Declaração de Rectificação 70/2008
Por ter sido publicado, no dia 14 de Novembro de 2008, sem a declaração de voto do Sr. Conselheiro Arlindo de Oliveira Rocha o Acórdão, de uniformização de jurisprudência, n.º 10/2008, processo 3965/07, da 1.ª Secção, republica-se o mesmo acórdão, agora com a referida declaração.
Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Novembro de 2008. - O Presidente, Luís António Noronha Nascimento.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2008
Processo 3965/07 - 1ª Secção
Uniformização de jurisprudência
Acordam no Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:I - Banco Mais, S. A., instaurou, em Janeiro de 2001, na 1.ª Vara Cível de Lisboa, acção executiva contra Maria de Fátima Moura dos Reis Corte, para cobrança coerciva da quantia de 3 696 973$, acrescida de juros vincendos e encargos, referentes a mútuo para aquisição de veículo automóvel, indicando à penhora, entre outros bens, o veículo objecto do contrato.
Penhorado este e constatando que sobre esse veículo incidia reserva de propriedade a favor do exequente, o juiz a quo convidou-o a fazer prova da renúncia a tal reserva, convite que o mesmo não aceitou (não obstante afirmar expressamente essa renúncia), pelo que foi decretada a suspensão da execução quanto a esse bem, até se mostrar cancelado o registo da reserva de propriedade.
Inconformado, agravou o exequente concluindo, em síntese, pela falta de fundamento da decretada suspensão, tendo a Relação de Lisboa confirmado a decisão da 1.ª instância.
De novo inconformado, o exequente interpôs da referida decisão novo recurso de agravo, nos termos dos artigos 754.º, n.º 2, 762.º, n.º 3, e 732.º-A e 732.º-B do Código de Processo Civil.
O agravante conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo:
1 - Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula 42-42-HS, penhora que foi ordenada pelo juiz em 1.ª instância, e que foi devidamente registada.
2 - Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que, para efeitos de a execução prosseguir, é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva.
3 - O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução, pois de acordo com o disposto nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4 - No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve agir-se de acordo com o que se prescreve no artigo 119.º do Código do Registo Predial, caso a penhora tenha sido realizada.
5 - Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo; tendo a exequente renunciado ao «domínio» sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia à recorrida; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil que, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119.º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que o acórdão recorrido, ao sancionar o decidido em 1.ª instância, errou e decidiu incorrectamente.
6 - Caso, assim, não se entendesse, sempre se dirá, que deveria o exequente titular da reserva de propriedade - ter sido notificado nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do Código do Registo Predial.
7 - O acórdão recorrido, ao confirmar o decidido em 1.ª instância, violou, pois, e erradamente interpretou e aplicou o disposto no artigo 888.º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea b), e 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, os artigos 7.º e 119.º do Código do Registo Predial e 408.º, 409.º, n.º 1, 601.º e 879.º, alínea a), todos do Código Civil.
8 - Impõe-se, pois, a procedência do presente recurso e a substituição do acórdão recorrido por outro que reconheça e decida que o facto de existir registo de reserva de propriedade em favor do exequente em autos de execução em que o veículo foi penhorado e a penhora registada, para efeitos de a execução prosseguir, não é necessário que o exequente proceda ao cancelamento do mesmo, aliás, a ordenar sempre posteriormente, nos termos do artigo 888.º do Código de Processo Civil, desta forma se uniformizando jurisprudência.
Não houve contra-alegações.
O Senhor Presidente deste Tribunal determinou o julgamento alargado do recurso e o Ministério Público foi de parecer que o conflito fosse resolvido no sentido de que:
«Verificando-se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, a acção executiva não pode prosseguir sem que previamente tal averbamento se mostre cancelado, designadamente através de renúncia do exequente ao direito registado.» Por entender indispensável ao esclarecimento das questões em debate, o Relator notificou o recorrente para apresentar certidão da petição inicial e dos documentos que a acompanharam, da decisão que constitui título executivo, bem como do documento que serviu de base ao registo de reserva de propriedade.
Dos documentos apresentados, para além de se ter esclarecido qual a matéria de facto fixada pelas instâncias, constatou-se que, no requerimento-declaração para registo de propriedade, a TÉCNICRÉDITO assina como vendedora do veículo e que, no contrato de mútuo, se identifica o veículo financiado e o respectivo fornecedor (não referido como vendedor), não se referindo aí, no campo das garantias, a reserva de propriedade.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - De facto:
II-A - A factualidade relevante é a alegada na petição inicial e provada documentalmente, uma vez que a ré não contestou.
Em síntese:
O A. Banco Mais tinha anteriormente a designação de TÉCNICRÉDITO - Financiamento de Aquisições a Crédito, S. A., e era uma sociedade financeira para aquisições a crédito, tendo por objecto exclusivo o exercício das actividades referidas nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 206/95, de 14 de Agosto;
No exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição de um veículo automóvel, concedeu à R. crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, no montante de 2 000 000$;
Nos termos do aludido contrato o empréstimo vencia juros à taxa nominal de 16,99 % ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros respectivos, bem como o prémio do seguro de vida, ser pagos, em 60 prestações, mensais e sucessivas, no valor de 50 840$00, vencendo-se a primeira em 10 de Novembro de 1999 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;
A importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga, conforme ordem irrevogável logo dada pela referida R. para o seu Banco, por transferência bancária a efectuar aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações;
A falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações;
Em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 20,99 %;
Das prestações referidas, a R. não pagou a 7.ª e seguintes, vencida a primeira em 10 de Maio de 2000, vencendo-se então todas.
II-B - De direito:
II-B.1 - Atento o teor da decisão recorrida e das conclusões do recorrente apenas está em questão saber se:
Verificando-se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, pode a execução prosseguir, para as fases de concurso de credores e venda, sem que este, previamente, inscreva no registo a extinção da referida reserva? II-B.2 - A resposta à questão colocada pressupõe os seguintes patamares de análise:
1 - Contradição de acórdãos sobre as mesmas questões fundamentais de direito;
2 - Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões;
3 - Apreciação crítica das teses em confronto na sua aplicação ao caso concreto.
II-B.3 - A primeira questão a resolver nos recursos ampliados para efeitos de uniformização de jurisprudência é a de saber se existe ou não oposição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito.
Ocorre a identidade da questão, se à aplicação normativa está subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica.
No caso vertente está em discussão se a execução pode prosseguir em bem com registo de reserva de propriedade a favor do exequente, sem que este inscreva no registo a extinção do direito registado.
O conflito terá de se colocar entre a decisão proferida nestes autos e o acórdão invocado como fundamento.
O acórdão invocado como fundamento é o proferido em 17 de Maio de 2007, no processo 3450/2007, da 6.ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se decidiu não haver fundamento para impor ao exequente, a favor do qual se encontra registada a reserva de propriedade sobre um veículo, que renuncie ao direito registado nem para a suspensão da execução, enquanto tal renúncia não ocorrer, considerando-se haver lugar ao cancelamento oficioso desse registo.
Tanto basta que para que estejam reunidos os pressupostos para a uniformização de jurisprudência pretendida, sendo certo que a delimitação de uniformização deve pautar-se pelos próprios limites da divergência que são estes: vinculação ou não do exequente ao cancelamento do registo da reserva de propriedade, inscrita a seu favor sobre o bem designado à penhora.
Adite-se ainda que, também neste tribunal, se verifica a divergência jurisprudencial apontada.
Assim, no sentido do acórdão recorrido, se pronunciaram os Acórdãos de 12 de Janeiro de 1999, processo 1111/98-2.ª (relator, conselheiro Simões Freire); de 27 de Maio de 2004, processo 1865/04-2.ª (relator, conselheiro Moitinho de Almeida);
de 13 de Janeiro de 2005, processo 3754/04-2.ª (relator, conselheiro Abílio Vasconcelos); de 12 de Maio de 2005, processo 993/05-7.ª (relator, conselheiro Araújo Barros); de 10 de Janeiro de 2006, processo 3188/05-6.ª (relator, conselheiro Ribeiro de Almeida); de 14 de Fevereiro de 2006, processo 4209/05-1.ª (relator, conselheiro Alves Velho) e processo 3449/05-1.ª (do aqui relator); de 20 de Abril de 2006, processo 4376/05-2.ª (relator, conselheiro Noronha do Nascimento);
de 18 de Maio de 2006, processo 880/06-6.ª (relator, conselheiro João Camilo) e de 12 de Julho de 2007, processo 234/07-1.ª (relator, conselheiro Moreira Alves).
Em sentido contrário, registam -se os Acórdãos de 10 de Abril de 1997, processo 102/97-2.ª (relator, conselheiro Costa Soares); de 2 de Novembro de 2004, processo 1765/04-6.ª (relator, conselheiro Sousa Leite); de 17 de Março de 2005, processo 317/05-7.ª (relator, conselheiro Ferreira de Sousa); de 15 de Dezembro de 2005, processo 2661/05-2.ª (relator, conselheiro Loureiro da Fonseca); de 2 de Fevereiro de 2006, processo 3932/05-2.ª (relator, conselheiro Bettencourt de Faria); de 30 de Março de 2006, processo 645/06-2.ª (relator, conselheiro Ferreira de Sousa); de 26 de Abril de 2007, processo 2532/06-2.ª (relator, conselheiro Rodrigues dos Santos) e de 13 de Setembro de 2007, processo 2547/07-7.ª (relator, conselheiro Ferreira de Sousa); veja-se, ainda, voto de vencido no acima citado Acórdão de 12 de Julho de 2007 (conselheiro Sebastião Póvoas).
II-B.4 - Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre a questão.
II-B.4.1 - Estabelece o artigo 409.º do Código Civil (doravante, CC) sob a epígrafe «Reserva de propriedade»:
«1 - Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2 - Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.» O referido artigo 409.º constitui excepção ao anterior artigo 408.º, que consagra a regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato - mas ambos se reportam aos contratos reais ou com eficácia real, de que resultam não apenas efeitos obrigacionais mas também efeitos reais - constituição ou transferência do domínio (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 226), pelo que é inequívoco que «a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra».
«A reserva de propriedade substitui o direito de penhor sem posse do vendedor, inadmissível em face do nosso Código Civil (artigos 669.º e 677.º). Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço» (Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, pp. 23 e 24).
A reserva tem, pois, essencialmente, uma função de garantia do direito primeiro do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. ii, 4.ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, nota 5 ao artigo 934.º; Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 1983, pp. 483-484, e Vaz Serra, «Penhor - Penhor de coisas», BMJ, n.º 58, pp.
17 e segs.) Para além de garantir o pagamento do preço, a reserva de propriedade garante também a devolução da coisa, caso o crédito não possa ser cobrado.
Mas o adquirente, apesar da reserva, detém a coisa em nome próprio e não a título precário e não a recebe para a guardar e posteriormente restituir (Almeida e Costa, RLJ, ano 1985, p. 86, em anotação ao Acórdão de 24 de Janeiro de 1985).
Naturalmente, adere-se à posição de Ana Maria Peralta (A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, 1990, p. 77) ao declarar que «o gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se fundando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato». E que «ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos do direito de propriedade, direito de que ainda é titular».
Do que acima se disse e também do que directamente decorre da lei (artigo 409.º, n.º 1, do CC, citado) a cláusula de reserva de propriedade tem de ser convencionada apenas no âmbito de um contrato de alienação e não em qualquer outro, pois que é sua característica essencial suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos.
Por isso mesmo, também o artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 54/75 (Registo de Propriedade Automóvel), em perfeita consonância com o direito substantivo, dispõe que está sujeita a registo «[a] reserva de propriedade estipulada em contrato de alienação de veículos automóveis».
Concordantemente o artigo 46.º do Regulamento do Registo de Automóveis, na redacção introduzida pelo artigo 16.º do Decreto-Lei 178-A/2005, de 28 de Outubro, que aprovou o projecto do Documento Único Automóvel e procedeu à transposição de directivas comunitárias na matéria, estabelece que «[a] reserva de propriedade estipulada nos contratos de alienação de veículos constitui menção especial do registo de propriedade».
Como observa Fernando Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado, n.º 6, pp.
49-53), «não restam dúvidas que literalmente [...] só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação» sendo certo que «[a] finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto que não produziu nem forneceu - apenas em razão do fraccionamento das prestações».
No mesmo sentido se pronuncia Ana Maria Peralta, que sustenta que «[...] não pode, desde logo, deixar de se estranhar que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada a favor da exequente, não vendedora mas apenas financiadora da aquisição feita pelos executados, consequentemente associada a um contrato de mútuo que tão-só traduz a transferência para o mutuário do montante pecuniário a ele entregue, e desse modo, até certo ponto incompatível com a norma do artigo 409.º, n.º 1, do C. Civil, sede principal da reserva de propriedade, que prevê apenas a sua inserção, em benefício do alienante de qualquer contrato de alienação (A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Coimbra, 1990, p. 2.) A interpretação actualista do Decreto-Lei 54/75, por forma a estender ao financiador, com reserva de propriedade, os direitos do vendedor no contrato de compra e venda, foi claramente afastada no Acórdão deste STJ de 2 de Outubro de 2007 (processo 07A2680, relator, conselheiro Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt), onde se pode ler que:
«a interpretação actualista [...] tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.» II-B.4.2 - Não se desconhece que tem vindo a ser aceite a possibilidade de ocorrer sub-rogação voluntária, seja do credor seja do devedor, a favor do financiador, em situações como a dos presentes autos (artigos 589.º e 591.º do CC), como acontece no Parecer publicado no Boletim dos Registos e do Notariado, n.º 5/2001, de Maio de 2001, citado no Acórdão de 12 de Julho de 2007, deste Tribunal, que abaixo se transcreve:
«1) O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratada sob condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (artigo 589.º do Código Civil) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efectuado (artigo 591.º do mesmo Código).
Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente, com intervenção de todos os interessados:
1.º O vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço;
2.º O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento do preço de aquisição, procedendo aquela à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor, substituindo-se ao comprador;
3.º Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor, com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1.ª hipótese referida no número anterior); ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2.ª hipótese referida no mesmo número).» II-B.4.3 - Parece adequado à discussão da questão em apreço passar em análise o que a doutrina vem sustentando sobre a natureza da reserva de propriedade.
Tradicionalmente (com raras excepções, de que é exemplo Luís Cunha Gonçalves - Dos Contratos em Especial, Lisboa, 1953, p. 260 - que considerava o negócio sujeito a condição resolutiva) a reserva de propriedade era encarada como uma condição suspensiva do negócio de alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. i, 4.ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, p. 376; Vaz Serra, in RLJ, ano 112.º, p. 235; Almeida Costa, ob. cit., p. 232;
Armando Braga, Contrato de Compra e Venda, Porto, 1990, p. 69; Acórdãos do STJ de 22 de Fevereiro de 1983, BMJ, n.º 324, p. 578 (relator Santos Silveira), e de 1 de Fevereiro de 1995, BMJ, n.º 444, p. 609 (relator Sousa Inês)].
É bem verdade que diversas tentativas foram ensaiadas no intuito de, por forma mais consentânea com as suas características, qualificar a natureza da reserva de propriedade, sem que, todavia, qualquer delas tenha passado a prevalecer sobre a qualificação tradicional.
Seguindo Luís Lima Pinheiro (ob. cit., pp. 93 a 120) houve quem a considerasse um direito real de garantia do vendedor, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito e, assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida - WIEACKER; ou que o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissório - BLOMEYER; ou ainda que, «nos seus termos substanciais, o pacto de reserva de propriedade é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador» (BIANCA), ou também que constitui uma cláusula específica, cláusula acessória atípica, devendo a indagação do regime aplicável partir do seu conteúdo e sentido próprios, sem passar pelo filtro da condição suspensiva e nalguns pontos até em contradição com o regime que desta resultaria (Raul Ventura e Gama Rose), ou finalmente que «na sequência do reconhecimento ao comprador de um direito real de expectativa e da posse em nome próprio, tanto o alienante como o adquirente detêm um pedaço da propriedade. Tratar-se-ia de uma transferência gradual do direito do vendedor para o comprador: a partilha de propriedade defendida por RAISER».
De todo o modo, é de novo Luís Pinheiro (ob. cit., p. 115) a fazer a síntese e a concluir que «o pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica, com a configuração normativa que lhe cabe no ordenamento português, é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução».
E continua:
«A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta porém à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade 'abstracta' do direito de propriedade.
O 'direito de expectativa' do comprador revela-se assim não só um direito real de aquisição da propriedade ou mesmo como um direito de gozo nos termos do direito de propriedade.» II-B.4.4 - Efeitos da natureza da reserva de propriedade.
O Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro, que regula os contratos de crédito ao consumo e procede à transposição das competentes directivas comunitárias, ao prever, no artigo 6.º, n.º 3, alínea f), relativamente a contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o pagamento em prestações, «o acordo sobre reserva de propriedade», não redimensiona o respectivo conceito legal, tal como vem balizado no artigo 409.º do CC: «Tal disposição reporta-se apenas a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no artigo 2.º» (Aresto de 12 de Julho de 2007, citado, transcrevendo Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2004).
Dispõe o artigo 824.º, n.º 2, do CC que, na venda em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
E o artigo 888.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC) determina que, após a venda e o pagamento do preço, se promova oficiosamente o cancelamento dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do CC.
Atento o que atrás se disse sobre a natureza da reserva, tal direito não se inclui nos direitos de garantia.
Direitos de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor da coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respectivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular activo (cf. Direitos Reais, segundo as prelecções do Prof. Doutor Mota Pinto - Álvaro Moreira e Carlos Fraga).
São direitos reais de garantia, como tal previstos taxativamente na lei substantiva, apenas o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios especiais, o direito de retenção e a consignação de rendimentos.
Outros direitos reais de garantia resultam da lei processual civil (o direito que decorre do arresto depois de convertido em penhora e no processo de execução o direito real derivado da penhora) ou de legislação autónoma (o penhor financeiro e a alienação fiduciária em garantia, instituídos pelo Decreto-Lei 105/2004, de 8 de Maio).
Não é, porém, atribuída tal natureza à reserva de propriedade.
A reserva de propriedade, na medida em que suspende a transferência de um direito real de gozo, aproxima-se, na sua natureza, de um direito real de gozo (Ana Maria Peralta, na ob. cit., a pp. 165 e 166, considera como tal a expectativa do comprador, sujeito a reserva de propriedade).
Apesar da sua função de garantia de cumprimento de uma obrigação pecuniária, não assume a reserva de propriedade a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (artigo 1306.º, n.º 1, do CC).
A exclusão da reserva de propriedade da caracterização dos direitos de garantia implica não poder ser a mesma cancelada oficiosamente, nos termos das normas referidas.
Mesmo reconhecendo-se à reserva de propriedade uma natureza próxima dos direitos reais de gozo, tal não permitiria sustentar, decorrentemente, uma posição contrária.
Desde logo por, como já se referiu, a reserva de propriedade não poder ser aditada ao elenco dos direitos reais.
E por esse fundamento e pela natureza excepcional das normas relativas à estrutura dos direitos reais, estas não podem ser-lhe aplicadas por analogia (artigo 11.º do CC).
Finalmente, por não ser um direito de garantia e por se tratar de um direito com registo anterior ao da penhora não decorre a caducidade do respectivo registo, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do CC.
Não há razões para chamar à colação o disposto no artigo 119.º do Código de Registo Predial (doravante CRegP), quando não se coloca qualquer dúvida sobre o titular do direito e quando não existe qualquer registo provisório, nomeadamente de penhora ou arresto.
E pode colocar-se a questão do prosseguimento da execução, entrando-se na fase da venda executiva, na subsistência de um registo definitivo de reserva de propriedade? Como se disse no Acórdão deste STJ de 14 de Fevereiro de 2006, acima referido, «[r]egistada definitivamente a reserva de propriedade, tem de presumir-se que o direito existe e que pertence ao titular inscrito, não podendo os factos comprovados pelo registo ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo - artigos 70.º e 8.º, n.º 1, do CRP e 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro».
Há quem defenda, contudo, que o titular da reserva pode renunciar tacitamente ao referido direito.
Tal decorreria, desde logo, para alguns defensores desta tese, da exigência do cumprimento do contrato, através da propositura da acção executiva.
Claramente contra este entendimento se pronuncia Ana Maria Peralta (ob. cit., pp. 93 e 94), que igualmente refere como defensores do mesmo entendimento Raul Ventura, Antunes Varela e Lopo Xavier.
A cláusula de reserva de propriedade suspende o efeito translativo da propriedade, até à verificação do cumprimento pelo comprador. O incumprimento definitivo, exigível para se recorrer à via executiva, não extingue o contrato e a exigência de cumprimento, mesmo coerciva, não corresponde ainda ao cumprimento.
A extinção da reserva só se verifica, pois, quando se obtém o cumprimento do contrato.
A renúncia é uma figura jurídica distinta que resulta de uma declaração unilateral do contraente, contrária ao convencionado pelas partes (transferência da propriedade, mediante pagamento do preço) e, consequentemente, contrária ao princípio da boa-fé contratual.
O mesmo se diga, isto é que não pode valer como renúncia, o pedido de penhora do bem sobre o qual incide a reserva.
De acordo com o que supra se disse sobre a renúncia, a nomeação do bem à penhora pelo exequente não pode constituir renúncia, pois da penhora não resulta o cumprimento da obrigação do comprador, antes tem como objecto garantir, no âmbito do processo executivo, o pagamento coercivo.
A jurisprudência maioritária vai neste sentido, pois a natureza de condição suspensiva dos efeitos reais do contrato da reserva impede a transmissão da propriedade, enquanto se não verificar o cumprimento integral da obrigação.
Ora, a constituição da reserva de propriedade é, aqui, de registo obrigatório, porque se trata de móveis sujeitos a registo: artigo 409.º, n.º 2, do CC, artigo 5.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2 do Decreto-Lei 45/75, de 24 de Fevereiro, e artigo 94.º, alínea a), do CRegP (o Decreto-Lei 45/75 foi sucessivamente alterado por diversos diplomas posteriores, o último dos quais o recentíssimo Decreto-Lei 178-A/2005, de 28 de Outubro, mas não nos preceitos aqui referidos).
E também a extinção do direito terá obrigatoriamente de ser levada ao registo, como resulta quer do princípio da equivalência das formas quer da própria lei: artigo 5.º, n.º 1, alínea g), e n.º 2 do mesmo Decreto-Lei 54/75 e dos artigos 2.º, n.º 1, alínea x), e 101.º, n.º 2, alínea f), do CRegP.
A cláusula de reserva está sujeita a registo, pois só através do registo é oponível a terceiros. Daí que para que os respectivos efeitos se extingam é necessário sempre o cancelamento do respectivo registo, não bastando para tal a mera declaração de que se renuncia à reserva.
Como se sustentou no Acórdão deste Tribunal de 14 de Fevereiro de 2006 (processo 3449/05) «[s]e o bem pudesse ir à praça com registo de reserva de propriedade a favor do exequente, apesar de este já ter renunciado ao seu direito de reserva seriam prejudicados os terceiros: estes, conhecedores do registo de reserva, não iriam à praça, ou licitariam muito por baixo, por pensarem que o bem posto em praça se encontrava onerado com reserva de propriedade, podendo o exequente licitar nele por preço inferior ao valor real e indo depois exigir o restante do seu crédito em outros bens do devedor; seria prejudicado o exequente e prejudicados os terceiros e o executado».
O registo definitivo da penhora gera, de resto, uma contradição jurídica, por força da presunção de que o bem é propriedade do exequente (artigo 7.º do CRegP), sendo o executado, na realidade, seu mero detentor, e impossibilita a verificação do princípio geral de que pelas obrigações só respondem os bens do devedor (artigo 601.º do CC).
Diga-se ainda, e finalmente, que a manutenção dos dois registos em simultâneo gera incoerência, pois, no decorrer da execução, mantém-se na esfera do exequente a faculdade de, a todo o tempo, exigir a restituição do bem através da resolução do contrato.
II-B.6 - É chegado o momento de concluir, tomando por base as premissas anteriores.
Em primeiro lugar, dir-se-ia que, no caso dos autos, não se estaria perante qualquer contrato de alienação. O que o banco recorrente teria contratado com o executado teria sido um contrato de mútuo; daí que não pudesse reservar para si a propriedade do veículo adquirido pelo executado/comprador a um terceiro vendedor, já que, nunca tendo tido a propriedade do bem em causa, não se veria como pudesse reservá-la.
É verdade que o artigo 6.º, n.º 3, alínea f), do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro, determina que o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de seus serviços mediante pagamento em prestações deve indicar, além do mais, «o acordo sobre a reserva de propriedade», como se disse.
Porém, tal crédito ao consumo tanto pode ser concedido pelo próprio vendedor da coisa como por terceiro (cf. artigos 2.º e 12.º). Daí que, como refere Abrantes Geraldes, no Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2004, processo 9857/2004-7, «[t]al disposição reporta-se apenas a situações em que, o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no artigo 2.º (diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante).
Não pode essa norma ter aplicação a situações previstas no artigo 12.º de tal diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor.» No caso concreto, em que o financiador aparece como vendedor do veículo, nada impede a aplicação desses normativos, sendo certo que o contrato de mútuo não contraria este facto, uma vez que neste se identificam, nas condições específicas, o veículo financiado e o seu fornecedor (e não vendedor).
Se assim se não entendesse, teria de se dar por não resultante do processo executivo a ligação ou coligação entre o contrato de mútuo ou de financiamento e o contrato de compra e venda, a que se refere o citado artigo 12.º do Decreto-Lei 359/91.
E, relativamente à hipótese de sub-rogação, ela não se poderia equacionar no caso concreto, já que isso implicaria a prévia estipulação da cláusula de reserva a favor do vendedor/proprietário (como é o apropriado) e a sua posterior transmissão para o mutuante/financiador, por via de sub-rogação, o que não se verificaria, pois o registo da reserva aparece directamente efectuado em benefício do financiador.
Acontece até que o que resulta da declaração de venda para registo de propriedade está flagrantemente em colisão com o que diz o recorrente, que sustenta que não tem, nem nunca teve, na sua titularidade, o direito de propriedade sobre o bem em causa, razão pela qual nunca poderia reservar para si algo que nunca foi seu.
Aliás, do contrato de mútuo/financiamento não consta qualquer cláusula de reserva, pelo que a mesma só resulta da citada declaração de venda.
Consequentemente, face aos factos ora disponíveis, estão reunidos os pressupostos legais para que o exequente pudesse beneficiar da cláusula de reserva de propriedade, que assim se apresenta como legal e incontroversa.
Se assim não fosse, isto é, na falta de elementos sobre a origem da reserva da propriedade num contrato de compra e venda, e atento o que se disse supra, teríamos de concluir pela ilegalidade e nulidade da cláusula.
As consequências a retirar desta outra situação seriam, no entanto, processualmente inexistentes, porquanto, se é certo que a nulidade substantiva do acto acarreta a nulidade do seu registo, a verdade é que tal nulidade só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado (artigo 17.º do CRegP) e, por outro lado, o princípio da instância (artigo 41.º do CRegP) veda a intervenção do tribunal no sentido de, oficiosamente, encetar qualquer diligência, em substituição das partes, com vista à alteração ou cancelamento do registo.
Em breve síntese:
O registo da reserva a favor da recorrente existe e tem carácter definitivo, ao mesmo tempo que está igualmente registada definitivamente a penhora do veículo em causa, o que nunca deveria ter ocorrido, face ao prévio registo definitivo da reserva.
O caso dos autos também não se integra na previsão do n.º 1 do artigo 119.º do CRegP, pois, como vem referido, foi desde logo lavrado registo definitivo da penhora.
Também o mecanismo, regulado nesse número e nos seguintes, não se lhe adequa, pois o mesmo «apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo, quando respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, com relação a situações em que ele próprio surge como titular inscrito, nas quais existe conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado» (Acórdão de 12 de Maio de 2005, citado).
Inaplicáveis são também, atento o entendimento maioritariamente sufragado sobre a natureza da reserva, as normas do n.º 2 do artigo 824.º do CC, 888.º do CPC e 101.º, n.º 5, do CRegP (redacção do Decreto-Lei 533/99, de 11 de Dezembro).
Do que se disse atrás sobre a natureza do direito de reserva e do facto de o mesmo não padecer de qualquer vício, teremos de concluir pela impossibilidade do seu cancelamento oficioso.
Além disso, a posição do recorrente de recusa em cancelar o registo da reserva, sem embargo de ter declarado expressamente que renunciava à reserva de propriedade que incide sobre o veículo penhorado, é contraditória e patentemente o é, porquanto não desconhece o recorrente o valor do registo e dos efeitos dele decorrentes.
Portanto, nas circunstâncias de facto dos autos, o executado não adquiriu ainda a propriedade do veículo penhorado.
Tem apenas, quanto a ele, uma expectativa de aquisição, a qual pode ser penhorada, nos termos do artigo 860.º-A, n.º 1, do CPC, mas a penhora não incide sobre o bem em causa. Tal penhora só passa a incidir sobre o próprio bem, quando se consumar a aquisição, e ela só pode ter lugar se a exequente cancelar o registo da reserva. Só então o veículo passa a integrar o património do executado e pode, como tal, responder pelas suas dívidas - artigos 601.º do CC e 821.º do CPC.
A lei, como tem sido sinalizado pela jurisprudência e doutrina, facultava ao exequente, enquanto dador de crédito, diversos meios para fazer face ao incumprimento do devedor, desde logo o recurso a determinada garantia real - a hipoteca do próprio veículo automóvel.
Cabe-lhe, sem dúvida, a ele decidir e para tanto, empreendedoramente, buscar os meios que entenda escolher, seja em termos de custos, de agilização, de melhor potenciação da titularização das dívidas, seja de outros vectores de variável complexidade.
Optou o exequente pelo papel de alienante contratualmente dotado da prerrogativa concedida pelo artigo 409.º do CC [e artigo 6.º, n.º 3, alínea f), do Decreto-Lei 359/91].
Assim sendo, e demonstrado já que não pode o Tribunal, oficiosamente, ordenar o cancelamento da inscrição registral referente à reserva, ficaríamos colocados perante a situação da sua subsistência mesmo após a venda, o que se nos afigura inadmissível e prejudicial para o adquirente, que, se mais não fosse, teria de custear o encargo do cancelamento, sem qualquer justificação. Foi o recorrente que criou toda esta insólita situação, competindo-lhe o encargo de a resolver.
É, de resto, ao exequente que compete impulsionar o processo, daí que, não sendo caso de ordenar, oficiosamente, o cancelamento do registo, impende sobre o exequente o ónus de regularizar o registo, eliminando dele a reserva de propriedade, sob pena de a execução permanecer suspensa, no que se refere ao veículo penhorado, como se ordenou, sem merecer censura.
III - Pelo exposto, acordam em negar o agravo, mantendo, consequentemente, a integralidade da decisão recorrida, com condenação do recorrente nas custas e uniformiza-se a jurisprudência nos termos seguintes:
«A acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva.» Lisboa, 9 de Outubro de 2008. - Paulo Armínio de Oliveira e Sá (relator) - Manuel Maria Duarte Soares - Fernando de Azevedo Ramos - Manuel José da Silva Salazar (vencido conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Sebastião Póvoas) - António Manuel Machado Moreira Alves - Salvador Pereira Nunes da Costa (com a declaração de voto que junto) - José Ferreira de Sousa (conforme declaração a final) - António Cardoso dos Santos Bernardino (conforme declaração que junto) - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - António Alberto Moreira Alves Velho - Armindo Ribeiro Luís - João Mendonça Pires da Rosa (vencido de acordo com a declaração que junto) - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria (vencido conforme declaração que junto) - José Joaquim de Sousa Leite (junto declaração) - José Amílcar Salreta Pereira (vencido conforme declaração) - Custódio Pinto Montes - Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva (vencido consoante declaração de voto que junto) - José Rodrigues dos Santos (vencido conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Salreta Pereira) - João Luís Marques Bernardo (junto declaração de voto) - Urbano Aquiles Lopes Dias (junto declaração de voto de vencido) - João Moreira Camilo - Artur José Alves da Mota Miranda - Alberto de Jesus Sobrinho - Arlindo de Oliveira Rocha (vencido conforme declaração a final) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (vencido conforme declaração junta) - António José Pinto da Fonseca Ramos - Mário de Sousa Cruz - António José Cortez Cardoso de Albuquerque (vencido conforme o voto do Conselheiro Silva Salazar) - Ernesto António Garcia Calejo - Henrique Manuel da Cruz Serra Baptista (vencido de acordo com o voto do Conselheiro Bettencourt) - Mário Silva Tavares Mendes - Lázaro Martins de Faria - Luís António Noronha Nascimento.
Declaração de voto
Fui vencido pelas razões que passo a expor.1 - O «thema decidendum» reconduz-se a uma única questão, que é saber se penhorado em execução um bem com reserva de propriedade inscrito a favor do exequente, deve este, ainda que renunciando àquele direito real, proceder ao cancelamento do respectivo registo como condição de prosseguimento da lide executiva.
Não farei um longo exercício de exegese acerca da reserva de propriedade, bastando-me um simples apelo à disciplina o artigo 409.º do CC, que dispõe nos contratos de alienação ser «lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento» (n.º 1), sendo que (n.º 2) «tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiro».
A figura surgiu como excepção ao princípio geral do efeito translativo da propriedade que é a imediata consequência do contrato (n.º 1 do artigo 408.º do CC) se este tiver natureza, ou acarretar, efeitos reais.
Na óptica do Dr. Luís Lima Pinheiro, o condicionar a translação da propriedade à verificação de um evento futuro, sendo a sua função económica «garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra», substituindo o, legalmente inadmissível, penhor sem posse do vendedor (in A Cláusula de Reserva de Propriedade, 1988, pp. 21/23).
Nuclearmente, tem uma função de garantia do direito primeiro do credor que é a manutenção da solvabilidade do património do seu devedor, mas assegurando a este a plena fruição, ou disposição material da coisa (cf., a propósito, os Profs. P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, ii, 1981, nota 5 ao artigo 934.º; Prof. Oliveira Ascensão, «Direito Civil - Reais», 1983, pp. 483-84, e Prof. Vaz Serra, «Penhor - Penhor de coisas», BMJ, 58, pp. 17 e segs.).
Certo, porém, que a reserva de propriedade, em regra, não garante apenas o pagamento do preço, mas também a devolução da coisa caso o crédito não possa ser cobrado.
Mas o adquirente detém a coisa em nome próprio e a título não precário (como, v. g., e inversamente na locação) não a recebendo para que a guarde e, ulteriormente, restitua (como o depositário). (cf., a propósito, o Prof. Almeida e Costa, ao anotar o Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 1985 - RLJ, 1985-1986).
Assim, concorda-se com a Dr.ª Ana Maria Peralta (apud A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, 1990, p. 77) ao declarar que «o gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se fundando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato. [...] ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos do direito de propriedade, direito de que ainda é titular».
2 - Aqui chegados, não se duvidará que, tendo a reserva o escopo de garantir o pagamento do preço, o vendedor será titular de um direito real de garantia.
E se tal não é incontroverso na doutrina tradicional (cf. Prof. Menezes Cordeiro «Direitos Reais», ii, p. 858, e Prof. Carvalho Fernandes, «Lições de Direitos Reais», pp. 145 e 263 e segs.) sê-lo-á claramente in casu.
Isto, mau grado no mais acolhido entendimento, os únicos direitos reais de gozo serem o usufruto, o uso e habitação, a enfiteuse, o direito de superfície e as servidões prediais - Prof. Mota Pinto in «Direitos Reais», 1970, p. 134.
Só que não há aqui uma reserva de propriedade clássica ou em sentido próprio, mau grado as partes assim tivessem nominado o direito.
O recorrente não foi o vendedor, nunca tendo tido a propriedade do bem.
Reservar significa manter (guardar para si) e ninguém pode manter o que nunca teve.
Ademais, e salvo situações de excepção - que, aqui, não se perfilam - a transferência da propriedade dá-se por mero efeito do contrato de compra e venda (n.º 1 do artigo 408.º do CC).
Daí que o comprador adquira a propriedade por força do contrato, se, nesse momento, o vendedor, e apenas este, não declarar reservá-la.
O que se passa no caso vertente é que o mutuante - o recorrente - o é da quantia que o comprador prestará a título de preço.
Mas não se mencionou no contrato que obteve, como garantia, o bem alienado, ou se nominou qualquer garantia de «reserva de propriedade», como tal.
Surge depois um registo desse direito.
É o que resulta do contrato junto na acção declarativa onde o exequente outorga como mutuante, o executado como mutuário, destinando-se a quantia entregue ao pagamento do preço de um veículo automóvel vendido por um terceiro ao mutuário.
O vendedor não é parte neste negócio.
Não há pois uma reserva de propriedade em sentido próprio, e nos termos laborados pela doutrina, mas sim uma nova figura que, embora com o mesmo nomen juris, prefigura uma diferente modalidade que, como adiante melhor se dirá, tem a natureza primeira de garantia de crédito.
Obtida, que foi, a sentença condenatória, o recorrente requereu a sua execução e nomeou à penhora, entre outros bens, «o veículo automóvel 42-42-HS que pode ser encontrado junto à residência da executada Maria de Fátima a quem pertence».
Foram penhorados bens móveis, um sexto do vencimento da executada e o veículo automóvel.
Esta penhora foi registada definitivamente mas a Conservatória de Registo de Automóveis de Lisboa certificou a existência de um registo de reserva de propriedade a favor do exequente com a mesma data - 23 de Novembro de 2000.
O contrato de crédito concedido pelo exequente, se sujeito à disciplina do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro - regime do crédito ao consumo - poderia conter um «acordo sobre a reserva de propriedade» [artigo 6.º, n.º 3, alínea f)].
Assim se afastou o regime geral antes descrito por se entender que, com a evolução da vida negocial, deve facilitar-se o comércio e reconhecer as novas realidades contratuais.
O acordo de reserva deveria constar do contrato (citado artigo 6.º do Decreto-Lei 359/91), o que não aconteceu e, por isso, determinaria a sua inexigibilidade (artigo 7.º, n.º 3).
Mas por ser questão que transcende o âmbito do recurso, só se aborda para melhor compreensão do instituto.
Por outro lado, a reserva de propriedade em favor do mutuante mais não é, nos seus objectivos e formulação, do que uma figura próxima da hipoteca, tendo indubitavelmente, como já se disse, a natureza de direito real de garantia.
As entidades financiadoras raramente recorrem a hipoteca e preferem a reserva de propriedade, possivelmente pela «sua onerosidade» (cf. Dr. Fernando de Gravato Morais - "Reserva de Propriedade a Favor do Financiador" - in «Cadernos de Direito Privado», 6, 2004, p. 52; Prof. Oliveira Ascensão, "Direitos Reais", 1978, p. 315).
Adere-se à definição do Prof. Mota Pinto (ob. cit., p. 135): «Os direitos reais de garantia são direitos que conferem o poder de, pelo valor de uma coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, um indivíduo obter com preferência sobre todos os outros credores o pagamento de uma dívida de que é titular activo.» Indubitavelmente que é o que se passa com a nova modalidade de «propriedade reservada» a favor do mutuante não vendedor, já que, nestes casos, e ao contrário de outros de reserva de propriedade clássica, não é conferido o poder de utilizar total ou parcialmente a coisa.
Há assim, no caso vertente, uma colocação do direito real ao exclusivo do pagamento, ou da satisfação do interesse do credor, sendo, por isso e essencialmente, acessório do crédito.
Finalmente, o próprio recorrente afirmou ser o veículo pertença do recorrido, assim desvalorizando a reserva de propriedade em sentido estrito, não tendo, outrossim, optado pela medida cautelar a que se referem os artigos 16.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e até renunciando expressamente à sua reserva (renúncia que, no futuro, e sob pena de notória má fé, e até abuso de direito, o impediria de a invocar).
Isto posto, e limitando-nos apenas ao âmbito do recurso.
Nada impede a penhora do bem alienado, se é propriedade do executado, por o exequente, ao nomeá-lo à penhora (e até referindo pertencer ao demandado) ter renunciado ao domínio que reservara.
O facto de estar registada uma reserva, aqui atípica, não pode impedir o prosseguimento da execução por, como se viu, se tratar de um direito real de garantia e ser de ponderar o disposto nos artigos 824.º do CC e 888.º do CPC, quanto à determinação oficiosa do cancelamento de todos os registos.
E nem se invoque o artigo 119.º do Código do Registo Predial, só aplicável no caso de registo provisório da penhora - o que não acontece - e que só indubitavelmente aconteceria se a reserva estivesse registada a favor de um terceiro que não o exequente.
Nem se apele para os artigos 7.º e 8.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, já que aqui a nomeação é do próprio titular do direito inscrito.
Genericamente, e em apoio do exposto, o Prof. Vasco da Gama Lobo Xavier - Revista de Direito e Estudos Sociais, 1974, pp. 216 e segs.; Dr.ª Ana Maria Peralta, ob. cit., p.
116, e Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 391.
Daí que o recurso tenha todas as condições para proceder.
No eventualmente omisso, valem as razões do douto voto de vencido lavrado no aresto recorrido e os argumentos do acórdão fundamento.
Assim, estando a propriedade do bem penhorado reservado a favor do exequente, e não se tratando de reserva clássica mas mera reserva garantia, e este declara prescindir dessa reserva, o que equivale a prescindir de garantia, a execução pode prosseguir.
3 - Em consequência, formularia o seguinte segmento uniformizador:
Constando do registo a reserva de propriedade de um bem penhorado a favor do exequente, não tendo sido este o vendedor do bem, e declarando expressamente renunciar à reserva, a execução pode prosseguir quanto àquele bem, por a reserva atípica ser uma mera garantia do crédito, sendo aplicáveis os artigos 824.º do CC e 888.º do CPC quanto à determinação oficiosa do cancelamento dos registos. - Sebastião Póvoas.
Declaração de voto
Concordo com a decisão do acórdão, designadamente com a súmula jurisprudencial de uniformização que foi inferida, mas com base em motivação de facto e de direito mais abrangente, desenvolvendo minimamente os seguintes pontos:A sucessão de leis no tempo;
Os factos;
A posição do recorrente e a contradição jurisprudencial;
A estabilidade do despacho determinativo da penhora;
A estrutura jurídica da cláusula de reserva da propriedade;
A dúvida sobre a titularidade do direito objecto da penhora;
A venda e oficiosidade do cancelamento da inscrição da reserva da propriedade;
A hipótese da extinção da reserva de propriedade por renúncia;
O prévio cancelamento no registo da reserva de propriedade ao concurso de credores e à venda e o interesse de terceiros.
I - A sucessão de leis no tempo.
Considerando que a acção executiva em causa foi intentada no dia 19 de Janeiro de 2001, é-lhe aplicável a versão do Código de Processo Civil anterior à que resultou do Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março (artigo 21.º, n.º 1).
No que concerne ao recurso, dada a data da referida acção, é aplicável o regime anterior ao que foi implementado pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto (artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1).
No atinente ao direito substantivo registal, considerando a data do registo da reserva de propriedade, é aplicável o regime do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, sem as alterações decorrentes dos Decretos-Leis n.os 178-A/2005, de 28 de Outubro, e 20/2008, de 31 de Janeiro (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil).
Finalmente, quanto às normas do Código do Registo Predial, pelo mesmo motivo da data da inscrição no registo automóvel da reserva de propriedade, são aplicáveis ao caso as anteriores às que decorreram da alteração implementada pelos Decretos-Leis n.os 38/2003, de 8 de Março, 194/2003, de 23 de Agosto, e 116/2008, de 4 de Julho, que inseriram alterações ao referido Código (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil).
II - Os factos.
1 - Justificação da consideração dos factos revelados pelo processo.
Estamos perante um recurso de agravo, interposto de um despacho proferido no âmbito de uma acção executiva, em que, por isso mesmo, não houve decisão sobre a matéria de facto, nem tão pouco o elenco dos que, embora de cariz processual, relevam para a decisão em causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
A lei não proíbe que este Tribunal se baseie na realidade da dinâmica substantiva e processual que consta do processo, incluindo aquela que nos é revelada pelos documentos que, a instância do relator, foram juntos pelo recorrente na fase da instância do recurso.
Impunha-se, assim, que, no acórdão sob análise, se elencassem todos os factos, de cariz processual e substantivo, relevantes para a ampla discussão da questão essencial de direito em causa.
2 - O quadro de facto relevante.
O quadro de facto resultante do processo que releva na decisão do recurso é o seguinte, segundo a sua ordem lógica e cronológica:
1) Representantes de TÉCNICRÉDITO - Financiamento de Aquisições a Crédito, S.
A., declararam, no dia 20 de Dezembro de 1999, por escrito consubstanciado em instrumento de procuração, dirigido a vários advogados, conferir aquela a cada um todos os poderes em direito necessários para qualquer um deles, por si só, a representar em qualquer tribunal ou juízo e aí alegar e defender todos os seus direitos, e, ainda, os poderes especiais e necessários para, em nome dela, qualquer um deles, por si só, desistir ou transigir em qualquer pleito judicial, nos termos e condições que entendesse, e para a representar e em seu nome deliberar e votar em qualquer assembleia de credores ou em qualquer processo de falência, de concordata ou de recuperação de empresa, bem como os poderes necessários para, em nome dela, receber todas e quaisquer importâncias ou quantias que lhe sejam devidas, passando para o efeito os competentes recibos, e, ainda, que podiam substabelecer, uma ou mais vezes, os poderes constantes da procuração.
2) Estão inscritas no registo automóvel, desde 23 de Novembro de 1999, a aquisição por AA, por compra a TÉCNICRÉDITO - Financiamento de Aquisições a Crédito, S. A., do direito de propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula n.º 42-42-HS e a reserva de propriedade a favor da última, a que sucedeu o Banco Mais, S. A.
3) O Banco Mais, S. A., intentou, no dia 19 de Janeiro de 2001, contra AA, acção declarativa de condenação com processo ordinário pedindo a sua condenação a pagar-lhe 2 745 360$, juros e o valor do imposto do selo, a qual terminou por sentença proferida no dia 27 de Novembro de 2001, por via da qual a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de 3 162 408$, juros e imposto de selo.
4) O Banco Mais, S. A., intentou, no dia 7 de Dezembro de 2001, contra AA, acção executiva para pagamento da referida quantia, e juros, indicando para penhora, além do mais, o veículo automóvel com a matrícula n.º 42-42-HS, a qual foi ordenada por despacho proferido no dia 19 de Dezembro de 2001, e requerida a sua apreensão, que ocorreu no dia 23 de Outubro de 2002, com entrega do mesmo à executada como fiel depositária.
5) O registo da referida penhora ocorreu no dia 30 de Dezembro de 2002, o exequente juntou a certidão de ónus e encargos no dia 11 de Fevereiro de 2003 e a juíza proferiu, no dia 21 de Fevereiro de 2005, o seguinte despacho: «de forma a evitar a prática de actos inúteis, convido a exequente para, em 10 dias, juntar certidão da conservatória do registo automóvel actualizada da qual resulte o levantamento da reserva de propriedade existente a seu favor relativamente ao veículo penhorado à ordem dos autos.» 6) O exequente, na sequência do convite mencionado sob 4, expressou, no dia 28 de Fevereiro de 2005, o seguinte: «[...] deixar expresso nos autos que não aceita o convite que lhe é feito, não obstante confirmar nos autos, como o faz, que renuncia à reserva de propriedade que em seu favor se encontra registada sobre o veículo automóvel que penhorado foi nos autos, veículo que efectivamente é pertença da executada, sendo aliás desnecessário, na esteira do que recentemente foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 2 de Novembro de 2004, proceder-se ao cancelamento do referido registo para efeitos de prosseguimento da execução com referência a tal veículo, pelo que assim requer de novo a V. Ex.ª se digne ordenar, com referência ao veículo automóvel em causa, o cumprimento do disposto no artigo 864.º do Código de Processo Civil, na sequência do que foi requerido a fl. 41, a 11 de Fevereiro de 2003.» 7) A juíza proferiu, no dia 16 de Março de 2005, despacho no sentido de que, atendendo a que a propriedade sobre o veículo penhorado se encontra inscrita a favor do exequente, que não acedeu ao convite efectuado para que procedesse à junção do registo do cancelamento daquele direito real de gozo, a venda de tal bem não se poderá efectuar. Com efeito, enquanto não se mostrar ultrapassada tal omissão, não pode tribunal proceder à venda do bem de terceiro, uma vez que o referido direito se não enquadra na previsão do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que, até que se mostre efectuado o cancelamento do indicado registo, suspendo os termos da acção executiva relativamente à venda do veículo, de harmonia com o disposto nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), 279.º, n.º 1, e 466.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
III - A posição do recorrente e a contradição jurisprudencial.
Comecemos por uma breve referência à posição do recorrente no confronto do acórdão recorrido.
Entende o recorrente, por um lado, ter a reserva de propriedade sido constituída como garantia, haver optado pelo pagamento coercivo da dívida em vez da resolução do contrato e pelo aproveitamento daquela da reserva, e ter renunciado ao domínio ao afirmar que o veículo pertencia à recorrida.
E, por outro, que, face ao disposto nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, o registo da reserva de propriedade a seu favor não impede o prosseguimento da execução, porque o tribunal, aquando da venda do veículo automóvel, ordena o cancelamento de todos os registos.
Finalmente, expressou que, se assim não fosse entendido, como titular da reserva de propriedade, deveria ter sido notificado nos termos do n.º 1 do artigo 119.º do Código do Registo Predial.
Continuemos, ora, com a verificação da contradição jurisprudencial decorrente do acórdão fundamento e do acórdão recorrido.
O acórdão fundamento versou sobre um despacho proferido no tribunal da primeira instância, em que, sob o fundamento de sobre o veículo automóvel penhorado incidir reserva de propriedade a favor do exequente, foi ordenado que os autos aguardassem que o exequente juntasse certidão comprovativa do cancelamento do registo de reserva de propriedade a seu favor, por a execução, quanto a esse bem, não poder prosseguir para a fase da venda, por esta depender desse cancelamento.
Nele, por um lado, transcreveu-se parte de anterior acórdão da Relação no sentido de o exequente ter renunciado tacitamente à reserva de propriedade, por ter nomeado à penhora o veículo automóvel, de o direito derivado do registo de reserva de propriedade ter perdido qualquer interesse para o seu titular e de que ficara ilidida a presunção.
E, por outro, considerou-se que, em rigor, estruturalmente, a reserva de propriedade não constituía um verdadeiro direito real de garantia, mas que funcionalmente valia como tal, e, consequentemente, não se via razão para que o mesmo não fosse oficiosamente mandado cancelar com vista a que o bem fosse transmitido livre daquela limitação, com base no que foi revogado o mencionado despacho.
O acórdão recorrido, por seu turno, confirmou o despacho proferido pelo juiz da primeira instância que, sob o fundamento de sobre o veículo automóvel penhorado incidir reserva de propriedade a favor do exequente, e de este não ter acedido ao convite para cancelar o registo daquela reserva, suspendeu a instância quanto à venda do veículo, acrescentando não poder ser realizada, por virtude de a situação não se enquadrar na previsão do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Certo é que se ignora, em relação ao acórdão fundamento, porque dele isso não decorre, se a reserva de propriedade relativa ao veículo automóvel penhorado estava inscrita na titularidade do exequente com base em contrato de compra e venda ou de mútuo.
Todavia, independentemente disso, estamos perante similar situação de facto, porque em ambas as acções executivas para pagamento de quantia certa o exequente nomeou à penhora um veículo automóvel do executado, em relação ao qual era titular de reserva de propriedade e de penhora definitivamente registadas, aquela antes desta, e nelas afirmou incidentalmente a renúncia àquela cláusula de reserva de domínio.
Perante este quadro de facto e de direito, a conclusão é no sentido de que se verifica a contradição de acórdãos, no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, justificativa, por isso, da pretendida uniformização.
IV - A estabilidade do despacho determinativo da penhora.
Uma palavra sobre a estabilidade do despacho determinativo da penhora do veículo automóvel em causa.
Estamos perante um despacho determinativo da penhora, de estrutura simplificada, parcialmente incidente sobre um veículo automóvel, naturalmente proferido ao abrigo do disposto nos artigos 821.º, n.º 1, 838.º, n.º 1, e 925.º do Código de Processo Civil.
Não tem expressa fundamentação, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 158.º daquele diploma, certo que, na altura da sua prolação, a questão da admissibilidade da penhora não era controvertida nem dúvida se suscitava acerca dela.
Com efeito, o tribunal ignorava que sobre o referido veículo automóvel estava registada uma cláusula de reserva de propriedade na titularidade do exequente, certo que, no caso contrário, não o teria, porventura, proferido, porque só podia ser penhorada a respectiva expectativa real de aquisição por banda da executada (artigo 860.º-A do Código de Processo Civil).
O referido despacho, em razão da sua natureza, porque se não destinou a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre o exequente e a executada, nem incidiu sobre matéria confiada ao prudente arbítrio do juiz, é insusceptível de ser qualificado como de mero expediente ou proferido no uso legal de um poder discricionário (artigo 156.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Proferido o despacho determinativo da penhora em causa, que foi efectivada e levada ao registo automóvel, apesar de ilegal, esgotou-se o poder jurisdicional sobre a matéria daquela penhora e, consequentemente, para ordenar o respectivo levantamento (artigos 466.º, n.º 1, e 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
V - A estrutura jurídica da reserva de propriedade.
Uma breve referência à estrutura da reserva de propriedade, segundo a doutrina, a jurisprudência e a lei.
Muitas são as decisões dos tribunais e vários têm sido os autores que se têm pronunciado sobre esta matéria, embora poucos destes últimos se tenham referido à problemática que está em análise neste acórdão.
Têm versado sobre o tema em geral, por exemplo, Luís Cunha Gonçalves, «Dos Contratos em Especial», Lisboa, 1953; Vasco da Gama Lobo Xavier, «Venda a prestações: Algumas notas sobre os artigos 934.º e 935.º do Código Civil», Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano xxi, 1974, p. 216; Raul Ventura, «O Contrato de Compra e Venda no Código Civil», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, 1983, p.
614; Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. i, Coimbra, 1987, p.
376; Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 112.º, p. 235; Armando Braga, «Contrato de compra e venda», Porto, 1990, p. 69; Almeida Costa, «Direito das Obrigações», Coimbra, 1991, p. 226, e Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, p. 338; Luís Lima Pinheiro, «A Cláusula de Reserva de Propriedade», Coimbra, 1988, p. 23, e A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Coimbra, 1990, p. 77; Fernando Gravato Morais, «Reserva de propriedade a favor do financiador», Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril/Junho de 2004, p. 43; Ana Maria Peralta, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, Coimbra, 1990, p. 2; Oliveira Ascensão, «Direito Civil - Reais», 1983, p. 483; Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», vol. iii, p. 63, e «Garantias das Obrigações», p. 266; Menezes Cordeiro, Revista da Ordem dos Advogados, ano 56, p. 320; Rui Pinto Duarte, «Alguns aspectos jurídicos dos contratos não bancários de aquisição de bens», Revista da Banca, n.º 22, p. 24; Isabel Menéres Campos, «Algumas reflexões em torno da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador», Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário de Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, 2003, p.
649; e Gabriela Figueiredo Dias, «Reserva de Propriedade», Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. iii, «Direito das Obrigações», pp. 27 a 451.
A jurisprudência tem seguido essencialmente as posições da doutrina sobre esta matéria. Assim, embora em quadro de motivação não idêntica, constata-se a existência de oito acórdãos essencialmente no sentido do acórdão recorrido e outros oito no sentido do acórdão fundamento.
Um dos pontos que ultimamente mais tem sido discutido na doutrina e na jurisprudência é o de saber da validade ou não da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante no âmbito da coligação dos contratos de compra e venda e de mútuo, designadamente no âmbito do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro.
No caso em análise, todavia, não se coloca essa questão, visto que a cláusula de reserva de propriedade registada a favor da antecessora do recorrente foi-o na qualidade da vendedora do veículo automóvel, e não temos nesta sede de questionar, por não ser objecto do recurso, o conteúdo e sentido de tais declarações negociais.
Abstraímos, por isso, dessa problemática, e passamos a centrar-nos na natureza jurídica da referida cláusula, a partir da interpretação da lei.
A regra é no sentido de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre, em regra, por mero efeito do contrato (artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil).
A lei traça, porém, uma excepção à referida regra, na medida em que prescreve ser lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento (artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil).
Alguns negócios jurídicos admitem condições, ou seja, a subordinação a um acontecimento futuro e incerto, a produção dos seus efeitos - condição suspensiva - ou a sua resolução - condição resolutiva - a que se reporta o artigo 270.º do Código Civil.
A cláusula de reserva de propriedade, porque condiciona a transmissão do direito de propriedade à verificação do facto futuro e incerto de pagamento convencionado em contrapartida por parte do comprador, configura-se como condição suspensiva.
Dada a estrutura que é própria de tal cláusula, na pendência da condição que ela envolve, o vendedor continua a ser o titular do direito de propriedade da coisa objecto mediato do contrato, enquanto o comprador goza de uma expectativa jurídica de aquisição do direito de propriedade sobre ela.
Dir-se-á que os efeitos do contrato de compra e venda no que concerne à transmissão da propriedade da coisa ficam suspensos da ocorrência da mencionada condição.
Assim, a transmissão do direito de propriedade por via do contrato de compra e venda sob reserva dela a favor do vendedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, o pagamento do preço, ou seja, o efeito translativo do contrato de compra e venda fica subordinado a uma condição suspensiva.
Ocorrendo o referido futuro condicionante que motivou a cláusula de reserva de propriedade, transmite-se o direito de propriedade sobre o objecto mediato do contrato para o comprador, independentemente de outra conduta das partes, com efeitos retroactivos à data da conclusão do contrato [artigos 276.º, 408.º, n.º 1, e 879.º, alínea a), do Código Civil].
Dir-se-á, em síntese, que a reserva de propriedade, na medida em que suspende a transferência de um direito real de gozo, serve funcionalmente esse desiderato e aproxima-se, na sua natureza, esse direito.
Embora tenha uma função económica de garantia de cumprimento de uma correlativa obrigação pecuniária, não assume a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil).
VI - A dúvida sobre a titularidade do direito objecto de penhora.
Façamos agora uma breve referência à argumentação subsidiária do recorrente a propósito da dúvida sobre a titularidade do direito de propriedade do veículo automóvel objecto de penhora.
Alegou o recorrente, por um lado, que a dúvida sobre a propriedade dos bens objecto de penhora implica a notificação do titular inscrito para expressar se lhe pertencem.
E, por outro, que tal regra da lei do registo não é aplicável à situação de reserva de propriedade, mas se fosse considerado não ter àquela renunciado, e, consequentemente, não dever o tribunal ordenar o cancelamento do seu registo, devia ter sido notificado para se pronunciar sobre essa matéria.
Se houver registo provisório de penhora de bens inscritos a favor de pessoa diversa do executado, deve o juiz ordenar a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de 10 dias, se o prédio ou o direito lhe pertence (artigo 119.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).
Se o citado declarar que os bens lhe pertencem ou não fizer nenhuma declaração, será expedida certidão do facto à conservatória para conversão oficiosa do registo (artigo 119.º, n.º 3, do Código do Registo Predial).
Todavia, não estamos no caso vertente perante um registo provisório de penhora, mas face a um registo tendencialmente definitivo, pelo que o disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código do Registo Predial não o abrange.
E também o não abrange por analogia, por falta de similitude fáctica que o justifique (artigo 10.º, n.º 2, do Código Civil).
É que a razão de ser do mencionado normativo é a de contornar a desactualização dos factos inscritos no registo, para evitar o não prosseguimento das acções executivas por virtude de os bens penhorados estarem indevidamente registados na titularidade de pessoas diversas do executado.
Com base no referido normativo, por via de uma simples notificação judicial ao titular inscrito e no seu silêncio, a execução deve prosseguir como se o bem penhorado se inscrevesse efectivamente na titularidade do executado.
No caso vertente, o interesse e o ónus quanto à remoção dos obstáculos à prossecução da acção executiva, conforme foi decidido pelas instâncias, é exclusivamente do recorrente.
Acresce haver, na espécie, conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado, o que só por si implicaria a conclusão da inexistência de fundamento legal, por absolutamente inútil, para que se ordenasse o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código do Registo Predial.
Na realidade, o que está em causa é o facto de o prosseguimento da acção executiva para a fase do concurso de credores e da venda depender do cancelamento daquele direito de reserva de domínio nos serviços do registo automóvel por exclusiva diligência do recorrente.
Perante este quadro, ao invés do que recorrente entende, não tinha o juiz de o notificar para se pronunciar sobre se renunciava ou não à reserva de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado, além do mais, porque ele, através do seu advogado, declarou expressamente a referida renúncia.
VII - A venda e a oficiosidade do cancelamento no registo automóvel da inscrição relativa à cláusula da reserva de propriedade.
Atentemos agora na subquestão da venda e da oficiosidade ou não do cancelamento no registo automóvel da inscrição relativa à cláusula da reserva de propriedade.
Após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil, e entrega-se ao adquirente uma certidão do respectivo despacho (artigo 888.º do Código de Processo Civil).
O n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil, para o qual o artigo 888.º do Código de Processo Civil remete, estabelece que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.
Conforme acima se tentou justificar, a reserva de propriedade, por um lado, na medida em que suspende a transferência de um direito real, serve funcionalmente esse desiderato e assume natureza próxima de um direito real de gozo.
E, por outro, embora assuma uma função económica de garantia de cumprimento de uma correlativa obrigação pecuniária relativa ao pagamento do preço, não tem a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional.
Com efeito, conforme já se referiu, por causa do princípio do numerus clausus, a reserva de propriedade não pode ser acrescentada ao respectivo elenco típico (artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil).
Acresce que, por virtude do mencionado princípio, e a excepcionalidade das normas relativas à estrutura dos direitos reais, não podem ser aplicadas por analogia à reserva de propriedade em causa (artigo 11.º do Código Civil).
Porque se não trata de um direito real de garantia, não poderia estar abrangida pelo efeito de caducidade decorrente da venda do veículo automóvel em causa, a que se reporta a primeira parte do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Ademais, porque está, afinal, em causa o direito de propriedade do recorrente, e inscrita foi a reserva de propriedade antes do acto de penhora, certo é que, face ao que se prescreve na segunda parte do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil, não caducaria em virtude da venda.
Em consequência, realizado que fosse o acto da venda do veículo automóvel penhorado, não podia o tribunal, à luz do disposto no artigo 888.º do Código de Processo Civil, ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade.
VIII - A hipótese da extinção da reserva de propriedade por via de renúncia.
Vejamos agora a subquestão relativa à extinção da reserva de propriedade por renúncia.
O recorrente alegou que, tendo nomeado à penhora o veículo automóvel e reconhecido ser a executada dele proprietária, renunciou ipso facto, tacitamente, à reserva de propriedade em causa.
E, depois da nomeação à penhora do veículo automóvel, afirmou expressamente no processo, após ter sido notificado para comprovar o cancelamento no registo da reserva de propriedade, que renunciava ao referido direito.
Ora, se devesse concluir-se no sentido de que ocorrera a invocada renúncia tácita, certo é que a referida declaração de renúncia expressa não podia produzir qualquer efeito.
Daí que se imponha uma breve referência a esta problemática, ou seja, à questão de saber se ocorreu, ou se podia ocorrer, por virtude da mencionada nomeação à penhora do veículo automóvel, a invocada renúncia tácita, ou, no caso negativo, a sua renúncia expressa.
É tácita ou presumida a declaração que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem (artigo 217.º, n.º 1, parte final, do Código Civil).
Ora, o que a nomeação do referido veículo automóvel à penhora revela é que o recorrente pretendia, por via da sua alienação, realizar coercivamente o seu direito de crédito no confronto da executada.
Aliás, o sentido da referida declaração negocial tácita, que o recorrente refere, não se compatibiliza com a sua posição de recusa de cancelar no registo a mencionada cláusula.
A conclusão, por isso, não pode deixar de ser no sentido de que o recorrente não produziu uma declaração tácita de renúncia à cláusula de reserva de propriedade em causa.
Por outro lado, a declaração expressa do recorrente no sentido de renúncia ao referido direito de reserva de propriedade não pode relevar como tal, porque não foi proferida por quem tinha legitimidade substantiva para o efeito, ou seja, os representantes estatutários do recorrente ou da entidade a que ele sucedeu.
É claro que este argumento de falta de legitimidade substantiva para a produção dos efeitos próprios da declaração de renúncia tanto vale para a declaração de renúncia expressa, como para a própria renúncia tácita acima referida.
Mas importa ainda considerar, na medida em que o recorrente não optou pela resolução do contrato de compra e venda, que a lei lhe facultava, mas pela exigência do seu cumprimento, que também estão em causa direitos da executada reservatária.
Com efeito, logo que pagasse o preço do veículo automóvel, ainda que no decurso da acção executiva, a executada adquiriria, por mero efeito desse pagamento, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel.
Na realidade, a mencionada reserva de propriedade, pela sua estrutura e fim, assume natureza contratual e confere também direitos à reservatária, pelo que a sua extinção não se coaduna com a renúncia unilateral que o recorrente invoca no recurso.
Em consequência, também por estas razões, não pode assumir qualquer relevo o argumento do recorrente no sentido da renúncia tácita ou expressa à reserva de propriedade em causa.
IX - O prévio cancelamento no registo da reserva de propriedade ao concurso de credores e à venda e o interesse de terceiros.
Atentemos, por fim, na questão do cancelamento, no registo automóvel, da reserva de propriedade, prévio à prossecução da execução nas fases do concurso de credores e da venda e o interesse de terceiros.
Ao registo de automóveis são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial, na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria, enquanto compatíveis com a natureza dos veículos automóveis e as disposições contidas em lei especial (artigo 29.º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro).
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (artigo 8.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).
A oponibilidade da cláusula de reserva de propriedade em relação a terceiros, desde que o objecto mediato do contrato de alienação seja uma coisa imóvel ou uma coisa móvel sujeita a registo, depende da sua inscrição no registo (artigo 409.º, n.º 2, do Código Civil).
Daí que a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis esteja sujeita a registo [artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro].
Perante a referida presunção não ilidida, impõe-se considerar assente ser o recorrente titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel que, na acção executiva, foi objecto de penhora, não obstante a inscrição condicional da aquisição a favor da executada.
Os terceiros, credores da executada - e do próprio recorrente - face ao registo referente ao veículo automóvel, consideram, como é natural, não poderem exercer o respectivo direito de crédito sobre ele, salvo no que concerne à expectativa da sua aquisição.
Esta situação ambígua resultante da inscrição do registo automóvel de uma reserva de propriedade a favor de quem actua no processo como se ela não existisse não se conforma com a função do registo automóvel de publicitar a situação jurídica dos veículos automóveis.
Não houve renúncia por parte do recorrente à reserva do direito de propriedade sobre o veículo automóvel, nem podia havê-la no processo pela forma que ele pretende que seja.
A penhora do veículo automóvel propriamente dito pelo recorrente dependia da extinção da cláusula contratual relativa à reserva do direito de propriedade em causa e, naturalmente, do obrigatório cancelamento da sua inscrição no registo automóvel, no interesse das pessoas, que pautam os seus negócios com base no registo, designadamente os referidos credores.
A ilegalidade da referida penhora derivada da nomeação do veículo automóvel pelo recorrente não obstante dispor de reserva de propriedade em relação a ele não pode justificar a continuação da execução, seja para a fase do concurso de credores seja para a fase da venda, sem que do registo automóvel transpareça não ser o recorrente titular desse direito.
Estamos perante uma anómala situação em que a penhora ilegal tem de se manter, mas com base nela não pode seguir-se para as fases do concurso de credores e de venda, que com a fase do pagamento constituem a dinâmica final da acção executiva.
Por isso, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que o agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa [artigos 276.º, n.º 1, alínea c), 279.º, n.º 1, e 466.º, n.º 1, do Código de Processo Civil]. - Salvador da Costa.
Declaração de voto
Reponderando posição anterior. Acompanho a declaração de voto do conselheiro Salvador da Costa. - José Ferreira de Sousa.
Declaração de voto
Atento o âmbito do recurso - em que se discute apenas a questão de saber se, incidindo sobre veículo automóvel, penhorado em execução, reserva de propriedade a favor do exequente, que o indicou à penhora, pode a execução prosseguir para as fases de concurso de credores e de venda sem que, previamente, o exequente inscreva no registo a extinção da reserva - e o título executivo - uma sentença, transitada em julgado, de condenação da ré, ora executada, a pagar ao autor, aqui exequente, a quantia exequenda, que representa o montante das prestações não pagas, respeitantes a um contrato de mútuo para financiamento da aquisição, pela mesma ré, do veículo em causa, figurando como vendedor o próprio financiador - voto a decisão e subscrevo a fórmula uniformizadora. - A. Santos Bernardino.
Declaração de voto
(voto de vencido) Vencido:O processo executivo é, passe o pleonasmo, um processo. Um caminho. Em direcção ao cumprimento de uma obrigação.
A reserva de propriedade é algo que tem em vista - artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil - exactamente assegurar o cumprimento total ou parcial de uma obrigação. E que, para isso, tem uma dupla dimensão: uma dimensão de garantia, uma dimensão resolutiva do contrato.
O que faz sentido é que essa reserva se mantenha, na sua dimensão de garantia do credor, até ao momento em que a obrigação esteja cumprida ou até ao momento em que o bem reservado seja vendido, no caminho (executivo) aberto pelo credor, para através dele ver cumprida a obrigação (uma vez que foi esse o caminho por que optou, postergando a dimensão resolutiva).
Então, e só então - mas então - a reserva desaparecerá... como garantia que é (que foi).
O que pode ser enquadrado no disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil porquanto, como se disse, foi a dimensão garantia aquela que foi dinamizada pelo credor. - Pires da Rosa.
Vencido, por entender que a reserva de propriedade tem a estrutura de um direito real de garantia, que não pode ser confundido com o próprio direito de propriedade sobre o bem a que respeita, dado não visar o desfrute dessa coisa - que o seu titular efectivamente deixou de ter - mas unicamente garantir as vantagens que o alienante pretende retirar da alienação.
Assim, está sujeita ao regime dos artigos 824.º do C. Civil e 888.º do C. P. Civil. - Bettencourt de Faria.
Declaração de voto
Votei favoravelmente o acórdão uniformizador supra, alterando assim o sustentado no Acórdão de 2 de Novembro de 2004 - CJSTJ XII, III, 102 -, em consequência de ter revisto a posição anteriormente assumida, à luz do estatuído nos artigos 16.º, alínea b) (Código do Registo Predial da Dr.ª Isabel Mendes, 12.ª ed., p. 135), 17.º, n.º 1, e 41.º do Código do Registo Predial e no artigo 888.º do Código de Processo Civil. - Sousa Leite.
Declaração de voto
Sobre o veículo automóvel 42-42-HS mostram-se registados três direitos distintos, a aquisição da respectiva propriedade a favor da executada, a reserva do direito de propriedade a favor do exequente e, posteriormente, a penhora do direito de propriedade, a requerimento do exequente.Este registo da penhora do direito de propriedade foi, desde logo, feito de modo definitivo, apesar do registo da reserva de propriedade a favor de pessoa diferente da executada.
Foi feito, por outro lado, a pedido do exequente.
Vamos ultrapassar a questão da eventual nulidade de uma verdadeira reserva de propriedade constituída a favor do exequente, que aparece nos autos como financiador do executado e não como vendedor do veículo, por violação de norma imperativa (artigos 409.º e 294.º do CC).
Vamos também dar de barato que se trata de uma verdadeira reserva de propriedade e não de uma outra figura, a alienação em garantia, geradora de uma propriedade fiduciária e não de uma propriedade reservada, sendo aquela uma propriedade condicionada ao fim de garantia e esta uma propriedade plena.
Tratando-se de uma verdadeira reserva de propriedade, ainda há que esclarecer a natureza deste instituto, designadamente optar por uma das duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais, condição suspensiva da transferência da propriedade ou condição resolutiva da venda, com restituição da propriedade da coisa vendida, face ao não pagamento do preço.
Para os seguidores desta última doutrina, o problema do cancelamento do registo da reserva de propriedade nem sequer se põe, pois o automóvel é do executado, funcionando a reserva de propriedade como verdadeira garantia real da satisfação do crédito do reservatário.
A necessidade do cancelamento do registo da reserva de propriedade só se levanta no caso de uma verdadeira reserva de propriedade e para quem a caracteriza como uma transferência de propriedade condicionada ao pagamento da totalidade do preço (condição suspensiva).
No entanto, mesmo neste muito específico condicionalismo, não se justifica que se exija ao exequente que providencie o cancelamento do registo da reserva de propriedade, pois o exequente, ao requerer o registo da penhora do veículo, dando-o como pertencente ao executado, já deu o impulso necessário ao cancelamento.
O conservador, ao proceder ao registo definitivo da penhora do veículo, considerou possuir os documentos comprovativos de que este registo já não contendia com aquela reserva, pelo que deveria ter igualmente cancelado esta, cobrando ao exequente os emolumentos devidos.
O exequente, ao requerer o registo da penhora e ao afirmar que o veículo penhorado pertencia ao executado, mostrou que o registo da reserva da propriedade a seu favor não estava já conforme à realidade, o que permitiria ao conservador proceder ao seu cancelamento.
Entendo, pois, que o exequente já praticou os actos necessários ao cancelamento do registo da reserva da propriedade, não lhe podendo ser imposto que impugne o acto do conservador, que entendeu que o referido registo não constitui obstáculo ao registo definitivo da penhora e ao prosseguimento da execução.
Cabe ao juiz do processo, se entende que a razão não está com o conservador, ordenar o cancelamento prévio do registo da reserva de propriedade a favor do exequente, mesmo que o respectivo custo seja levado ao processo e entre em regra de custas.
Pelas razões expostas, daria provimento ao agravo e revogaria a decisão recorrida. - Salreta Pereira.
Declaração de voto
Vencido.Concederia provimento ao agravo instalado na 2.ª instância, com decorrente uniformização de jurisprudência nos termos, em substância, «propostos» por «Banco Mais, S. A.».
Isto, brevitatis causa, pelos fundamentos elencados no Acórdão deste Tribunal de 6 de Fevereiro de 2002 - processo 3932/05 - 2.ª, que subscrevi, a que, outrossim, se alude a fl. 5 do tirado AUJ, aresto aquele comentado por Isabel Menéres Campos, in «Cadernos de Direito Privado», n.º 15 - Julho-Setembro de 2006, pp. 54 e segs., a panóplia de argumentos vertidos na predita anotação, em abono da tese oposta à que fez vencimento, in totum, se acompanhando e nos dispensando, ora, de reproduzir, aquela, em súmula, adita-se, já sufragada em decisões, com relato nosso, na 2.ª instância acontecidas.
Ainda:
A doutrina que como melhor havemos, jamais desaguaria, correcta interpretação e aplicação da lei feitas (sopesada a expressa renúncia à reserva de propriedade, por banda da exequente, operável, sem mácula, em nosso entender, salvo o devido respeito, sempre, por opinião díspar, a, frise-se, em sede executiva, não lograr satisfação a pretensão da ora recorrente, maxime, por não venda do veículo automóvel penhorado) no, por outra, consabida, via, à colação chamando a reserva de propriedade, esta acabar por efectivar, através da resolução do contrato, com consequente restituição do bem vendido à sua pessoa.
A tal faria, mas seguramente, decisivo óbice o estar-se ante paradigmática hipótese de venire contra factum proprium, defeso sendo o «prémio» do exercente. - Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva.
Declaração de voto
I - Não é pacífica a natureza jurídica da venda com reserva de propriedade. As hipóteses são bem variadas, como se pode ver em Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», iii, p. 58.De entre estas, são manifestamente de rejeitar as da dupla propriedade, uma a favor do que reserva e outra do comprador (desconforme à letra do artigo 409.º e à natureza do próprio direito de propriedade, como a determina o artigo 1305.º, ambos do Código Civil) e, bem assim, as que defendem a teoria da venda com eficácia translativa imediata (o que contraria o primeiro daqueles preceitos).
Temos, então, que:
Aquele, a favor de quem é estabelecida a reserva, continua a ser o proprietário (ou, não o sendo à partida - como no nosso caso - passa a sê-lo, por efeito do próprio negócio);
O comprador passa a dispor apenas de uma expectativa - no melhor entendimento, real - de aquisição.
II - Projectando esta realidade substantiva para o domínio do processo civil vemos que, quando se move execução ao comprador:
A penhora não incide sobre os bens do devedor, não se podendo subsumir no n.º 1 do artigo 821.º do Código de Processo Civil;
A execução não foi movida contra o proprietário, pelo que estamos fora do n.º 2 de tal artigo.
São, pois, violados os limites subjectivos daquela.
III - As reacções que a lei prevê relativamente à violação destes limites subjectivos são múltiplas (protesto imediato, impugnação do despacho, embargos de terceiro e acção de reivindicação) mas todas escapam à oficiosidade de conhecimento por parte do tribunal. Mesmo se considerarmos o regime geral das nulidades, temos a inoficiosidade resultante dos artigos 202.º e 203.º IV - Com a ressalva do que se vai referir infra, gera-se, então, uma situação aberrante.
O processo encaminha-se para a venda do bem penhorado a fim de, com o produto desta, ser pago o próprio proprietário. Já é, ele mesmo, titular do bem com o qual se pretende realizar o dinheiro para ser pago. Nada vai buscar ao património do devedor (fazendo apenas desaparecer, por via oblíqua, a expectativa de aquisição que este tinha, mas que não foi objecto de penhora).
Afinal, uma inutilidade processual, a cair na alçada do artigo 137.º, ainda do Código de Processo Civil. O exequente - que tinha ao seu alcance, nomeadamente, a apreensão e reivindicação do bem - seguiu um caminho que, a meu ver e com ressalva do que se vai referir, não pode ser seguido por a natureza do próprio processo executivo a ele se opor. O vício da penhora vai para além desta e atinge a estrutura deste processo, tal como emerge, nomeadamente, do n.º 3 do artigo 4.º do mesmo código.
Existe, então, apenas a saída de considerar que, ao nomear o bem à penhora, renunciou tacitamente à reserva de propriedade, deixando que a compra e venda produzisse o normal efeito translativo de propriedade.
V - Com esta saída, levanta-se a questão da sobrevivência do registo da reserva de propriedade. A previsão do artigo 119.º, n.º 1, do Código do Registo Predial não nos serve, quer porque não foi lavrado registo provisório da penhora quer porque não alcança os casos em que tenha havido violação dos limites subjectivos desta, ficando-se - como é próprio duma norma desta natureza - pela desconformidade de registos. Terá, então, o exequente de demonstrar o cancelamento da reserva do direito de propriedade. Neste entendimento e interpretando em conformidade a última frase do texto proposto, votei o acórdão. - João L. M. Bernardo.
Declaração de voto
Voto vencido pelas razões que, sumariamente, passo a expor.As duas questões que se colocam no presente recurso são as seguintes:
1.ª Saber se o juiz da 1.ª instância actuou bem quando ordenou a suspensão da instância motivado pelo facto de a credor-exequente não ter aceitado o convite que lhe foi formulado para provar a renúncia à reserva de propriedade.
2.ª Saber se se torna necessário que se prove o cancelamento do registo da reserva, o mesmo é dizer o registo da renúncia, para que a execução possa prosseguir.
O Tribunal da Relação de Lisboa deu guarida à posição da 1.ª instância, que decretou a suspensão da instância pelo facto de a ora agravante não ter aceitado o convite que lhe fora formulado no sentido de fazer prova da renúncia à reserva, cancelando ele próprio o registo da reserva.
Pois bem.
Para nós, as respostas a dar às questões formuladas não podem deixar de ser negativas, o que equivale a dizer que o caminho percorrido pelas instâncias não foi o certo, facto que deveria conduzir ao provimento do agravo.
Tentaremos, em breves palavras, dizer da nossa razão.
Antes, porém, entendemos que é bom lembrar que a reserva de propriedade foi registada a favor da antecessora da exequente, a TECNICRÉDITO, que assumiu o duplo papel de vendedora e financiadora.
Ainda há pouco tempo tivemos oportunidade de tomar posição na querela de saber se a reserva pode também funcionar a favor do financiador ou apenas a favor do vendedor, defendendo que a mesma só tem razão de ser em relação a este último e já não em relação àquele (Acórdão de 17 de Abril 2008, processo 859/08 - 1.ª Secção).
Aqui, porém, a questão do favorecido com a cláusula está ultrapassada: a reserva foi feita a favor da entidade vendedora (e concomitantemente financiadora).
Um outro ponto importante a merecer toda a atenção é este: bem ou mal, o conservador registou (e de forma definitiva) a penhora.
Posto isto, entremos na análise da razão de fundo da nossa discordância.
Ao nomear à penhora o veículo cuja reserva estava inscrita a seu favor, a exequente renunciou a tal garantia.
Como bem salienta Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, a opção de nomear à penhora o próprio bem sob reserva é estranha, «uma vez que a reserva de propriedade constitui uma garantia mais forte do que a penhora [...], mas não se pode negar ao vendedor recorrer aos meios à disposição dos credores comuns. Deve, no entanto, entender-se que essa opção implica uma renúncia à reserva, dado que é incompatível com ela» («Direito das Obrigações», vol. iii, 3.ª ed., p. 63, nota 137, e «Garantias das Obrigações», p. 266, nota 605).
Esta mesma ideia é defendida por Vasco Gama Lobo Xavier - «a renúncia pode inferir-se da nomeação à penhora de coisa vendida pelo próprio exequente» (Revista de Direito e Estudos Sociais, 1974, p. 216).
Ana Maria Peralta também não deixa de notar que, «para quem defenda que a transmissão da propriedade está submetida a uma condição resolutiva, o incumprimento gerará a operatividade automática da condição e, em consequência, a recuperação do bem pelo vendedor deveria também ocorrer independentemente da resolução. O vendedor pode optar, caso entenda preferível, pela exigência do cumprimento. Nesse caso, não há impedimento a que seja penhorado o bem alienado, que é agora propriedade do executado» (A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, p. 116).
Tendo o exequente renunciado à garantia que lhe advinha da reserva, isso significa que ficou com as mãos livres para nomear à penhora um bem que passou a ser, automaticamente, do comprador-executado.
Se tal nomeação não pode ter outro significado que não seja a renúncia, o juiz, posto perante esta realidade, só tinha de ordenar o prosseguimento da execução de acordo com o impulso que o próprio exequente viesse a dar à execução.
Não se compreende, pois, o convite que fez à exequente, não se vislumbrando o preceito legal que suporte tal tomada de posição.
E não se compreende, sobretudo, depois da penhora.
Mais, ainda: depois do registo (definitivo) da penhora.
Então, não estavam já reunidas todas as condições para que fosse aberto o concurso de credores, prosseguindo a execução com normalidade a sua tramitação? Entrando na análise da segunda questão, interrogamo-nos sobre a necessidade do cancelamento do registo da reserva para que a execução pudesse prosseguir os seus termos normais, atenta a natureza jurídica da própria cláusula de reserva de propriedade.
Entendemos, como já o afirmámos, que não.
Mas importa que nos expliquemos.
Para isso, há que encontrar a razão de ser da garantia «reserva de propriedade».
Mais ainda: necessário é que saibamos a quem é que essa garantia pode ser oposta e a quem serve.
Para Lima Pinheiro, «o que a reserva especificamente proporciona ao vendedor é a plena eficácia da resolução perante terceiros» (A Cláusula de Reserva de Propriedade, p. 112).
A reserva apenas é oponível quando em definitivo se souber quem é o proprietário do bem alienado sob reserva, ou seja, quando o preço for ou deixar de ser pago: então, a oponibilidade da reserva faz prevalecer o direito do vendedor, consolidando a propriedade na esfera jurídica daquele (Ana Maria Peralta, ob. cit., p. 53).
Sendo a razão do registo da reserva de propriedade apenas e só dar a conhecer a terceiros adquirentes (do vendedor ou do comprador) e só é oponível no caso de incumprimento, temos de concluir que este registo, penhorado o bem por nomeação do exequente (o que significa, como vimos, renúncia da mesma), deixa de ter qualquer função válida.
A função do registo da reserva é, pois, bem diferente da que têm outros registos, nomeadamente daqueles que visam garantir a posição de credores com garantia real ou, ainda, casos como arresto, usufruto ou arrendamento sujeito a registo.
Aqui, na reserva de propriedade, o registo da reserva (sendo certo que só é oponível se estiver registada, ut n.º 2 do artigo 409.º do Código Civil) apenas tem os efeitos destacados, o que significa, necessariamente, que a execução pode prosseguir os seus termos normais no caso de o exequente (beneficiário originário da mesma, mas que, por força da renúncia, deixou voluntariamente de o ser) ter nomeado o mesmo à penhora: não ser o registo cancelado após a renúncia em nada altera a posição de terceiros credores privilegiados (estes continuarão a poder reclamar os seus créditos, os quais serão, naturalmente, graduados em conformidade com as suas valências), independentemente de a reserva ainda estar inscrita no registo.
Com a nomeação à penhora do bem sujeito a reserva, esta deixou de ter utilidade:
mais tarde ou mais cedo há-de o respectivo registo ser cancelado, eventualmente pela própria iniciativa do «novo» proprietário, seja ele o executado (caso em que, por exemplo, não ter chegado a concretização da venda judicial) ou do seu adquirente (seja em sede de venda executiva ou outra): ao fazer o trato sucessivo, o conservador nenhuma dificuldade terá de cancelar o registo da reserva posto perante todo o «historial» do bem.
O artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil prescreve:
«Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.» E o artigo 888.º do Código de Processo Civil (na redacção dada pelo Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro, aqui aplicável atenta a temporalidade dos factos em apreciação) estabelece:
«Após o pagamento do preço e do imposto pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.» Pois bem.
Se os registos dos ónus, quaisquer eles que sejam, ficam, após a venda do bem, cancelados por ordem judicial, naturalmente que o registo (que lá ficou inocuamente) respeitante à reserva também deve, então, ser cancelado.
Com efeito, como vimos, a partir da nomeação do bem à penhora, a reserva deixou de ter qualquer utilidade para quem quer que seja, incluindo para os seus verdadeiros destinatários (o vendedor e o comprador e compradores relativamente a estes): estar no registo após essa nomeação passou a ser irrelevante para o direito (é sinal evidente do incumprimento do comprador: os credores, quaisquer que eles sejam, ficarão a saber que o contrato foi incumprido e que, por isso mesmo, a razão da reserva caducou); logo, se antes não foi cancelado (porque tal não é necessário para o normal prosseguimento da lide executiva), bem o poderá (e deverá) ser após a venda do bem.
É que ele - o registo da reserva - após a nomeação pelo exequente passou a ser uma pura inutilidade jurídica: a partir de então, jamais o exequente pode fazer valer, seja perante quem for, aquela garantia.
Se isto é assim, e pensamos que sim, teremos de dizer que o juiz da 1.ª instância produziu, para além da já assinalada, uma outra ilegalidade: mandar suspender a instância até que a reserva estivesse cancelada.
Em suma, o juiz praticou dois actos perfeitamente inúteis e, como tais, proibidos (artigo 137.º do Código de Processo Civil).
Do que fica exposto, infere-se, naturaliter, que o juiz meteu-se em campos onde não era nem nunca seria chamado. É que a execução, uma vez nomeado o bem pelo exequente, deveria prosseguir sem mais entraves, certo que a reserva tinha acabado de perder a sua função e, com ela, o seu próprio registo. Isto por um lado.
Por outro, perdendo o registo qualquer sentido por mor da nomeação do bem a ela sujeita até então, um quid totalmente irrelevante, competiria ao conservador a missão de limpar o cadastro, removendo, riscando, o mesmo, ou por iniciativa própria aquando do reatar do trato sucessivo ou por iniciativa do adquirente, seja ele por via da execução ou de qualquer outro negócio.
No caso que foi colocado no acórdão recorrido, salta mais à vista a falta de fundamentação legal do juiz para ordenar a suspensão da execução É que, conforme ficou dito, para além da interpretação que deve ser feita do acto de nomeação à penhora por parte do exequente (concludentemente é um acto de renúncia), uma coisa é certa: este foi o sentido que o conservador tirou e daí que tivesse registado a penhora do veículo e sem quaisquer dúvidas, antes, pelo contrário, de forma definitiva: o bem passou a ser, em definitivo, propriedade do comprador-comprador.
Estavam, pois, reunidas as condições (todas as condições) para, se disso fosse caso, ser aberto o concurso de credores a fim de estes poderem fazer valer as valências dos seus créditos.
Chegado o momento da concretização da venda, não teria o conservador qualquer dificuldade em riscar a inscrição da reserva, inscrevendo no registo o novo titular ao ser confrontado com o historial do bem sujeito a registo.
Em suma, não vislumbramos qualquer fundamento de ordem legal (e só este poderia relevar) para que tivesse sido ordenada a suspensão da execução, malgrado a própria penhora já ter sido registada.
Uma palavra mais e curta. Serve a mesma para dizer que, ao contrário do que vimos e ouvimos defender, a atitude da exequente é perfeitamente correcta, mesmo leal em relação a todos os demais credores: é que assim ele colocou à disposição dos mesmos uma parte do património do executado para ser «partilhado» de acordo com o que viesse a ser decidido em sede de concurso de verificação e graduação de créditos.
Se fizesse o contrário, não nomeando à penhora o próprio bem que vendeu, eles não sairiam beneficiados. Iria, então, executar o comprador, nomeando à penhora outros bens do seu património, retirando, quiçá, aos demais credores a possibilidade de satisfação (total ou parcial) dos seus créditos.
Merece, pois, a nosso ver, censura a prática de tais actos, como, igualmente, o merece a decisão da Relação de Lisboa que deu à mesma a cobertura assinalada.
Daí que o agravo deva ser provido.
Deveria, em consequência, se firmada firme jurisprudência no sentido consentâneo com o aqui defendido.
Id est, que:
A nomeação à penhora por parte do exequente de bem adquirido com reserva de propriedade traduz um acto de renúncia daquela garantia.
Nada impede o prosseguimento da execução, mesmo que, no registo, a reserva continue inscrita. - Urbano Aquiles Lopes Dias.
Declaração de voto
Vencido, aderindo integralmente ao voto de vencido do Exmo. Sr. Conselheiro Urbano Dias. - Arlindo de Oliveira Rocha.
Declaração de voto
Votei vencida, no essencial, pelas seguintes razões:1 - O acórdão considera que o recorrente Banco Mais, S. A., financiador, «aparece como vendedor do veículo». Todavia, tal facto não podia ter sido havido como provado porque nem vem provado das instâncias nem consta de documento que o prove plenamente e que possa ser considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto nos artigos 762.º, n.º 1, 749.º e 706.º do Código de Processo Civil (na versão anterior à que resultou do Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto), sendo aliás contraditório, como se observa no n.º II-B.6 do acórdão, «com o que diz o recorrente, que sustenta que não tem, nem nunca teve, na sua titularidade, o direito de propriedade sobre o bem em causa [...]».
Considero, aliás, que se assim pudesse ser não estariam reunidas as condições de admissibilidade do recurso, por faltar o requisito de «à aplicação normativa est[ar] subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica» à que foi apreciada no acórdão fundamento, para utilizar as palavras do acórdão.
2 - Não interpreto o acórdão fundamento como tendo decidido «não haver fundamento para impor ao exequente, a favor do qual se encontra registada a reserva de propriedade sobre um veículo, que renuncie ao direito registado» mas, diferentemente, como tendo partido do princípio de que o exequente, ao nomear à penhora o veículo, renunciou tacitamente à referida reserva de propriedade; apenas entendeu que a questão a decidir era, tão-somente, a de saber se o titular da reserva de propriedade tinha ou não o ónus de proceder ao cancelamento do registo correspondente, como condição para que a execução pudesse prosseguir.
3 - Não se me afigura clara a concepção adoptada pelo acórdão quanto à caracterização da reserva de propriedade. No n.º II-B.4.1 começa por observar que «a reserva tem pois, essencialmente, uma função de garantia» do pagamento do preço e da devolução da coisa e que «a cláusula de reserva de propriedade tem de ser convencionada apenas no âmbito de um contrato de alienação»; no n.º II-B.4.4, todavia, retira do que antes disse sobre a natureza da reserva (no ponto anterior, no qual referiu diversas concepções sobre a natureza da reserva) que «tal direito não se inclui nos direitos de garantia» [«além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico - (artigo 1306.º, n.º 1, do CC)], antes se aproximando «na sua natureza, de um direito real de gozo».
Para além de se me afigurar que tais afirmações haveriam de ter sido sustentadas no regime legalmente definido para a reserva de propriedade, suponho que a função deve prevalecer e que, portanto, a considerar-se «próximo», no contexto que agora interessa, dos direitos reais, de gozo ou de garantia, seria pela «proximidade» com estes últimos que o acórdão deveria ter optado. Em meu entender, a reserva de propriedade resulta de um fraccionamento do direito de propriedade plena, legalmente admitido no âmbito de contratos de alienação, com a função de garantia dos direitos do alienante, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 409.º do Código Civil.
Não considero adequado ter invocado o princípio da tipicidade dos direitos reais como fundamento para afastar a reserva de propriedade do âmbito dos direitos reais. A meu ver, tal princípio é impeditivo da transmissão - isolada, note-se - a favor de entidade diferente do alienante; mas não daquela qualificação, porque a reserva de propriedade está legalmente prevista.
4 - O acórdão considera ainda que «por não ser um direito de garantia e por se tratar de um direito com registo anterior ao da penhora não decorre a caducidade do respectivo registo nos termos do artigo 824.º do Código Civil»; que da propositura da acção executiva e da nomeação à penhora do veículo não pode deduzir-se a renúncia tácita ao direito de reserva de propriedade correspondente, por parte do exequente, porque «a extinção da reserva só se verifica [...] quando se obtém o cumprimento do contrato»; que não é coerente subsistirem, simultaneamente, o registo da reserva e o registo definitivo da penhora.
Quanto à primeira afirmação, considero que a conclusão de que a reserva de propriedade se não inclui entre os direitos que, nos termos do disposto no artigo 824.º do Código Civil, caducam deveria ter levado à conclusão de que, a ser assim, se não colocaria o problema da necessidade do cancelamento do respectivo registo, seja por iniciativa do exequente seja por determinação do tribunal, nos termos do disposto no artigo 888.º do Código de Processo Civil: a reserva manter-se-ia com a venda do direito do executado.
Relativamente à segunda, entendo, diferentemente, que há mesmo renúncia tácita, não compreendendo a afirmação de que «a renúncia é uma figura jurídica [...] contrária ao princípio da boa fé contratual». Ao optar pela execução, o credor (titular do direito de reserva) manifesta concludentemente não pretender prevalecer-se das vias de garantia do seu direito que lhe são concedidas pelo direito de reserva.
Quanto à terceira, tudo depende do que se entender quanto à necessidade de cancelamento. Mas a verdade é que o artigo 888.º citado admite coexistências equivalentes.
Para além disso, considero não resultar claro do acórdão que, ainda que se admita que se poderia considerar que o exequente fora também o vendedor, este pretende exercer no âmbito da execução os direitos que lhe advêm da sua qualidade de mutuante e não de vendedor. Ou seja: quer a restituição do capital mutuado ainda em dívida, com os juros e as penalizações contratadas - não o pagamento do preço.
Preço esse, aliás, que foi pago com o capital mutuado, havendo portanto que explicar porque é que a reserva se mantém depois de ser satisfeita a prestação garantida com a reserva.
5 - Por último, a considerar-se que o direito de reserva caduca com a venda executiva e, portanto, que o registo tem de ser cancelado, não encontro razão para que, ao arrepio do princípio da celeridade, da prevalência do fundo sobre a forma, da cooperação e da condução do processo pelo tribunal, se não considere que o artigo 888.º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável (e anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março), o juiz não deva determinar o respectivo cancelamento. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Declaração de voto
Vencido.Entendo, tal como entendeu Lima Pinheiro in A Cláusula de Reserva de Propriedade, a p. 105, que quando a titularidade do direito de propriedade é atribuída a um sujeito, não para que ele desfrute a coisa, mas sim como garantia de um seu crédito, então configura-se uma utilização da propriedade como garantia.
Esta utilização da propriedade com função de garantia é realizada através da estipulação de uma condição ou de um complexo de condições, concebida tradicionalmente como uma subordinação do efeito translativo ao pagamento integral do preço.
O direito de propriedade é aqui utilizado para um fim estranho à sua função típica, sendo a condição suspensiva um meio para atingir um resultado prático correspondente ao de uma garantia real dotada da prevalência absoluta.
Assim, entendo que ao proceder à indicação à penhora da coisa financiada o mutuante renunciou tacitamente à reserva de propriedade.
E que esta reserva, como direito de garantia que é, caducará oficiosamente com a venda executiva, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
Concluindo, daria provimento ao agravo e ordenaria o prosseguimento da execução. - Oliveira Vasconcelos.