Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2008
Processo 2569/07 - 3.ª Secção
Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:I - O Ministério Público (MP) interpôs recurso extraordinário, nos termos do artigo 446.º, n.º 1, do CPP, do despacho de 16 de Abril de 2007 do juiz titular da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, exarado no processo 4699/94.7JDLSB, certificado a fls. 4-5, por contrariar a jurisprudência fixada no Assento 10/2000, de 19 de Outubro, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Novembro de 2000, pronunciando-se pela confirmação da jurisprudência fixada, com a consequente revogação do despacho impugnado, sem excluir, no entanto, o eventual reexame dessa jurisprudência.
No STJ, o Sr. Procurador-Geral-Adjunto considerou o recurso tempestivo e reconheceu que o despacho recorrido contraria a jurisprudência fixada no aludido «assento», pronunciando-se pela aplicação dessa jurisprudência, por entender que ela não está ultrapassada já que não teriam sido apresentados no despacho recorrido argumentos novos sobre a questão de direito ali tratada.
Por Acórdão de 13 de Dezembro de 2007, proferido nos autos, decidiu-se reconhecer que a decisão recorrida contraria a jurisprudência fixada no Assento 10/2000 e ordenou-se o prosseguimento do recurso para que se proceda ao reexame dessa jurisprudência.
Tal decisão assentou nos seguintes pressupostos:
Quanto aos requisitos do artigo 446.º do Código de Processo Penal (CPP):
O despacho recorrido decidiu declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida AA, entretanto declarada contumaz, por ter decorrido o prazo prescricional (de 10 anos) sem que se verificasse qualquer causa de interrupção ou de suspensão do procedimento, tendo para o efeito considerado que a declaração de contumácia não suspende o prazo de prescrição do procedimento criminal, contrariamente ao estabelecido no referido Assento 10/2000.
Quanto à necessidade de reexame da jurisprudência fixada:
Em primeiro lugar, a prolação do Acórdão 110/2007 do Tribunal Constitucional (decisão em que se apoiou o despacho recorrido), que, embora em sede de fiscalização concreta, julgou «inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.os 1 e 3, da CRP, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do CP e do artigo 336.º, n.º 1, do CPP, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento se suspende com a declaração de contumácia». A questão da (in)constitucionalidade da solução encontrada não foi ponderada, ao menos expressamente, pelo Assento 10/2000, tornando-se imperioso que se retome a análise da questão a essa luz.
Por outro lado, a composição do STJ modificou-se profundamente desde a prolação do referido «assento», restando em funções apenas três dos juízes-conselheiros que então intervieram (tendo inclusivamente dois deles votado contra a jurisprudência fixada), o que aconselha uma reapreciação da matéria.
Estas razões mostram-se válidas e pertinentes, pelo que se entende existir fundamento para o reexame da jurisprudência fixada no Assento 10/2000.
II - Notificadas as partes para os efeitos do artigo 442.º do CPP, apenas o MP produziu alegações, de que se extraem, por mais significativas, as seguintes passagens:
«III - 1 - O Ministério Público neste Supremo Tribunal, nas alegações que então produziu no processo que conduziu à jurisprudência fixada (e que irá juntar), pronunciou-se em sentido oposto àquele que foi adoptado (por larga maioria: dos 18 subscritores do acórdão 4 ficaram vencidos).
Por outro lado, a questão relativa à (in)constitucionalidade da interpretação, embora não conste dos fundamentos do acórdão, foi alvo de discussão no plenário, como resulta expressamente do teor do voto de vencido, abraçado por mais três dos Exmo.s Conselheiros.
Uma vez que a interpretação que o Ministério Público propôs não foi acolhida, ficamos, desde a prolação daquele acórdão, obrigados a segui-lo e mesmo a sustentá-lo, como resulta da obrigatoriedade de interposição de recurso da decisão que o contrarie.
E, nessa medida, dado que, para além do Acórdão 110/2007 do TC, nenhum outro elemento novo e relevante foi acrescentado, temos vindo a emitir parecer no sentido da sua aplicação.
Porém, após a prolação do Acórdão 110/2007 do Tribunal Constitucional, que teve por objecto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Julho de 2006 (processo 1949.06 - 3.ª Secção, que nos estava afecto), emitimos parecer no sentido de se proceder à revisão da jurisprudência fixada, dado que se esboçava no próprio STJ uma adesão àquela interpretação, com significativa expressão no Tribunal Constitucional.
E, na verdade, desde então, o Tribunal Constitucional proferiu, pelo menos, seis decisões sumárias (quatro da 2.ª Secção e duas da 3.ª Secção), ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A da LTC, que, no essencial, seguiram no sentido do referido Acórdão 110/2007, para o qual se remeteram.
São elas as n.os 379/07, de 30 de Maio, processo 549/07, 521/07, de 11 de Outubro, processo 921/07, 559/07, de 31 de Outubro, processo 827/07, 576/07, processo 1002/07, 581/07, processo 976/07 e 582/07, processo 1014/07, estas três de 13 de Novembro.
Outrossim, o Ministério Público junto daquele Tribunal, por repetição do julgado, promoveu a organização de processo com vista à apreciação e declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
2 - Assim, em alegação sumária, recuperamos a fundamentação constante da alegação efectuada no Acórdão 10/2000, de 19 de Outubro, acrescida da relativa ao Acórdão 110/2007 do TC, que concluiu que a norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária, interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição), para as quais nos remetemos.
3 - Em nota final, deve-se atentar na proximidade da decisão que irá ser proferida no Tribunal Constitucional e que poderá (deverá, como se indicia) conduzir à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma (na interpretação fixada por este Supremo Tribunal), inutilizando a revisão que eventualmente venha a ser tomada no sentido da manutenção da jurisprudência fixada.
4 - Não obstante, entendemos dever proceder-se à revisão da jurisprudência fixada e, em substituição desta, fixar-se, tal como outrora foi proposto, o seguinte:
'No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987 a declaração de contumácia não constitui causa de suspensão do procedimento criminal.'» III - O despacho recorrido limita-se praticamente a remeter a sua fundamentação para o Acórdão 110/2007 do Tribunal Constitucional (TC), dele extraindo as consequências pertinentes para o caso dos autos. O fundamento da recusa de aplicação do Assento 10/2000 é, pois, a violação do disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Importa, por isso, recordar aqui o essencial da argumentação do referido acórdão do TC:
«8 - Entende-se que a resposta à pergunta que se formulou é negativa, por razões semelhantes às que levaram este Tribunal a censurar, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, 'interpretações actualistas', posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à prescrição - isto é, por razões estruturalmente paralelas às que (embora para norma diversa da que está agora em causa) foram invocadas nos citados Acórdãos n.os 205/99, 285/99, 122/2000, 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003. Trata-se, neste sentido, de conclusão que decorre desta anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre questão paralela e da exigência de que também ele se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.
Na verdade, no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal previa-se que a declaração de contumácia teria como consequência 'a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido'. A declaração de contumácia e tal consequência assentam no pressuposto da impossibilidade de realização de julgamento 'à revelia', mas não se referiu o legislador a qualquer afectação do decurso da prescrição do procedimento criminal. E a suspensão dos termos ulteriores do processo tem, com aquele fundamento, um sentido, antes de mais, jurídico-processual, pelo que não se pode concordar com a afirmação de que a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido 'só poderá querer ter tido em vista' uma suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. Sob este aspecto também não pode, aliás, retirar-se nada da previsão, no n.º 3 (hoje n.º 1) do artigo 336.º do Código de Processo Penal de 1987, da caducidade da declaração de contumácia.
Da perspectiva do respeito pelo princípio da legalidade, o que importa antes perguntar é se, depois de prevista esta declaração de contumácia na redacção originária do Código de Processo Penal, e antes de alterado o Código Penal de 1982, podia já dizer-se que correspondia ao significado comum atribuível às palavras utilizadas pelo legislador de 1987 no artigo 336.º, n.º 1 ('suspensão dos termos ulteriores do processo'), ou se ultrapassava tal significado entender que aí se compreendia não só a suspensão do processo como a consequência de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Ora, entende-se que não pode deixar de responder-se à pergunta formulada neste último sentido: isto é, que o significado comum e literal da expressão empregue pelo legislador de 1987 era ultrapassado pelo entendimento de que a declaração de contumácia importava a suspensão também da prescrição do procedimento criminal e não apenas dos 'termos ulteriores do processo'. Tal diversidade de sentido literal é, aliás, acompanhada da diferença de consequências da 'suspensão dos termos ulteriores do processo' e da suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Na verdade, e como se disse na declaração de voto aposta ao Assento 10/2000, a 'suspensão dos termos processuais ulteriores' não prejudicava, 'nem a realização de actos urgentes' ([actual] artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou activação dos 'termos ulteriores do processo'. Por outro lado, as expressões 'suspensão do processo' e 'suspensão da prescrição' do procedimento não são sinónimas nem sequer existe entre si qualquer relação de implicação: não existe norma, ou qualquer princípio geral, no sentido de que qualquer suspensão da instância (suspensão do processo) conduz a uma suspensão da prescrição (e, por definição, esta começa mesmo a correr antes do início do procedimento criminal, 'desde o dia em que o facto se consumou' - artigo 118.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção de 1982), e há também casos de suspensão da prescrição que se não ligam a qualquer suspensão do processo. Como se salientou no acórdão que constitui o fundamento para o recurso de fixação de jurisprudência que deu origem ao dito Assento 10/2000, 'se é certo que o instituto da suspensão da prescrição, para além do mais, radica na ideia segundo a qual a produção de determinados eventos, que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou continuar, deve impedir o decurso do prazo da prescrição' (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 711), já parece não poder afirmar-se, peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve originar a suspensão da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de vista teórico, perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do processo não tenham eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao legislador optar por erigir em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer suspensão do processo ou escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do processo que devem relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos no Código Penal de 1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira opção.
Não podia, pois, entender-se que a previsão de 'suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido', como efeito da declaração de contumácia, incluía, como seu sentido comum e literal, a suspensão da prescrição do procedimento criminal, a qual começava a correr antes do processo e podia não ser afectada por uma sua suspensão. Tal interpretação, implicando uma 'interpretação criadora, que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca' (expressão do citado Acórdão 285/99), é, nesta medida, incompatível com a Constituição, pois viola o princípio da legalidade a que está também sujeita a definição das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal.» Do Assento 10/2000 extraem-se as seguintes passagens, que constituem o núcleo da respectiva argumentação:
«Princípio legal que todo o jurista tem de respeitar ao proceder à interpretação de uma norma jurídica é o consagrado no artigo 9.º do Código Civil.
Ao preceituar-se no n.º 1 do artigo 119.º 'para além dos casos especialmente previstos na lei' não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro, venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a consagrar situações que determinem a suspensão da prescrição do procedimento criminal. É como que um dar aqui como reproduzido o estabelecido nas tais normas futuras.
Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido, só poderá querer ter tido vista aquela suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide o previsto no artigo 119.º, n.º 3: desde o momento de declaração de contumácia até àquele em que caduca - n.º 3 do artigo 336.º - a prescrição não corre.
De outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça.
Não nos parece que o elemento histórico, nas suas vertentes, justifique o ponto de vista defendido no acórdão fundamento.
O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982 o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.º 1 do artigo 119.º não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, 'casos especialmente previstos na lei', não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver soluções idênticas.» Ao «assento» encontra-se anexa uma declaração de voto de vencido, subscrita pelo Exmo. Conselheiro Carmona da Mota, mas a que aderiram três outros juízes-conselheiros, de que se retiram, por mais significativas, as seguintes considerações:
«2 - Tal 'suspensão' (dos termos processuais ulteriores) não prejudicava, porém, nem 'a realização de actos urgentes' (artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à activação dos 'termos ulteriores do processo': [...] 3 - O Código Penal de 1982 - publicado na vigência do Código de Processo Penal de 1929 - escusou-se, no âmbito do processo especial de ausentes, a inventariar qualquer factor de suspensão do prazo prescricional do procedimento criminal (artigo 119.º) e indicou como único factor interruptivo desse prazo a 'marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes' [artigo 120.º, n.º 1, alínea d)].
4 - O artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, em matéria de suspensão de prescrição do procedimento criminal, salvaguardou, é certo, 'os casos especialmente previstos na lei' e, especialmente, 'o tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal' (n.º 1).
5 - Mas, ao referir-se às situações em que 'o procedimento criminal não pudesse legalmente continuar por falta de uma autorização legal', não visaria, com certeza (pois que em 1982), a 'suspensão dos ulteriores termos do processo' que o Código de Processo Penal de 1987 só viria a fazer operar (a partir de 1988) relativamente, no novo processo penal, em caso de 'contumácia' do arguido.
6 - De qualquer modo, a 'falta de uma autorização legal' (ou, melhor, de uma autorização legalmente exigida) visaria paradigmaticamente as situações de imunidade penal do Presidente da República, dos deputados e dos membros do Governo [...] 7 - E se era esse o sentido da lei ao aludir ao 'tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal', não creio que o sentido e alcance dessa 'autorização legal' - no pressuposto de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e de que não poderá ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal (artigo 9.º, n.os 2 e 3, do Código Civil) - compreendessem (ou compreendam) os casos de suspensão do processo penal entre a constatação da ausência do arguido e a sua apresentação ou detenção.
8 - E tanto assim não era (nem será), que o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, ao ajustar (com uma tardança de quase oito anos) o Código Penal de 1982 ao Código de Processo Penal de 1987, fez questão de introduzir, como factor de suspensão, a par dos 'casos especialmente previstos na lei' (artigo 120.º, n.º 1) e do 'tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal' [artigo 120.º, n.º 1, alínea a)], 'o tempo em que vigorar a declaração de contumácia', [artigo 120.º, n.º 1, alínea c)].
9 - Aliás, têm fracassado, a nível do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, as sucessivas tentativas jurisprudenciais - antes da reforma de 1995 - de ajustamento substantivo do Código Penal de 1982, por interpretação 'actualista', às novidades adjectivas do Código de Processo Penal de 1987 [...]» IV - Expostas as razões defendidas pelas duas orientações cumpre decidir.
A questão decidenda é, em suma, a de saber se, no domínio de vigência do Código Penal (CP) de 1982 (versão originária do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro) e do Código de Processo Penal de 1987 (versão, igualmente originária, do Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro), a declaração de contumácia constituía ou não causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1, alínea a), na sua versão primitiva.
O artigo 119.º do CP de 1982, nessa versão, dispunha:
«A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade.» Esta estatuição estava em consonância com a estrutura do CPP de 1929. Essa estrutura foi profundamente alterada com o CPP de 1987, designadamente com a abolição do processo de ausentes e a previsão do instituto da contumácia. Contudo, com a publicação do novo CPP, não foram introduzidas quaisquer alterações (adaptações) no regime da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente da sua suspensão, previsto no CP.
Com efeito, só com o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, foi a disciplina da suspensão da prescrição modificada, passando a constar do artigo 120.º do CP, da seguinte forma:
«1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou d) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativa da liberdade.» A partir de então, a declaração de contumácia passou inequivocamente a constituir causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Mas já assim se deveria entender anteriormente? É essa a posição estabelecida no Assento 10/2000, basicamente com o argumento de que deveria ser considerada como um «caso especialmente previsto na lei» (artigo 119.º, n.º 1, na versão originária), determinante, portanto, da suspensão da prescrição do procedimento criminal, a «suspensão dos ulteriores termos do processo», que a declaração de contumácia implicava, nos termos do artigo 336.º, n.º 1 (igualmente na sua versão originária), preceito do seguinte teor:
«A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º Assimila-se, assim, a suspensão do processo à suspensão da prescrição, como se fossem situações homólogas ou se implicassem mutuamente. Mas esse entendimento não é de sufragar, pelas razões que se passam a expor.
Suspensão do processo e suspensão da prescrição são institutos diferentes. A suspensão do processo não implica necessariamente a suspensão da prescrição.
Terá sentido que a suspensão do processo provoque a suspensão da prescrição quando a causa da suspensão determinar a paralisação absoluta dos termos do processo. Mas já não quando, como acontece com a suspensão resultante da declaração de contumácia, não fica inviabilizada a realização de diligências que poderão levar à cessação da situação de contumácia (por exemplo, diligências com vista à localização, notificação ou detenção do arguido).
A previsão da suspensão da prescrição, em tal caso, não resultará da 'natureza das coisas' mas sim de uma opção do legislador. Opção essa que o legislador veio efectivamente a tomar em 1995, com o Decreto-Lei 48/95.
Mas tal não implica que essa fosse a solução decorrente das normas antecedentes.
Pelo contrário, somos levados a concluir, das diferenças assinaladas entre as duas situações, que nos 'casos especialmente previstos na lei' excepcionados no n.º 1 do artigo 119.º do CP não se encontrava a suspensão do processo prevista no artigo 336.º, n.º 1 do CPP.
Aliás, como o poderia estar se a versão originária do artigo 119.º do CP é de 1982 e o instituto da contumácia só foi introduzido no direito português em 1987, com o novo CPP? A solução acolhida no 'assento' insere-se numa linha de 'interpretação actualista', visando corrigir alegados 'erros' ou 'omissões' legislativos, tarefa que não cabe manifestamente ao julgador, por elevadas que sejam as 'pressões' da opinião pública nesse sentido.
A interpretação actualista não será completamente inadmissível em direito penal, mas ela terá de ser afastada sempre que implicar a violação de algum dos princípios estruturais do direito penal, como é o princípio da legalidade, que tem assento na própria CRP - artigo 29.º, n.os 1 e 3.
O regime da prescrição do procedimento criminal tem indiscutivelmente natureza substantiva, pois integra a 'definição dos crimes e das penas'. Por isso, é inaplicável um regime de prescrição do procedimento criminal mais desfavorável para o agente do que o previsto ao tempo da infracção.
A doutrina do 'assento' traduziu-se na retroacção a 1987 de uma opção legislativa, mais desfavorável para o agente, só tomada pelo legislador em 1995.
Consequentemente, ela doutrina viola aquele preceito constitucional.
Nestes termos, entende-se que tal doutrina deverá ser revista, fixando-se entendimento em sentido oposto.» V - Com base no exposto, reexaminando a doutrina do Assento 10/2000, acorda o Pleno das Secções Criminais em proceder à sua modificação, decidindo:
a) Confirmar a decisão recorrida; e b) Fixar a seguinte jurisprudência:
«No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.» Sem custas.
Lisboa, 9 de Abril de 2008. - Eduardo Maia Figueira da Costa (relator) - José Adriano Machado Souto de Moura - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - António José Bernardo Filomeno Rosário Colaço - Jorge Henrique Soares Ramos - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos (com declaração de voto que junto) - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral (com declaração de voto) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - Luís António Noronha Nascimento.
Declaração de voto
Vencido, porquanto mantenho o entendimento que me fez votar favoravelmente o acórdão uniformizador de jurisprudência 10/00, do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2000, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Novembro de 2000, de que «no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal».Como entendi então e mantenho, essa posição não viola o princípio da legalidade que se invoca. As normas dos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição e as decorrentes exigências de certeza não invalidam a conclusão, que se tirou naquele acórdão uniformizador, de que a contumácia era causa de suspensão da prescrição, conclusão tributária de uma interpretação extensiva, que é consentida constitucionalmente nesta matéria e nestes limites, uma vez que não nos situamos no campo da tipicidade, mas sim da prescrição do procedimento, em que se não postulam as mesmas exigências de completa cognoscibilidade por parte do agente.
Como se lembra no voto de vencido do conselheiro Vítor Gomes, aposto ao Acórdão 183/2008 do Tribunal Constitucional, a génese do artigo 119.º do Código Penal na sua versão originária demonstra que foi querida pelo legislador, como causa de suspensão da prescrição, a suspensão do processo imposta por uma disposição especial da lei. Aquele artigo 119.º corresponde no essencial ao artigo 110.º do projecto do Código Penal que dispunha que a «prescrição suspende-se durante o tempo em que: 1.º O procedimento criminal não pode iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, por efeito da devolução de uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem como em todos os casos em que a suspensão do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei [realçado agora]. E tal opção não mereceu nenhuma objecção substantiva no seio da Comissão Revisora (cf. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, parte geral, vol. i, pp. 223-227). Deve dizer-se que esta intenção legislativa de fazer corresponder as causas especiais de suspensão do processo penal a causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal encontra a suficiente correspondência verbal na versão final do artigo 119.º Por outro lado, pensamos que não procede a esforçada distinção entre suspensão do processo pela declaração de contumácia e suspensão do procedimento pois que a afirmação de que a 'suspensão do processo não implica necessariamente a suspensão da prescrição. Terá sentido que a suspensão do processo provoque a suspensão da prescrição quando a causa da suspensão determinar a paralisação absoluta dos termos do processo. Mas já não quando, como acontece com a suspensão resultante da declaração de contumácia, não fica inviabilizada a realização de diligências que poderão levar à cessação da situação de contumácia (por exemplo, diligências com vista à localização, notificação ou detenção do arguido)' [sublinhado agora]. É que as diligências possíveis perante a declaração de contumácia se restringem exactamente à tentativa de pôr fim à situação de contumácia, pelo que não tem significado neste contexto, e a suspensão do processo pela declaração de contumácia impede a prática do acto de julgamento, aproximando-se da suspensão do procedimento, que é exactamente isso: procedimento. E a consagração, em momento posterior desta solução, à luz da mesma posição de fundo só demonstra a razoabilidade e adequação da interpretação feita pelo Acórdão 10/00, assim se revertendo o argumento usado no douto acórdão de que se dissente.
A circunstância de não ter sido a declaração de contumácia prevista, como tal, na versão originária do artigo 119.º, por ser desconhecida ao tempo pelo nosso sistema, não impede que se devesse considerar incluída na remissão aberta para causas legais de suspensão constante do seu n.º 1.
Finalmente, atendendo à génese da presente uniformização de jurisprudência, significativamente ancorada na jurisprudência constitucional, e à prolação do Acórdão 183/2008, de 12 de Março, ainda não publicado, mas que se pronuncia pela declaração com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia, lembrar-se-á na senda das declarações de voto aí apostas que a questão da sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional se exacerba quando se trata da inconstitucionalidade de uma interpretação conforme à Constituição de um conjunto de norma, mas sob a forma de declaração com força obrigatória geral, logo de uma imposição de uma determina interpretação, o que oportunamente foi tido por inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, em relação aos assentos do Supremo Tribunal de Justiça. - Manuel Simas Santos.
Declaração de voto
Vencido nos termos constantes de declaração junta pelo Sr. Juiz-Conselheiro Dr.Simas Santos.
Acresce, ainda, que, em nosso entender, o Supremo Tribunal de Justiça apenas deve proceder ao reexame da jurisprudência fixada quando entender que a mesma está ultrapassada (artigo 446 do Código de Processo Penal). Esta reapreciação tem de se reconduzir, necessariamente, a razões substanciais supervenientes que levam a conformar diversamente a lógica da argumentação que modelou a jurisprudência fixada.
Tal pressuposto, que radica em razões de certeza e segurança jurídica que se inscrevem no núcleo de garantias do Estado de direito, não se verifica no caso vertente. Na verdade, a única alteração produzida, no entretanto, sobre a matéria do Assento 10/2000 consubstancia-se na posição do Tribunal Constitucional, expressa no seu Acórdão 110/2007, que é invocado na presente decisão como fundamento da necessidade de revisão da jurisprudência fixada. Em nosso entender, tal decisão não constitui razão formal ou substancial para este Supremo Tribunal inflectir na orientação seguida.
Sucede, aliás, que a questão para a qual o mesmo Tribunal foi chamado a pronunciar-se naquela decisão (110/2007) era uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que entendia não estar devidamente fundamentada a divergência em relação à jurisprudência fixada nos termos do artigo 445.º, n.º 3, do diploma citado. Era outro, que não a apreciação da constitucionalidade de uma interpretação do artigo 119.º do Código Penal, o objecto daquele recurso. Igualmente é certo que, na sua essência, o juízo de inconstitucionalidade formulado se refere a uma interpretação de uma norma e não a um acto do poder normativo, ou seja, o juízo de valor emitido incide sobre um acto de julgamento e não sobre uma norma jurídica.
Entendo, assim, que era de manter o entendimento constante do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 10/2000. - José Santos Cabral.