Assento
Acordam, em sessão plenária, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ):
Com base no artigo 668.º do Código de Processo Penal (CPP), o digno procurador-geral-adjunto neste STJ interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão de 19 de Dezembro de 1984 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 315), com o fundamento de estar em oposição com o Acórdão Doutrinário de 4 de Janeiro de 1984 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 295), ambos deste STJ.
O aludido digno magistrado concretizou do seguinte modo a invocada oposição:
O acórdão recorrido não conheceu do recurso do acórdão da relação proferido sobre recurso interposto em processo correccional que, entendendo haver sido descriminalizado o crime imputado ao réu, determinou que os autos deviam ser arquivados.
O Acórdão de 4 de Janeiro de 1984 admitiu o recurso igualmente proferido sobre recurso interposto em processo correccional que declarou amnistiado o crime atribuído ao réu e, por isso, julgou extinto o procedimento criminal instaurado (com o consequente arquivamento do processo).
Para tanto, este último acórdão considerou que a nova redacção do n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, introduzida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, teve o alcance de excluir certa restrição à recorribilidade das decisões da relação, entendendo que passaram a ser recorríveis para este STJ os acórdãos que, embora não condenatórios, ponham termo ao processo, pelo que só não haverá recurso para este mesmo Tribunal quando os acórdãos não tenham posto termo ao processo.
Por sua vez, o acórdão recorrido considerou que «não são apenas esses os acórdãos irrecorríveis, também o continuam a ser aqueles que não sejam condenatórios».
O acórdão de fl. 19 a fl. 20 reconheceu preliminarmente existir a invocada oposição.
O digno procurador-geral-adjunto deu parecer sobre a solução a dar ao conflito de jurisprudência, pronunciando-se favoravelmente à tese restritiva da irrecorribilidade, com a consequente revogação do acórdão recorrido e formulação do assento, para o que propôs, em alternativa, várias redacções.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
O acórdão, que reconheceu a existência da oposição, não impede que o tribunal pleno decida em contrário [artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do artigo 668.º, § único, do CPP].
Reexaminando a questão, a oposição existe.
Com efeito, os dois acórdãos em causa, perante acórdãos da relação proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional, que decidiram em sentido conducente ao arquivamento dos processos, julgaram, interpretando de forma diversa o n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, em sentidos contrários.
O acórdão recorrido, entendendo que passou a não ser permitido recorrer para este STJ, quer dos acórdãos que não forem condenatórios, quer dos que, sendo-o, não ponham, todavia, termo ao processo (tese ampliativa da irrecorribilidade), não conheceu do recurso.
Este entendimento é o que, com maior clareza do que a resultante do acórdão recorrido, se contém na parte final do voto de vencido exarado no Acórdão deste STJ, também de 4 de Janeiro de 1984, mas publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 299: «o legislador quis significar que [...] o primeiro fundamento de irrecorribilidade não obstaria a que também se não pudesse recorrer de alguns (poucos) acórdãos condenatórios».
O Acórdão Doutrinário de 4 de Janeiro de 1984, entendendo que só não é permitido recorrer para este STJ dos acórdãos não condenatórios e que também não tenham posto termo ao processo (tese restritiva da irrecorribilidade), conheceu do recurso.
Encontrando-se, deste modo, justificado o recurso para o tribunal pleno, há que apreciar o seu objecto.
Dispunha o artigo 646.º do CPP, com a redacção dada pelo artigo 1.º da Lei 2138, de 14 de Março de 1969:
Não haverá recurso:
[...]
6.º Dos acórdãos das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional que não sejam condenatórios [...];
[...]
Passou esse artigo a dispor, com a redacção dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro:
Não haverá recurso:
[...]
6.º Dos acórdãos das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional que não sejam condenatórios ou que não tenham posto termo ao processo [...];
[...]
Qual, após a mudança de redacção, o sentido da lei?
Este só pode ser alcançado através de interpretação.
A interpretação assenta, em primeira linha, sobre as palavras, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados [n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil (CC)].
Mas esta presunção é um simples princípio, um ponto de partida.
A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1 daquele artigo 9.º).
O recurso aos chamados elementos extraliterais torna-se mesmo fundamental quando - como não raras vezes acontece - há erros ou deficiências de redacção por parte do legislador ou é dúbio o sentido das palavras por ele empregadas, ou seja, quando, no dizer da própria lei, o pensamento legislativo é «imperfeitamente expresso» (n.º 2 do citado artigo 9.º).
Posto isto, passa-se à interpretação da expressão «que não sejam condenatórios ou que não tenham posto termo ao processo».
No voto de vencido exarado no Acórdão deste STJ de 4 de Janeiro de 1984, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 299, da autoria do relator do acórdão recorrido e vencido no Acórdão Doutrinário de 4 de Janeiro de 1984, escreveu-se:
[O legislador] não poderia ter sido mais inábil, caso fosse seu desejo introduzir uma limitação (aliás drástica) à irrecorribilidade dos acórdãos não condenatórios. Dizia, então, não haver recurso destes acórdãos, mas só quando não pusessem termo ao processo. Isto é, ligaria o antigo requisito ao novo por uma locução restritiva, aquela ou qualquer outra, como no caso de, na hipótese de, contanto que, na condição de, se.
Querendo respeitar a estrutura da frase, escreveria «acórdãos que, não sendo condenatórios, também não tenham posto termo ao processo». Quando muito, mas já agora correndo um certo risco de obscuridade, acopularia as duas orações relativas, mediante o uso da conjunção e.
Mas não foi isso o que sucedeu. O legislador utilizou o disjuntivo ou, que «exprime exclusão ou alternativa» [...]
Quer dizer, [...] dois fundamentos distintos de irrecorribilidade, cada um com o seu campo próprio.
Certo é, porém, que o legislador, caso fosse seu desejo introduzir uma ampliação à irrecorribilidade dos acórdãos não condenatórios - ampliação essa de muito escassa dimensão [recorde-se que, segundo a tese ampliativa da irrecorribilidade, são irrecorríveis os acórdãos não condenatórios e «alguns (poucos) acórdãos condenatórios»] -, não teria sido menos inábil. Dizia, então, não haver recurso dos acórdãos não condenatórios ou dos que, sendo condenatórios, não pusessem termo ao processo. Isto é, ligaria o antigo requisito ao novo por uma inequívoca expressão, aquela ou qualquer outra, como e não o sendo, e no caso de o não serem, e na hipótese de o não serem, e se o não forem.
E certo é também que exclusão, resultante do emprego do disjuntivo ou, se verifica no caso de à expressão que se está interpretando se dar o entendimento (restritivo da irrecorribilidade) que lhe deu, por exemplo, o Acórdão deste STJ de 14 de Novembro de 1984, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 341, p. 225:
Porque inutilidades não são de presumir na lei, esta é naturalmente de entender assim: prevê-se no n.º 6, em primeiro lugar, a hipótese de os acórdãos serem condenatórios ou absolutórios, para só admitir recurso quanto àqueles; em segundo lugar, tendo-se em vista outros acórdãos, que não os condenatórios ou absolutórios, admite-se recurso dos que ponham termo ao processo, e não dos restantes.
Seja como for, o pensamento legislativo não foi correctamente expresso, pelo que há que buscá-lo através dos elementos extraliterais.
No mesmo voto de vencido exarado no Acórdão deste STJ de 4 de Janeiro de 1984, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 299, escreveu-se:
[...] duas palavras para sossegar os espíritos inquietos por não verem exemplos de acórdãos condenatórios sem porem termo ao processo e, portanto, irrecorríveis na minha tese.
E seguidamente apontaram-se aí, como tais, os que imponham as sanções a que se referem os artigos 91.º, 117.º, 124.º e 453.º do CPP e 145.º, n.º 5, e 523.º, n.º 2, do CPC, estes subsidiariamente aplicáveis.
E no voto de vencido exarado no Acórdão Doutrinário de 4 de Janeiro de 1984 disse-se que o Decreto-Lei 402/82 quis substituir o artigo 2.º da Lei 2138, «estendendo a sua doutrina a casos análogos», como os daqueles artigos.
Não se crê que tenha sido essa a intenção do Decreto-Lei 402/82.
O artigo 2.º da Lei 2138 preceituou: «As decisões que tenham por objecto a sanção prevista no artigo 30.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945» (indemnização por denúncia particular feita de má fé ou com negligência grave), «e na alínea e) do artigo 184.º do Código das Custas Judiciais (CCJ)» (imposto de justiça por falta de comparência, obrigatória, do infractor) «só admitem recurso até à relação».
A sanção prevista no artigo 30.º do Decreto-Lei 35007 era a de indemnização. O imposto de justiça a que alude o artigo 178.º, n.º 1, alínea a), do CCJ substituiu essa indemnização (Barros Mouro, Código das Custas Judiciais, 1984, p. 216).
Os artigos 91.º, 117.º, 124.º e 453.º do CPP e 145.º, n.º 5, e 523.º, n.º 2, do CPC respeitam, respectivamente, a multa e indemnização por falta injustificada de comparecimento, multa por má fé instrumental nos incidentes, multa por má fé instrumental no incidente de falsidade, indemnização ao réu absolvido no caso de o assistente agir com dolo ou culpa, multa por prática de acto fora do prazo legal e multa por apresentação intempestiva de documentos.
Sempre se entendeu, quer antes do Decreto-Lei 402/82, quer depois, que, para efeitos do n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, acórdãos condenatórios são aqueles que, tendo julgado o feito, impõem uma pena ou uma medida de segurança (v. g., Acórdãos deste STJ de 17 de Dezembro de 1969, de 11 de Março de 1970, de 31 de Julho de 1973, de 9 de Fevereiro de 1977 e de 29 de Junho de 1983 - este último subscrito pelo autor dos referidos votos de vencido -, in Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, n.os 192, p. 192, 195, p. 149, 229, p. 84, 264, p. 110, e 328, p. 485).
Ora, a indemnização (depois imposto de justiça) e o imposto de justiça a que se refere o artigo 2.º da Lei 2138 não são, manifestamente, penas ou medidas de segurança; aí houve até o especial cuidado de lhes chamar sanções.
O mesmo sucede com as indemnizações mencionadas nos artigos 91.º e 453.º do CPP.
E, apesar de haver penas de multa, o mesmo sucede ainda com as multas a que aludem os artigos 91.º, 117.º e 124.º do CPP e 145.º, n.º 5, e 523.º, n.º 2, do CPC. Tais multas não são aplicadas em resultado de julgamento do feito, nem têm em vista a reprovação e prevenção de crimes. Por isso mesmo, já têm sido consideradas penas administrativas, e não penais (v., quanto ao artigo 91.º, o Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Julho de 1978, in CJ, ano III, p. 1327).
Por outro lado, não pode conceber-se que o legislador tenha querido resolver, com a nova redacção dada ao n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, que, na parte em causa, respeita ao processo correccional, a recorribilidade ou irrecorribilidade de acórdãos das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo de querela, onde aquelas sanções também podem ser aplicadas.
Do exposto se conclui que as aludidas sanções, para efeitos do n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, não podem ser consideradas condenatórias e que o legislador não pode ter querido resolver nesse n.º 6.º a questão da recorribilidade ou irrecorribilidade das decisões que imponham tais sanções.
Também se invoca, em favor da tese ampliativa da irrecorribilidade, a razão de, tradicionalmente, se tender a restringir o acesso a este STJ, como «consequência do constante aumento dos processos».
Mas, como adiante se verá, as circunstâncias específicas do tempo de aplicação da nova redacção do n.º 6.º do artigo 646.º do CPP - circunstâncias que, como atrás se referiu, são, com outras, aí também mencionadas, sobretudo de considerar - não conduzem à adopção dessa tese ampliativa.
E o aumento do número de processos não pode ser, só por si, motivo de restrição dos recursos. Outras soluções terão de haver - e há - para essa emergência.
Rejeitados os elementos extraliterais em que a tese ampliativa da irrecorribilidade se baseia, não deve, porém, ficar-se por aí.
O Decreto-Lei 402/82 - em cujo relatório se diz que tal diploma legal «visa estabelecer um conjunto mínimo de normas que se reputam indispensáveis para viabilizar a entrada em vigor do Código Penal (CP)» - foi publicado na mesma altura em que o foi o Decreto-Lei 400/82, que aprovou esse Código.
Segundo a introdução ao novo CP, a sua parte geral é, em muitos aspectos, profundamente inovadora e a sua parte especial - «Parte especial do CP de uma sociedade plural, aberta e democrática» - diverge «sensivelmente da parte especial do CP de uma sociedade fechada sob o peso de dogmatismos morais e de monolitismos culturais e políticos».
A este respeito, em «Direito penal. Ano lectivo de 1982», apontamentos compilados pelos alunos Paulo Miguel Olavo Cunha, António Luís Pinho Teles e Miguel Nuno Pedrosa Machado de lições do Prof. Cavaleiro de Ferreira, escreveu-se:
O novo Código não é uma actualização do anterior, é novo no exacto sentido da palavra. Essa sua característica objectiva as dificuldades na sua correcta interpretação e na aplicação do direito penal.
A viabilização de que falou o relatório do Decreto-Lei 402/82 não se tornava possível com decisões menos acertadas, nomeadamente por divorciadas do novo pensamento legislativo, e logo era de prever - o que a prática confirmou - o avolumar de decisões menos correctas e de divergências jurisprudenciais.
Bem se compreende, assim, que tenha havido o propósito de restringir a irrecorribilidade, continuando a permitir-se o recurso dos acórdãos condenatórios e passando a admitir-se o recurso dos acórdãos não condenatórios que tenham posto termo aos processos.
Possibilitou-se, deste modo, que fossem, em maior escala, superiormente revistas decisões e estabelecidas orientações, com o largo proveito que a prática tem demonstrado.
E, se alguma dúvida pudesse subsistir, sempre a tese restritiva da irrecorribilidade seria de acolher.
Já Luís Osório (Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. 6.º p. 305) dizia:
O que é essencial é que haja texto preciso a negar o recurso no caso em questão, pois na falta dele deve ser admitido, porque à antiga razão de que os recursos são de ampliar acresce esta outra de que o recurso é a regra e assim as excepções carecem de ser demonstradas.
Mais modernamente, o Acórdão deste STJ de 25 de Outubro de 1963, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 130, p. 436, decidiu de forma lapidar:
No caso de dúvida, os recursos são de admitir, permitindo o exame das questões por juízes de mais elevada categoria, favorecendo o acerto dos julgados, aumentando o seu prestígio e fazendo surgir - no dizer do Prof. Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 193, ed. de 1959) - a confiança do povo na justiça.
Nestes termos, concedem provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro, que conheça do objecto do recurso do acórdão da Relação, e formulam o seguinte assento:
O n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, com a redacção dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, prescreve a irrecorribilidade dos acórdãos das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional que, não sendo condenatórios, não tinham posto termo ao processo.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 20 de Maio de 1987. - Silvino Alberto Villa-Nova - António Júdice de Magalhães Barros Baião - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - Aurélio Pires Fernandes Vieira - Frederico Batista - António Pereira de Miranda - Manso Preto - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - Cláudio César Veiga da Gama Vieira - João Solano Viana - José Fernando Quesada Pastor - Joaquim Figueiredo - Joaquim Gonçalves - Cesário Dias Alves - Mário Sereno Cura Mariano - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Jorge d'Araújo Fernandes Fugas - António de Almeida Simões (votei o assento, que, todavia, talvez fosse mais claro com a seguinte redacção: «[...] só admitem recurso para o STJ os acórdãos das relações que, quando proferidos em processo correccional, sejam condenatórios por infracção criminal e sempre que tenham posto termo ao processo, salvo se forem absolutórios».) - José Meneres Pimentel [votei o assento, mas tendo em conta essencialmente o seguinte: a Lei 2138, de 14 de Março de 1969, estabeleceu uma categoria de casos de irrecorribilidade para o Supremo; o artigo 21.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, acrescentou-lhe outra e, como subsistissem ainda outras hipóteses de recorribilidade para o STJ em processos correccionais, o Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, tomou outra (mais uma) opção, ou seja, além daqueles casos também mais se poderá recorrer dos despachos ou decisões que não ponham fim ao processo] - Manuel Alves Peixoto (vencido, consoante a declaração que junto) - Júlio Carlos Gomes dos Santos (vencido, nos termos da fundamentação do ilustre colega que antecede) - Pedro de Lima Cluny (vencido, por entender que a formulação do assento acabado de tirar excedeu o âmbito do recurso, dando a entender que são recorríveis os acórdãos absolutórios, que põem termo ao processo, matéria que poderia vir a ser objecto de futura discussão. Os acórdãos ditos em oposição versaram apenas hipóteses de acórdãos que, não sendo condenatórios nem absolutórios, puseram termo ao processo. Só decisões deste tipo tinham visado pontos em equação e o assento deveria ter-se limitado a considerar as ditas decisões opostas).
Declaração de voto
O assento ora tirado veio dar uma interpretação inteiramente nova ao n.º 6.º do artigo 646.º do CPP, diferente daquela que eu sempre preconizei e comigo dois presidentes deste Tribunal (Acórdãos de 21 de Março de 1984, no processo 37313, e de 19 de Dezembro de 1984, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 315) e que também preferiu o Tribunal Constitucional (Acórdão de 21 de Janeiro de 1987, no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março de 1987), diferente da que lhe deu o acórdão doutrinal indicado em oposição (de 4 de Janeiro de 1984, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 333, p. 295) e diferente da que meses depois passou a seguir a maioria da Secção Criminal, inclusive o Sr. Conselheiro aqui relator (Acórdãos de 14 de Novembro de 1984, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 341, p. 225, de 20 de Março e de 3 e de 25 de Julho de 1985 e de 9 e de 30 de Abril e de 9 e de 23 de Julho de 1986, nos processos n.os 37716, 37898, 37958, 38246, 38331, 38505 e 38343).
Vê-se assim que, enquanto eu me conservei fiel à ideia de duas espécies autónomas de acórdãos irrecorríveis (quer «os não condenatórios», quer «os que não ponham termo ao processo»), o resto dos juízes da Secção primeiramente entendeu que era só uma a categoria dos isentos de recurso (a atrás referida em segundo lugar, por o Decreto-Lei 402/82 ter «excluído a primeira»), depois admitiu que a lei realmente distinguia aquelas duas classes, mas reduzindo imenso o âmbito da primeira (de um lado «acórdãos absolutórios» e do outro os tais «que não põem termo ao processo») e agora, de surpresa, volta à tese da unidade, mas numa formulação ainda mais restritiva («os não condenatórios que também não ponham termo ao processo»).
Claro que esta instabilidade no entendimento do preceito é a melhor prova de que tem estado errado. Se o Decreto-Lei 402/82 tivesse querido tapar o Supremo só aos acórdãos que «não pusessem termo ao processo», introduziria essa proposição no artigo 646.º, n.º 6.º, e eliminaria pura e simplesmente a que nele havia metido a Lei 2138; se tivesse querido manter duas castas de acórdãos irrecorríveis, mas reduzindo drasticamente a antiga, substituiria a expressão «não condenatórios» pelo adjectivo «absolutórios»; se tivesse querido limitar a irrecorribilidade aos acórdãos que simultaneamente «não fossem condenatórios» e «não pusessem termo ao processo», ligaria as duas proposições por uma copulativa.
Pelo contrário, é de pensar que, mantendo o legislador de 1982, na íntegra, as palavras de 1969 e separando-as das novas pela disjuntiva ou, pretendeu conservar autónoma a antiga categoria, com a amplitude que sempre se lhe deu de acórdãos onde se não aplicassem penas ou medidas de segurança, e acrescentar uma outra, ou seja, a dos condenatórios-interlocutórios.
Assim é que me parece raciocinar adequadamente (artigo 9.º, n.º 3, do CC), se não quisermos pôr o legislador a confundir uma disjuntiva com uma copulativa, a dizer preto ou branco quando deseje abarcar, ao mesmo tempo, uma coisa e também a outra.
E fora destas razões de texto militam as de fundo: a celeridade processual, a reduzida importância dos interesses em jogo nos acórdãos não condenatórios e o volume cada vez maior de recursos para o Supremo, que, segundo os trabalhos preparatórios da Lei 2138, justificaram a ampliação de 1969, mantêm-se agravadas ainda hoje.
É, por sua vez, despropositado ver na nova redacção do artigo 646.º, n.º 6.º, a vontade de escancarar o Supremo às questões suscitadas pelo CP de 1982. Primeiro, as normas dos recursos não são instrumento privativo deste; segundo, para o efeito bastaria a discussão dos acórdãos condenatórios e, terceiro, uma tal finalidade levaria a alargar os recursos também nos processos sumários (muitos por crimes puníveis até três anos de prisão) e o que se fez foi restringi-los.
Recreia-se, por fim, o assento na demonstração de que seria praticamente inútil isentar de recurso acórdãos condenatórios que não põem termo ao processo. Para responder a isto, basta dizer que não o entenderam assim os legisladores de 1969, os quais, para evitarem que fossem tidos por «condenatórios» e, portanto, recorríveis os acórdãos que aplicassem as sanções então previstas no artigo 30.º do Decreto-Lei 35007 e na alínea e) do artigo 184.º do CCJ, disseram no artigo 2.º da Lei 2138 que os respectivos recursos iam só até à relação.
O acrescento de 1982 quis obstar à referida interpretação e, ao mesmo tempo, alargar a irrecorribilidade a outras, muitas outras, «condenações» (criminais ou não) de somenos, para as quais basta recurso num grau (v. g. as dos artigos 117.º, 124.º e 453.º do CPP e 145.º, n.os 5 e 6, e 523.º, n.º 2, do CPC).