Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2016
2759/10.8TBGDM.P1
UNIFORMIZAÇÃO
ACORDAM EM PLENÁRIO DAS SECÇÕES CÍVEIS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I.
Atlanticoil, Recepção e Comércio de Óleos Minerais, Lda., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra Banco Comercial Português, S.A.
Pediu a autora a condenação do banco réu a pagar-lhe a quantia de (euro) 33 520,14 (trinta e três mil quinhentos e vinte euros e catorze cêntimos), acrescida do valor de (euro) 48 000 (quarenta e oito mil euros), na eventualidade da letra identificada infra não ser paga na data de vencimento, pelo seu aceitante ao seu titular, mais juros de mora à taxa legal, desde a data da instauração da acção, sobre o montante de (euro) 24 059,60 (vinte e quatro mil e cinquenta e nove euros e sessenta cêntimos), bem como os juros contados desde a data de vencimento daquela letra, tudo até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou que:
- A sociedade comercial Euro Tâmega, Sociedade Comercial de Importações e Exportações de Equipamentos e Serviços do Tâmega, Lda., assinou e entregou, por intermédio do seu sócio-gerente, à autora, 4 cheques, datados de 15, 17, 18 e 21 de Abril de 2008, sacados sobre conta do banco réu, titulada em nome daquela sociedade, para pagamento de fornecimentos que lhe foram efectuados pela autora;
- Apresentados tempestivamente à cobrança, vieram aqueles cheques devolvidos à autora, como não pagos, em 17, 18, 21 e 22 de Abril de 2008, com a indicação "Chq. Revog. Por justa causa: falta/vício" aposta no verso dos cheques;
- O não pagamento dos cheques ocorreu sem qualquer causa justificativa, sem fundamento para a ordem de revogação que a sacadora deu ao banco réu, durante o prazo de apresentação a pagamento dos cheques;
- Ordem que o banco réu aceitou sem que da mesma constasse a indicação expressa/concreta do seu motivo, violando assim as instruções emanadas do Banco de Portugal sobre os motivos de devolução de cheques, a implicar que o banco réu responda pelas perdas e danos sofridos pela autora;
- A Euro Tâmega efectuou pagamentos parciais, em Maio de 2008 ((euro) 17 375,64) e Agosto de 2009 ((euro) 61 000), por conta do valor em dívida; e em Maio de 2010 endossou à autora uma letra de câmbio no valor de (euro) 48 000 aceite de outra sociedade;
- Apresentada tal letra a desconto, a autora assumiu despesas bancárias no valor de (euro) 4383,30 tendo recebido o valor de (euro) 43 616,70;
- Nada mais tendo sido pago por conta dos cheques em questão, é a autora credora do valor de (euro) 24 059,60, acrescido do valor de (euro) 29,04, referente a despesas de devolução de cheques, e do valor de (euro) 9431,50, a título de juros moratórios contados desde a data da apresentação a pagamento dos mesmos até à data da instauração desta acção e dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento;
- Caso a letra supra referida não venha a ser paga pelo aceitante na data do seu vencimento, a autora terá de pagar o seu valor, enquanto descontária, ao Banif. Acrescendo então ao crédito da autora o seu valor - (euro) 48 000, elevando o crédito da autora para (euro) 81 520,14.
O réu contestou, articulando, em síntese, no que releva, que agiu no cumprimento de uma ordem de revogação do cheque por justa causa e com fundamento em falta ou vício na formação da vontade dos cheques em causa nos autos (entre outros), a si comunicada pelo sacador, ordem esta que o vinculava, por virtude das obrigações contratuais assumidas perante o sacador, decorrentes nomeadamente da convenção de cheque, sendo que, de resto, a conta sacada não dispunha de fundos disponíveis na data de apresentação a pagamento dos cheques, pelo que e se não tivessem sido revogados, não teriam sido pagos.
Foi proferida sentença em que, julgando-se parcialmente procedente a acção, se decidiu:
"I. Condena-se o banco R. a indemnizar a A. no valor de (euro) 28.486,46, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral e efectivo pagamento.
II. Ao valor referido em I acrescerá o valor de (euro) 43.616,70 referido em 7) dos factos provados, no caso de tal valor vir a ser exigido à A. pelo actual portador da letra, face ao não pagamento do aceitante do título descontado. A este valor acrescendo então juros de mora à taxa legal, desde a data em que a A. interpelar o R. ao pagamento desta quantia e até integral pagamento da mesma.
III. Quanto ao mais, absolve-se o R. do pedido".
O BCP, S.A., apelou desta decisão, com total êxito, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 07-04-2014, revogado a sentença, absolvendo o réu do pedido, consignando na fundamentação:
"No caso em apreço provou-se que a tomadora dos cheques não recebeu a quantia titulada pelos mesmos, mas também ficou provado que os cheques não seriam pagos pelo banco sacado por falta de fundos disponíveis.
Não ficou provado que a A. tenha sofrido danos cuja causa adequada tenha sido a recusa de pagamento.
E para que houvesse danos indemnizáveis era necessário que a A. tivesse alegado e provado que, apesar da ordem revogatória, o ora Apelante sempre pagaria os cheques, o que não fez."
Inconformada com aquele aresto, veio a autora recorrer para este STJ, que, por acórdão de 14-10-14, julgou improcedente a revista, aduzindo como argumentos essenciais:
- O portador dum cheque não pago pelo banco que aceita um pedido injustificado de revogação, no decurso do prazo legal de pagamento, e reclama indemnização pelo valor desse cheque, fundada em responsabilidade civil, tem de demonstrar o efectivo prejuízo patrimonial (dano) e o nexo de causalidade entre o acto ilícito da revogação, o que pressupõe a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado.
- Se o sacador do cheque não tinha provisão na sua conta bancária e, por isso, o banco estava desobrigado de descontar os cheques não é detectável qualquer prejuízo económico a determinar pela diferença entre a situação em que ficou o portador em consequência do facto ilícito (inviabilização do direito cartular) e aquela em que o mesmo portador se encontraria se o mesmo facto ilícito não tivesse ocorrido.
- Apenas quando na conta sacada existam fundos que permitam ao banco descontar o título a ilegítima execução de uma ordem de revogação é susceptível de constituir causa do dano para efeito de preenchimento do pressuposto da obrigação de indemnizar, apresentando-se, fora dessa situação, a conduta ilícita como indiferente, pois que não poderá concluir-se que provavelmente o cheque seria descontado se o banco não tivesse praticado o ilícito.
Argumentando que este acórdão está em contradição com o acórdão do STJ de 08-05-2013, proferido no âmbito do Proc. n.º 1122/10.5TVLSB.L1.S1, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito - em que, discutindo-se também se o banco estava obrigado a indemnizar o portador de cheques revogados com a menção de "cheque revogado por falta ou vício na formação de vontade", sabendo-se que na data de apresentação a pagamento a conta sacada não tinha fundos que permitissem o seu pagamento, se condenou o banco a pagar as quantias indicadas nos cheques -, veio a sociedade Atlanticoil, Lda., interpor recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do estatuído no art. 688.º do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26-06 (doravante NCPC), o qual foi autuado por apenso ao Proc. n.º 2759/10.8TBGDM.P1.S1.
No despacho liminar, de admissão do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, exarou-se, além do mais:
"(...) 2. Do confronto entre o decidido no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento e respectiva fundamentação de facto e de direito é, efectivamente, detectável a identidade de situações de facto, no que se mostra relevante para a determinação das questões de direito a solucionar, bem como a total sobreponibilidade destas, em termos determinantes para a declaração do direito em litígio e sorte das causas.
Parece, portanto, claro que, no âmbito do mesmo quadro normativo, questão idêntica foi decidida num acórdão num sentido e no outro em sentido contrário, em consequência de diversa interpretação e aplicação de tal quadro jurídico, condicionante, em termos decisivos, da solução de idêntica questão.
De concluir, assim, pela invocada contradição de acórdãos, de resto também aceite pela Recorrida, quanto à pela Recorrente proposta questão da "responsabilidade civil por facto ilícito do banco que aceita o pedido injustificado de revogação de cheque, no decurso do prazo legal de pagamento, apesar de a conta sacada não dispor de fundos que, ao tempo da apresentação permitissem o pagamento, sendo o dano do tomador ou portador do cheque o prejuízo patrimonial... (correspondente ao) não recebimento, para si ou para terceiro, aquando da apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constitui meio de pagamento.
3. Nesta conformidade, e no entendimento de que concorrem os pressupostos do recurso, decide-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 692.º CPC, admiti-lo liminarmente. (...)".
A recorrente aduziu, na alegação recursiva, as seguintes conclusões das quais se excluem as que fundamentam a contradição de acórdãos:
"1...
5. Para a boa decisão do presente recurso partimos no horizonte do acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2008, de 28/02, que fixou a seguinte orientação: "Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil..
6. Importa averiguar em que consiste o dano causado ao portador que vê o cheque recusado pelo banco sacado com o seguinte fundamento de revogação pelo sacador "justa causa: falta ou vício na formação de vontade.
7. Entendemos que tal dano é o do "prejuízo patrimonial" a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do DL n.º 454/91, de 28/12, assim sintetizado no acórdão de 30/11/2006 do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça: "Integra o conceito de "prejuízo patrimonial" a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.
8. Assim, o dano que se verificou nos presentes autos é o correspondente ao valor ínsito nos cheques que a Recorrente apresentou a pagamento no prazo legal, devolvidos por falsa "justa causa: cheque revogado por falta ou vício na formação da vontade." e não por motivo de falta de provisão.
9. Desse modo, a causa real, efectiva e operante, do não recebimento do montante referente aos cheques foi indiscutivelmente a aceitação por parte do banco da revogação operada pelo seu cliente, não obstante tal apresentação se ter processado no prazo legal de oito dias.
10. A devolução dos cheques ao tomador, apresentados a pagamento dentro do prazo legal de oito dias, é, como sublinha o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2008, ilícita e causadora de dano ou prejuízo patrimonial ao portador dos cheques.
11. Assim, o Recorrido BCP ao aceitar indevida e ilicitamente a revogação operada pelo sacador retirou tais cheques de circulação, impedindo que os mesmos fossem novamente apresentados a pagamento ou até que servissem de títulos executivos em processo a instaurar para o efeito.
12. De notar, que o acórdão recorrido dispõe frontalmente contra o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2008, pois que do mesmo consta expressamente o seguinte:
"Podia dizer-se, em contrário do supra exposto, que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.
Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento (...)
Mas numa situação idêntica à dos autos, o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (...) impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no artigo 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere (...)."
13. Posto isto, está inequivocamente demonstrada a conexão causal entre o evento danoso e a condição determinante do seu surgimento que é a devolução dos cheques com fundamento apenas na falta ou vício de vontade.
14. E assente que está entre nós a irrelevância (positiva ou negativa) da causa virtual - cfr. Galvão Teles (Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Revista e Actualizada, 1997, pág. 417) e Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Volume I, 10ª Edição, pág. 936) - julgamos por perfeitamente demonstrado o dano causado à Recorrente e o nexo de causalidade entre o mesmo e a conduta do Recorrido BCP.
15. Acresce que é uma impossibilidade fazer incidir sobre o tomador dos cheques o ónus de alegação e prova de que se os cheques tivessem sido apresentados a pagamento este seria efectuado mesmo sem existir saldo suficiente na conta sacada.
16. Na verdade, por um lado, porque se o cheque já estava revogado por falta ou vício na formação da vontade não poderia ser novamente apresentado a pagamento (cheque revogado é cheque que foi retirado do circuito).
17. Por outro lado, por significar uma injusta sobrecarga do ónus da prova sobre o lesado, pois trata-se de um facto meramente conjectural (não acontecido) que não pode sequer ser provado pois as provas destinam-se à demonstração da realidade dos factos e tal realidade pressupõe que os factos provados tenham acontecido (não sejam mera efabulação).
18. O banco sacado ao aceitar ilegitimamente a revogação dos cheques, impediu:
a) a notificação do sacador para em 30 dias regularizar a falta de provisão, sob pena de rescisão da convenção do cheque, proibição de emissão de novos cheques sobre o banco sacado, proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições e a inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco (artigo 1.º -A do DL n.º 454/91, de 28/12).
b) a posterior comunicação ao Banco de Portugal para inclusão na referida listagem (artigos 2.º e 3.º do DL n.º 454/91, de 28/12).
c) a integração no crime de emissão de cheque sem provisão.
d) a constituição de título executivo susceptível de introduzir uma acção executiva para cobrança da quantia inscrita no cheque.
19. Assim, o BCP inviabilizou ou suprimiu tais possibilidades, não podendo ser premiado com a absolvição do pedido.
20. Imperativos de ética e boa fé assim o impõem também.
21. Sendo medidas do conhecimento geral porque decorrentes de diplomas legais e ao alcance de todos, não carecem de alegação e de prova para serem tidas em conta em casos concretos, como aquele que nos ocupa.
22. Termos em que o acórdão recorrido viola, além do mais, o disposto nos artigos 32.º da LUCH, artigo 8.º, n.º 1, e 3.º do DL n.º 454/91, de 28/12, e artigo 483.º, n.º 1, do CC.
23. Devendo ser o mesmo revogado e substituído por acórdão que decida a questão controvertida da seguinte forma:
"Incorre em responsabilidade civil por factos ilícitos o banco que aceita o pedido injustificado de revogação de cheques no decurso do prazo legal de pagamento, apesar de a conta sacada não dispor de fundos que ao tempo da respectiva apresentação permitissem o seu pagamento, sendo que o dano do tomador ou portador do cheque é o do prejuízo patrimonial a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do DL n.º 454/91, de 28/12, referido no acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/11/2006, assim sumariado: "Integra o conceito de prejuízo patrimonial a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento."
O banco recorrido contra-alegou, rematando assim a sua resposta:
"(...) Isto posto, após uma breve dissertação acerca das construções jurídicas levadas a cabo pela jurisprudência pátria, julgamos estar completamente habilitados a afirmar que, independentemente do caminho que a sensibilidade jurídica de cada um de nós nos leve a trilhar e a acolher, a verdade é que todos eles chegam a uma resoluta conclusão: a não condenação do Banco a título de responsabilidade civil pelo acatamento de uma ordem de revogação sem justa causa de um cheque sempre que a conta sacada não apresente provisão suficiente que suporte o débito daquele mesmo cheque.
É neste sentido que os tribunais portugueses têm decidido e é neste sentido que propomos a V. Exas que seja uniformizada jurisprudência.
Na verdade e como começamos por afirmar nesta alegação, cremos que a jurisprudência, não só do Supremo Tribunal de Justiça, como dos demais Tribunais Superiores do nosso país, sem esquecer a primeira instância, têm-se acolhido à solução aqui sufragada.
Repare-se que a decisão de exonerar o banco pelo acatamento de uma ordem de revogação sem justa causa quando a conta sacada não apresenta provisão suficiente que suporte o débito desse mesmo cheque se encontrar vertida em, pelo menos, vinte e um acórdãos dos nossos tribunais superiores, todos eles tirados nos recentíssimos anos de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014. São eles, não é demais relembrar, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2014, 14.01.2014, 21.03.2013, 18.12.2012 e 02.02.2010, do Tribunal da Relação do Porto de 07.04.2014, 21.01.2014, 14.07.2013, 14.03.2013, 26.10.2012, 04.10.2012, 02.02.2012, 31.01.2012, 28.03.2011 e 04.01.2011, do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.07.2012, 20.06.2012, 16.03.2010 e 19.01.2010, do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.05.2011 e 16.03.2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt, à excepção do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.06.2012, que, como se afirmou supra, foi junto como documento nº 1 na alegação de apelação interposta pelo Banco.
Tudo quanto vem de dizer-se abona definitivamente a tese de que a questão de direito sobre a qual nos debruçamos só é decidida com respeito da regra da boa hermenêutica se sancionar o entendimento de que a falta de provisão da conta sacada na data em que o cheque revogado é apresentado a pagamento exonera o banco de responder pelo montante do cheque, no caso de ser ilegítimo o acatamento da ordem de revogação do mesmo.
Bem - muito bem - andou, pois, o acórdão recorrido ao decidir neste sentido e mal andou o acórdão que serve de fundamento a este recurso ao decidir em sentido oposto. (...)
Termos em que, e caso venha a ser conhecido o conflito resultante da oposição de julgados, deve este Supremo Tribunal de Justiça, no plenário das suas Secções Cíveis, uniformizar a jurisprudência, no sentido que se sugere que seja o seguinte:
"A falta de provisão da conta sacada aquando da apresentação do cheque revogado a pagamento exonera o banco de responder pelo montante do cheque, no caso de ser ilegítimo o acatamento da ordem de revogação do mesmo" (...)".
Foi junto parecer pelo Ministério Público, inteiramente concordante com a tese acolhida no acórdão recorrido, no qual se concluiu:
"Verificada falta de provisão da conta sacada para pagamento de cheque apresentado a pagamento, a devolução pelo banco com fundamento em legítima revogação não é, só por si, causa adequada a produzir concreto e efectivo dano ao respectivo portador".
II.
A. A matéria de facto provada nas instâncias é a seguinte, tal como enumerada no acórdão recorrido:
1. A autora é uma sociedade comercial regularmente constituída, tendo por objecto social a recepção e comércio de óleos minerais (cfr. doc. 1).
2. Foram sacados sob a conta com o n.º 03580305530 do balcão de Júlio Dinis do Porto do banco réu, de que é titular a sociedade comercial denominada Euro Tâmega, Sociedade Comercial de Importações e Exportações de Equipamentos e Serviços do Tâmega, Lda., os seguintes cheques:
a) 4347936432, datado de 15-04-2008, no valor de (euro) 34 751,28;
b) 4347936335, datado de 17-04-2008, no valor de (euro) 35 606,55;
c) 4347936238, datado de 18-04-2008, no valor de (euro) 40 051,25;
d) 4347936626, datado de 21-04-2008, no valor de (euro) 35 642,86 (docs. 6 a 9 insertos nos autos a fls. 18 a 21).
3. Apresentados à cobrança no balcão de Gondomar do BPN, vieram os cheques referidos em 2) a ser devolvidos como não pagos à autora em 17-04-2008, 18-04-2008, 21-04-2008 e 22-04-2008, respectivamente, com a indicação "Motivo: Chq. Revog. Por justa causa. Falta/vício", aposta no verso dos cheques.
4. A Euro Tâmega efectuou em 30-05-2008 um pagamento de (euro) 17 375,64 à autora.
5. Em 10-08-2009 a Eurotâmega efectuou um outro pagamento no valor de (euro) 61 000 à autora.
6. Em Maio de 2010 a Eurotâmega endossou à autora uma letra de câmbio, no valor de (euro) 48 000, aceite de outra sociedade comercial.
7. Apresentada tal letra a desconto bancário, a autora assumiu despesas bancárias no valor de (euro) 4383,30, ao passo que lhe foi paga a quantia de (euro) 43 616,70.
8. Aquando da abertura da conta referida em 2) a Eurotâmega celebrou com o banco réu a convenção de cheque, nos termos da qual este lhe foi entregando os impressos de cheque que por aquela foram solicitados como meio para a movimentação a débito da referida conta, entre os quais os referidos em 2).
9. No dia 14-04-2008 o banco réu recebeu da Eurotâmega o documento junto a fls. 123 dos autos, datado de 14-04-2008 nos termos do qual aquela comunicou a este "Revogo por justa causa com fundamento em falta ou vício na Formação de Vontade os cheques abaixo designados, sacados sobre a conta 03580305530 do Banco Comercial Português", entre os quais os referidos em 2).
10. Foi no cumprimento da comunicação referida em 9) que o banco réu deu ordem de devolução dos cheques referidos em 2), nos mesmos apondo a informação referida em 3).
11. No exercício da actividade referida em 1) e a solicitação da sociedade comercial denominada Euro Tâmega a autora forneceu-lhe gasóleo rodoviário, gasolina s/ chumbo 95 e gasolina s/ chumbo 98, nas quantidades e ao preço constantes das facturas que se passam a identificar:
(ver documento original)
12. Para pagamento dos fornecimentos referidos em 11) a Euro Tâmega preencheu, assinou e entregou à autora os 4 cheques referidos em 2).
13. A Euro Tâmega sempre reconheceu dever à autora o valor referido em 12).
14. O pagamento referido em 4) foi efectuado por conta da factura n.º 723.
15. A autora suportou a quantia de (euro) 43,56 em despesas de devolução de cheques.
16. A letra referida em 6) não está paga pelo seu aceitante.
17. Quando cada um dos ditos cheques foi apresentado a pagamento a conta sacada não dispunha de fundos disponíveis em montante necessário ao seu pagamento.
18. O banco réu foi interpelado pela autora, em 05-06-2009, ao pagamento da quantia de (euro) 134 319,06, nos quais se incluíam (euro) 29,04 de despesas de devolução de cheques.
B. A caracterização do conflito jurisprudencial, necessária à uniformização de jurisprudência, implica que as decisões em análise - no acórdão recorrido e no acórdão fundamento - tenham carácter expresso, não sendo suficiente uma oposição ou diversidade implícita, e que a questão jurídica decidida diversamente nesses dois acórdãos revista um carácter fundamental, reportado ao âmago decisório e não a um objecto puramente lateral. In casu, é ostensiva a identidade da questão de direito, registando-se na contradição dos acórdãos em confronto - reitera-se os exarados nos Procs. n.os 2759/10.8TBGDM.P1.S1 e 1122/10.5TVLSB.L1.S1 - uma semelhança manifesta dos pressupostos de facto relevantes para a respectiva solução jurídica, como já se evidenciou no extracto do despacho de admissão acima transcrito.
Mais concretamente a apreciação e decisão desta uniformização de jurisprudência, delimitada pelas conclusões da recorrente, suscita a apreciação e resolução da seguinte problemática jurídica: existindo responsabilidade civil, por facto ilícito, do banco que aceita o pedido injustificado de revogação de cheque, no decurso do prazo legal de pagamento, apesar de a conta sacada não dispor de fundos, que, ao tempo da apresentação, permitissem o respectivo pagamento, o dano do beneficiário do cheque corresponderá, de imediato, ao não recebimento do montante aposto no cheque ou deverá ele fazer a prova de todos os requisitos a que alude o art. 483.º do Código Civil (doravante, CC), designadamente do dano, para obter esse ressarcimento?
B1. As correntes jurisprudenciais em conflito.
A assinalada questão jurídica tem merecido respostas díspares na jurisprudência, bem evidenciadas na divisão jurisprudencial do STJ, podendo destacar-se grosso modo duas correntes principais:
a) Para uma delas, a revogação do cheque, por si só, constituirá, sem mais, causa adequada do dano, sendo suficiente a prova da revogação ilegítima, respondendo o banco pelo valor inscrito no cheque, ainda que, na ocasião da apresentação a pagamento, a conta sacada não se encontre provisionada - neste sentido se pronunciaram os Acórdãos - cujos relatores se nomeiam por mera facilidade de identificação- proferidos nos Processos n.os 05A380, de 15-03-2005 (6.ª Secção, relator: Azevedo Ramos), 272/08.2TVPRT.P3.S1, de 10-05-2012 e 4591/06.4TBVNG.P1.S1, de 21-03-2013 (2.ª Secção, relator: Oliveira Vasconcelos), 1122/10.5TVLSB.L1.S1, de 08-05-2013 (2.ª Secção, relator: Álvaro Rodrigues) [acórdão fundamento], 472/10.5PVPRT.P1.S1, de 30-05-2013 (7.ª Secção, relator: Granja da Fonseca), 1937/08.4TBOAZ.P3.S1, de 26-09-2013 (2.ª secção, relator: Álvaro Rodrigues), 707/09.7TBPVZ.P1.S1, de 20-11-2014 (2.ª Secção, relator: João Bernardo), e 1025/10.3TVLSB.P2.S1, de 15-04-2015 (2.ª secção, relator: Álvaro Rodrigues).
b) Para outra corrente, o beneficiário do cheque só será indemnizado pelo banco se alegar e fizer a prova dos requisitos a que alude o art. 483.º do CC, especialmente do dano e da causalidade entre o facto ilícito e o dano, sendo apodíctico que aquele beneficiário tem de alegar e demonstrar que existe um nexo de causalidade adequado entre a revogação ilegítima do cheque (devolvido com esse fundamento) e o não pagamento determinante do dano - neste sentido, Acórdãos proferidos nos Processos n.os 4768/07, de 29-04-2008 (1.ª Secção, relator: Mário Mendes), 1614/05.8TJNF.S2, de 02-02-2010 (1.ª Secção, relator: Sebastião Póvoas), 5445/09.8TBLRA.C1.S1, de 18-12-2012 (1.ª Secção, relator: Paulo Sá), 685/10.0 TVPRT.P1.S1, de 21-03-2013 (2.ª Secção, relator: Abrantes Geraldes), 5450/09.4TBLRA.C1.S1, de 11-07-2013 (6.ª Secção, relator: Fernandes do Vale), 64/10.9TVPRT.P1.S1, de 14-01-2014 (1.ª Secção, relator: Moreira Alves), e 2759/10.8TBGDM.P1.S1, de 14-10-2014 (1.ª Secção, relator: Alves Velho) [acórdão recorrido].(1)
Alcança-se da leitura dos vários arestos enunciados que se discutiu, em todos eles, a (eventual) responsabilidade civil extracontratual da entidade bancária perante o portador do(s) cheque(s), pelo facto de ter sido recusado o pagamento desse(s) cheque(s), no prazo legal de apresentação a pagamento de 8 dias, previsto no art. 29.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque (doravante, LUCh)(2), em virtude da sua revogação.(3)
B2. O cheque, a relação de provisão e a convenção de cheque.
O cheque é um título de crédito mediante o qual o sacador dá uma ordem de pagamento à vista a um sacado para que pague determinada quantia, em regra a favor de terceiro - o tomador -, por conta dos fundos disponíveis junto do sacado, que terá de ser forçosamente um banco, o que deflui do art. 3.º da LUCh.(4)
Com a entrega do cheque, ou seja, a partir do momento em que o emitente põe o cheque em circulação - independentemente da data ali indicada como sendo a da subscrição -, até ao termo do prazo legal para a sua apresentação a pagamento, o sacador obriga-se a manter a conta devidamente provisionada, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 28.º, 29.º e 40.º da LUCh.
O banco sacado não é, porém, parte da relação fundamental, nem é parte na relação cartular, não se vinculando (obrigacionalmente) perante o beneficiário do cheque a efectuar o pagamento - não existe qualquer relação jurídica directa entre o banco e o beneficiário ou tomador do cheque -, decorrendo da LUCh a proibição do banco assumir essa obrigação: o banco sacado não figura entre os obrigados cambiários (art. 40.º), não pode aceitar cheques (art. 4.º), não pode conceder aval (art. 25.º, 2.ª alínea), nem o pode endossar (art. 15.º, 3.ª alínea).(5)
Noutra perspectiva, ninguém dissente que o cheque, enquanto documento que consubstancia um título de crédito, não opera, por si, a extinção da obrigação jurídica a cujo pagamento se dirige, constituindo tão-só um meio para alcançar esse desiderato.
Na base da emissão de um cheque - cuja origem está numa relação jurídica anterior (a relação subjacente ou causal) que se pretende regularizar - existem, pois, duas relações jurídicas distintas: a) a relação de provisão (v.g., depósito, abertura de crédito e descoberto em conta) b) o contrato ou convenção de cheque, que pode ser meramente tácito celebrando-se, na prática, mediante a requisição, pelo cliente, de uma ou mais cadernetas de cheques e a entrega destes ao banco.
A provisão - constituída pelos fundos disponíveis junto do banco - constitui um dos elementos intrínsecos do cheque e seu pressuposto lógico: o portador do cheque, uma vez legitimado em tal qualidade, está autorizado a cobrar o valor do cheque e a receber do banco sacado que, por sua vez, irá debitar, subsequentemente ao sacador, o montante dos valores que pagar.
Todavia, pode não haver provisão stricto sensu, mas ter sido acordado entre o banco e o sacador aquele pagar os cheques por este emitidos, como ocorre nas situações em que, ao abrigo de um contrato de abertura de crédito, o titular da conta bancária beneficia de uma linha de crédito até certo montante, ou em que o banco permite ao titular da conta o direito de sacar a descoberto, isto é, mesmo que o saldo seja negativo para o cliente ou se torne negativo em virtude do saque.
Aliás, por força da segunda parte do art. 3.º da LUCh, a existência de fundos no banco à disposição do sacador não é pressuposto da validade do título apresentado como cheque, o qual não fica ferido de qualquer nulidade nos termos genericamente previstos no artigo 294.º do CC, assim se consagrando o princípio da autonomia da relação cambiária, quer relativamente à relação causal subjacente, quer às diversas relações extracartulares.(6) Com efeito, a falta de provisão não invalida o cheque. O cheque sem provisão é ainda um cheque, embora irregular.
A falta de provisão tem, porém, um efeito destrutivo da convenção de cheque, comprometendo irremediavelmente, quando não seja oportunamente regularizada, a subsistência deste contrato.(7)
Em síntese: a provisão não tem de ser considerada em sentido puramente literal de entrega de dinheiro ao banco - há provisão se o cliente dispõe de dinheiro depositado em conta corrente, se existe abertura de crédito em conta corrente, se há acordo para concessão de crédito com autorização de movimentação de cheques, etc.. Se faltar a provisão, no sentido lato antes firmado, então o banco sacado não deverá proceder ao pagamento do cheque.
Para o surgimento do cheque não basta apenas a provisão, mas também é necessário o contrato ou convenção de cheque, "id est, é necessário que entre o banco e o titular da provisão se celebre um novo acordo por via do qual o segundo mobilize, por meio de emissão de cheques, os fundos em relação aos quais detém um direito de crédito".(8)
A convenção de cheque, consubstancia o contrato celebrado entre o banco e o titular de uma conta bancária que atribui ao cliente a faculdade de utilizar os fundos disponíveis através de cheques disponibilizados pelo banco, o qual fica vinculado a honrar o pagamento incorporado no título.
Dito de outro modo, é através dessa convenção que o banco acede a que o seu cliente mobilize os fundos disponíveis, em relação aos quais detém um direito de crédito, por meio da emissão de cheques.
Da convenção de cheque resulta um conjunto de direitos e deveres a cargo de cada uma das partes, ficando o cliente com o direito de exigir ao banco a entrega de módulos (em carteiras ou livros) de cheques, em conformidade com o acordado, bem como com o poder de sacar cheques sobre o banco, ou seja o poder de dar ordens de pagamento ao banco, nos termos do contrato, através do título cheque; por sua vez, para o banco emana o dever de disponibilizar ao cliente, nos termos do contrato, módulos de cheques e o dever principal de cumprir a ordem consubstanciada no cheque, ou seja o dever de pagar havendo provisão.(9)
A obrigação de pagamento do cheque ao seu portador legítimo, pelo banco sacado, existirá, assim, sempre que o respectivo sacador disponha de fundos numa conta bancária(10), haja contrato de cheque, não exista oposição ao pagamento por alguma causa legalmente permissiva e concorram os demais requisitos de validade do cheque.
Na falta de provisão é facultado ao banco sacado, por um lado, recusar o pagamento do cheque que lhe seja apresentado a pagamento e possibilita-se ao portador, por outro, intentar acção penal por cheque sem provisão ou acção de regresso contra o seu sacador.
Na convenção de cheque, evidentemente, tudo se passa entre o banco e o titular da provisão, não sendo o portador parte nessa convenção e não tendo, nessa estrita medida, direito de acção contra a entidade bancária sacada, em face dos princípios do direito cambiário.
B3. A revogação do cheque e o AUJ n.º 4/2008.
O cheque apresentado a pagamento, como se viu, desde que suficientemente provisionado e emitido ao abrigo de convenção de cheque, vincula o sacado perante o sacador, em termos puramente contratuais, e a recusa injustificada de pagamento dá origem a responsabilidade obrigacional do banco perante o cliente.
O sacado fica, igualmente, com a obrigação de efectuar o devido pagamento perante o portador, uma vez que é este que, por força da lei, se lhe apresenta para tal efeito, não obstante ser alheio à convenção de cheque.
Trata-se, porém, de uma obrigação legal, não se baseando a obrigação do sacado em qualquer pretenso direito do portador sobre a provisão, o qual é, isso sim, detentor de um valor que pode circular, como sucedâneo da nota de banco, não sendo admissível que a lei, que lhe estabeleceu os condicionalismos da sua aceitação confiante pelos agentes económicos, permita ao sacado a recusa arbitrária do seu pagamento.(11)
Nesta conformidade, reitera-se - existindo provisão e se a apresentação a pagamento, promovida pelo portador legítimo, ocorrer dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito - o cheque deverá ser pago, sendo irrelevantes a intenção e instruções do sacador e a disponibilidade de a instituição de crédito em aceitar tais instruções.(12)
A revogação, neste contexto, deve ser interpretada como uma instrução unilateral para não pagamento de um cheque que tenha sido emitido em benefício de - ou endossado a - terceiro.(13)O cheque, uma vez revogado, deixa de ser cheque e é destruído nas suas virtualidades jurídicas: em rigor, ao revogar a ordem incorporada no cheque o sacador está a proibir o seu pagamento.
Pois bem, em Portugal, após longa controvérsia doutrinal(14) e jurisprudencial, a questão de saber se um banco, ao aceitar a revogação do cheque pelo sacador, no decurso do prazo para apresentação a pagamento, recusando o seu pagamento, incorre (ou não) em responsabilidade civil extracontratual foi objecto do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2008, de 28-02, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 67, de 04-04-2008.
No âmbito daquele acórdão estava em causa uma situação em que se averiguava uma ordem pura e simples de revogação, sem qualquer justificação, tendo-se o aresto restringido à interpretação das situações de verdadeira revogação de cheque, deixando de lado as hipóteses não incluídas no âmbito do art. 32.º da LUCh, como sejam as de extravio, furto, roubo, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade, desde que devidamente justificadas, que configuram casos que não cabem no conceito de revogação a que se reporta o preceito legal em referência.
Apesar de vários votos de vencido em contrário, considerou-se que continuava vigente a 2.ª parte do art. 14.º do Decreto 13 004, de 12-01-1927, segundo o qual, no decurso do prazo de apresentação do cheque a pagamento, o banco sacado "não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação", preceito legal do qual emerge a imputação da responsabilidade civil extracontratual ao banco sacado, em face do beneficiário do cheque.(15)E fixou-se, ali, jurisprudência no sentido de que uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCh, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte, do Decreto 13 004, e 483.º, n.º 1, do CC.
Definiu-se, então, sem margem para quaisquer dúvidas, que o portador legítimo do título emitido ao abrigo da convenção de cheque tem direito ao seu pagamento, suficientemente provisionado, podendo accionar o banco em caso de violação ilegítima de tal direito ao pagamento, sequente à aceitação da revogação do cheque.
Resta acrescentar que, para quem intenta aduzir, como se fez nos autos, que naquele acórdão uniformizador se apreciou e decidiu o objecto do presente recurso, o seu aturado exame não deixa dúvidas que, ali, apenas se controverteu a questão da ilicitude e não os demais pressupostos da responsabilidade civil, como se reconhece no acórdão recorrido (e jurisprudência aí identificada).
B4. A responsabilidade civil do banco, decorrente da revogação ilícita do cheque.
A partir da fixação de jurisprudência constante do AUJ n.º 4/2008 está consensualizado, na jurisprudência, que o banco que recusa o pagamento do cheque revogado, dentro do prazo de apresentação, pratica um acto ilícito e o seu contributo deixou claro que a inerente responsabilidade bancária é de natureza extracontratual, abrangendo as perdas e danos decorrentes de tal incumprimento.
É aqui - ao nível da análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - que, no vertente caso, se centram, de modo claro e ostensivo, as divergências da jurisprudência sinalizadas, ao debruçar-se sobre a temática da responsabilidade bancária derivada da aceitação (ilícita) da revogação do cheque, porquanto uma das correntes sustenta que o banco sacado será sempre responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente, em princípio, ao valor dos cheques, quando tenha ilicitamente aceite a revogação desses títulos comunicada pelo sacador - durante o prazo legal de apresentação a pagamento -, existindo dano para o portador, mesmo que a conta sacada não tenha provisão, ao passo que a outra corrente ampara que o tomador dos cheques terá sempre de provar quer o dano resultante da aceitação da revogação, quer o nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e aquele dano, o que implica que seja efectuada a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução do cheque apresentado a pagamento no prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado, uma vez que o dano não se presume.
São esparsas as referências doutrinais desta questão atinente à determinação do dano e ao nexo de causalidade entre a actuação do banco sacado e esse dano, nestas situações.(16)/(17)/(18). Há que ir aos princípios gerais da responsabilidade civil e daí colher os respectivos ensinamentos.
Para que o facto ilícito - o agente viola um direito subjectivo de outrem, de natureza absoluta, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como ocorre quando a norma violada protege interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo - desencadeie responsabilidade é imprescindível que o agente tenha actuado com culpa, no sentido de que a sua conduta seja merecedora de reprovação ou censura do direito, o que sucederá quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo: a ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito, a culpa para o comportamento em concreto.
Apurado o facto ilícito (e culposo), ter-se-á de verificar a ocorrência do nexo causal entre aquele(s) e o dano, sendo certo que o concurso do nexo causal, na vertente normativa da adequação da causa, para além da sua materialidade, é, enquanto matéria de direito, cognoscível pelo Supremo.(19)
De acordo com Pereira Coelho, cuja proposta acabou por ser acolhida pelo art. 563.º do CC (de 1966): "Se o fim do dever de indemnizar é aproximar a "situação real" da "situação hipotética" do lesado então os prejuízos reparáveis devem ser aqueles que o lesado provavelmente não sofreria se não fosse a lesão".(20)
Está consensualizado que, ali, naquele dispositivo, se adoptou a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, não é suficiente que o facto do agente tenha sido, em determinado caso concreto, condição sine qua non do dano. É ainda necessário que, em abstracto ou em geral, isto é, segundo o curso natural das coisas, o facto seja causa adequada desse mesmo dano. O que quer dizer que é necessário que o dano seja uma consequência normal ou típica do facto, isto é, sempre que verificado este, se possa prever o dano como consequência natural ou como efeito provável dessa verificação.
Este dano deve ser entendido como "a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica" ou "toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica", (21) cuja verificação é condição essencial para que haja obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os prejuízos causados ao lesado, sem os quais aquela não existe.
Por conseguinte, a obrigação indemnizatória, só se constituirá, no âmbito extracontratual, quando estejam presentes, de forma cumulativa, os pressupostos da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo de causalidade, sendo ao lesado, titular do direito à indemnização, que compete a prova de tais pressupostos.
Revertendo ao caso em discussão, a autora/recorrente, no que aqui releva, alegou, tão só, que o dano resultou da conduta ilícita do réu e que esse dano será correspondente ao quantitativo titulado pelos cheques devolvidos, como não pagos (efectuado o desconto de alguns montantes já recebidos da contraparte na relação subjacente), tendo o banco, por seu turno, sustentado que mesmo no caso de não aceitação da ordem de revogação, veiculada pelo sacador, jamais poderia pagar os cheques atenta a sua falta de provisão.
Provou-se, adicionalmente, que quando cada um dos cheques - que vieram a ser devolvidos - foi apresentado a pagamento, a conta sacada não dispunha de fundos disponíveis em montante necessário ao seu pagamento.
Sopesando as regras reguladoras da emissão e apresentação a pagamento de cheque sacado sobre conta bancária, relembra-se que a instituição bancária apenas está obrigada a efectuar o pagamento da quantia inscrita no cheque quando, na ocasião da sua apresentação, a conta estiver devidamente provisionada.
O provisionamento da conta sacada com fundos bastantes não poderá deixar de funcionar como circunstância positiva em que a recusa de pagamento de um cheque determinará, de acordo com as regras da experiência, que o tomador se veja privado do montante titulado pelo cheque que apresenta a pagamento.
Pelo contrário, a aceitação por parte do banco sacado da revogação ilegítima de um cheque que tenha sido declarada pelo respectivo sacador, por si só, é insusceptível de conferir ao respectivo tomador um direito que em caso algum seria satisfeito se acaso a devolução se fundasse na efectiva falta de fundos bastantes para se efectivar o desconto: o dano não se presume e deve ser provado pelo lesado, em consonância com o que exposto anteriormente de modo detalhado.
Ou seja, a devolução dos cheques com fundamento na revogação e com invocação, injustificada, de "Chq. Revog. por justa causa: falta/vício" - eventualmente para o sacador evitar o desconto ou se furtar às consequências penais emergentes da devolução dos cheques com fundamento na "falta de provisão" -, apenas permite afirmar a existência de um facto ilícito imputável ao banco sacado, em resultado da violação de normas legais destinadas a tutelar direitos de terceiros - maxime, os arts. 32.º da LUCh e 483.º do CC -, mas, por si só, revela-se manifestamente insuficiente para o reconhecimento do direito de indemnização, que dependerá da prova real da existência de um dano.
É verdade, outrossim, que o não pagamento dos cheques ocorreu sem qualquer causa justificativa, sem fundamento para a ordem de revogação que a sacadora deu ao banco recorrido, durante o prazo de apresentação a pagamento dos cheques. Mas o facto isolado de a devolução dos cheques ter sido a causa imediata do seu não pagamento, não se confunde com a causalidade adequada à produção do dano, nos moldes anteriormente firmados.
Apesar da conduta ilícita do banco é insofismável que a conta sacada não estava devidamente provisionada para permitir o pagamento dos cheques, de modo que, perante esta circunstância, contemporânea da devolução dos cheques, não se vislumbra em que medida tal devolução tenha a aptidão para produzir o dano reclamado, porquanto, em face do circunstancialismo concreto, não era razoável prever, face ao curso normal das coisas, que os cheques seriam pagos à autora, se não fosse a sua devolução fundada na dita revogação.
Existe, pois, a necessidade de comprovação cumulativa da presença de dano na esfera patrimonial do lesado, bem como de um nexo de causalidade adequada pelo qual o prejuízo esteja relacionado com a constatação do facto ilícito e culposo do banco sacado, para daí concluir pela ocorrência da responsabilidade aquiliana invocada.
Acresce que quando o banco pratica o acto ilícito tipificado no art. 32.º da LUCh apenas destrói o direito cambiário do portador do cheque, enquanto tal.
Quer isto dizer que o débito emergente da obrigação subjacente permanece incólume, pelo que se é verdade que a obrigação cambiária se extingue de modo indevido, a verdade é que a relação subjacente, que tem por objecto o direito de crédito da autora cuja falta de liquidação consubstancia o concreto prejuízo patrimonial, subsiste in totum.
A circunstância de os cheques não terem sido pagos não significa necessariamente a existência de algum prejuízo patrimonial para o respectivo portador, na medida em que ele continua a ser titular do direito substantivo correspondente à relação jurídica subjacente, sendo certo que, pelo facto do sacador não dispor de fundos na sua conta de depósitos suficientes para o pagamento dos cheques, não havia por parte do recorrido, a obrigação de pagar os valores neles inscritos.
Não se detecta, pois, em que medida o facto ilícito do banco/recorrido possa ser tido como causa adequada do dano alegado pela recorrente, ponderando que o dano se deve reportar ao prejuízo, avaliado em concreto, e não no âmbito do mecanismo da abstracção da relação cartular.
Repetindo: se o sacador dos cheques não tinha provisão na sua conta bancária suficiente que permitisse a liquidação dos quantitativos que aqueles títulos exibiam, o banco estava desonerado da obrigação de descontar os cheques, não sendo detectável qualquer prejuízo económico a apurar pela "diferença entre a situação em que ficou o portador em consequência do facto ilícito (inviabilização do direito cartular) e aquela em que o mesmo portador se encontraria se o mesmo facto ilícito não tivesse ocorrido (art. 562.º do CC)", tal como se exarou no acórdão recorrido.
E não se diga que nos movemos na área da (ir)relevância negativa da causa virtual.
A problemática da denominada relevância da causa virtual, no âmbito do nexo de causalidade, verifica-se sempre que o dano resultante da causa real se tivesse igualmente produzido, na ausência desta, por via de outra causa, denominada causa virtual.
Especificamente, no que tange à irrelevância negativa da causa virtual, que é acolhida pela generalidade da doutrina nacional, decorre da mesma que, verificando-se a imputação delitual de um facto ao agente, naturalmente que ele há-de responder pelos danos causados (art. 483.º), não prevendo a lei como regra geral que essa responsabilidade seja perturbada pela causa virtual: "Reconduzindo o problema a uma questão de causalidade, há que apurar se a causa real pode considerar-se efectivamente causa do dano, sendo certo que ele sempre ocorreria em resultado da causa virtual. E a resposta é a de que a referida causalidade existe. A causa virtual não possui a relevância negativa de excluí-la, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano: sem o facto operante o lesado teria um dano idêntico, mas não aquele preciso dano".(22)
Não é possível, assim, estabelecer o necessário nexo causal adequado entre o facto ilícito do recorrido - aceitação da revogação - e a privação das quantias tituladas nos cheques devolvidos, não existindo, na decorrência desse evento, qualquer dano real e efectivo resultante da conduta ilícita do banco.
Logo, a situação de alegada (ir)relevância negativa da causa virtual (agitada por alguma jurisprudência) não pode ser equacionada num caso de devolução dos cheques, com fundamento em revogação ilegítima, a qual, por si só, não configura qualquer dano efectivo, dependendo este inteiramente do facto de a conta sacada se encontrar devidamente provisionada.
Ademais, a recorrente não logrou provar na acção o dano real, isto é, que os cheques só não lhe foram pagos pela revogação ilegal daqueles títulos, tendo-se provado, isso sim e pelo contrário, que a conta sacada não dispunha de saldo permissivo de tal pegamento, razão pela qual os cheques revogados nunca seriam pagos aquando da sua apresentação à entidade de crédito.(23)
Não obstante se reconhecerem as dificuldades que recaem sobre o tomador/portador legítimo do cheque quando seja confrontado com uma situação semelhante à dos autos, não vemos como possam ultrapassar-se, de outro modo, as exigências decorrentes do regime legal da responsabilidade civil extracontratual em que não é atribuído relevo a danos abstractos e em que é sempre exigida a comprovação de danos concretos, cuja quantificação deve ser feita nos termos conjugados dos arts. 562.º, 563.º e 566.º, n.º 2, do CC.
Como bem se enfatiza no Acórdão do STJ, de 21-03-2013, Proc. n.º 685/10.0 TVPRT.P1.S1, a respeito das dificuldades probatórias nas situações de revogação de cheque, cuja conta sacada não esteja provisionada: "Dificuldades semelhantes suportam outros interessados, noutras situações, em que igualmente se exige a alegação e prova de factos de pendor negativo, as quais devem ser resolvidas, como é regra, através da valoração efectiva dos meios de prova e de contraprova apresentados, e não mediante a imediata inversão do ónus da prova. Aliás, sendo a responsabilidade civil imputada à actuação ilícita do banco sacado traduzida na aceitação indevida de uma revogação do cheque declarada pelo sacador, aquelas dificuldades de alegação e, sobretudo, de prova podem ser superadas através de mecanismos processuais que vinculam o demandado a cooperar no esclarecimento dos factos controvertidos, impedindo, por exemplo, a invocação do sigilo bancário. Com efeito, na qualidade de demandado, além de ter interesse no esclarecimento espontâneo da situação, para se eximir da responsabilidade que lhe seja assacada, o banco está especialmente onerado com a resposta a notificações que lhe sejam dirigidas com vista ao apuramento da real situação em que se encontrava a conta bancária sacada ou com a clarificação de outros aspectos relevantes para a demonstração dos danos e/ou do nexo de causalidade".
Reitera-se, o cometimento de um facto ilícito, pela entidade de crédito que acolhe a ordem injustificada de revogação de cheque, no prazo de apresentação a pagamento, por si só, é manifestamente insuficiente para demonstrar quer a existência do nexo de causalidade, quer do dano, fazendo-o corresponder automaticamente ao valor inscrito no cheque, desatendendo à real situação em que se encontrava a conta sacada.
Acolhendo-se a solução contrária, para além de se fazer tábua rasa dos critérios legais vigentes no ordenamento jurídico português, apartar-nos-íamos, ainda, do objectivo primordial que deve perseguir o instituto da responsabilidade civil extracontratual, que consiste em actuar, dentro do possível, a reconstituição natural da situação que existiria se acaso não houvesse ocorrido o facto ilícito ou, sendo inviável tal reconstituição, compensar monetariamente o lesado, colocando-o aproximadamente na situação em que ficaria se não tivesse ocorrido aquele facto.
Por conseguinte, na acção de responsabilidade civil extracontratual, visando a responsabilização do banco sacado decorrente da devolução de cheque apresentado a pagamento, com base na sua revogação ilícita, impende sobre o portador do cheque o ónus da alegação e prova da verificação do dano que visa reparar, assim como do nexo de causalidade adequada entre o invocado facto ilícito e aquele dano.
C. Em conclusão:
- Existindo provisão suficiente na conta sacada para pagamento dos cheques, o acatamento ilícito da ordem de revogação dada pelo sacador, dentro do respectivo prazo de apresentação a pagamento, faz incorrer o banco sacado em responsabilidade civil extracontratual, podendo, nessa eventualidade, a indemnização ter como medida, inclusivamente, o valor dos cheques não pagos.
- Nessas circunstâncias, é a conduta (ilícita e culposa) do banco sacado que impede o pagamento, sendo certo que tal faculdade não está na sua disponibilidade, impondo a lei ao sacado a obrigação do pagamento dos cheques, desde que estes sejam apresentados para esse efeito no prazo legal e a conta sacada tenha provisão e sempre que não se verifique qualquer causa legítima que a tal obste.
- Pelo contrário, na situação em que se prova que a conta sobre a qual os cheques foram sacados não tem provisão, considerando que a obrigação que recai sobre o banco sacado de pagar os cheques que lhe são apresentados no prazo legal é condicionada à existência de provisão na conta sacada, não se pode considerar, sem a prova dos demais requisitos da responsabilidade extracontratual, que exista qualquer prejuízo para o portador e que o mesmo seja correspondente ao valor dos cheques, porquanto ele mantém todos os direitos referentes à relação jurídica subjacente.
III.
Pelo exposto, acorda o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão recorrido, uniformizando a jurisprudência nos seguintes termos:
A falta de pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo previsto no art. 29.º da LUCh, pelo banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, não constitui, por si só, causa adequada a produzir dano ao portador, equivalente ao montante do título, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada, competindo ao portador do cheque o ónus da prova de todos os pressupostos do art. 483.º do CC, para ter direito de indemnização com aquele fundamento.
Custas a cargo da Recorrente.
(1) Todos os acórdãos assinalados estão publicados em http://dgsi.pt, com excepção do acórdão 5450/09, publicado na CJ, Acs STJ, 2013, II.
(2) Estabelecida pela Convenção Internacional assinada em Genebra em 19-03-1931, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei 23 721, de 29-03-1934, e confirmada e ratificada pela Carta de 10-05-1934, publicado no suplemento do "Diário do Governo", n.º 144, de 21-06-1934.
(3) Rege aquele art. 29.º na parte relevante:
"O cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias. (...)"
O art. 32.º, por seu turno, estabelece:
"A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.
Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo".
(4) "O cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque. A validade do título como cheque não fica, todavia, prejudicada no caso de inobservância destas prescrições".
(5) Neste sentido, v.g., Nogueira Serens, op. cit., pág. 103, Sofia Galvão, Contrato de Cheque - um estudo breve (1992), pág. 22 e 30, Alberto Luís, O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59.º (1999), pág. 898, Januário Gomes, Contratos Comerciais (2013), págs. 195/196.
(6) José Maria Pires, op. cit., pág. 28.
(7) Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque (2009), pág. 577.
(8) Correia Gomes, A Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados (2004), pág. 13 e segs..
(9) A este propósito, Januário Gomes, op. cit., págs. 192, 197 e 199.
(10) Enfatize-se que sem prejuízo da inexistência de provisão bastante - por falta absoluta ou insuficiência -, o dever legal de pagar o cheque, por parte do banco sacado, acontece relativamente a qualquer cheque emitido através de módulo por ele fornecido, de montante não superior a (euro) 150 - cf. art. 8.º do DL n.º 454/91, de 28-12, na versão emergente da Lei 48/2005, de 29-08 (Regime Jurídico do Cheque).
(11) Assim, José Maria Pires, op. cit., pág. 99.
(12) Olavo Cunha, op. cit., pág. 615.
(13) No que se refere à forma da revogação do cheque ela deve consistir numa instrução concreta, clara e inequívoca que identifique o cheque cujo pagamento se pretende evitar - cf. Olavo Cunha, op. cit., pág. 580.
(14) A questão de saber se ao portador do cheque, cujo pagamento foi recusado pelo banco sacado na sequência de instruções do sacador, no prazo do respectivo pagamento, assiste ou não direito a ser indemnizado pela entidade bancária, deu lugar a duas posições antagónicas:
a) em sentido negativo, pronunciaram-se, por exemplo, Filinto Elísio, A Revogação do Cheque, in "O Direito", Ano 100.º (1968), n.º 4, págs. 450 a 505; Ferrer Correia e António Caeiro, Recusa do pagamento de cheque pelo Banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador, "Revista de Direito e Economia", Ano IV, n.º 2 (1978), págs. 457, a 473; Nogueira Serens, Natureza Jurídica e Função do Cheque, Revista da Banca, n.º 18, Abril/Junho (1991), págs. 99 a 131; Sofia Galvão, Contrato de Cheque - um estudo breve (1992); Germano Marques da Silva, Proibição de Pagamento do Cheque (Da Necessária Articulação da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, do Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão e do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária), "Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, Volume II (2003), págs. 81 a 101;
b) em sentido afirmativo, pronunciaram-se, designadamente, Adelino da Palma Carlos, Pode o banqueiro recusar, dentro do prazo de apresentação, o pagamento de cheque revogado pelo sacador?, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 6.º, n.os 1 e 2 (1946), págs. 439 a 452, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, 1992, págs. 253 a 261; Evaristo Mendes, Cheque, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, Inconstitucionalidade, "Revista de Direito e de Estudos Sociais", Abril/Setembro (1999), Ano XXXX, n.os 2 e 3, págs. 163 a 237, e O actual sistema de fé pública do cheque, "Direito e Justiça", Vol. XIII, Tomo 1 (1999), págs. 199 a 254, José Maria Pires, O Cheque (1999), págs. 93 a 101; Alberto Luís, O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59.º, Dezembro (1999), págs. 895 a 914; Pinto Furtado, Títulos de Crédito (2000), págs. 264 a 267; Jorge Simões Patrício, Direito Bancário Privado (2004), págs. 197 a 213, Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque (2009), págs. 577 a 627, e Nuno Cerejeira Namora, O fim da incerteza do regime jurídico do cheque, "Revista Jurídica da Universidade Portucalense", n.º 14 (2011), págs. 221 a 224.
(15) Do cotejo deste normativo com o art. 32.º da LUCh, nasceram muito cedo, como deu notícia Adelino da Palma Carlos, duas correntes doutrinais, a primeira sustentando que o citado art. 14.º foi revogado - Mário de Castro, Tito Arantes, Inocêncio Galvão Telles e Manuel Casanova -, e a segunda defendendo a não revogação desse preceito legal - Paulo Cunha, Cancela de Abreu, Carlos Pereira e Vasco Almeida e Silva - op. cit. págs. 450 a 452.
(16) Cheque e Convenção de Cheque (2009), págs. 615/616.
(17) Op. cit., pág. 703.
(18) Op. Cit. Contratos Comerciais (2013), págs. 207/208.
(19) A este respeito, cf. o Acórdão do STJ, de 11-07-2013, Proc. n.º 95/08.9TBAMM.P1.S1.
(20) O nexo de causalidade na responsabilidade civil, Suplemento IX ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra (1951), págs. 65-242 (212).
(21) Luís Menezes Leitão, Obrigações, 2015, pág. 297, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição (2014), pág. 591.
(22) Almeida Costa, op. cit., pág. 769.
(23) Alguma jurisprudência vai mais longe e entende que a autora tinha, adicionalmente, o ónus de alegar e provar, ex vi do art. 342.º, n.º 1, do CC, que se fosse dado cumprimento ao mecanismo previsto no art. 1.º-A do DL n.º 454/91, de 28-12, a conta seria provisionada, as quantias lhe seriam pagas, ou, por fim, se perante a eventualidade de inclusão na listagem a que se refere o art. 3.º daquele diploma, a sacadora procederia ao pagamento - cf. Acórdão do STJ, de 02-02-2010, Proc. n.º 1614/05.8TJNF.S2.
Lisboa, 10 de Novembro de 2015. - João José Martins de Sousa (Relator) - Gabriel Martim dos Anjos Catarino - José Tavares de Paiva - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Ana Paula Lopes Martins Boularot - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor - Fernando Manuel Pinto de Almeida - Fernanda Isabel De Sousa Pereira - Manuel Tomé Soares Gomes - Júlio Manuel Vieira Gomesv José Inácio Manso Raínho - Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão - Sebastião José Coutinho Póvoas - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - João Moreira Camilo - Paulo Armínio de Oliveira e Sá - António José Pinto da Fonseca Ramos - Ernesto António Garcia Calejo - Helder João Martins Nogueira Roque - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego - Orlando Viegas Martins Afonso - Paulo Távora Victor - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - José Augusto Fernandes do Vale - João Carlos Pires Trindade (Vencido de acordo com a declaração do Exmo. Conselheiro João Bernardo - João Mendonça Pires da Rosa (Vencido, conforme declaração que junto) - José Amílcar Salreta Pereira (com voto de vencido, que junto) - João Luís Marques Bernardo (Vencido com forme voto que junto) - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (Vencido conforme declaração que junto) - Fernando da Conceição bento (Vencido conforme declaração do Exmo. Conselheiro João Bernardo) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).
Declaração de Voto
Vencido - Destruída que fica, com a revogação ilícita - tal como ficou entendida no AUJ nº4/2008, de 28 de Fevereiro de 2008, DR, 1ª série, de 4 de Abril de 2008 - a força do cheque como meio de pagamento, provado fica o dano de igual montante sofrido pelo tomador do cheque que, podendo dispor dos dispositivos consagrados no Dec.lei nº316/97, de 19 de Novembro que constrangeriam o sacador ao pagamento do montante nele inscrito, os perde em absoluto. Se, ilicitamente, o banco sacado se solidariza com a perda dessa força aceitando sem mais a declaração do sacador, a ilicitude da sua conduta será danosa para o tomador na medida do montante do cheque.
Fixaria, assim, jurisprudência nos seguintes termos:
Provada a revogação ilícita do cheque apresentado a pagamento, entendida no sentido fixado no AUJ nº4/2008, de 28 de Fevereiro de 2008, DR, 1ª série, de 4 de Abril de 2008, provado fica o dano do não pagamento sofrido pelo tomador, no montante titulado pelo cheque, haja ou não provisão no banco sacado que aceitou a revogação.
(Pires da Rosa)
Voto de vencido
O acórdão votado centrou a decisão assumida na não prova do nexo de causalidade adequada entre o ilícito extracontratual do banco sacado e o dano patrimonial sofrido pela autora.
Considerou que, não havendo provisão suficiente na conta sacada, o réu recusaria igualmente o pagamento dos quatro cheques apresentados pela autora, no prazo legal.
Embora não o tenha afirmado, parece que o acórdão entendeu que a autora não receberia as importâncias tituladas pelos cheques, mesmo que o réu não tivesse aceitado e cumprido a ordem ilegal de revogação dos cheques dada pela sacadora e tivesse recusado o seu pagamento por insuficiência de provisão na conta sacada, devolvendo-os à autora, com essa nota.
O réu não fez o que devia, cometendo um ilícito extracontratual.
A referência à insuficiência da provisão na conta sacada surgiu posteriormente, como meio de defesa do réu à acção de indemnização proposta contra si pela autora.
Afigura-se-nos que a alegação deste facto, pretensamente impeditivo da sua responsabilidade, preenche a figura da causa virtual, que o réu pretende relevante, e não a ausência de nexo causal entre o seu comportamento ilícito e o dano efectivamente sofrido pela autora.
A insuficiência da provisão da conta sacada não prova, só por si, que o réu recusaria o pagamento dos cheques com tal fundamento, face às dificuldades futuras que tal decisão traria à autora, necessariamente uma boa cliente, face aos riscos que o réu aceitou correr a seu pedido.
De qualquer modo, a recusa do pagamento dos cheques por insuficiência de provisão não se assemelha à decisão ilícita de aceitar a ordem da sua revogação, já que as respectivas consequências são totalmente diversas.
A conduta do réu destruiu a relação cambiária, os cheques desapareceram como títulos de crédito, restando apenas a relação subjacente à respectiva emissão.
Na hipotética recusa de pagamento por falta de provisão, os cheques seriam restituídos à autora, mantendo todas as características de títulos de crédito, permitindo à autora a respectiva cobrança por vários meios.
A destruição da relação cambiária, autónoma da relação subjacente, constitui, só por si, um dano, cujo valor pode ser igual ou inferior à quantia titulada pelos cheques.
Este dano, destruição dos cheques como títulos de crédito, é independente do seu hipotético não pagamento por insuficiência de provisão e não há a mínima dúvida da existência do nexo de causalidade adequada entre o ilícito cometido pelo réu e a sua ocorrência.
Assim, proporíamos o seguinte segmento uniformizador:
O não pagamento de cheque pelo banco sacado, invocando ordem ilícita da sua revogação, responsabiliza-o perante o respectivo apresentante a pagar o valor titulado, a não ser que consiga demonstrar que o mesmo já foi recebido e nessa medida.
Voto de vencido:
Face à interpretação fixada pelo AUJ n.º 4/2008, o banco não podia recusar o pagamento com base na revogação do cheque.
Ou seja, tinha a obrigação de o pagar (abstraindo agora da questão da falta de provisão).
Se tinha a obrigação de efetuar o pagamento, a ausência deste determinou que no património do tomador não entrasse o dinheiro correspondente ao cheque.
Está aqui o prejuízo, enquanto pressuposto da responsabilidade civil.
De acordo, aliás, com a fixação jurisprudencial levada a cabo pelas secções criminais no AUJ de 30.11.2006.
Esta reporta-se aos elementos essenciais do crime de emissão de cheque sem provisão, mas encerra necessariamente a ideia de que o "prejuízo" derivado do não pagamento dum cheque emerge logo da frustração do recebimento da quantia a ele respeitante.
Sendo certo que, por força do artigo 8.º, n.º3 do Código Civil, aquela fixação não deve ser ignorada na fixação jurisprudencial a que agora se procede.
A consideração de que o prejuízo corresponde ao montante que não se recebeu evita, outrossim, que se fira uma regra fundamental, inerente à estrutura da obrigação: quem está obrigado a pagar e não paga causa ao credor o dano correspondente ao valor que não entrou no património deste.
Se hipotisarmos o caso mais frequente de o tomador ir junto do banco e receber o montante correspondente ao cheque, ninguém falaria noutros prejuízos. Nunca poderia obter o pagamento de qualquer outra quantia, mesmo que invocasse prejuízos porventura superiores. Ora, acolhendo a tese do projeto, isso poderia ter lugar.
Outrossim, na hipótese de demonstração de prejuízos como se exige na tese defendida no projeto, o tomador, não perdendo o direito ao montante do crédito constante do cheque (o que parece indiscutível), ficava, com base no título de crédito, titular de ressarcimento acumulado, o que contraria a estrutura base do cheque e até dos títulos de crédito em geral. Um título de crédito é-o precisamente por consubstanciar o montante a que o credor tem direito e o devedor tem de pagar.
É certo que se apurou que a conta objeto de saque não tinha provisão suficiente. Mas daqui não se pode chegar, sem mais, à ideia de que o tomador não receberia o montante do cheque.
Cheques há que são obrigatoriamente pagos, mesmo que não tenham provisão, nos termos dos artigos 8.º e 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28.12.
Outros que são pagos apenas na base duma relação de confiança entre banco e cliente subscritor.
Outros ainda cujo montante vem a ser pago na sequência das diligências impostas ao banco pelo artigo 1.º-A daquele Decreto-Lei.
Aliás, compreende-se mal que, na tese do Acórdão, se "separe" a ideia de prejuízo da frustração consistente no não recebimento do montante do cheque (exigindo-se mais) e se argumente com a não existência de provisão. Por um lado, está-se a defender que existem prejuízos "desligados" do montante não recebido e, por outro, a relevar que a falta de provisão (reportada naturalmente a tais montantes) constitui pedra de toque para concluir pela insuficiência danosa da simples frustração de recebimento.
Dito de outro modo:
Nesse entendimento, se houvesse provisão, ao recusar o pagamento, o banco responderia pelo montante dos cheques que não pagou. Não havendo, o tomador tem de demonstrar prejuízos para além do não pagamento.
Em qualquer caso, estamos no domínio da causa virtual e existe uniformidade de entendimentos quanto à sua irrelevância negativa.
Por outro lado, fica também sem se compreender a exigência de demonstração de prejuízos quando, se ocorrido o não pagamento, não por menção de "cheque revogado", mas por falta de provisão (como se presume que ocorreria, no Acórdão), o tomador poderia acionar o procedimento criminal por crime de emissão de cheque sem provisão (artigo 11.º, n.º1 do mencionado Decreto-Lei) e beneficiar das diligências que a lei impõe ao banco no mencionado artigo 1.º-A, de tudo tendo ficado privado (a obrigatoriedade que o banco tinha de pagar o cheque afasta mesmo a subsunção na alínea b) do n.º1 deste mesmo artigo).
Assim como deixou de ter direito aos juros (à taxa legal acrescida de 10%) que, perante a devolução por falta de provisão, logo começariam a vencer-se (n.º3 deste mesmo artigo).
João Luís Marques Bernardo
Declaração de voto
Votei vencido pelas razões que se seguem e que já constam dos acórdãos referidos neste acórdão uniformizador de que fui relator.
Recordemos o que se escreveu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido por este Supremo em 2008.02.28 e publicado no DR, I Série, de 2008.04.04:
"Temos, então, que o Banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos.
Podia dizer-se, em contrário do supra exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.
Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o Banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada.
Mas, numa situação idêntica à dos autos, o Banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que apresentado a pagamento no prazo legal) impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere, sendo utópico presumir que este disponha de património que garanta solvabilidade.
Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente a falta absoluta de provisão. Se o cheque apresentado a pagamento fosse recusado por falta de provisão, nada nos diz que o cheque não pudesse ser novamente apresentado a pagamento e obtivesse provisão."
Um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual em que se move a causa de pedir nesta ação consiste no dano, cuja verificação, não obstante a existência de um facto ilícito, é condição essencial para que haja obrigação de indemnizar, ou seja, a obrigação de reparar os prejuízos causados ao lesado, sem os quais esta obrigação não existe, como decorre do estipulado no artigo 483º, nº1, do Código Civil.
"O não pagamento ao portador do montante titulado por um cheque, no momento da apresentação a desconto, independentemente da causa que lhe esteja subjacente, vem a significar a falta de realização do valor correspondente ao quantitativo da prestação a que aquele, na qualidade de credor, tinha direito, com o consequente dano patrimonial verificado".
"Por outro lado, um Banco que recusa o pagamento de um cheque revogado determina, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, que o tomador seja privado do respectivo montante, não sendo conjeturável prognosticar que o sacador disponha de outros bens acessíveis que garantam a respectiva solvabilidade"- do acórdão deste Supremo, de 2010.10.12, "in" Coletânea de Jurisprudência/Supremo Tribunal de Justiça, ano XVII, tomo III, página 130.
Dito doutro modo: o não pagamento de um cheque revogado e sem provisão no período que suportasse o débito do cheque, faz presumir, segundo as regras da experiência e das probabilidades, que o seu portador não receberá o seu montante.
E isto porque a revogação - justificada ou não justificada, para o caso não interessa - tem como finalidade inerente precisamente esse efeito: o não pagamento do cheque.
Se mais tarde o tomador pudesse vir a receber o referido montante invocando uma relação subjacente ao negócio cartular, é um facto que, a nosso ver, teria que ser alegado e demonstrado pelo Banco sacado, sendo que no plano das hipóteses, como esse recebimento poderia sempre ocorrer no futuro, a simples consideração desta possibilidade paralisaria sempre a responsabilidade da instituição de crédito sacada por ilícita aceitação de uma revogação de um cheque, uma vez que a realidade dessa possibilidade sempre se teria que considerar como ausência de produção de dano.
Ao tomador do chegue revogado compete apenas alegar e provar que não recebeu o seu montante em virtude do ilícito cancelamento do pagamento do cheque, cumprindo assim o ónus que sobre si impende de alegar e provar o nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o dano, assim consubstanciado.
Ao Banco sacado competirá, como se disse, alegar e provar que apesar de o tomador não receber esse montante através do desconto do cheque revogado, o receberá ou poderá receber por outro modo, daí se retirando que aquele tomador não teria qualquer prejuízo com a revogação.
A existência deste nexo de causalidade e deste dano só poderia ser posta em causa se o sacado lograsse provar que a sua conduta era inapropriada para a produção do dano, do que desde logo resultaria que o seu comportamento nem sequer constituiria um comportamento apto à produção do resultado danoso.
O que nos remete para a questão da relevância/irrelevância da causa virtual.
Esta verifica-se sempre que o dano resultante da causa real se tivesse igualmente verificado, na ausência desta, por via de outra causa, denominada a causa virtual.
No caso em apreço, o cheque não tinha provisão.
Assim, o cancelamento do pagamento do cheque por via da sua revogação constituiria a causa real, enquanto a falta de provisão constituiria a causa virtal.
A relevância positiva desta causa virtual, no sentido de que a existência desta causa serviria para afastar a responsabilidade do autor da causa real não pode ser admitida, uma vez que implicaria que se teria de prescindir do nexo de causalidade, já que este seria interrompido pela ocorrência da causa real.
A relevância negativa da causa virtual está prevista expressamente na lei para certo tipo de situações - artigos 491º, 492º, 493º, nº1, 616º, nº2 e 807º, nº2, todos co Código Civil - constituindo estas normas disposições excecionais e, por isso, não sendo de considerar para todos os casos aquela relevância negativa.
Resta, pois, considerar, como consideraram Menezes Leitão e os autores aí citados "in" Direito das Obrigações, 4ª edição, página 329, que a irrelevância negativa da causa virtual é uma regra geral.
E que "verificando-se a imputação delitual de um facto ao agente, naturalmente que ele há-de responder pelos danos causados (artigo 483º), não prevendo a lei como regra geral que essa responsabilidade seja perturbada pela causa virtual (...)".
Concluímos, pois, que por este lado, a falta de provisão do cheque nenhuma influência podia ter na responsabilidade do sacado como autor do dano que, como acima ficou dito, era inerente ao não pagamento do cheque por ilícita aceitação da sua revogação.
Ora, no caso concreto em apreço, o réu não alegou e, consequentemente, provou, que a autora podia receber o montante do cheque por outro meio.
Assim, consubstanciado está o prejuízo sofrido pela autora com a emissão do cheque em causa e justifica-se também a condenação do réu no montante desse cheque.
Além do mais, da revogação ilícita de um cheque e da consequente proibição do seu pagamento, sempre resultaria para o seu portador, independentemente do seu resultado final, a privação de determinadas oportunidades para chegar a esse resultado - o pagamento - ou seja, a perda de uma "chance".
Assim e desde logo, conforme se refere no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência atrás referido, ficou o portador do cheque privado da oportunidade de usufruir dos meios de pressão consubstanciados na notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no artigo 1º do Decreto Lei 316/97, de 19.11, com a cominação que a falta de regularização implicaria a rescisão da convenção de cheque, na obrigação de emitir novos cheques sobre o Banco sacado, na proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições e na inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco e na comunicação ao Banco de Portugal.
Depois, ficou a portadora do cheque privada da oportunidade de este ser apresentado novamente a pagamento e eventualmente, poder obter provisão.
É que o cheque podia não ter provisão na altura em que inicialmente foi apresentado a pagamento, mas mais tarde, essa provisão já existir e ser pago.
Também o portador do cheque perdeu a oportunidade de eventualmente o cheque, mesmo sem provisão, pudesse ser pago a descoberto, através de uma operação de facilidade de caixa.
Finalmente, a portadora do cheque perdeu a oportunidade de o utilizar como título executivo numa ação executiva para cobrança coerciva da quantia inscrita no mesmo e nos termos dos artigos 40º da Lei Uniforme sobre Cheques e no artigo 46º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil.
Estamos, pois, perante situações em que o pagamento do cheque se podia verificar no futuro, embora não fosse certo que isso acontecesse.
E apesar desta incerteza, a autora, como portadora legítima do chegue, encontrava-se em situação de vir alcançar o pagamento.
Finalmente, o comportamento do Banco sacado, ao aceitar ilicitamente a revogação do cheque, destruiu as expetativas do autor e inviabilizou a obtenção do resultado esperado, ou seja, o pagamento do montante inscrito no cheque.
Estão assim preenchidos os pressupostos da ressarcibilidade da chamada "perda de chance", dano que se não confunde com a perda da vantagem esperada - aqui, o pagamento do cheque - mas diz respeito à perda da chance de obter uma vantagem - o referido pagamento.
Mas qual o "quantum" reparatório por essa chamada "perda de chance"?
Rute Teixeira Pedro "in" A Responsabilidade Civil do Médico, 2008, páginas 227 e seguintes, aponta para uma solução em que o "quantum" da indemnização corresponderia ao valor da utilidade económica que seria alcançada com a verificação do resultado final, reduzida em proporção de um coeficiente que traduzisse o grau de probabilidade de o alcançar.
Quanto à utilidade económica, seria, obviamente, o pagamento do montante inscrito no cheque.
Quanto ao grau de probabilidade de alcançar o pagamento do chegue e situando-se a questão na eficácia do exercício das oportunidades acima referidas, não temos elementos que nos conduzam a uma solução segura.
Sendo assim e na inoperância deste critério, temos que utilizar a equidade, nos termos do nº3 do artigo 566º do Código Civil.
E utilizando a equidade, temos que a sua mais justa seria fazer coincidir o prejuízo do autor com o montante do cheque.
Nesta conformidade, uniformaria a jurisprudência no sentido de que a falta de pagamento de um cheque, apresentado dentro do prazo previsto no artigo 29º da Lei Uniforme sobre Cheques, pelo Banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, faz presumir, por si só, que constitui causa adequada para produzir um dano ao portador, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada.
Lisboa, 10 de Novembro de 2015
(Oliveira Vasconcelos)