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Acórdão 85/2016, de 7 de Março

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, introduzido pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, interpretada no sentido de, na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não ser permitido aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando, em sede de audiência de partes, que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços

Texto do documento

Acórdão 85/2016

Processo 762/15

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

Relatório

O Ministério Público instaurou no Tribunal do Trabalho do Porto ação declarativa de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra LCS - Linha de Cuidados de Saúde, S. A., pedindo que fosse reconhecido que o contrato celebrado a 19 de março de 2014 entre a Ré e o trabalhador Paulo Jorge Ribeiro da Costa consiste num verdadeiro contrato de trabalho, enquadrável no conceito definido no artigo 12.º do Código do Trabalho.

Após redistribuição dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Instância Central - 1.ª Secção do Trabalho - Juiz 1, no início da audiência de partes, ocorrida a 19 de novembro de 2014, Paulo Jorge Ribeiro da Costa e a Ré firmaram acordo no sentido de que o contrato em causa nos autos consubstancia um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho, tendo o Ministério Público declarado expressamente a sua oposição a tal acordo.

Nessa sequência, foi proferida sentença, exarada em ata, nos termos da qual se entendeu que a matéria não tem natureza de direito indisponível e, julgando o acordo celebrado válido, quer objetiva, quer subjetivamente, se procedeu à sua homologação, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformado, o Ministério Público recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 26 de maio de 2015, concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos.

Recorreu então a Ré para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:

"...Normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie

1 - O presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade é interposto ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, por entender a Recorrente que o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão proferido nestes autos a 26.05.2015, interpretou e aplicou preceito legal em sentido desconforme à Constituição.

2 - O preceito legal onde se encontra vertida a norma jurídica, cuja conformidade constitucional a Recorrente pretende ver apreciada, é o artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, que aprovou a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

3 - A dimensão normativa extraída do referido preceito legal, cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada, é aquela que resulta da interpretação do aludido preceito no sentido de não ser permitido aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando, em sede de audiência de partes, que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços,

4 - Donde se extrai que ao Ministério Público é reconhecido direito autónomo de prosseguimento da ação, alheio e contrário aos interesses privados que estão na origem da celebração do contrato sujeito a qualificação e, bem assim, à posição assumida pelos putativos trabalhador e empregador na referida audiência de partes.

5 - É inequívoco que o Acórdão recorrido aplicou a norma extraída da disposição legal citada no sentido assinalado, enfrentando diretamente a questão de (in)constitucionalidade em termos que se reputam incorretos.

6 - Fê-lo ao decidir que na tentativa de conciliação prevista no artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT não é permitido ao putativo empregador dispor do objeto do litígio, por estarem alegadamente em causa na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a que se reporta a Lei 63/2013, de 27 de agosto, interesses públicos e não apenas interesses privados dos titulares da relação contratual em causa e por esta ação ter sido interposta pelo Ministério Público, assumindo este a posição de autor,

7 - Decidindo, por isso, que não é passível de homologação a transação em que os contraentes da relação material controvertida acordam em que esta consubstancia contrato de prestação de serviços,

8 - Donde resulta que o Ministério Público pode prosseguir ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (ação de simples apreciação positiva que se limita a declarar a existência de direito ou facto jurídico), em oposição à vontade e interesse livremente manifestada pelos titulares da relação jurídica em discussão, na audiência de partes prevista no artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT.

Normas e princípios constitucionais que se considera terem sido violados

9 - A norma jurídica constante do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, interpretada e aplicada no sentido explicitado nos pontos 3 a 5 supra, adotado pelo Acórdão recorrido, viola os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de ação, previstos, respetivamente, nos artigos 47.º/1 e 20.º/1 e 4 da Constituição da República e, bem assim, os princípios da igualdade e do direito a processo equitativo, previstos respetivamente nos artigos 13.º/1 e 20.º/4 da Constituição, porquanto tal interpretação determina que não esteja na disponibilidade dos sujeitos da relação material controvertida transigir, em sede de audiência de partes, no sentido de que esta relação é de prestação de serviços, pondo, assim, termo ao processo e, bem assim, que se reconheça ao Ministério Público direito autónomo de prosseguimento da ação, alheio e contrário aos interesses privados que estão na origem da celebração do contrato sujeito a qualificação (infringindo os valores da autonomia privada e da liberdade contratual, acolhidos no artigo 405.º do Código Civil), donde resulta que pode ser declarada a existência de contrato (in casu, de trabalho) sem vontade de nenhum dos contraentes, interpretação que não respeita o sentido do texto legislativo, sendo incoerente com as soluções previstas pelo sistema jurídico para situações semelhantes e conduzindo a resultados distintos para pretensões iguais, sem justificação adequada.

Peças processuais em que foi suscitada a questão de (in)constitucionalidade

10 - A questão de (in)constitucionalidade referida supra foi suscitada na contestação apresentada pela ora Recorrente, enquanto exceção inominada de inconstitucionalidade (pontos 1 a 3 da matéria de Direito), bem como nas contra-alegações do recurso de apelação nas pp. 12 e 25, e ainda nas Conclusões 10.ª e 22.ª dessa peça processual."

A Recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

«1.º O presente recurso tem por objeto o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de maio de 2015, que interpretou e aplicou a norma jurídica contida no artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, em violação dos princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de ação e, bem assim, dos princípios da igualdade e do direito a processo equitativo.

2.º A dimensão normativa extraída do referido preceito legal, cuja conformidade constitucional se pretende ver apreciada, é aquela que resulta da interpretação do mesmo no sentido de não ser permitido aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando em sede de audiência de partes que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços, donde resulta que ao Ministério Público é reconhecido direito autónomo de prosseguimento da ação, alheio e contrário aos interesses privados que estão na origem da celebração do contrato sujeito a qualificação e, bem assim, à posição assumida pelos putativos trabalhador e empregador na referida audiência de partes (cf. requerimento de interposição de recurso).

3.º No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto julgou inválida a transação efetuada, em sede de audiência de partes, pelos putativos trabalhador e empregador, no sentido de que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços.

4.º Fê-lo com fundamento em que na tentativa de conciliação, prevista no artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT, não é permitido ao putativo trabalhador e ao putativo empregador dispor do objeto do litígio, por estarem alegadamente em causa na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a que se reporta a Lei 63/2013, de 27 de agosto, interesses públicos prosseguidos pelo Ministério Público e não interesses privados dos titulares da relação contratual em causa e por esta ação ter sido interposta pelo Ministério Público, assumindo este a posição de autor.

5.º Daí resultando que o Ministério Público pode prosseguir ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (ação de simples apreciação positiva que se limita a declarar a existência de direito ou facto jurídico), em oposição à vontade e interesse livremente manifestada pelos alegados empregador e trabalhador, na audiência de partes prevista no artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT.

6.º A consagração no processo do trabalho da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho constituiu instrumento para enfrentar a tendência para a fuga ilícita ao Direito do Trabalho, por via da contratação de falsas prestações de serviços.

7.º A referida ação não visa prosseguir interesse público, de toda a coletividade, mas conferir a cada putativo trabalhador outro meio para a obtenção da tutela legal que lhe é devida, com eficácia acrescida por efeito de tramitação processual mais célere e do patrocínio pelo Ministério Público.

8.º Uma vez iniciada a instância, o interesse protegido em cada ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é o do sujeito da concreta relação jurídica em apreço.

9.º Assim sendo, o titular do interesse processualmente protegido e autor da ação é o putativo trabalhador, cujo contrato de trabalho pretende ver reconhecido.

10.º A ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é de simples apreciação positiva, estando o objeto do processo limitado à qualificação do vínculo contratual.

11.º Atento aquele objeto, a decisão do processo apenas produz efeitos entre as partes da relação contratual a qualificar, dela não decorrendo consequências jurídicas para outras relações jurídicas conexas com o trabalho autónomo ou subordinado, designadamente de natureza tributária ou previdencial.

12.º Da atribuição ao Ministério Público de legitimidade para intentar a ação não resulta que esta prossiga interesse público que se deva sobrepor ao interesse privado dos titulares da relação jurídica objeto de qualificação, bem como que o Ministério Pública assuma a posição de autor da ação, com os corolários (i) do papel meramente acessório ou de assistência do putativo trabalhador e (ii) da subordinação da vontade deste à posição prevalecente do Ministério Público.

13.º Pelo contrário, o alegado trabalhador é notificado da petição inicial e da contestação, podendo tomar posição sobre o litígio, apresentando articulado próprio (artigo 186.º-L/4 do CPT).

14.º A lei não restringe o âmbito daquele articulado próprio, pelo que o putativo trabalhador pode nele sustentar que a relação mantida com o alegado empregador é de prestação de serviços.

15.º Por outro lado, após a fase dos articulados, é realizada audiência de partes entre o trabalhador e empregador, com a finalidade de obter a sua conciliação (artigo 186.º-O/1 do CPT).

16.º No referido preceito legal não é feita qualquer referência a que a validade do eventual acordo que venha a ser por aqueles alcançado esteja dependente da aprovação do Ministério Público, assim como a referida norma não contém qualquer elemento que aponte no sentido de que a conciliação aí prevista apenas é válida quando se traduza no reconhecimento da natureza laboral do contrato.

17.º A liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º da CRP, compreende diversas componentes, entre as quais o direito de escolher o regime de trabalho, isto é, o direito de optar por prestar a sua atividade profissional em regime de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviços.

18.º O contrato de trabalho insere-se no domínio da autonomia da vontade e constitui expressão dessa vontade.

19.º Da interpretação feita pelo Tribunal da Relação do Porto do regime da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, em especial do artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT, decorre a possibilidade de haver contrato (in casu, de trabalho) sem vontade de nenhum dos contraentes, em ação judicial cujos efeitos respeitam apenas àqueles e se limitam à declaração da existência de vínculo entre eles.

20.º O que significa que o Estado poderia interferir na escolha do tipo contratual e obrigar as partes a modificar a relação estabelecida entre elas, assim como poderia impor-lhes que litiguem em Tribunal mesmo sem terem qualquer litígio referente a essa relação.

21.º Porém, do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho decorre, negativamente, a proibição de o Estado vincular quem quer que seja a certo género de trabalho.

22.º O Ministério Público não tem poder para conformar todas as relações jurídicas, designadamente as de natureza privada, com o ordenamento jurídico vigente em cada momento.

23.º O entendimento preconizado no acórdão recorrido é, aliás, contrário ao sustentado pelo Tribunal Constitucional no que respeita à relevância da vontade do alegado trabalhador na presente ação e forma como a mesma pode ser manifestada, na medida em que este já afirmou que o que se pretende com o regime legal da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho "é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviços em situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviço, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral", sendo que, "nas situações [...] em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou em que está vinculada a uma relação jurídica de um especifico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral, não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral" (acórdão 94/2015, de 3 de fevereiro, p. 25).

24.º Prossegue o Tribunal Constitucional no sentido de que, "nessas situações, o referido regime contém suficientes garantias de esta vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratada como sendo um caso de trabalho subordinado ", dando como exemplo precisamente os artigos 186.º-L, n.º 4 e 186.º-O, n.º 1 do CPT, para sustentar que o regime "garante a intervenção nos autos, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, sendo facultada ao trabalhador a oportunidade processual de tomar posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua atividade, podendo, além do mais, invocar que se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho (designadamente por não querer estar sujeito a nenhuma relação de subordinação jurídica ou por estar vinculado a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter outra relação jurídica de natureza laboral)" (cf. p. 26 do referido acórdão).

25.º A interpretação defendida pelo Tribunal da Relação do Porto no sentido de que o alegado trabalhador não pode dispor do direito em litígio, que consiste na qualificação da relação contratual de que é parte como contrato de trabalho, viola o princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, na sua vertente da liberdade de exercício, previsto no artigo 47.º da CRP.

26.º Porquanto a prestação oferecida a título profissional pode ser reconduzida a modelo contratual típico (in casu, o contrato de trabalho) por efeito de vontade de terceiro, sem consideração pelos interesses específicos de quem a realiza, nem pelas opções tomadas aquando do respetivo exercício.

27.º A CRP reconhece a todos os cidadãos o direito de ação, a exercer mediante o acesso a processo equitativo, orientado para a satisfação da exigência básica de tutela judicial efetiva.

28.º A exigência de um processo equitativo impõe que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses e paridade entre as partes.

29.º O princípio do processo equitativo tem sido densificado através de outros princípios, como o direito à igualdade de armas ou o direito à igualdade de posições no processo, bem como o direito de defesa e o direito ao contraditório.

30.º Os tribunais apenas são chamados a resolver conflitos de interesses, pelo que a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho deveria supor a existência do interesse específico em clarificar ou esclarecer situação jurídica controvertida.

31.º Se os contraentes da relação jurídica objeto de qualificação nos autos - os únicos em cuja (única) esfera jurídica se projetam os efeitos da ação - estão de acordo quanto à natureza do vínculo jurídico que mantêm, a situação nada tem de dúvida ou incerteza.

32.º A possibilidade conferida a terceiro de, sem interesse dos contraentes, nem conflito entre eles, convocar a tutela jurisdicional do Estado para qualificar como contrato de trabalho o vínculo que estes mantêm, infringe o direito de ação e o direito a um processo equitativo, previstos no artigo 20.º da CRP.

33.º Tais princípios são igualmente violados pela circunstância de não ser assegurado ao putativo trabalhador efetivo direito de defesa, ao considerar-se que o mesmo não pode dispor do direito objeto do litígio, assumindo posição distinta da do Ministério Público.

34.º A diferença de tratamento processual entre as situações idênticas de putativo trabalhador abrangido por ação inspetiva da Autoridade para as Condições do Trabalho e outro que o não seja ofende o princípio constitucional da igualdade de tratamento.

35.º Atendendo à interpretação do Tribunal da Relação do Porto, a primeira situação desencadeará oficiosamente um meio de tutela jurisdicional, em que a posição do Ministério Público prevalece sobre a vontade das partes na relação material controvertida, sendo, por isso, irrelevante qualquer manifestação de vontade destas no sentido da existência de vínculo de prestação de serviços.

36.º Nesse caso, ainda que nenhuma das partes na relação contratual pretenda manter contrato de trabalho, pode vir a ser declarada a existência entre ambos de vínculo dessa natureza, por via de ação proposta por terceiro mas cujos (únicos) efeitos se projetam na esfera jurídica daquelas.

37.º Em circunstâncias exatamente idênticas, um prestador de serviço cuja situação não tenha sido objeto de intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho, não verá a sua situação contratual modificada por via da intervenção de terceiro, alheio ao contrato, sendo esta apenas suscetível de alteração caso o mesmo o pretenda (i.e., caso proponha ação declarativa, sob processo comum).

38.º No âmbito de ação com processo comum instaurada pelo putativo trabalhador, na qual é formulado pedido de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pode este dispor livremente do objeto do litígio, desistindo do pedido ou transigindo com o alegado empregador, inclusivamente no sentido da existência de contrato de prestação de serviços.

39.º Em ação especial que tem objeto idêntico, e de acordo com a interpretação do tribunal recorrido, não é permitido ao putativo trabalhador pôr termo à ação, mediante desistência do pedido ou transação com o alegado empregador na qual se reconheça a existência de contrato de prestação de serviços.

40.º Apesar de a configuração das ações ser diferente, designadamente no que respeita ao impulso processual, não se identifica qualquer motivo, adequado e proporcional, que justifique a alegada distinção de tratamento da mesma situação.

41.º A diferença de tratamento normativo de duas situações idênticas, que reclamam da lei a mesma proteção, constitui resultado ofensivo do princípio da igualdade de tratamento (CRP, artigo 13.º/1), determinando a inconstitucionalidade da norma do artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT, na interpretação e aplicação do Tribunal da Relação do Porto.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deverá julgar-se o presente recurso procedente e, consequentemente, declarar-se inconstitucional a norma jurídica constante do artigo 186.º-O, n.º 1 do CPT, na interpretação que dela é feita no douto acórdão recorrido, com as legais consequências.»

O Ministério Público contra-alegou, tendo concluído da seguinte forma:

«74 - O presente recurso de constitucionalidade foi interposto por "L.C.S. - Linha de Cuidados de Saúde, S. A. ", a qual identifica o objeto a ser apreciado pelo Tribunal Constitucional, nos seguintes termos: "[o] preceito legal onde se encontra vertida a norma jurídica, cuja conformidade constitucional a Recorrente pretende ver apreciada, é o artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, que aprovou a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho".

75 - Este recurso é interposto pela referida "L.C.S. - Linha de Cuidados de Saúde, S. A. ", do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 26 de maio de 2015 (a fls. 368 a 395 dos autos), que concedeu provimento ao recurso interposto da decisão proferida pela Secção do Trabalho da Instância Central do Porto, da comarca do Porto, em 19 de novembro de 2014 (a fls. 341 e 342 dos autos).

76 - Tal recurso "[...] é interposto ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC [...]".

77 - Contudo, as específicas questões agora suscitadas, já mereceram a apreciação do Tribunal Constitucional, o qual se pronunciou no sentido do não conhecimento dos recursos interpostos, nas doutas Decisões Sumárias n.os 479/15, 481/15, 520/15 e 624/15, esta última proferida pela 2.ª Secção deste Tribunal.

78 - Nestas decisões, nomeadamente na n.º 520/15, já transitadas em julgado, considerou o Tribunal Constitucional, no essencial, por um lado, que:

"Não estamos, portanto, uma inconstitucionalidade normativa que tenha sido suscitada durante o processo";

e por outro que:

"[...] não tendo sido questionada a constitucionalidade do critério que fundamentou a decisão recorrida, qualquer apreciação do objeto do presente recurso não produziria reflexo útil no sentido da decisão recorrida, a qual permaneceria inalterada".

79 - Consequentemente, decidiu o Tribunal Constitucional, em todas as decisões mencionadas, não conhecer do recurso interposto pela "L.C.S. - Linha de Cuidados de Saúde, S. A. ", solução que, igualmente, se advoga no caso vertente.

80 - Por mera cautela, e para a eventualidade de assim se não vir a entender, pronunciámo-nos sobre as inconstitucionalidades imputadas, pela Recorrente, às normas jurídicas contidas no artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, sustentadas em argumentos idênticos aos, por ela, utilizados nos recursos identificados nos pontos n.os 13 e 14 desta contra-alegação, e cujo objeto era constituído, para além do mais, por todas as normas jurídicas integrantes dos artigos 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho (entre as quais, obviamente, as do artigo 186.º-O, n.º 1).

81 - Concluímos, no que concerne ao princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pela sua não lesão, dado que as normas desaplicadas se revelam insuscetíveis de o violarem, uma vez que não regulam qualquer dimensão substantiva da eleição de uma profissão ou de um género de trabalho, objeto da proteção constitucional, apenas prescrevendo sobre o procedimento de adequação da regulamentação jurídica à atividade profissional efetivamente desenvolvida.

82 - Sustentámos, igualmente, que as normas legais mencionadas, também não violam o princípio constitucional da igualdade, o qual não é, sequer, convocável neste cenário de estrita contraposição entre regimes processuais distintos, marcados por diferenças insuscetíveis de se repercutirem significativamente nas esferas jurídicas dos cidadãos.

83 - Todavia, ainda que assim não fosse, a regulamentação da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho obedece aos requisitos constitucionais que alicerçam o princípio da igualdade, não o ofendendo, nomeadamente, na sua dimensão de proibição do arbítrio, contrariamente ao sustentado na douta sentença recorrida, tratando de forma proporcionalmente diferente, situações, também elas, diferentes.

84 - Relembrámos, ainda, complementarmente, que as normas legais questionadas foram já objeto de análise, sob o prisma, quer da sua compatibilidade com o princípio constitucional do Estado de direito democrático, quer da sua conformidade com o princípio da igualdade, pelo Acórdão 94/2015, deste Tribunal Constitucional, tendo sido julgadas não inconstitucionais.

85 - Por fim, no que respeita ao direito a um processo equitativo, não podemos, igualmente, deixar de inferir que não se verifica a violação do direito a um processo equitativo, com assento constitucional no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, tanto mais que não se vislumbra qualquer ofensa dos sub-direitos em que é possível decompor tal direito fundamental.

86 - Em face do exposto, afigura-se-nos que não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso ou, caso assim não o venha a entender, deverá decidir pela não inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), e, consequentemente, negar provimento ao presente recurso.

Nestes termos, entende o Ministério Público, aqui recorrido, que, não conhecendo do presente recurso ou, caso assim se não entenda, negando-lhe provimento, fará o Tribunal Constitucional a costumada JUSTIÇA.»

Fundamentação

1 - Do conhecimento do recurso

O Ministério Público sustentou nas contra-alegações que não se deverá tomar conhecimento do recurso, uma vez que na questão suscitada pela Recorrente não estamos perante uma inconstitucionalidade normativa que tenha sido suscitada durante o processo e, por outro lado, que não foi questionada a constitucionalidade do critério que fundamentou a decisão recorrida. Ou seja, segundo o Ministério Público, a questão de constitucionalidade que a Recorrente pretende ver apreciada não foi adequadamente suscitada perante o tribunal a quo e, além disso, não integra a ratio decidendi da decisão recorrida.

Como é sabido, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.

Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador - não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo ou de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.

Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC - como ocorre no presente caso -, este cabe apenas «de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam» (n.º 2 do mesmo preceito), estando a sua admissibilidade dependente ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.

A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que o recorrente tenha cumprido o ónus de a colocar ao tribunal recorrido, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, envolvendo ainda uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, em que sejam indicadas as razões porque considera ser inconstitucional a "norma" que pretende submeter à apreciação do tribunal, deixando ainda claro qual o preceito ou preceitos cuja legitimidade constitucional pretende questionar, por forma a criar assim para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.

Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.

Tecidas estas considerações gerais sobre os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, importa ver se os mesmos se mostram preenchidos no caso concreto.

De acordo com o que fez constar do requerimento de interposição de recurso, a Recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do «artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, que aprovou a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho», interpretada «no sentido de não ser permitido aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando, em sede de audiência de partes, que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços», referindo subsequentemente que desta interpretação se extrai «que ao Ministério Público é reconhecido direito autónomo de prosseguimento da ação, alheio e contrário aos interesses privados que estão na origem da celebração do contrato sujeito a qualificação e, bem assim, à posição assumida pelos putativos trabalhador e empregador na referida audiência de partes».

Importa desde já esclarecer que esta última conclusão não se inclui no critério normativo impugnado, sendo apenas um mero corolário dele extraído pela Recorrente e que, portanto, não integra a norma sindicada.

Vejamos, em primeiro lugar, se a questão da constitucionalidade daquela norma foi adequadamente suscitada.

Segundo a Recorrente, a questão foi suscitada na contestação por si apresentada, enquanto exceção inominada de inconstitucionalidade, bem como nas contra-alegações do recurso de apelação nas pp. 12 e 25, e ainda nas conclusões 10.ª e 22.ª dessa peça processual.

Analisadas as referidas peças processuais, constata-se que nas contra-alegações - peça processual onde a Recorrente tinha o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade, em termos de a mesma poder ser sujeita à apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto - foi levantada a questão da interpretação da norma do artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, no sentido de não ser admitida a possibilidade de transação entre o "trabalhador" e o "empregador" quanto à natureza do vínculo contratual celebrado entre ambos, sustentando-se que tal dimensão normativa era violadora de determinadas normas e princípios constitucionais (cf. conclusões 10.ª e 22.ª das contra-alegações).

Sendo certo que a questão não foi enunciada com as mesmas palavras que foram utilizadas no requerimento de interposição de recurso, é indiscutível que é precisamente a mesma questão que agora é colocada ao Tribunal Constitucional e que foi assim percebida pelo tribunal recorrido.

Embora o acórdão recorrido, na sua fundamentação, tenha remetido para outro acórdão do Tribunal da Relação do Porto que analisava a possibilidade de uma desistência do pedido pelo trabalhador, foram analisadas, no acórdão transcrito, questões de constitucionalidade semelhantes às que estão em causa nos presentes autos, conforme considerou também o próprio tribunal recorrido, quando transpôs essa fundamentação para a decisão do litígio que lhe foi presente.

Por outro lado, o fundamento da improcedência do recurso decidido pelo Tribunal da Relação do Porto foi precisamente o entendimento de que o disposto no artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, não permitia na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando, em sede de audiência de partes, que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços, tendo para isso se socorrido da argumentação utilizada noutro acórdão da mesma Relação que tinha concluído pela inadmissibilidade duma desistência do pedido pelo putativo trabalhador em idêntica ação.

Verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do objeto do presente recurso, resta apreciar o seu mérito

2 - Do mérito do recurso

O objeto do presente recurso é a norma do artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, que aprovou a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, interpretada no sentido acima referido.

Segundo a Recorrente, a referida norma constante do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, na referida interpretação, adotada pelo Acórdão recorrido, viola os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de ação, previstos, respetivamente, nos artigos 47.º, n.º 1, e 20.º, n.os 1 e 4 da Constituição e, bem assim, os princípios da igualdade e do direito a um processo equitativo, previstos respetivamente nos artigos 13.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, uma vez que tal interpretação determina que não esteja na disponibilidade dos sujeitos da relação material controvertida transigir, em sede de audiência de partes, no sentido de que esta relação é de prestação de serviços, pondo, assim, termo ao processo. Daqui resulta, ainda segundo a Recorrente, que pode ser declarada a existência de contrato (in casu, de trabalho) sem vontade de nenhum dos contraentes, interpretação que não respeita o sentido do texto legislativo, sendo incoerente com as soluções previstas pelo sistema jurídico para situações semelhantes e conduzindo a resultados distintos para pretensões iguais, sem justificação adequada.

Antes de apreciar se a interpretação normativa sindicada viola os referidos parâmetros constitucionais, importa, para melhor análise das questões de constitucionalidade, proceder a um enquadramento das alterações legislativas introduzidas pela Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Tal enquadramento foi efetuado no Acórdão 94/15, proferido por esta 2.ª Secção (acessível em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos do Tribunal Constitucional que a seguir se referem sem outra menção expressa), no qual se apreciou a inconstitucionalidade do regime normativo introduzido pela referida Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Escreveu-se o seguinte, a esse respeito, no mencionado acórdão:

«Esta lei [Lei 63/2013, de 27 de agosto], conforme consta do seu artigo 1.º, teve como propósito instituir «mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado». Tendo em vista esse objetivo, criou um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (previsto no 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, aditado pelo artigo 4.º da referida Lei 63/2013, de 27 de agosto), bem como uma nova ação judicial (a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho), que passou a integrar o conjunto das ações enumeradas no artigo 26.º, estando a sua tramitação prevista nos artigos 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho, aditados pelo artigo 5.º da referida Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Este último diploma teve a sua origem no Projeto de Lei 142/XII, resultante de iniciativa legislativa de cidadãos, em cuja exposição de motivos constava o seguinte:

«A precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros. Com a situação atual, defrauda-se o presente, insulta-se o passado e hipoteca-se a futuro. Desperdiçam-se as aspirações de toda uma geração de novos trabalhadores, que não pode prosperar. Desperdiçam-se décadas de esforço, investimento e dedicação das gerações anteriores, também elas cada vez mais afetadas pelo desemprego e pela precariedade. Desperdiçam-se os recursos e competências, retiram-se esperanças e direitos e, portanto, uma perspetiva de futuro.

É necessário desencadear uma mudança qualitativa do país. É urgente terminar com a situação precária para a qual estão a ser arrastados os trabalhadores, que legitimamente aspiram a um futuro digno com direitos em todas as áreas da vida.

Assim, a presente "Lei Contra a Precariedade" introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo e a trabalho temporário.»

No decurso do processo legislativo, o referido Projeto de Lei 142/XII baixou à Comissão de Segurança Social e Trabalho, sem votação, por um prazo de 30 dias, após o que esta Comissão apresentou um texto de substituição que, tendo merecido aprovação, veio dar origem à Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Este diploma legislativo deve ser enquadrado num âmbito mais vasto, inserindo-se num conjunto de outras intervenções legislativas anteriores orientadas no sentido de combater a utilização indevida da figura do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado e a consequente precaridade laboral daí decorrente.

Importa, por isso, proceder a uma breve análise desta problemática.

Como é sabido, a qualificação de determinada relação jurídica como sendo um contrato de trabalho implica a aplicação a essa relação de um determinado regime jurídico, não só no plano laboral, mas também, por exemplo, para efeitos contributivos. São frequentes, por isso, como forma de impedir a aplicação destas regras, as práticas de fuga ao regime laboral.

Tais práticas traduzem-se, muitas vezes, em titular expressamente o contrato em causa como contrato de prestação de serviços, embora, na sua execução prática, esse contrato tenha as características de um contrato de trabalho, designadamente, pelo facto de o trabalhador estar colocado perante o empregador numa posição de subordinação. Noutros casos, em que o contrato não é reduzido a escrito, a contratação do trabalhador é efetuada em regime de trabalho independente, com a emissão do correspondente recibo pelo trabalhador, quando na verdade este se encontra a desempenhar as duas funções em regime de subordinação (é a questão dos denominados "falsos independentes" ou falsos "recibos verdes").

Este recurso indevido à figura da prestação de serviços em situação de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado tem diversas implicações negativas laterais, entre as quais, o prejuízo que as mesmas acarretam para a sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam, para além de implicar uma concorrência desleal entre empresas (sobre esta matéria e, em geral, sobre o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, cf. Pedro Petrucci de Freitas, Da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho: breves comentário, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez -2013, pp. 1423 e ss.).

Por outro lado, embora o trabalhador seja, por regra, o principal interessado na qualificação dessa relação jurídica como contrato de trabalho (por ser essa a qualificação que, tendencialmente, lhe confere uma melhor tutela), a sua situação de dependência económica em face da entidade empregadora faz com que se sinta normalmente inibido de acionar judicialmente esta última entidade no sentido de ser reconhecida a natureza laboral da referida relação, o que torna ainda mais difícil a prova dos elementos característicos de um contrato de trabalho, designadamente, da existência de uma relação de subordinação.

Face a este conjunto de problemas e dificuldades, não é de agora a preocupação do legislador em combater estas práticas de evasão à tutela laboral, tendo vindo a adotar diversas medidas com esse objetivo.

Uma dessas medidas traduziu-se na consagração de presunções de laboralidade, com a finalidade de facilitar a prova da existência de um contrato de trabalho em situações de dúvida, protegendo a posição do trabalhador no diferendo sobre a qualificação do seu contrato.

Embora tivesse sido anteriormente tentada a sua consagração (designadamente, através de um projeto legislativo apresentado 1996), só com o Código do Trabalho de 2003 se veio a prever expressamente, no artigo 12.º, uma presunção de laboralidade. Esta norma, embora com novas formulações, foi mantida quer com as alterações ao Código do Trabalho entretanto efetuadas pela Lei 9/2006, de 20 de março, quer no Código de Trabalho de 2009, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro.

A Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o Código do Trabalho de 2009, assumiu claramente o propósito de combater as situações de dissimulação de contrato de trabalho.

Tendo em vista esse objetivo, procedeu a alterações relativas à caracterização do contrato de trabalho e introduziu medidas de combate ao falso trabalho independente.

Assim, o referido Código definiu o contrato de trabalho como sendo «aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas» (cf. artigo 11.º do Código do Trabalho) e, conforme se disse, alterou a redação do artigo 12.º do anterior código, mantendo a consagração de uma presunção de laboralidade.

Assim, no n.º 1 deste artigo 12.º estabeleceu-se uma presunção da existência de um contrato de trabalho nos casos em que, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das características enumeradas nas alíneas a) a e) desta norma.

De realçar ainda que na redação introduzida em 2009, o artigo 12.º, do Código do Trabalho passou a sancionar, no seu n.º 2, como contraordenação muito grave imputável ao empregador, as situações de qualificação fraudulenta do negócio, cujo objetivo seja a subtração ao regime laboral, quando se possa com isso causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado, estabelecendo o n.º 3, em caso de reincidência, a aplicação de uma sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, por período até dois anos.

Estas medidas foram justificadas na exposição de motivos da Proposta de Lei 216/X (que veio a dar origem à referida Lei 7/2009, de 12 de fevereiro). Refere-se aí que «[...] com o desiderato de combater a precariedade e a segmentação dos mercados de trabalho, alteram-se os pressupostos que operam para a presunção da caracterização do contrato de trabalho e cria-se de uma nova contraordenação, considerada muito grave, para cominar as situações de dissimulação de contrato de trabalho, com o desiderato de combater o recurso aos "falsos recibos verdes" e melhorar a eficácia da fiscalização neste domínio».

Foi também este o propósito subjacente à aprovação da Lei 107/2009, de 14 de setembro (que estabelece o regime jurídico do procedimento aplicável às contraordenações laborais e de segurança social), conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei 282/X (que esteve na origem do referido diploma legislativo), onde consta, além do mais, ter sido acordado entre o XVII Governo Constitucional e os parceiros com assento na Comissão Permanente de Concertação Social (CPCS) «[...] que o novo regime processual de contraordenações deveria prever a atribuição de competências à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e aos serviços do Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) para qualquer um deles poder intervir na identificação de situações de dissimulação de contrato de trabalho, de forma a prevenir e a desincentivar o incumprimento dos deveres sociais e contributivos das empresas e a garantir o direito dos trabalhadores à proteção conferida pelo sistema de segurança social», acrescentando-se ainda que «tal desiderato só será alcançável se forem criados os mecanismos e as condições que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem, designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente eficaz e preventiva, no combate à utilização abusiva dos "falsos recibos verdes"».

Por outro lado, a preocupação com o combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços teve também reflexos no âmbito do regime das contribuições devidas à segurança social. Assim, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (aprovado pela Lei 110/2009, de 16 de setembro), relativamente aos trabalhadores independentes, considera no seu artigo 132.º que são obrigatoriamente abrangidos por tal regime «as pessoas singulares que exerçam atividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho ou a contrato legalmente equiparado, ou se obriguem a prestar a outrem o resultado da sua atividade, e não se encontrem por essa atividade abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem». No entanto, o artigo 140.º, n.º 1, do mesmo diploma, estabelece que «As pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, que no mesmo ano civil beneficiem de pelo menos 80 % do valor total da atividade de trabalhador independente, são abrangidas pelo presente regime na qualidade de entidades contratantes».

A obrigação contributiva destas entidades contratantes «constitui-se no momento em que a instituição de segurança social apura oficiosamente o valor dos serviços que lhe foram prestados e efetiva-se com o pagamento da respetiva contribuição» e, verificada tal situação (que, nos termos do referido artigo 140.º, n.º 1, ocorre sempre que as pessoas coletivas e as pessoas singulares, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, beneficiem, no mesmo ano civil, de pelo menos 80 % do valor total da atividade do trabalhador independente), são notificados «os serviços de inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho ou os serviços de fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., com vista à averiguação da legalidade da situação».

Deste regime legal resulta que, constatando-se que determinado trabalhador prestou no mesmo ano civil, em regime de trabalho independente, 80 % do valor total da sua atividade à mesma entidade, se considera que poderão existir indícios de uma verdadeira relação de trabalho subordinado, sendo essa a razão da notificação dos serviços de inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho ou dos serviços de fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., para fiscalização da legalidade da situação.

Assim, como o demonstram todas as referidas intervenções legislativas no sentido de combater tal prática, o problema do recurso indevido à figura da prestação de serviços em situações de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado não é um problema novo.

É certo que a Lei 63/2013, de 27 de agosto, veio estabelecer, por um lado, a regulamentação do procedimento a adotar pela ACT quanto constate que se verifica uma situação de utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado e, por outro lado, na sequência deste procedimento, uma nova ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

O referido procedimento encontra-se regulado no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, aditado pela Lei 63/2013, de 27 de agosto. De acordo com o n.º 1 deste artigo, no caso de o inspetor do trabalho verificar a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.

Na hipótese, prevista no n.º 2 do referido artigo 15.º-A, de o empregador fazer prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, o procedimento é arquivado.

No caso de se mostrar decorrido o prazo previsto no n.º 1 deste artigo 15.º-A sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, o n.º 3 determina que a ACT remeta, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Assim, o que este artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, trouxe de inovador foi a criação de um específico procedimento formal em que estabelece quais os trâmites a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços, ficando a ACT, enquanto entidade de natureza pública, vinculada à sua observância.

No entanto, no plano substantivo, esta matéria já havia sido, conforme se referiu, objeto de intervenção legislativa. Por outro lado, mesmo antes da entrada em vigor da Lei 63/2013, de 27 de agosto, a ACT tinha já a possibilidade de, em tais casos, - seguindo eventualmente outros trâmites que não os que estão agora especificamente regulados no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro - atuar no âmbito das suas competências e atribuições, por via de ação inspetiva, de modo a promover a regularização da utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, bem como participar as infrações à Segurança Social, Administração Tributária e Aduaneira e ao Ministério Público. A isto acresce que, tal como atualmente, o trabalhador poderia também recorrer à via judicial no sentido de ver regularizada uma situação de dissimulação do contrato de trabalho, através de uma ação de processo comum (cf., a este respeito, Pedro Petrucci de Freitas, ob. cit., pp.1426-1427).»

Tendo em conta este enquadramento do regime instituído pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, bem como os seus antecedentes legislativos, importa agora apreciar as questões de constitucionalidade em causa nos autos.

2.1 - Da violação do princípio da liberdade de escolha do género de trabalho

Segundo a Recorrente, a interpretação normativa do artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, «no sentido de que o putativo trabalhador não pode dispor do objeto do litígio e, consequentemente, não pode transigir na audiência de partes com o alegado empregador no sentido da existência entre ambos de contrato de prestação de serviços, pondo desta forma termo à ação», infringe o princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, tutelada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que permite que a prestação oferecida a título profissional seja reconduzida a um modelo contratual típico (in casu, o contrato de trabalho) por efeito de vontade de terceiro, sem consideração pelos interesses específicos de quem a realiza, nem pelas opções destes.

Segundo a Recorrente, decorre do acórdão recorrido, que o Tribunal da Relação do Porto considerou ser absolutamente irrelevante a vontade do alegado trabalhador, manifestada na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, por entender que o trabalhador «não pode dispor do direito [...] que o Ministério Público prossegue nesta ação», sustentando por isso que a transação efetuada nos autos entre os alegados trabalhador e empregador, no sentido de que entre ambos vigora contrato de prestação de serviços, não é válida, não podendo ser homologada.

Ora, sustenta a Recorrente, inserindo-se o contrato de trabalho no domínio da autonomia da vontade e constituindo expressão dessa vontade, da interpretação do regime previsto no artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, efetuada pela decisão recorrida decorre a possibilidade de haver contrato (in casu, de trabalho) sem vontade de nenhum dos contraentes, em ação judicial cujos efeitos respeitam apenas àqueles e se limitam à declaração da existência de vínculo entre eles.

Tal significa, segundo a Recorrente, que o Estado poderia interferir na escolha do tipo contratual e obrigar as partes a modificar a relação estabelecida entre elas, assim como poderia impor-lhes que litiguem em Tribunal mesmo sem terem qualquer litígio referente a essa relação, não obstante decorrer do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, negativamente, a proibição de o Estado vincular quem quer que seja a certo género de trabalho, não tendo o Ministério Público poder para conformar todas as relações jurídicas, designadamente as de natureza privada, com o ordenamento jurídico vigente em cada momento.

Conclui, por isso, que a interpretação defendida pelo Tribunal da Relação do Porto no sentido de que o alegado trabalhador não pode dispor do direito em litígio, o qual consiste na qualificação da relação contratual de que é parte como contrato de trabalho, viola o princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, na sua vertente da liberdade de exercício, previsto no artigo 47.º da Constituição, porquanto a prestação oferecida a título profissional pode ser reconduzida a modelo contratual típico (in casu, o contrato de trabalho) por efeito de vontade de terceiro, sem consideração pelos interesses específicos de quem a realiza, nem pelas opções tomadas aquando do respetivo exercício.

No Acórdão 94/2015, proferido por esta 2.ª secção, a que a Recorrente faz referência nas suas alegações, concluiu-se pela não inconstitucionalidade dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e 186.º-K a 186.º-R, todos do CPT, entendendo-se, além do mais, que tal regime não se mostrava desconforme com os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho, com os seguintes fundamentos:

«[...]

Segundo a decisão recorrida, podendo a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» conduzir à modificação da relação jurídica em causa, torna-se possível atribuir a uma pessoa, que preste uma qualquer atividade a outrem, a qualidade jurídica de trabalhador, com sujeição às inerentes obrigações, quando essa pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou quando está vinculada a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral.

Na primeira hipótese, segundo a decisão recorrida, enquadram-se os casos das pessoas que optem por exercer a sua atividade em regime distinto do contrato de trabalho para não estarem sujeitas às obrigações que este tipo de contrato impõe. Segundo a decisão recorrida, estas pessoas podem ver a sua liberdade de escolha do género de trabalho ser violada pela «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho». Na segunda hipótese, ainda de acordo com a decisão recorrida, encontram-se os prestadores de atividade que já têm um contrato de trabalho com uma certa entidade e que, embora podendo prestar trabalho a outras pessoas ou entidades, não o podem legalmente fazer sujeitos a nova relação de subordinação jurídica, pelo que o fazem no quadro de um qualquer tipo contratual pelo qual livremente optam, o que lhes é constitucionalmente garantido pelo referido princípio fundamental da liberdade de escolha do género de trabalho, liberdade esta que é também violada pela «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho».

O n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, que a decisão recorrida entende ter sido violado, garante a todos «o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».

A liberdade de escolha de profissão, consagrada nesta norma, para além da faculdade de escolher livremente a profissão desejada, abrange, na sua dimensão positiva, vários níveis de realização, incluindo a obtenção das habilitações académicas e técnicas para o exercício da profissão, o ingresso na profissão e o exercício da profissão, sendo de entender que o exercício livre da profissão está igualmente inserido no âmbito normativo de proteção do artigo 47.º, n.º 1.

Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 967) «não obstante o artigo 47.º, n.º 1, só se referir ao direito de escolha livre da profissão ou do género de trabalho, a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere à questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira».

E ainda segundo estes autores (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, p. 965-966), numa dimensão positiva, a liberdade de escolha de profissão compreende diversas pretensões específicas, entre as quais «o direito de escolher o regime de trabalho - o trabalho independente, o trabalho subordinado por conta de qualquer empresa, a função pública ou trabalho subordinado por conta do Estado ou de outra entidade pública e a própria iniciativa económica (artigo 61.º), esta na medida em que a iniciativa ou a gestão de uma atividade empresarial (privada, cooperativa ou autogestionária) pressupõe, além de outras, uma escolha do género ou tipo de trabalho».

Conforme decorre da respetiva fundamentação, é esta a dimensão do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho que a decisão recorrida entende ter sido violada pelo regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho».

No entanto, é manifesto que tal regime legal não coloca em causa este direito. Com efeito, o que se pretende com o mesmo não é impor a quem presta determinada atividade remunerada que o faça, contra a sua vontade, em regime de contrato de trabalho, mesmo que o pretenda fazer em regime de trabalho independente.

Conforme se viu, o que se pretende é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviço nas situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviço, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral. Nas situações problematizadas na decisão recorrida (os casos em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou em que está vinculada a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral), não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que, nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral.

Nestas situações, o referido regime contém suficientes garantias de esta vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratada como sendo um caso de trabalho subordinado.

Com efeito, o artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo de Trabalho, determina que, simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, sejam remetidos ao trabalhador o duplicado da petição inicial e da contestação, simultaneamente «com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário» e o artigo 186.º-O, também do Código de Processo de Trabalho prevê, no seu n.º 1, que «[s]e o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los».

Independentemente das eventuais deficiências técnicas deste regime apontadas pela decisão recorrida (matéria sobre a qual não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se), a verdade é que o mesmo garante a intervenção nos autos, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, sendo facultada ao trabalhador, a oportunidade processual de tomar posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua atividade, podendo, além do mais, invocar que se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho (designadamente, por não querer estar sujeito a nenhuma relação de subordinação jurídica ou por estar vinculado a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter outra relação jurídica de natureza laboral).

Face ao exposto, não se nos afigura que o regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» viole a liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho.

[...]».

No caso dos autos, a Recorrente sustenta que a decisão recorrida, ao interpretar a norma do 186.º-O, n.º 1, do CPT, no sentido apontado, preconiza um entendimento que é contrário ao sustentado pelo Tribunal Constitucional no citado Acórdão.

Contudo, não lhe assiste razão.

No referido Acórdão entendeu-se que o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, previsto nos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e 186.º-K a 186.º-R, todos do CPT, não violava a liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho.

Desde logo, importa salientar que no âmbito do Direito do Trabalho o princípio da autonomia privada não tem a mesma amplitude que no Direito Civil. A este respeito, António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 16.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 22-23), sustentando uma posição que é comum na doutrina, refere o seguinte:

«O Direito do Trabalho apresenta-se, assim, ao mesmo tempo, sob o signo da proteção do trabalhador e como um conjunto de limitações à autonomia privada individual. O contrato de trabalho é integrado por uma constelação de normas que vão desde as condições pré-contratuais, passam pelos direitos e deveres recíprocos das partes, atendem com particular intensidade aos termos em que o vínculo pode cessar, e vão até aspetos pós-contratuais (como a preferência na readmissão e a abstenção de concorrência).

É, pois, traço de caráter do Direito do Trabalho a desvalorização da estipulação individual das condições de trabalho - a chamada "individualização" do conteúdo da relação de trabalho. Se a liberdade formal do candidato ao emprego é pressuposto do contrato, como meio de acesso ao trabalho livre - com exclusão do trabalho forçado, servil ou compelido -, a verdade é que a liberdade de estipulação está, pelo lado do trabalhador, originariamente condicionada. As condições do contrato, na medida em que se encontram na disponibilidade dos contraentes, são, em regra, ditadas pelo empregador, a quem cabe, também, a iniciativa do processo negocial e, depois, já na fase de execução do contrato, a determinação concreta da posição funcional do trabalhador. A atuação do Direito do Trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver.»

Em sentido semelhante, sustentando que a autonomia dogmática do Direito do Trabalho se alicerça em «princípios ou valorações materiais subjacentes ao sistema normativo laboral» que se diferenciam dos princípios subjacentes ao Direito Civil, Maria do Rosário Palma Ramalho refere que é «inevitável o reconhecimento da autonomia dogmática do direito do trabalho, porque subjacentes aos diversos institutos e regimes laborais [...] se encontram valorações materiais específicas, e porque a própria construção da área jurídica em termos sistemáticos é informada por uma lógica que a afasta do direito civil: por um lado, [...] os principais institutos laborais (o contrato de trabalho, a convenção coletiva e a greve) mostram-se irredutíveis aos quadros dogmáticos do direito comum, porque o seu regime jurídico contraria alguns dos princípios civis fundamentais e se orienta por valores concorrentes ou alternativos aos do direito civil, como o da proteção do trabalhador ou o da salvaguarda dos interesses de gestão do empregador, o da igualdade de tratamento entre trabalhadores ou o da autonomia coletiva; por outro lado, a organização do sistema normativo laboral com base numa lógica coletiva e de autossuficiência (provada pela indissociabilidade dos fenómenos laborais individuais e coletivos e pela capacidade de desenvolver recursos específicos de tratamento dos problemas de interpretação e aplicação das normas laborais e da tutela dos interesses e institutos laborais, que asseguram a coerência interna e a sobrevivência do próprio sistema) mostra-se também inspirada por valores específicos, atinentes à proteção dos interesses dos trabalhadores e/ou dos empregadores, à autonomia coletiva ou à paz social» (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 961-962; cf. ainda, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I - Dogmática Geral, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 493 e ss.).

Ora, é no contexto destes valores subjacentes ao Direito do Trabalho, e tendo em atenção que, nas relações laborais, embora exista uma liberdade formal por parte do prestador de trabalho como pressuposto do contrato, tal liberdade está, muitas vezes, condicionada pelo empregador, que deve ser entendido o regime jurídico da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a qual visa, como vimos, prevenir as situações de utilização abusiva da figura do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado ou da utilização dos chamados "falsos recibos verdes", enquanto práticas de fuga ao regime laboral.

Assim, a interpretação normativa sindicada, inserida na lógica deste regime, não é limitativa da liberdade de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho, uma vez que com ela não se pretende impedir a celebração de contratos de prestação de serviços, nem impor que determinado contrato siga o regime do contrato de trabalho, mas apenas permitir que, verificada pela ACT a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, e instaurada, nessa sequência, a ação para reconhecimento da existência de contrato de trabalho, o prosseguimento dessa ação não se fruste, impedindo que o tribunal possa apurar se está ou não perante um caso de celebração de um falso contrato de prestação de serviços, que visa apenas encobrir um verdadeiro e efetivo contrato de trabalho.

Com efeito, embora o trabalhador seja em regra, o principal interessado na qualificação dessa relação jurídica como contrato de trabalho (por ser essa a qualificação que, tendencialmente, lhe confere uma melhor tutela), a sua situação de dependência económica em face da entidade empregadora, que faz com que se sinta normalmente inibido de acionar judicialmente esta última, pode também condicioná-lo no sentido de celebrar tal tipo de transação em juízo no que respeita à qualificação do contrato, uma vez instaurada a ação pelo Ministério Público.

Esta circunstância, contudo, em nada condiciona a liberdade de profissão, na referida dimensão, uma vez que, não está em causa, repete-se, impor que o putativo trabalhador fique sujeito a um determinado regime de prestação de atividade laboral, contra a sua vontade, mas apenas averiguar qual a natureza do vínculo a que ele já se encontra realmente vinculado e que é preexistente à ação e à transação por este celebrada e não homologada.

Pelo exposto, a interpretação normativa objeto do presente recurso não viola a liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho.

2.2 - Da violação do direito de ação e do direito a um processo equitativo

Segundo alega a Recorrente, sendo a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho uma ação de simples apreciação positiva, uma vez que a sentença nela proferida se limita a declarar que entre as partes vigora ou não um contrato de trabalho, a necessidade de recurso a juízo funda-se na existência de conflito de interesses, tal como acontece nas ações desta natureza.

Ora, continua a Recorrente, se os contraentes da relação jurídica objeto de qualificação nos autos - os únicos em cuja (única) esfera jurídica se projetam os efeitos da ação - estão de acordo quanto à natureza do vínculo jurídico que mantêm, a situação nada tem de dúvida ou incerteza, não se justificando o prosseguimento da ação.

Daí que, sustenta a Recorrente, da interpretação feita pelo Tribunal da Relação do Porto do regime jurídico da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho extrai-se que tal mecanismo, por iniciativa de uma entidade pública (a Autoridade para as Condições do Trabalho) e por impulso processual de outra (o Ministério Público), se esgota na qualificação jurídica de vínculo contratual, à revelia das respetivas partes, mas com efeitos jurídicos circunscritos a estas.

Acrescenta ainda a Recorrente que, de acordo com o acórdão recorrido, a vontade prevalecente na composição de interesses subjacente ao litígio pertence a terceiro, que não é parte na relação jurídica material controvertida, em ação que se limita a qualificar a natureza desta, uma vez que, de acordo com a interpretação do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, feita pelo tribunal recorrido o alegado trabalhador não pode dispor do direito que o Ministério Público prossegue na ação, pelo que, em sede de audiência de partes, não lhe é permitido celebrar transação com o alegado empregador no sentido de que entre ambos vigora contrato de prestação de serviços.

Conclui, por isso, a Recorrente que da aludida interpretação se extrai que pode vir a ser declarada a existência de contrato de trabalho entre dois sujeitos de Direito Privado, sem que tenha sido assegurada, pelo menos a um deles - o alegado trabalhador -, a possibilidade de defender a sua posição no processo (quando esta seja em sentido diverso do entendimento do Ministério Público), pelo que tal interpretação do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, põe em causa o direito de ação, bem como o direito a um processo equitativo.

A Recorrente faz assentar a violação do direito de ação e do direito a um processo equitativo na circunstância de o alegado trabalhador não poder defender a sua posição no processo, quando esta seja diversa do entendimento do Ministério Público.

Contudo, o que está em causa na interpretação normativa sindicada é tão só a circunstância de não ser possível ao trabalhador transigir na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, no sentido de qualificar determinada relação jurídica como sendo um contrato de prestação de serviços (e não um contrato de trabalho), e de ser reconhecido ao Ministério Público o direito autónomo de prosseguimento da ação, alheio à posição assumida pelos putativos trabalhador e empregador.

Efetuada esta delimitação da questão, importa agora apreciar se ocorre a invocada violação do direito de ação e do direito a um processo equitativo.

O artigo 20.º da Constituição, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva», garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão 440/94).

Acresce ainda que o direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, Volume I, págs. 415 e 416).

Por outro lado, importa ainda salientar que a exigência de um processo equitativo, consagrada no referido artigo 20.º, n.º 4, da Constituição não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. No entanto, no seu núcleo essencial, tal exigência impõe que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

Centrando agora a atenção na apreciação do caso concreto dos autos, não se vislumbra que a interpretação normativa do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, adotada pela decisão recorrida viole, em qualquer das aludidas dimensões, o direito de ação e o direito a um processo equitativo. Com efeito, conforme já referido, esta ação tem início mediante o impulso processual do Ministério Público e tem em vista a proteção de determinados interesses públicos, aspetos que têm influência na modelação do seu regime. Contudo, conforme já salientou o Tribunal, quer no Acórdão 94/2015, quer no Acórdão 204/2015, o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não deixa de permitir a possibilidade de intervenção, quer do empregador, quer do trabalhador (artigo 186.º, n.os 2 e 4 do CPT), garantindo-lhes ainda o direito à apresentação de prova (artigo 186.º-N, n.º 3), o direito ao recurso (artigo 186.º-P), bem como o respeito de outros direitos processuais essenciais, tais como, o direito à igualdade de armas, ao contraditório, à fundamentação das decisões e a um processo orientado para a justiça material.

No caso, a Recorrente faz assentar a sua argumentação na circunstância de o alegado trabalhador não poder dispor do direito que o Ministério Público prossegue na ação, na medida em que, em sede de audiência de partes, não lhe é permitido celebrar transação com o alegado empregador no sentido de que entre ambos vigora contrato de prestação de serviços.

Ora, conforme se referiu e foi também salientado no citado Acórdão 94/2015, o que se pretende com o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviço nas situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviços, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral - sendo este o interesse público subjacente à atuação do Ministério Público nesta matéria. Nos casos em que o trabalhador não se tenha vinculado a uma relação jurídica de natureza laboral, não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços, visto que, nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretendeu que a relação jurídica em causa seja submetida ao regime do contrato de trabalho.

No entanto, o exercício destas faculdades por parte do putativo trabalhador não implica, necessariamente, que lhe seja conferido o direito a efetuar uma transação nos termos pretendidos pela Recorrente. Tal como acontece noutro tipo de processos em que estão em causa outros direitos e interesses, que não apenas os das partes, o facto de os direitos em causa não poderem ser objeto da aludida transação, não impede o putativo trabalhador de manifestar a sua posição e fazer valer nos autos as suas razões, no sentido de que o contrato em causa não deve ser qualificado como um contrato de trabalho subordinado, designadamente, tomando posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua atividade (invocando, por exemplo, as razões pelas quais se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho) e carreando para o processo os elementos que entenda pertinentes para sustentar essa posição, de modo a que o tribunal possa apreciar a situação e, em conjunto com os demais elementos probatórios, extrair uma conclusão quanto à qualificação do tipo de contrato em causa.

É certo que, de acordo com a interpretação do tribunal a quo, o putativo trabalhador, neste tipo de ação, não terá o direito de transigir no que respeita à qualificação do contrato. Contudo, esta é apenas uma das diversas faculdades que a tramitação processual normalmente faculta às partes para manifestar a sua posição e demonstrar qual a sua vontade.

Contudo, sendo também claro, conforme se referiu, que nesta matéria não estão envolvidos interesses exclusivamente privados, não é destituída de sentido a posição de considerar excluída a possibilidade de transação nos termos expostos, na medida em que tal impediria o tribunal de averiguar qual a natureza da relação jurídica em causa.

Com efeito, em geral, nestas situações, o alegado trabalhador e a respetiva entidade patronal, já haviam qualificado o contrato firmado entre ambos como "contrato de prestação de serviços" e, não obstante essa qualificação, tendo a ACT recolhido indícios da existência de um contrato de trabalho subordinado, há lugar, nos termos já referidos, à instauração da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho. Daí que, a ser permitida a possibilidade de extinguir o processo através de transação em que as partes do aludido contrato se limitem a confirmar a referida qualificação, resultaria completamente inutilizada a razão de ser deste tipo de ação, que perderia qualquer utilidade prática.

Face ao exposto, não se afigura que o regime da ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho viole o direito de ação e o direito a um processo equitativo, consagrados no artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição.

2.3 - Da violação do princípio da igualdade

Segundo a Recorrente, a interpretação normativa sindicada é inconstitucional também por violação do princípio da igualdade, a partir da comparação das correspondentes soluções legais com as previstas em sede de processo laboral comum e, bem assim, com as aplicáveis aos trabalhadores cuja atividade não seja abrangida por ação inspetiva da Autoridade para as Condições de Trabalho.

Alega a Recorrente que se verifica uma situação de desigualdade injustificada entre a situação de putativo trabalhador que conhece a intervenção inspetiva da Autoridade para as Condições do Trabalho e aquele que, na mesma situação material, não é por ela abrangido. Na sua alegação, de acordo com a interpretação do tribunal recorrido, a primeira situação desencadeará oficiosamente um meio de tutela jurisdicional, em que a posição do Ministério Público prevalece sobre a vontade das partes na relação material controvertida, sendo, por isso, irrelevante qualquer manifestação de vontade destas no sentido da existência de vínculo de prestação de serviços.

Nesse caso, sustenta a Recorrente, ainda que nenhuma das partes na relação contratual pretenda manter contrato de trabalho, pode vir a ser declarada a existência entre ambos de um vínculo dessa natureza, por via de ação proposta por terceiros, mas cujos (únicos) efeitos se projetam na esfera jurídica daquelas.

Em circunstâncias idênticas, continua a Recorrente, um prestador de serviços cuja situação não tenha sido objeto de intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho, não verá a sua situação contratual modificada por via da intervenção de terceiro, alheio ao contrato, sendo esta apenas suscetível de alteração caso o mesmo o pretenda (propondo, para o efeito, ação declarativa, em processo comum).

No âmbito de ação com processo comum instaurada pelo putativo trabalhador, no qual este formula pedido de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pode este dispor livremente do objeto do litígio, desistindo do pedido ou transigindo com o alegado empregador, inclusive no sentido da existência de contrato de prestação de serviços.

Diferentemente, de acordo com a interpretação do tribunal a quo, na ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, o alegado trabalhador não pode dispor do objeto da ação, transigindo com o alegado empregador no sentido de que a relação contratual existente entre ambos é de prestação de serviços.

Conclui a Recorrente que esta diferença de tratamento normativo de duas situações idênticas, que reclamam a mesma proteção, constitui resultado ofensivo do princípio da igualdade de tratamento, previsto no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, determinando a inconstitucionalidade da norma do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, na interpretação aplicada pela decisão recorrida.

No referido Acórdão 94/2015 este Tribunal foi chamado a apreciar a conformidade do regime da ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho com o princípio da igualdade, concretamente, por a decisão aí recorrida ter entendido que este regime estabelece uma regulamentação completamente distinta e muito mais favorável do que a regulamentação que se encontra fixada para a ação declarativa comum, cujo objeto e pedido (pelo menos, o principal) é exatamente o mesmo, considerando existir uma diferenciação injustificada e desproporcional entre os regimes destes dois tipos de ação, cuja finalidade é exatamente a mesma, ao que acresce o facto de se conferir uma proteção e tutela jurídica e processual maior e mais favorável numa situação em que não existe conflito entre as partes, em comparação com a proteção conferida na situação em que tal conflito existe e é real e que, por isso, seria mais urgente solucionar.

No mencionado Acórdão 94/2015 o Tribunal entendeu não existir violação do princípio da igualdade, com a seguinte fundamentação:

«A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. No entanto, importa realçar que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Significa isto que só existirá infração ao princípio da igualdade quando os limites externos da discricionariedade legislativa sejam violados, isto é, quando a medida legislativa adotada não tenha adequado suporte material.

Ou seja, a teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade.

Definidos assim os contornos do princípio da igualdade nesta dimensão, importa agora apreciar se o mesmo se mostra violado pelas normas cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida.

Como vimos, a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» tem subjacente um procedimento prévio (previsto no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro), em que, tendo sido verificada a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas às de um contrato de trabalho, e na falta de regularização da situação pela entidade empregadora, a ACT remete participação dos factos para os serviços do Ministério Público para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Ou seja, esta ação tem na sua base uma verificação prévia por parte de uma entidade pública (a ACT), a quem foram atribuídas competências para o efeito, da existência de indícios de uma situação de qualificação fraudulenta (e legalmente proibida) de um determinado contrato como tendo uma natureza diferente de um contrato de trabalho, com o objetivo da subtração da relação em causa ao regime laboral, causando-se com isso prejuízo ao trabalhador e ao Estado.

Por outro lado, a intervenção do Estado neste âmbito tem, como vimos, subjacentes diversas razões de interesse público, que levam a que o Estado proceda a um escrutínio (e mesmo à punição) das situações em que se pretenda, de modo fraudulento, impedir a aplicação do regime laboral a uma relação jurídica que, substancialmente, tem as características de um contrato de trabalho.

Estas razões fazem com a que a situação não seja idêntica aos casos em que, pura e simplesmente, surja um litígio entre determinadas pessoas sobre a qualificação de determinada relação jurídica (que, inclusive, poderá até já ter cessado), como contrato de trabalho.

Por outro lado, nas situações em que se esteja perante circunstâncias idênticas às que motivaram a aprovação do regime da ação para o reconhecimento de existência de contrato de trabalho, o trabalhador que pretenda discutir a qualificação da sua situação não está impedido de, em vez que propor uma ação de processo comum, participar a situação à Autoridade para as Condições de Trabalho que, na sequência dessa queixa, caso verifique que a situação se enquadra nos pressupostos previstos no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, dará seguimento à mesma no sentido de ser proposta a competente ação.

Em suma, dificilmente se poderá falar numa situação de tratamento desigual de trabalhadores, mas ainda que assim fosse, tal diferença de tratamento (refletida nos diferentes mecanismos processuais colocados à disposição de cada um), não se poderia considerar desrazoável, arbitrária ou destituída de fundamento, de modo a que se pudesse considerar violadora do parâmetro constitucional da igualdade.»

Estas considerações são transponíveis para o caso dos autos, impondo, também aqui, a conclusão no sentido de que a diferença de regime no que respeita à admissibilidade de transação, no caso da ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, resultante da interpretação normativa sindicada, não se mostra violadora do princípio da igualdade.

Com efeito, e antes de mais, importa salientar que não faz sentido falar numa diferença de tratamento entre situações materialmente idênticas, em resultado de ter havido ou não a intervenção inspetiva da Autoridade para as Condições do Trabalho.

Uma coisa é a deteção, por parte desta entidade, de todas as situações em que se verifiquem os pressupostos da sua intervenção (sendo certo, como acontece nos mais diversos domínios, que haverá sempre situações que poderão escapar à fiscalização e intervenção das entidades públicas, embora sejam situações materialmente idênticas a outras que mereceram tal intervenção). Outra coisa é saber se o regime aplicável é diferenciado, em situações materialmente idênticas, sem justificação bastante.

Ora, conforme referiu o Tribunal no Acórdão 94/2015, a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho tem subjacente um procedimento prévio (previsto no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro), em que, tendo sido verificada a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas às de um contrato de trabalho, e na falta de regularização da situação pela entidade empregadora, a ACT remete participação dos factos para os serviços do Ministério Público para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Este procedimento é idêntico sempre que se verifiquem os aludidos pressupostos (sem prejuízo de poderem existir, conforme se disse, situações que escapem à fiscalização), sendo certo que, conforme se refere no aludido Acórdão 94/2015, nas situações em que se esteja perante circunstâncias idênticas às que motivaram a aprovação do regime da ação para o reconhecimento de existência de contrato de trabalho, o trabalhador que pretenda discutir a qualificação da sua situação não está impedido de, em vez que propor uma ação de processo comum, participar a situação à Autoridade para as Condições de Trabalho que, na sequência dessa queixa, caso verifique que a situação se enquadra nos pressupostos previstos no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, dará seguimento à mesma no sentido de ser proposta a competente ação.

No entanto, e conforme se referiu também no citado Acórdão 94/2015, proposta pelo Ministério Público a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, na sequência de uma verificação prévia por parte de uma entidade pública (a ACT), a quem foram atribuídas competências para o efeito, da existência de indícios de uma situação de qualificação fraudulenta (e legalmente proibida) de um determinado contrato como tendo uma natureza diferente de um contrato de trabalho, com o objetivo da subtração da relação em causa ao regime laboral, não se poderá afirmar que a situação é idêntica à que está em causa numa ação em processo comum instaurada pelo trabalhador, em que não houve um procedimento prévio em que tenha sido verificada a existência dos aludidos indícios.

Além disso os efeitos do caso julgado da ação em análise vão para além de uma ação comum proposta pelo trabalhador contra o empregador para reconhecimento da existência de um contrato de trabalho.

Face a esta diferença, bem como às razões de interesse público subjacentes à intervenção do Estado nesta matéria, não se revela arbitrária, nem destituída de fundamento material bastante a interpretação do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, na interpretação aplicada pela decisão recorrida.

As referidas razões constituem fundamento bastante para que se possa considerar que existem interesses indisponíveis que impedem a homologação de uma transação em que o trabalhador reconheça que o contrato em causa é um contrato de prestação de serviços, frustrando, desta forma, uma efetiva comprovação (ou não) dos indícios recolhidos pela ACT e que motivaram a instauração da ação.

Pelas razões expostas, é de concluir que a interpretação normativa sindicada não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

2.4 - Conclusão

Em face do exposto, e não se vislumbrando que a interpretação normativa fiscalizada possa violar qualquer outro parâmetro constitucional, deverá ser negado provimento ao recurso.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 186.º-O, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, interpretada no sentido de, na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não ser permitido aos putativos trabalhador e empregador dispor do objeto do litígio, acordando, em sede de audiência de partes, que a relação jurídica existente entre ambos é de prestação de serviços;

b) e, consequentemente, negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 4 de fevereiro de 2016. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209392926

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2526718.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2006-03-20 - Lei 9/2006 - Assembleia da República

    Altera o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e a respectiva regulamentação, aprovada pela Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, em matérias relativas a negociação e contratação colectiva.

  • Tem documento Em vigor 2009-02-12 - Lei 7/2009 - Assembleia da República

    Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-14 - Lei 107/2009 - Assembleia da República

    Aprova o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-16 - Lei 110/2009 - Assembleia da República

    Aprova o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

  • Tem documento Em vigor 2013-08-27 - Lei 63/2013 - Assembleia da República

    Institui mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado - primeira alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprova o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social e quarta alteração ao Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro.

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