Assento
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (STJ):
I - Relatório
1 - Manuel José Amaral Monteiro e mulher, Maria Irene Henriques Simões Monteiro, recorreram para o tribunal pleno do Acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 1984 (fl. 7 a fl. 22), para o que alegaram estar o mesmo em contradição com o de 21 de Dezembro de 1982 (também do STJ), publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 322, pp. 333 e seguintes. E esta oposição incidiria sobre a mesma questão fundamental de direito, pois ambos decidiram acerca da nulidade (ou não) do título constitutivo da propriedade horizontal quando este violar ou infringir o projecto aprovado pela câmara municipal quanto ao destino das partes componentes do prédio urbano. Assim, o acórdão recorrido decidiu que a referida violação acarretava a nulidade parcial do título em causa por aplicação dos artigos 292.º e 294.º do Código Civil (CC), enquanto o acórdão-fundamento optou por tese oposta, uma vez que só importava nulidade do título a falta neste dos requisitos legais mencionados no artigo 1415.º do mesmo CC.
2 - O acórdão a fl. 41 reconheceu a existência dos pressupostos ou requisitos exigidos pelo artigo 763.º do Código de Processo Civil (CPC), pelo que o recurso prosseguiu os seus termos. Então, os recorrentes apresentaram alegação, propondo a revogação do acórdão e a consequente emissão de assento no sentido de não ser nulo o título constitutivo de propriedade horizontal quando nele seja dada a certa fracção ou fracções autónomas destino diferente do constante do projecto aprovado pela autarquia local. De opinião oposta é a recorrida (administração do Edifício Tagus). O Ministério Público (MP) pronunciou-se no sentido de não haver oposição de julgados, mas, se assim não se vier a entender, sustenta a manutenção do acórdão impugnado, propondo este assento:
O título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é afectado por nulidade na parte em que infrinja os artigos 1415.º ou 294.º do CC, este último, nomeadamente, por violação de normas imperativas de interesse e ordem pública constantes do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU).
II - Discussão e fundamentação
1 - Importa reexaminar o problema da oposição relevante entre os dois acórdãos, pois a lei assim o impõe (artigo 766.º, n.º 3, do CPC) e, no caso concreto, quer o MP, quer a recorrida discordam do decidido sobre tal questão preliminar. Salvo o merecido respeito, neste aspecto não têm razão, pois ambos os arestos decidiram sobre as implicações jurídicas resultantes da desconformidade (quanto ao destino de certa fracção autónoma) entre o projecto aprovado pela câmara municipal e o título constitutivo da propriedade horizontal. Isto, por um lado. Por outro, o acórdão-fundamento decidiu que, em tal caso, o título é totalmente válido, enquanto na decisão recorrida a conclusão foi a oposta, ou seja, a nulidade parcial daquele. Acresce que, no intervalo entre os dois acórdãos, não foi proferida modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. Finalmente, as situações de facto são idênticas: no de 1982, o projecto camarário destinou a cave do imóvel a estacionamento privativo dos inquilinos e o título afectou-a a armazém; no acórdão recorrido, a decisão da câmara destinou todo o prédio a habitação e o título conferiu a uma das fracções (o rés-do-chão) a utilização como atelier.
2 - Está em causa saber qual a interpretação a dar ao artigo 1416.º, n.º 1, do CC, isto é, a expressão «falta de requisitos legalmente exigidos» abrange tão-só os enunciados no artigo 1415.º do mesmo CC (constituírem as fracções autónomas unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública) ou também «os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas». Como decorrência desta questão, importa saber qual a consequência da nulidade, no caso, como é evidente, de esta existir.
3 - A solução contrária à do acórdão recorrido (não atribuir, no plano da invalidada, qualquer consequência à desconformidade entre o destino conferido à fracção autónoma pelo projecto aprovado pela câmara municipal e o negócio jurídico constitutivo da propriedade horizontal) tem de aceitar, pelo menos, a possibilidade de as autarquias locais ordenarem a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1.º a 7.º do RGEU, aprovado pelo Decreto-Lei 38382, de 7 de Agosto de 1951, bem como o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em contradição com elas, pois isto resulta do artigo 165.º do citado RGEU (redacção do Decreto-Lei 44258, de 31 de Março de 1962).
Consequentemente, a tese oposta à do acórdão recorrido consistiria, por um lado, no reconhecimento da validade do negócio jurídico constitutivo da propriedade horizontal e, por outro, na permissão de a câmara municipal sumariamente despejar o inquilino e ocupantes da fracção quando verificasse a desconformidade entre a utilização prevista naquele título e aquela que está destinada para os diferentes compartimentos no projecto aprovado (artigo 6.º do RGEU).
Esta chocante consequência constitui o primeiro sinal de alarme para se tentar harmonizar o nosso sistema jurídico, tanto mais que tal harmonia existe, quer com base no CC, quer com fundamento noutras disposições legais. Com efeito, o artigo 13.º do Decreto-Lei 148/81, de 4 de Junho (em vigor entre as datas dos dois acórdãos e hoje revogado pelo artigo 51.º, n.º 1, do Decreto-Lei 13/86, de 23 de Janeiro, mas com a sua doutrina mantida no artigo 44.º deste diploma), dispõe «não poderem ser celebrados contratos que envolvam a transmissão de propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção, ou de habitação, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura». A seguir-se a doutrina contrária à do acórdão em recurso, o negócio jurídico modificativo da utilização de certa fracção autónoma e em desconformidade com o projecto aprovado, apesar de válido, impediria, por exemplo, a compra e venda daquele andar ou fracção. Acresce que, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei 329/81, de 4 de Dezembro, «só poderão ser efectuadas escrituras de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal mediante a apresentação pelo locador de licença camarária donde conste ser essa a finalidade do imóvel ou que autorize a mudança de finalidade». Ora, também daqui se retira outro argumento no sentido da importância fundamental da conformidade entre a utilização de facto e aquela que é permitida pela câmara municipal, e tudo isto, como consta do preâmbulo do citado Decreto-Lei 329/81, com vista a permitir «às câmaras municipais prosseguir uma política de ordenamento urbanística».
4 - O exposto no n.º 3 precedente conduz-nos ao campo dos princípios fixados no CC que, como se verá, está em sintonia com os restantes diplomas legais. Resulta dos artigos 3.º, 6.º, 8.º e 165.º do RGEU a necessidade de os projectos de construção indicarem sempre «o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos». Ora, parece evidente que o interesse subjacente a toda esta disciplina é o interesse público prosseguido pelas câmaras municipais. Nos termos do artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a Administração Pública (esta entendida como toda a Administração Pública, incluindo a administração central, a regional e a local, tal como é defendido por Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 417) visa a prossecução do interesse público e, como ensina Sérvulo Correia (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, p. 297), a única garantia de que assim seja efectivamente em cada acto concreto praticado pela Administração é a de que não seja deixada casuisticamente ao seu autor a definição e a escolha do interesse a prosseguir. Tal opção, continua o referido professor, deve anteceder lógica e cronologicamente a definição das situações jurídico-administrativas concretas. De acordo com as citadas normas legais, as câmaras municipais não escolhem discricionariamente o interesse público a prosseguir, pois este está predeterminado em função de critérios gerais, como sejam os da urbanização, estética, segurança e equilíbrio económico das construções que licenciam.
Por tudo isto é que o artigo 294.º do CC considera como nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, aqui equiparada a norma de interesse e ordem pública, tal como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (Anotado, vol. I, 4.ª ed., p. 269). Por tudo isto é que o desrespeito pelas licenças emitidas em conformidade com as normas imperativas do RGEU envolve ilegalidade do título constitutivo.
Por tudo isto é que, coerentemente, se têm de incluir entre os «requisitos legalmente exigidos» referidos no artigo 1416.º, n.º 1, do CC «os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas» (cf. Pessoa Jorge, parecer a fls. 55 e seguintes deste processo). Por tudo isto é que o artigo 1416.º, n.º 2, do CC «estende ao MP a legitimidade para arguir a nulidade sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções». Por tudo isto é que a falta dos requisitos do artigo 1415.º não esgota as causas de nulidade do título e daí a latitude da expressão «requisitos legalmente exigidos» contida no artigo 1416.º
5 - A consequência da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal é, em princípio, a sujeição ao regime da compropriedade (artigo 1416.º do CC), mas esta conclusão é apenas parcialmente verdadeira, pois, como se diz no referido parecer de Pessoa Jorge, é suficiente pensar na hipótese de a constituição daquela propriedade horizontal resultar de acto unilateral do proprietário, «caso em que a nulidade do título implica a subsistência do regime de propriedade singular». Assim, o artigo 1416.º visa o caso de ser constituído «o regime de propriedade horizontal de um prédio, com a aquisição de fracções por várias pessoas, e verificar-se depois a nulidade do título». Esta solução (aproveitamentdo do negócio jurídico) está, aliás, de harmonia ou tem similitude com casos, como o presente, de nulidade parcial, expressamente decidida pelo acórdão recorrido.
6 - A tese de que o artigo 1419.º do CC, ao permitir a modificação por unanimidade do título constitutivo da propriedade horizontal, está a pressupor a legalidade da desconformidade entre o projecto aprovado e o novo destino das respectivas fracções é, salvo o merecido respeito, claramente errada. A declaração unilateral do proprietário do edifício, ao constituir aquela propriedade por fracções autónomas, está condicionada, como já se referiu, pelas decisões da entidade pública (actos administrativos definitivos e executórios e, como assim, tomados na prossecução do interesse público). Por consequência, qualquer alteração a essa constituição inicial está naturalmente sujeita ao mesmo condicionalismo, pelo que a referida tese incorre em autêntica petição de princípio.
7 - Muito do exposto foi baseado na argumentação desenvolvida pelos ilustres conselheiros Rodrigues Pardal e Dias da Fonseca a propósito de problemas semelhantes e até do caso concreto (cf. Da Propriedade Horizontal, 5.ª ed., 1988, pp. 148 a 152).
III - Decisão
Nos termos expostos, confirma-se o douto acórdão recorrido e formula-se o seguinte assento:
Nos termos do artigo 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.
Custas pelos recorrentes.
10 de Maio de 1989. - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel - António de Almeida Simões - João Alcides de Almeida - António Soares Tomé - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Mário Sereno Cura Mariano - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - José Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Júnior - Adelino Barbosa de Almeida - José Alexandre Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Crispiano Correia de Lacerda Abrantes Tinoco - Afonso de Castro Mendes - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva - Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Flávio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - Jorge da Cruz Vasconcelos - José Henrique Ferreira Vidigal - João Solano Viana (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) - Silvino Alberto Villa Nova (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Solano Viana) - Augusto Tinoco de Almeida (vencido, por entender que a nulidade do título só deveria decretar-se quando o destino ou utilização em causa ofendam o interesse e ordem públicos) - Manuel Augusto Gama Prazeres (vencido pelas razões aduzidas pelo Exmo. Colega Dr. Solano Viana) - Fernando Maria Xavier de Figueiredo Brochado Brandão (vencido em parte, conforme declaração anexa) - Jorge d'Araújo Fernandes Fugas (vencido, de harmonia com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Solano Viana) - Alberto Baltazar Coelho (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Fernando Heitor Barros de Sequeiros (vencido, nos mesmos termos do Exmo. Conselheiro Solano Viana) - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo (vencido, por ter concordado com os fundamentos invocados pelo Sr. Conselheiro Solano Viana) - (Têm votos de vencido dos Exmos. Conselheiros António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro, Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro, José Alfredo Soares Manso Preto, Salviano Francisco de Sousa e Mário Augusto Fernandes Afonso, que não assinaram por não se encontrarem presentes.)
Declaração de voto
Está em causa neste recurso a determinação das consequências de a escritura de constituição da propriedade horizontal não respeitar o destino dado a fracção autónoma no projecto do edifício aprovado pela câmara municipal.
Acarretará ou não tal desrespeito a nulidade parcial dessa escritura?
No artigo 1416.º do CC estabelece-se que a falta de requisitos legalmente exigidos para a propriedade horizontal importa a nulidade do título constitutivo da mesma propriedade e a sujeição do prédio ao regime de compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418.º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção (n.º 1), tendo legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos e também o MP, sobre a participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (n.º 2).
Assim, quando no título de constituição da propriedade horizontal se deixarem de observar os requisitos impostos pela lei para tal constituição - requisitos esses constantes dos artigos 1414.º e 1415.º do CC -, o regime de nulidade daí resultante é o que se encontra estabelecido no citado artigo 1416.º, n.º 1, do CC.
Sempre que no título constitutivo da propriedade horizontal se dá a fracção autónoma destino diferente daquele que consta do projecto aprovado pela câmara municipal, não é de considerar nulo nessa parte tal título, já que não é requisito legal da constituição da propriedade horizontal a indicação do destino das fracções autónomas.
O desrespeito do projecto não conduz à nulidade parcial do título por ofensa da disposição legal de carácter imperativo (artigo 294.º do CC).
Dispõe-se no artigo 6.º do RGEU, aprovado pelo Decreto-Lei 38382, de 7 de Agosto de 1951, que nos projectos de novas construções e de reconstrução, ampliação e alteração de construções existentes serão sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.
E no artigo 2.º do mesmo Regulamento diz-se que a execução dessas obras e trabalhos não pode ser levada a efeito sem prévia licença das câmaras municipais, às quais incumbe também a fiscalização do cumprimento das disposições desse Regulamento.
Estabelecem-se regras para a realização de obras de construção, submetendo-as a prévio licenciamento das câmaras municipais, e punindo-se com multa a execução de qualquer obra em desacordo com os termos de tal Regulamento ou com o projecto aprovado (artigo 161.º), podendo ainda as câmaras ordenar, independentemente da aplicação de tal penalidade, a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o Regulamento ou o projecto, bem como o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas (artigo 165.º).
Trata-se de disposições em que se regulamenta a execução de obras de construção e reconstrução, sujeitando-as a licença das câmaras municipais, e onde se estabelecem sanções de vária ordem para a violação de tais normas.
As normas do RGEU têm em vista assegurar as condições de segurança, estética e salubridade das edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das câmaras municipais.
Nada leva a considerar que, se, em escritura de constituição da propriedade horizontal de imóvel, se atribuir às fracções autónomas deste destino diferente do que consta do projecto aprovado pela câmara municipal em obediência ao citado Regulamento, daí resulte a nulidade de tal estipulação.
Não se deve confundir a construção de edifício sem as devidas condições de segurança, estética e salubridade, construção essa que acarreta as sanções atrás referidas, e a estipulação em título constitutivo da propriedade horizontal de destino da fracção autónoma distinto do que consta do projecto de edifício.
De resto, como se nota no Acórdão de 21 de Dezembro de 1982, o título constitutivo de propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos (artigo 1419.º do CC), pelo que, nada obstando a que se altere o fim a que se destinam as fracções autónomas, é admissível que tal fim seja diferente daquele que é indicado no projecto do edifício aprovado pela câmara municipal.
A atribuição de legitimidade para arguir a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não só aos condóminos, mas também ao MP, sob participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (n.º 2 do artigo 1416.º do CC), apenas significa que o MP pode usar de tal faculdade no caso previsto no n.º 1 desse artigo 1416.º, isto é, quando se verificar falta dos requisitos legalmente exigidos para a constituição da propriedade horizontal, que, como atrás se referiu, constam dos artigos 1414.º e 1415.º do mesmo Código.
Entendo, assim, que não deve ser declarada a nulidade, ainda que parcial, do título constitutivo da propriedade horizontal que atribua às fracções autónomas do edifício destino diferente daquele que consta do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal, do que resultaria o provimento do recurso. - João Solano Viana.
Declaração de voto
Os «requisitos legais» de que se fala [v. o artigo 1416.º e Código do Notariado - artigo 74.º, alíneas b) e c)] são os do artigo 1415.º e todos os que violem normas imperativas (id. - artigos 280.º e 294.º). Só essa violação constitui verdadeira nulidade.
O RGEU tem a ver com outras realidades de imperatividade geral, como a segurança e a estética. E as «aprovações camarárias» contam-se nos limites expostos, não definindo direitos nem criando proibições (limitam-se a uma primeira verificação da correspondência com a lei).
Há assim que ser casuísta e ver do que se trata no concreto.
Na hipótese, a mudança de destino não colidia em norma imperativa. Daí votar a revogação do acórdão recorrido.
Mas, em obediência à «imperatividade», formularia assento onde se dissesse não haver nulidade na «atribuição de destino diferente» simples, salvo se isso for contra o interesse público ou a imperatividade (v. g., isso sucederia na transformação de garagem comum em armazém, discoteca, etc.).
Daí a minha posição equidistante da tese vencedora e da vencida.
10 de Maio de 1989. - Pedro de Lemos e Sousa Macedo.
Declaração de voto
Entendi, na senda dos pareceres juntos aos autos, não haver entre o acórdão-fundamento e o acórdão recorrido a requerida oposição para que se pudesse tirar assento.
Na verdade, no acórdão-fundamento cuidou-se de uma alteração do destino de uma cave, que era «de estacionamento privativo dos inquilinos» no projecto aprovado e passou a ser, de acordo com a escritura de constituição da propriedade horizontal, de armazém.
Pois bem, tanto quanto nos garante o indicado aresto, não só ninguém questionou que o novo destino não fosse, em si mesmo, legal e adequado à respectiva fracção, mas ainda nele se afirmaram, repetida e expressamente, estas legalidade e adequação.
Por isso, encarando o diferendo nestes parâmetros - e, note-se bem, fora dentro deles que a recorrente, na revista onde foi proferido o acórdão-fundamento, o colocou, ao indicar apenas como disposições violadas os artigos 1415.º e 1417.º do CC -, no dito aresto decidiu-se, com base unicamente nos artigos 1415.º, 1416.º, 1417.º, 1419.º e 1422.º, alínea c), daquele Código, não se encontrar ferido de nulidade o negócio constitutivo da respectiva propriedade horizontal.
Esta tomada de posição, dentro do campo em que se moveu, parece-me de inquestionável acerto, tendo granjeado o apoio de Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, vol. III, 2.ª ed., p. 401.
Mas de inquestionável acerto me parece ser também o julgado no acórdão recorrido, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 457, de constituir nulidade, por ofensa dos preceitos regulamentares de interesses e ordem pública (RGEU), afectando o título constitutivo de propriedade horizontal, o facto de se ter designado, nesse título, como fracção autónoma e com destino e utilização próprios uma dependência que, à luz do projecto e da licença de loteamento, era tido como gabinete de administração, portanto parte comum do prédio. Esta nulidade não atinge a totalidade do negócio, mas apenas a parte do título constitutivo de propriedade horizontal em que se menciona aquela dependência como fracção autónoma.
É que aqui entendeu-se que, em função do «alvará de loteamento para a Urbanização da Portela», a alteração conseguida na constituição da propriedade horizontal do que constava do projecto aprovado ofendera o interesse geral e normas imperativas do RGEU, motivo por que o problema sub judice foi equacionado e resolvido, fundamentalmente, face à violação do disposto nos artigos 6.º, 8.º e 165.º daquele Regulamento e por aplicação dos artigos 292.º e 294.º do CC.
Quer dizer: as situações de facto e de direito apreciadas no acórdão recorrido não se compaginam - bem ao contrário - com as situações daqueles tipos julgadas no acórdão-fundamento.
Neste tratou-se de uma situação no âmbito dos puros interesses privados na disciplina da propriedade horizontal, pelo que os respectivos preceitos não representam normas imperativas, antes se configuram como normas na disponibilidade das partes; naquele outro, ou seja, no acórdão recorrido, cuidou-se de uma situação desrespeitadora de normas imperativas de interesse público, o que vale por dizer de normas fora da disponibilidade das partes.
Contra o precedentemente exposto não se diga que o cerne da questão em debate está em saber se não haverá sempre violação de normas imperativas quando, na constituição da propriedade horizontal, se desrespeitam os destinos das fracções indicados no projecto aprovado.
E isto por duas ordens de razões.
A primeira consiste em, para mim, haver alterações do projecto aprovado quanto ao destino das fracções que, para além de não exigirem quaisquer obras, não colidem minimamente com normas de natureza imperativa. Pense-se nas seguintes hipóteses - e muitas outras podiam ser indicadas: prédio em que, de acordo com o projecto, todas as fracções autónomas são destinadas a habitação e no negócio constitutivo da propriedade horizontal uma das fracções passa a ser afectada a habitação do porteiro ou a habitação e também a consultório médico ou a escritório de advogado.
A segunda é a de que o aspecto posto na objecção não aparece apreciado, e muito menos decidido, no acórdão recorrido ou no acórdão-fundamento, pelo que, também neste campo, não há oposição entre eles.
Pelo que fica exposto, salvo o devido respeito pela opinião que fez vencimento, não havendo a requerida oposição, o meu voto foi no sentido de não se dever nem se poder tirar assento. - Alberto Baltazar Coelho.