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Acórdão 599/2005/T, de 20 de Dezembro

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Texto do documento

Acórdão 599/2005/T. Const. - Processo 1087/2004. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - António Simão Filho recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 26 de Novembro de 2004 que negou a revista pedida do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão este que, por seu lado, negou provimento ao recurso contencioso interposto pelo ora recorrente do despacho do Secretário de Estado da Administração Interna que lhe indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização.

2 - Na parte relevante à apreciação do pedido do recurso de constitucionalidade, o acórdão recorrido discreteou do seguinte jeito:

"[...]

2 - As conclusões úteis da minuta [das alegações de recurso] podem resumir-se assim:

1.ª ... 2.ª Ao exigir que o recorrente disponha de 'rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional' como condição de preenchimento do requisito consignado naquele preceito a entidade recorrida está a violar o princípio da igualdade estabelecido no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República.

[...]

Análise da 2.ª conclusão:

Quanto à questão de constitucionalidade suscitada, é manifesta a sua improcedência.

Em primeiro lugar, e como já vimos, a Relação considerou não preenchido o requisito do artigo 6.º, n.º 1, alínea f), da Lei da Nacionalidade, não porque o recorrente não disponha de rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional, mas sim, concretamente, por estar desempregado desde 14 de Outubro de 1998 e por se desconhecerem no momento actual os seus meios de subsistência, o que é substancialmente diferente.

Depois, não pode ignorar-se aquilo para que logo de início se chamou a atenção: o interessado na naturalização não é titular de um direito a ela, e o poder do Estado na sua concessão é discricionário, nos termos que atrás se delimitaram, facto que torna deslocada a invocação do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição. Por um lado, porque o que aí se proíbe são as vantagens e as desvantagens ilegítimas, tanto na atribuição de direitos como na imposição de deveres; e, como se viu, não é disto que se trata quando alguém pede a naturalização. Por outro lado, porque a discricionariedade com que a Administração actua neste domínio permite-lhe recusar legitimamente a naturalização, mesmo que o interessado possa assegurar a sua subsistência; isso sucederá, por exemplo, quando entenda que não se verifica qualquer um dos outros requisitos cumulativos indicados na lei e nisso baseie a sua decisão. É verdade que uma das dimensões essenciais do princípio da igualdade consiste na proibição do arbítrio; e também é certo que a vinculação da Administração àquele princípio inclui esta sua dimensão, mesmo no âmbito dos poderes discricionários, o que significa, na prática, que a Administração deve 'utilizar critérios substancialmente idênticos para a resolução de casos idênticos, sendo a mudança de critérios, sem qualquer fundamento material, violadora do princípio da igualdade' (G. Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 130). Porém, o relato dos momentos essenciais do presente processo a que anteriormente se procedeu mostra à evidência que nada disto está em causa na presente situação. O artigo 13.º, n.º 2, da Constituição proíbe de igual modo diferenciações de tratamento entre cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias (proibição de discriminação). Mas é evidente que esta questão nem sequer se coloca aqui; o recorrente, de resto, não logrou concretizar com um mínimo de verosimilhança a sua alegação, por forma a demonstrar ou que o artigo 6.º, n.º 1, alínea e), da Lei da Nacionalidade é materialmente inconstitucional ou que foi interpretado e aplicado violando a lei fundamental.

3 - Nestes termos, nega-se a revista."

3 - Alegando sobre o recurso de constitucionalidade, o recorrente concluiu o seu discurso argumentativo do seguinte modo:

"1 - O recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, confirmativo da 1.ª instância, num processo em que foi indeferido um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização.

2 - O pedido foi indeferido por considerarem que o recorrente não preenchia um dos requisitos previstos no artigo 6.º da Lei da Nacionalidade.

3 - Pelo que o recorrente apresentou o competente recurso contencioso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

4 - Tendo o mesmo sido julgado improcedente e sido confirmado o despacho recorrido.

5 - Não se conformando com a referida decisão, foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

6 - No recurso de revista o recorrente alega a inconstitucionalidade da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

7 - Alega que o despacho do Exmo. Sr. Secretário de Estado da Administração Interna violou o artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

8 - O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça foi negado, pelo que o recorrente apresenta o presente recurso que é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei 13-A/98 de 26 de Fevereiro.

9 - No qual pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, quando aplicada no despacho do Exmo. Sr. Secretário de Estado da Administração Interna.

10 - Por violação, entre outros, salvo melhor opinião, do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

11 - O recorrente apresentou um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização, nos termos do disposto no artigo 6.º da Lei da Nacionalidade,

12 - Mas, para que lhe fosse concedida a nacionalidade portuguesa, era necessário que preenchesse os requisitos previstos no n.º 1 do mesmo artigo.

13 - Acontece que alguns dos requisitos são verdadeiros conceitos indeterminados, cujo preenchimento é deixado ao intérprete, como o caso do requisito que foi considerado que o recorrente não preenchia.

14 - No caso concreto, apesar de o recorrente considerar que preenche o requisito previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade.

15 - Estamos aqui perante um requisito que varia consoante as variações políticas e do facto de em cada momento a pessoa ter ou não rendimentos que, segundo os critérios da Administração, são considerados suficientes.

16 - Se efectivamente, numa determinada data, se podia considerar que o recorrente podia não ter meios de subsistência, a realidade é que à data da interposição do recurso o recorrente dispunha de meios de subsistência e isso não foi tido em consideração nem pelo Exmo. Sr. Secretário de Estado da Administração Interna nem pelos mui ilustres juízes desembargadores.

17 - É inúmeras vezes referido que está desempregado desde 1998, quando na realidade tal não corresponde à verdade, uma vez que consta dos autos que este comprou casa com recurso ao crédito à habitação em 1999 e apresenta rendimentos em 2002 e 2003.

18 - Desconhecem-se os motivos por que é afirmado que este está desempregado desde 1998, quando consta do relatório final do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras o seguinte:

'No que se refere ao preenchimento do requisito revisto na alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, o requerente em sede de alegações vem juntar os seguintes documentos:

Comprovativo do reinício da actividade, a fl. 96;

Três recibos verdes, referentes a Outubro e Dezembro de 2002;

Inscrição na segurança social, de Outubro de 2002;

Declaração da entidade patronal (fl. 103);

Recibo de vencimento da mesma empresa (fl. 101);

Declaração de rendimentos referente ao ano de 2002 referente ao casal (fl. 102).'

19 - O recorrente alegou a inconstitucionalidade do despacho do Exmo. Senhor Secretário de Estado da Administração Interna, por se exigir que os requerentes de pedidos de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização tenham determinados tipos de rendimentos para obterem a referida nacionalidade.

20 - É a entidade recorrida e os mui ilustres juízes desembargadores que quem apesar de ter sobrevivido durante alguns anos em Portugal, não aufira rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional não tem direito à nacionalidade portuguesa.

21 - Esta é sem dúvida uma situação violadora do princípio da igualdade, uma vez que a nacionalidade do recorrente foi-lhe negada, pois este não dispunha de rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional.

22 - Como aliás refere o relatório final de indeferimento: 'verifica-se que o requerente não comprova de maneira segura e efectiva a sua capacidade para reger e assegurar a sua subsistência, uma vez que apresenta rendimentos irregulares, não possui uma actividade profissional estável ...' (ver nota 3).

23 - Desconhecem-se os motivos por que os mui ilustres juízes desembargadores referem no seu acórdão que o recorrente está desempregado desde 1998, uma vez que a prova produzida refere uma situação substancialmente diferente.

24 - Talvez seja por considerarem que a Constituição da República Portuguesa não se aplica aos cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, como consta do referido acórdão, onde inclusive referem o seguinte: 'o despacho do Exmo. Senhor Secretário de Estado da Administração Interna não violou qualquer disposição legal e, muito menos, o artigo 13.º, n.º 2, da CRP, que tem aplicação aos cidadãos portugueses, sendo certo que o requerente não goza dessa qualidade'.

25 - Não se pode é esperar que a prova seja bem apreciada quando inclusive se quer negar a aplicação da Constituição da República Portuguesa ao recorrente por ser cidadão estrangeiro.

26 - Estamos perante uma clara violação do princípio da igualdade.

27 - Ora, salvo o devido respeito, se alguém, durante os 10 anos de residência em Portugal sobreviveu e conseguiu comprar uma casa com o recurso ao crédito à habitação tem sem dúvida capacidade para se reger.

28 - Mas o que efectivamente está aqui em causa é que têm a entidade recorrida e os tribunais entendido que quem não tem um rendimento superior a x ou quem não tem um emprego estável não tem capacidade para se reger e isto é sem dúvida uma violação do princípio da igualdade, pois estão a fazer depender a aquisição da nacionalidade portuguesa de uma situação económica em concreto.

29 - Esta situação faz-nos lembrar o tempo das Cortes em que existia o voto censitário, em que quem não dispunha de meios para se sustentar não podia votar (ver nota 4).

30 - Será que quem tem mais rendimentos tem direito a adquirir a nacionalidade portuguesa, quem tem menos não tem direito.

31 - Estamos aqui numa situação violadora do princípio da igualdade, em que o despacho do Exmo. Sr. Secretário de Estado da Administração Interna faz depender a aquisição da nacionalidade da situação económica do requerente num dado momento.

32 - Esta é sem dúvida uma situação injusta e violadora, entre outros, do princípio da igualdade, que não permite este tipo de discriminação, em razão da situação económica de cada um.

33 - Daí resultando, salvo melhor opinião, uma flagrante violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

34 - A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos a fls. ... (recurso contencioso para o Tribunal da Relação de Lisboa e recurso para o Supremo Tribunal de Justiça).

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser declarada a inconstitucionalidade da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, por violação do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e consequentemente ser revogada a decisão recorrida.

(nota 3) Fl. 105 do processo administrativo.

(nota 4) V. p. 278, Direito Constitucional, de Gomes Canotilho, Almedina."

4 - Através do procurador-geral-adjunto no Tribunal Constitucional, o Ministério Público contra-alegou, concluindo:

"1 - A norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade vigente, ao estabelecer como condição de deferimento da pretensão de nacionalização, por parte de cidadão estrangeiro, uma efectiva e estável integração na comunidade nacional - expressa, desde logo, na demonstração pelo interessado de que possui capacidade para autonomamente reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência -, não ofende qualquer norma ou princípio constitucional.

2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Tudo visto, cumpre decidir.

B - Fundamentação. - 5 - Antes de mais importa notar que não cabe nos poderes do Tribunal Constitucional conhecer nem da (in)correcção do juízo probatório sobre a matéria de facto susceptível de ser relevada normativamente que foi efectuado pela Relação, nem do (des)acerto do juízo subsuntivo dessa realidade de facto à norma aplicável, nem, finalmente, da existência do vício de inconstitucionalidade que é assacado directamente ao despacho administrativo que indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade portuguesa ao requerente, que é cidadão angolano.

O Tribunal Constitucional, como vem sendo constantemente repetido na sua jurisprudência, apenas conhece de questões de inconstitucionalidade normativa.

Deste modo, ao Tribunal Constitucional apenas cumpre conhecer da questão sintetizada no n.º 6 das conclusões, ou seja, da questão de saber se a exigência estabelecida na parte final da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade - capacidade para assegurar a sua subsistência afronta a Constituição, nomeadamente, por violação do disposto no seu artigo 13.º, n.º 2. E apenas se conhece dessa dimensão normativa, por apenas ela ter constituído fundamento normativo do decidido, não estando em causa o requisito, definido na primeira parte do preceito, de os estrangeiros, requerentes da nacionalidade portuguesa, "possuírem capacidade para reger a sua pessoa".

6.1 - O preceito constitucionalmente impugnado dispõe do seguinte jeito [transcreve-se a totalidade do artigo para melhor compreensão do conjunto normativo global em que ele se integra, sendo a redacção das alíneas b), d), e) e f) do n.º 1 e o n.º 2 na redacção dada pela Lei 25/94, de 19 de Agosto, e a restante parte na redacção constante da Lei 37/81, de 3 de Outubro]:

"Artigo 6.º

Requisitos

1 - O Governo pode conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Serem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;

b) Residirem em território português ou sob administração portuguesa, com título válido de autorização de residência, há, pelo menos, 6 ou 10 anos, conforme se trate, respectivamente, de cidadãos nacionais de países de língua oficial portuguesa ou de outros países;

c) Conhecerem suficientemente a língua portuguesa;

d) Comprovarem a existência de uma ligação efectiva à comunidade nacional;

e) Terem idoneidade cívica;

f) Possuírem capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência.

2 - Os requisitos constantes das alíneas b) a d) podem ser dispensados em relação aos que tenham tido a nacionalidade portuguesa, aos que forem havidos como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência portuguesa e aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português."

6.2 - O recorrente sustenta que o requisito exigido na alínea f) do n.º 1 deste artigo para que o Governo possa conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, a cidadãos estrangeiros, como o recorrente, que tem a nacionalidade angolana, ofende o princípio da igualdade, por afrontar o disposto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.

6.3 - Pode afirmar-se existir grande concordância entre a doutrina quanto à definição de nacionalidade, mormente quanto ao seu entendimento enquanto situação jurídica geral, status, direito de personalidade, vínculo pessoal jurídico-público, direito fundamental, tudo isso associado intrinsecamente à integração em uma comunidade nacional.

Assim, José Dias Marques define-a como "situação jurídica geral cuja atribuição resulta de certos factos a que o legislador atribui o valor de índices sociais reveladores de integração na comunidade nacional" ("Conceito e natureza jurídica da nacionalidade", in separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano 12, n.os 3 e 4, p. 101).

Por seu lado, abordando a temática à face da Lei 37/81, de 3 de Outubro, Rui Manuel Moura Ramos escreve a este propósito:

"Assim, se a lei segue de certa forma a concepção clássica, segundo a qual a nacionalidade é um vínculo jurídico-público em que a presença dos interesses do Estado enquanto unidade política tem por força de se fazer sentir, ela não deixa de, ao mesmo tempo, reconhecer à nacionalidade a condição de um autêntico direito do indivíduo, direito esse que se deve considerar como fundamental." (Do Direito Português da Nacionalidade, col. "Biblioteca Jurídica", Coimbra Editora, 1984, p. 116.)

E um pouco mais adiante:

"Se a nacionalidade é o vínculo que delimita o povo estadual, o suporte humano do Estado, ela é a relação fundamental que intercede entre o indivíduo e a entidade política a que este se encontra privilegiadamente ligado. Ao ser essencial à definição do Estado, ela torna-se, verdadeiramente, para além do direito público, um domínio materialmente constitucional."

Dentro da mesma linha discorre António Marques dos Santos (Estudos de Direito de Nacionalidade, Coimbra, 1998, p. 11), dizendo que "o conceito de nacionalidade, na sua acepção mais lata, como vínculo jurídico-político de pertença de um sujeito de direito a um Estado, corresponde a uma realidade sociológica, factual, que lhe está subjacente e que, por isso mesmo, é extrajurídica". E com referência ao direito nacional, o mesmo autor acrescenta que, "além de ser um elemento do estado das pessoas, isto é, um status, e até mesmo um direito de personalidade, a nacionalidade é um direito fundamental [...]".

Abordando a mesma matéria, diz, por sua vez, Ian Brownlie (Princípios de Direito Internacional Público, trad., Lisboa, 1997, p. 418) que "de acordo com a prática dos Estados [...], a nacionalidade é um vínculo jurídico que tem por base um facto social de pertença, uma conexão genuína de vivência, de interesses e de sentimentos, em conjunto com a existência de direitos e deveres recíprocos. Pode dizer-se que constitui a expressão jurídica do facto de o indivíduo ao qual é conferida ope legis ou em resultado de um acto das autoridades estaduais, estar, na realidade, mais intimamente ligado à população do Estado que lhe confere a nacionalidade do que à de qualquer outro Estado.".

6.4 - Seguindo os passos das Constituições de 1911 e de 1933, a Constituição de 1976 não define quem são os cidadãos portugueses.

Na verdade, esta limita-se a dizer, no seu artigo 4.º, que "são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional".

Quer isto dizer que o diploma básico remeteu a regulação da matéria para as convenções internacionais de que Portugal seja parte contratante e para a lei ordinária. Não pode, porém, sustentar-se que a Constituição se tenha alheado da regulação da matéria.

Na verdade, e desde logo, a Constituição subordinou-a a apertadas exigências formais e procedimentais ao integrar o regime da "aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa" entre as matérias da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República [alínea f) do artigo 164.º], ao exigir que a definição do respectivo regime seja feita sob a forma de lei orgânica, com o intrínseco postulado da sua subordinação a um regime especial de tramitação parlamentar e de maioria absoluta de aprovação bem como de fiscalização de constitucionalidade (artigo 168.º, n.os 4 e 5, e 278.º, n.os 4, 5 e 6).

Mesmo quando definido em convenção internacional, o regime de aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa não escapa à aprovação parlamentar, dado tratar-se de matéria incluída na sua competência reservada.

6.5 - Embora o diploma básico se refira várias vezes à cidadania, nem sempre este conceito está tomado na acepção de cidadania portuguesa.

Assim, é seguro que, ao estabelecer o limite negativo dos efeitos da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 6 do artigo 19.º) ou ao enunciar os direitos dos trabalhadores (artigo 59.º), o conceito surge aplicado num sentido de abranger quer os cidadãos nacionais quer os estrangeiros, atenta a sua radical imbricação com o princípio da dignidade humana, do qual brotam directamente esses direitos.

Por seu lado, no artigo 33.º, a Constituição distingue bem, a propósito dos institutos relativos à expulsão, extradição e direito de asilo, entre a cidadania nacional e a cidadania estrangeira.

Mas é no artigo 26.º, n.º 1, que a Constituição consagra o direito de cidadania portuguesa como direito fundamental ao dispor que "a todos são reconhecidos os direitos [...] à cidadania, [...]".

Uma tal conclusão resulta evidente do confronto do disposto neste número com a prescrição constante do n.º 4 do mesmo artigo, segundo o qual "a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos".

Na verdade, "considerando que compete aos Estados, embora dentro dos parâmetros (cada vez mais apertados) do direito internacional, definir quem são os seus próprios cidadãos, seria descabido e internacionalmente irrelevante - se não mesmo tido como uma interferência inaceitável - que o direito interno de um Estado se pronunciasse sobre a obtenção, conservação ou perda de cidadanias de outros países" (Jorge Pereira da Silva, Direitos de Cidadania e Direito à Cidadania, Observatório da Imigração, ACIME - Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, Lisboa, 2004, p. 91).

Por outro lado, sendo certo que "o direito interno do Estado Português, independentemente de se tratar de preceitos constitucionais ou de leis ordinárias, só pode dispor sobre o regime da sua própria cidadania", não pode deixar de concluir-se que os preceitos em causa se referem à cidadania portuguesa (cf. Jorge Pereira da Silva, op. cit., p. 91).

É também como direito de natureza fundamental que a doutrina nacional referida qualifica o direito de nacionalidade portuguesa [António Marques dos Santos, op. cit., p. 294, diz a esse respeito que, "além de ser um elemento do estado das pessoas, isto é, um status, e até mesmo um direito de personalidade, a nacionalidade é um direito fundamental, como já resultava, ainda antes da entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, do artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 10 de Dezembro de 1948; no plano do direito constitucional positivo português, se tal conclusão se poderia inferir do texto da Constituição, na sua versão original, segundo alguns [...], ela ficou claramente estabelecida após a primeira revisão constitucional, ao ser incluída a cidadania no elenco dos outros direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), para além do direito à vida (artigo 24.º), do direito à integridade pessoal (artigo 25.º), bem como dos demais direitos referidos nos artigos 27.º e seguintes da lei fundamental, que têm igualmente carácter pessoal"].

A natureza de direito fundamental do direito de cidadania portuguesa postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua aplicabilidade directa, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.

Tendo, porém, o legislador constitucional remetido a definição do regime do direito à cidadania portuguesa para o direito internacional pactício e para a legislação ordinária, daí decorre que será, nesse terreno, que tais fontes iluminarão a concreta densificação do seu estatuto jurídico.

Sem embargo, não poderá deixar de inferir-se do referido artigo 4.º da Constituição, conjugadamente, quer com outros preceitos constitucionais (por exemplo, os artigos 36.º, 67.º e 68.º, relativos ao estatuto constitucional da família, casamento e filiação, maternidade e paternidade) quer com os princípios de direito internacional, um certo conteúdo mínimo que o legislador ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em causa, que é a questão que aqui se coloca.

Assim, cingindo-nos ao campo em que a questão se coloca, o "legislador não poderá deixar de se ater ao princípio derivado do direito internacional da ligação efectiva (e genuína) entre a pessoa em causa e o Estado Português, tomado aquele princípio tanto no sentido negativo - irrelevância da cidadania atribuída ou adquirida à margem de qualquer ligação efectiva - como no seu sentido positivo - preferência da ligação mais efectiva sobre as demais, conformando a propósito da cidadania originária e da cidadania derivada, os critérios que são comummente utilizados na concretização daquele princípio jusinternacional: isto é, o ius sanguinis e o ius soli, em relação à cidadania originária; a filiação, a adopção, o casamento e a residência, no que respeita à cidadania derivada" (Jorge Pereira da Silva, op. cit., p. 97).

Ao legislador ordinário está pois cometida a tarefa de densificar o acesso à cidadania portuguesa, sendo que nessa densificação não poderão deixar de relevar essencialmente as relações que desvelem as situações de uma ligação efectiva entre o indivíduo e o Estado Português e a comunidade nacional.

Face ao que vem sendo dito, tanto se pode olhar para a cidadania portuguesa do ponto de vista de quem já detém esse status, constituindo então um direito subjectivo, como do ângulo de quem não a detém, mas pretende tê-la, caso em que apenas se está perante uma simples expectativa jurídica.

A quem se encontra na primeira situação, a Constituição reconhece (artigo 26.º, n.os 1 e 4) o direito de não ser privado dele, de forma arbitrária. Mas a lei fundamental, quer pela via da assunção do direito internacional sobre a matéria estabelecida no seu artigo 4.º quer através do princípio da interpretação e da integração do sentido dos direitos fundamentais constante do artigo 16.º, de acordo com a regra relativa à nacionalidade afirmada no artigo 15.º da DUDH, não pode deixar de reconhecer a todos os demais a expectativa jurídica de adquirirem a nacionalidade portuguesa, observados que sejam determinados pressupostos que o legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração efectiva na comunidade nacional.

Lembre-se aqui que este artigo 15.º dispõe que "[1 -] [t]odo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. [2 -] Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.".

E no mesmo sentido poderá ainda convocar-se o artigo 24.º, n.º 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), onde se prescreve que "toda a criança tem direito a adquirir uma nacionalidade", cuja força vinculativa, no direito interno português, se impõe não só por força da referida remissão do artigo 4.º da Constituição como por via do princípio da recepção automática do direito internacional convencional, estabelecido no artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.

Nesta última dimensão, o acesso à cidadania portuguesa representa, assim, uma expectativa jurídica de obtenção de um direito cujo conteúdo é o direito subjectivo ou pessoal da cidadania portuguesa com todo o amplexo dos poderes e deveres com que o direito interno (constitucional e direito ordinário) o reveste.

Nesta perspectiva, o "direito de aceder" à cidadania portuguesa tem uma estrutura jurídica muito diferente do direito subjectivo de cidadania portuguesa. "Com efeito - escreve Jorge Pereira da Silva (op. cit., p. 94) -, ao passo que o primeiro é um direito positivo, exigindo dos poderes públicos uma atitude interventiva, no sentido de criar as condições jurídicas para a sua efectivação, o segundo é um direito negativo (se não mesmo uma simples garantia daquele primeiro), que visa a defesa contra as intervenções arbitrárias dos mesmos poderes públicos, exigindo-se destes, apenas, que não atentem contra o status dos cidadãos portugueses".

No caso de aquisição da nacionalidade "uma decisão da autoridade pública - no nosso caso, o Governo - que, mediante solicitação dos interessados, pode ou não conceder-lhes a nacionalidade portuguesa".

Tratando-se, todavia, de um poder discricionário do Governo, tal não impede que a lei ordinária o tenha subordinado à verificação cumulativa de certos requisitos que "funcionam como autênticos pressupostos legais do exercício do poder (discricionário) governamental de determinar a aquisição da nacionalidade, e que visam [...] evitar que ele possa ser exercido em situações em que tal aquisição se afigura ao legislador, prima facie, como desaconselhável" (Rui Manuel Moura Ramos, op. cit., p. 168).

A definição dos pressupostos do "direito de aceder" à nacionalidade portuguesa surge deste modo como um postulado da sua natureza de direito fundamental, de conteúdo não completamente determinado a nível constitucional, e das referidas exigências formais e procedimentais. Não estando o conteúdo imediato desse direito densificado na Constituição, torna-se imprescindível e necessária uma "imposição legislativa concreta ao legislador ordinário das medidas necessárias para tornar exequíveis os preceitos constitucionais" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., p. 393).

Tendo em conta a natureza do vínculo em que se expressa a nacionalidade, tais pressupostos não poderão deixar de constituir índices de desvelação do tipo, natureza e intensidade da relação que concretamente intercede entre o indivíduo, o Estado Português e a comunidade nacional em que se pretende integrar.

Por mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de que comunga o direito em causa, hão-de essas exigências estabelecidas pelo legislador ordinário passar o crivo da adequação, necessidade e proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial de tal direito que, por natureza, há-de corresponder à evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa.

Com o estabelecimento do requisito aqui impugnado, pretende-se evitar que "sejam integrados na comunidade portuguesa indivíduos [...] que apareçam apenas com um encargo para esta" ou "a sociedade visa evitar que a presença desse elemento seja afastada de uma contribuição efectiva para o tecido social e apenas apareça como um fardo para os restantes [membros da comunidade]" (cf. Rui Manuel Moura Ramos, op. cit., p. 168, e Garcia Pereira, Lei da Nacionalidade Anotada, Lisboa, 1984, p. 14, anotação ao artigo 6.º).

Antes de mais cumpre notar que o estabelecimento deste requisito para aceder à nacionalidade portuguesa não se afigura desadequado e desproporcionado, tendo em vista a sua função de não constituir obstáculo social ou político à integração do cidadão estrangeiro na comunidade portuguesa e à sua aceitação por parte da mesma comunidade.

Na verdade, tendendo o vínculo da nacionalidade a dar expressão aos valores sociológicos, culturais, económicos, jurídicos, políticos e outros que constituem o património da comunidade nacional, compreende-se que essa comunidade nacional não queira assumir sacrifícios económicos, financeiros e sociais com quem não está em condições de não onerar essa comunidade: o vínculo não seria então expressão de uma ligação sociológica afectiva e intensa entre os dois elementos, mas a resultante de um "casamento de conveniência".

Por outro lado, embora, no seu conteúdo essencial, o "direito de acesso" à cidadania portuguesa se expresse em uma expectativa jurídica a um direito ou, recte, a um status, não poderá desconhecer-se que se encontram associados a esse status diversos direitos pessoais, cuja satisfação está cometida à comunidade, que se realiza mediante a efectivação de prestações materiais que demandam recursos financeiros.

Ora, tendo em conta esta projecção de efeitos, pode entender-se estar essa expectativa jurídica sujeita a "tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário".

Mas, sendo assim, não se afigura sustentável o estabelecimento de qualquer relação de comparação, como demanda, por natureza, o princípio da igualdade, restringido este aqui à dimensão de proibição de discriminação em razão da situação económica (artigo 13.º, n.º 2, da Constituição), entre quem já é titular do vínculo da nacionalidade portuguesa e aquele em vista de cuja concessão ou atribuição da nacionalidade portuguesa a capacidade de subsistência é funcionalmente exigida.

Nesta linha de pensamento, os princípios da universalidade e da igualdade no direito de aceder à cidadania portuguesa apenas obrigam a que o legislador ordinário, pressuposta a existência dos demais requisitos, não trate diferentemente os cidadãos estrangeiros, requerentes da nacionalidade portuguesa por naturalização, que tenham igual capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência.

O que eles seguramente não demandam (ao contrário do que, embora dubitativamente sustenta, impressionada possivelmente pelo concreto entendimento administrativo que foi seguido, no caso, relativamente à avaliação administrativa da referida capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência, Cristina de Sousa Machado, "Concessão da nacionalidade portuguesa, limites intrínsecos da discricionariedade", in XX Aniversário do Provedor de Justiça, Estudos, Lisboa, 1995, p. 23) é que o legislador nacional não possa, para justificar a diferença de tratamento, ao nível da conformação normativa autónoma dos pressupostos do direito de aceder à nacionalidade portuguesa, destrinçar entre quem está em condições de não importar encargos para a comunidade nacional e quem o não está.

7 - O acórdão recorrido, ao entender que o recorrente não satisfazia o requisito da capacidade para assegurar a sua subsistência, "por estar desempregado e por se desconhecerem no momento actual os seus meios de subsistência", moveu-se, assim, dentro de um critério normativo que não ofende a lei fundamental.

8 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea f), segunda parte, da Lei 37/81, de 3 de Outubro, na redacção dada pela Lei 25/94, de 19 de Agosto, enquanto entendida no sentido de exigir que os estrangeiros que pretendam obter a cidadania portuguesa possuam capacidade para assegurar a sua subsistência;

b) Negar provimento ao recurso;

c) Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 2 de Novembro de 2005. - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2361981.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1981-10-03 - Lei 37/81 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Nacionalidade.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1994-08-19 - Lei 25/94 - Assembleia da República

    Altera a lei da nacionalidade aprovada Lei 37/81, de 3 de Outubro, relativamente a naturalidade originária, sua aquisição em caso de casamento, aos requisitos para a aquisição de nacionalidade por naturalização e aos fundamentos da oposição a aquisição de nacionalidade por efeito da vontade ou da adopção.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

Aviso

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