar com o depoimento da

testemunha por si arrolada.

Outro foi o entendimento do acórdão recorrido, que concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreço, considerando estar em causa um direito pessoal da testemunha por esta livremente exercido, estando justificada a restrição ao direito de defesa do arguido pela necessidade de salvaguardar a "dignidade da pessoa

humana".

Neste sentido, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:

«[...]

8 - Sustenta também o arguido que o facto de a sua irmã, Ana Cymbron, ter feito uso do direito que lhe era conferido pelo artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal é ilegal por a testemunha ter sido por si arrolada, defendendo que essa recusa importa uma inadmissível limitação do seu direito de defesa. Entende que uma interpretação daquela norma que confira à testemunha esse direito numa situação como a presente é inconstitucional por violação das garantias de defesa consagradas no artigo

32.º, n.º 1, da lei Fundamental.

Salvo o devido respeito, entendemos que o direito conferido à testemunha pela mencionada disposição legal é de natureza pessoal, razão pela qual só à própria compete decidir sobre o seu exercício. Daí que não se justifique qualquer interpretação

restritiva da mesma.

A limitação ao direito de defesa que daí pode, eventualmente, decorrer é constitucionalmente justificada pela necessidade de salvaguardar a dignidade da pessoa humana (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

Tal norma, na indicada dimensão, não padece, por isso, de qualquer

inconstitucionalidade material.

[...]»

5 - O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas poderão depor como testemunha, com exclusão dos interditos por anomalia psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos, assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao "dever de segredo". Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no artigo 360.º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é

um dever profissional ou deontológico).

Essas situações de legitimação da recusa a depor assentam em razões ou fundamentos não inteiramente sobreponíveis, se bem que relativamente próximos. «Trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e indirectas de auto-incriminação;

preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar;

proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes» (M. Costa Andrade, - Bruscamente no verão passado -, a reforma do Código de Processo Penal - Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, n.º 3950, pág.

280).

A hipótese que agora se contempla, a possibilidade de recusa a prestar depoimento por parte dos familiares, cônjuge e afins do arguido (bem como por parte do ex-cônjuge de quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação), tem o propósito imediato de evitar situações em que tais pessoas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuírem para a condenação do seu

familiar.

Entendeu aqui a lei que o interesse público da descoberta da verdade no processo penal deveria ceder face ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações. Mas, além de pretender poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos, o legislador quer proteger as "relações de confiança, essenciais à instituição familiar". Como salienta Medina de Seiça (Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, "Prova Testemunhal. Recusa de Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição", na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3.º, pág.

492 e 493):

«Com o direito de recusa evidencia-se que, e digamo-lo com a conhecida fórmula do Supremo Tribunal Alemão, «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade deva ser investigada a todo o preço» (...). De facto, embora a descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal (...) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (...), a eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.º, n.º 1, do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento, deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (...). E para que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertir a testemunha, «sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento» (artigo 134.º, n.º 2 do COO) (...).

Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as "relações de confiança, essenciais à instituição familiar"» Esta é também a opinião de Costa Andrade que conclui não haver razões para se afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de solidariedade que a instituição familiar oferece (M. Costa de Andrade, Sobre as Proibições de Prova, ob. cit. pág. 75

a 78):

«Não faltam autores a interpretar determinadas proibições de prova como obedecendo ao propósito de excluir meios de prova susceptíveis de pôr em perigo a própria verdade. Neste sentido devem, segundo por exemplo Gössel - e ao arrepio do que vem sendo o entendimento da jurisprudência e a opinião maioritária dos autores - compreender-se proibições de prova como as que resultam dos artigos 132.º, n.º 2 (Deveres gerais das testemunhas) e 134.º (Recusa de parentes e afins) do CPP.

Na Alemanha, e face ao § 55 da Strafprozessordnung (StPO) - de conteúdo sensivelmente idêntico ao disposto no n.º 2 do artigo 132.º do CPP - a jurisprudência e a doutrina dominante inclinam-se para o primado da tutela dos direitos ou posições da própria testemunha. De acordo com o Tribunal Federal, tratar-se-á, em primeira linha, de poupar à testemunha o conflito e o embaraço de ter de depor contra si própria [Por todos, Schäfer, in Löwe/Rosenberg, Einleitung, Cap. 14, Rn.54]. Na mesma linha se tem, em geral, interpretado e aplicado o § 52 da StPO alemã, no fundamental correspondente ao artigo 134.º da lei processual portuguesa e que reconhece à testemunha o direito de recusar depoimento contra parentes ou afins. Para além de poupar à testemunha o conflito de consciência, este preceito visará igualmente salvaguardar as relações de confiança, essenciais à instituição familiar, aqui tratada como autónomo bem jurídico, merecedor de tutela. «O direito de recusa - escreve Schäfer - não é apenas outorgado por causa do conflito de consciência da própria testemunha mas também para protecção da família do acusado. Nesta medida, a esfera jurídica do acusado é directamente atingida quando, por falta do esclarecimento legalmente exigido, uma testemunha sem formação jurídica não pode decidir livremente sobre se deve ou não fazer uso do seu direito ao silêncio» [Schäfer, ob. cit., Rn 51].

Na mesma direcção, acentua Grünwalg que este regime obedece à «ideia de que ninguém deve ver-se obrigado a contribuir para levar os seus familiares à prisão».

Acresce a «necessidade que a pessoa tem de confiar nos seus parentes mais próximos, sem ter de recear que o Estado» a obrigue a depor contra eles. «Nesta medida - prossegue Grünwald - protege-se também o interesse da comunidade na existência de relações de confiança entre os membros da mesma família» [Grünwald, Juristenzeitung 1966, pág. 407]. Na síntese do tribunal Federal [Bundesgerichtshof,St 11, 216], o direito da testemunha ao silêncio tem subjacente «a consideração solícita (schonenden Rücksicht) pelos laços familiares que ligam a testemunha e o acusado». Esta interpretação doutrinal e jurisprudencial não deixa de enfatizar ao mesmo tempo o relevo da verdade material. Só que lhe adscreve um plano secundário, reconhecendo-lhe, por isso, uma tutela meramente reflexa.

Afastando-se deste entendimento tradicional e dominante, sustenta Gössel que só na perspectiva do primado da verdade material poderá alcançar-se uma interpretação correcta do direito de recusa de depoimento quer contra si próprio quer contra parentes e afins (respectivamente, artigo 132.º, n.º 2, e 134.º do CPP) [Cf., do autor, Neue Juristische Wochenschrift 1981, págs. 653 e 2219; Goltdammer's Archiv für Strafrecht 1991, págs. 488 e segs., e Bockelmann-Fs., pág. 805. Já antes e no mesmo sentido, Eb. Schmidt, Juristenzeitung 1958, págs. 599 e segs.]. Tanto num caso como noutro, argumenta Gössel, uma «consideração mais realista» obriga a concluir que estes «preceitos legais só podem ser vistos como preordenados a evitar, no interesse da verdade, depoimentos marcados pelo conflito» Neue Juristische Wochenschrift 1981, pág. 653; no mesmo sentido, Goltdammer's Archiv für Strafrecht 1991, págs. 489 e

segs.].

Não é nosso propósito assumir nesta sede uma posição definitiva sobre a controvérsia.

Sempre declinaremos a nossa convicção quanto ao bem fundado da concepção tradicional na parte em que adscreve o primado no programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha, individualmente considerada (art. 132.º, n.º 2), ou na teia das relações de confiança e solidariedade que a instituição familiar oferece [Não cremos, em qualquer caso, que possa considerar-se definitivo o argumento de GÖSSEL segundo o qual a doutrina dominante não logra explicar o facto de ao parente ou afim assistir a faculdade de renunciar ao direito de recusa de depoimento, dessa forma atingindo a família ou a esfera jurídica do arguido (Bockelmann-Fs., pág. 805). O argumento é, pelo menos, neutralizado pela consideração invocada, v. g., por Grünwalg, contra a tese do primado da procura da verdade. «Pois, refere o autor, a verdade é que em caso de depoimento feito livremente, ele não deixa de ser recebido, apesar do seu possivelmente escasso valor probatório» (Juristenzeitung 1966, pág. 497). Para uma crítica da ideia da procura da verdade como referente material geral das proibições de prova, Amelung, Informationsbeherrschungsrechte, págs. 14 e segs.]. Uma interpretação cujo texto do direito português se nos afigura claramente reforçado pelo teor dos pertinentes

dispositivos legais.»

6 - Aceite a ideia de que a razão de ser da norma é, não só a de obstar ao conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar - verdadeiramente, é esta a sua raiz última -, importa agora perguntar se este "direito ao silêncio" concedido à testemunha é compatível com as garantias de defesa do arguido em processo criminal quando é ele quem requer o depoimento da testemunha. De notar que não se trata de um meio de prova que seja rejeitado por razões heurísticas (não se trata de uma situação de incapacidade para testemunhar, de inidoneidade probatória, de uma genérica configuração de tais testemunhos como não credíveis) tanto que, se a testemunha optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas à regra da

livre valoração da prova.

6.1 - O artigo 134.º do Código de Processo Penal concede, como se referiu, às pessoas mencionadas no seu n.º 1 a faculdade de recusarem o depoimento sem

incorrerem em qualquer sanção.

É uma faculdade que a lei processual penal rodeia de cautelas destinadas a permitir o seu efectivo exercício, impondo à entidade competente para receber o depoimento o dever de advertir tais pessoas dessa faculdade, sob pena de nulidade (cf. n.º 2). Com a imposição desta advertência (à semelhança do que ocorre com dispositivos homólogos de outros ordenamentos: §52 da StPO germânica; artigo 199.º do Codice di Procedura Penale, artigo 416.º da Ley de Enjuiciamento Criminal) preocupou-se o legislador em assegurar que a opção da testemunha decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada a faculdade - o direito ao silêncio - que, repete-se, lhe é conferida não só por causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo círculo familiar a que ela e o acusado pertencem.

Argumenta o arguido que a ele cabe avaliar a vantagem para a sua defesa na audição do seu familiar ou afim e que, ao ser indicada pelo próprio arguido, não tem a testemunha que sentir-se dividida entre o dever de lealdade à verdade e o dever de

lealdade aos afectos.

Mas as coisas não têm essa simplicidade.

Sendo embora uma faculdade concedida à testemunha em função da sua relação com o arguido, não é pela circunstância de o arguido "autorizar" o seu familiar ou afim a depor que fica inteiramente afastado o constrangimento da testemunha colocada entre o dever de responder com verdade às perguntas que lhe venham a ser dirigidas (artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal) e o impulso afectivo ou o escrúpulo moral ou social em não contribuir para a condenação do seu parente, cônjuge ou afim.

Neste domínio prevalecem sentimentos e representações pessoais e só a testemunha sabe o que teme ser chamada a dizer e só ela pode avaliar, nesse plano moral ou sócio-afectivo, o que (ab immo pectore) receia poder resultar do que tiver de dizer contra o arguido e é susceptível de condicionar a sua decisão de prestar ou de recusar

o depoimento.

Pode ainda acrescentar-se que, obrigar a testemunha a prestar depoimento quando é indicada pelo arguido, pode reverter numa forma de pressão sobre a testemunha que, não querendo contribuir para a condenação do seu familiar, pode sentir-se compelida a mentir. Uma testemunha particularmente sensível àqueles valores que estão na base do regime de dispensa pode sentir-se coagida a faltar à verdade por não se conseguir libertar do íntimo conflito afectivo ou da pressão familiar, apesar de ser o arguido o sujeito processual que a coloca em tal dilema.

6.2 - É certo que no outro braço da ponderação está o direito à prova que, em processo penal tem, quanto ao arguido, uma dimensão qualificada, como corolário da imposição constitucional de que o processo assegure todas as garantias de defesa.

Efectivamente, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição contempla a garantia de que "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso", sendo entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência constitucional que esta fórmula condensa não só todas as garantias de defesa que estão contempladas nos demais números do mesmo artigo, como "também serve de cláusula geral englobadora de todas as garantias de defesa que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal" (cf. J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, p. 516).

Como se disse no Acórdão 61/88 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de

20 de Agosto e 1988):

"Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e «residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, p. 51; e acórdão 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, 1.ª série, de 31 de Dezembro de 1979).

A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.os 2 e seguintes do artigo 32.º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cf. Acórdão 337/86, deste Tribunal, Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986)".

Tem de reconhecer-se que o direito de a testemunha recusar a prestação de declarações mesmo quando indicada pelo arguido - esta extensão do que podemos designar como segredo familiar - se materializa, em último termo, numa restrição de uma das dimensões ou desdobramentos da garantia de defesa em processo criminal conferida pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que é o direito à prova, entendido como o poder de um sujeito processual representar ao juiz a realidade dos factos que lhe é favorável e de exibir os meios representativos desta realidade (Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Estudos Sobre Direitos Fundamentais, 1.ª ed., pág. 170). Será essa limitação constitucionalmente suportável, em homenagem à protecção da dignidade ou da liberdade de conformação da personalidade da testemunha e da tutela da instituição

familiar?

O direito de defesa do arguido em processo penal, não assume um carácter absoluto.

Desde logo, e no que respeita à matéria de prova, o direito de defesa sofre as limitações decorrentes das proibições de prova nos termos do n.º 8 do artigo 32.º da Constituição, que considera nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, o que impede a valoração da prova obtida por estes meios, mesmo no interesse do arguido.

Como já se disse, o fundamento último da legitimidade da recusa a depor por parte das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 134.º do CPP situa-se no interesse da família enquanto elemento fundamental da sociedade e espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros (n.º1 do artigo 67.º da CRP), cuja importância supera o interesse da punição dos culpados. A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é o cimento da coesão desse

elemento básico da sociedade.

Por este ângulo, o que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em última linha, é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros. E visa também - aliás, é essa a sua justificação de primeira linha - poupar a testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (Embora não pareça, como concluiu o acórdão recorrido e afirma alguma doutrina, que possa ancorar-se directamente na tutela da intimidade da vida privada.

Os factos podem não ter outra ligação à testemunha senão a circunstância de serem imputados ou interessarem à definição da responsabilidade penal de um seu familiar (lato sensu) e mesmo assim existe direito ao silêncio).

Sucede que, ainda que seja o arguido a indicar o seu familiar, cônjuge ou afim como testemunha, o referido conflito de consciência não deixa de ter a intensidade que justifica a faculdade de recusa a depor para não colocar o sujeito perante exigências contraditórias. E, na generalidade dos casos, o exercício do direito ao silêncio por parte da testemunha indicada, redundando sempre em alguma compressão do direito de defesa do arguido que a tenha arrolado, não atinge esse direito de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva este direito.

Com efeito, no processo penal não impende sobre o arguido qualquer ónus probatório.

O arguido goza da presunção de inocência, o que, articulado com o princípio in dubio pro reo, se traduz numa imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável à defesa em todas as situações de incerteza quanto a factos determinantes

para a decisão da causa.

É certo que não pode excluir-se a ocorrência de situações extremas em que só o familiar tenha conhecimento de factos juridicamente relevantes para a inexistência ou atenuação da gravidade do crime, para a não punibilidade do arguido ou para a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (cf. artigo 129.º do CPP).

Porém, a essas situações particulares corresponderá uma dimensão qualificada da norma de que não pode falar-se numa situação como a presente em que a testemunha é apenas mais uma de entre as que foram arroladas pelo arguido e que foram ouvidas, nada se tendo alegado por forma a indiciar que o seu silêncio comprometa

inexoravelmente o direito de defesa.

Deste modo, há, pois, que concluir que a norma do artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a recusa a depor por parte da irmã do arguido, arrolada por este como testemunha, tem um fundamento razoável, não atingindo, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, o Tribunal considera que a norma em causa não viola a garantia de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

III - Decisão

Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 25 UCS.

Lisboa, 25 de Março de 2009. - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.

201821799

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/05/29/plain-253454.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/253454.dre.pdf .

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Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-12-30 - Acórdão 337/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, na parte em que atribui competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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