Acórdão 340/2005/T. Const. - Processo 263/2005. - Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, foi proferida decisão, em 10 de Fevereiro de 2005, que recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, ao disposto no artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto. Para tanto, escudou-se aquela decisão, em síntese, na seguinte fundamentação:
"Dispõe o artigo 97.º do Código do Notariado que 'os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura', sendo punido, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 360.º do Código Penal, com 'pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias'.
No caso em apreço, os arguidos encontram-se pronunciados pela comissão, cada um deles, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelos n.os 1 e 3 do artigo 360.º do Código Penal, com remissão para o artigo 97.º do Código do Notariado.
Como se depreende da construção normativa exposta, o tipo legal incriminador, o tipo de ilícito, não se encontra no crime de falsas declarações do artigo 360.º do Código Penal, mas sim na norma penal avulsa do artigo 97.º do Código do Notariado. Com efeito, esta é uma norma típica, configurando a previsão dos elementos objectivo e subjectivo de uma conduta que é penalmente sancionável, sendo apenas ao nível da moldura penal em abstracto aplicável que esta norma nos remete para o tipo do artigo 360.º do Código Penal. O artigo 97.º do Código do Notariado não é uma norma remissiva ou secundária, é um tipo legal autónomo e determinado, que não se encontra subordinado aos requisitos típicos do artigo 360.º do Código Penal, que é um tipo legal autónomo.
Assim, a conduta imputada aos arguidos encontra-se prevista e punida no artigo 97.º do Código do Notariado, sendo esta norma que, literalmente, remete para as penas aplicáveis para o crime de falsas declarações.
E não poderia ser de forma diferente a construção jurídica operada pelo legislador, uma vez que, por um lado, o bem jurídico protegido no âmbito de cada uma das normas típicas não é o mesmo, ou seja, o âmbito de protecção e o fim da norma são diversos, e, por outro lado, a conduta típica punível em cada um deles também não é similar nem se compenetra, sendo ambas normas típicas autónomas.
Assim, o bem jurídico protegido pelo crime de falsas declarações do artigo 360.º do Código Penal é 'a realização ou administração da justiça como função do Estado' (ver nota 1), o interesse que a administração da justiça estadual tem no sentido de alcançar a boa administração da justiça, assegurando a veracidade dos depoimentos, relatórios, informações e traduções carreados para um processo, o que é imprescindível para a determinação da factualidade relevante para uma boa decisão por parte do órgão competente.
Já o bem jurídico protegido na norma típica do artigo 97.º do Código do Notariado tem uma natureza diversa. Com efeito, o bem jurídico protegido é em tudo similar ao bem jurídico protegido pelo tipo de crime de falsificação de documentos, do artigo 256.º do Código Penal, porquanto visa proteger o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental (ver nota 2), atentas as duas funções que o documento pode ter, a 'função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana' e a 'função de garantia', 'pois cada autor [de] documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs' (ver nota 3).
[...]
Esta análise comparativa dos bens jurídicos protegidos no âmbito destas duas normas permite retirar, desde já, duas conclusões. Assim, e desde logo, a de que estamos perante dois tipos legais de crimes autónomos, porquanto protegem bens jurídicos diferenciados. Por outro lado, depreende-se que a conduta por que vêm pronunciados os arguidos apenas pode ser subsumível, por ora, ao âmbito de punição do artigo 97.º do Código do Notariado, porquanto tais condutas apenas são susceptíveis de lesar o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.
Os elementos típicos são igualmente diversos. Assim, o tipo legal de crime do n.º 1 do artigo 360.º do Código Penal tem como elementos do tipo: o agente; a prestação de uma declaração falsa perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova; o dolo.
O primeiro dos requisitos apontados traça desde logo uma delimitação ao âmbito de aplicação desta norma. Com efeito, este crime 'pressupõe que o autor da declaração falsa se encontre investido em uma particular e precisa função processual' (ver nota 4), que a norma define como sendo a qualidade de testemunha, perito, técnico e tradutor ou intérprete, sendo esta qualidade determinada no âmbito do direito processual respectivo. Quanto ao elemento da falsidade de declaração, importa desde já delimitar o conceito de declaração. Assim, declaração é 'toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas' (ver nota 5), sendo que a falsidade da declaração só será relevante desde que o declarante se encontre sujeito a um dever processual de verdade e completude.
A doutrina delimita o âmbito do dever de verdade e completude em três factores, a função processual do declarante, o objecto do interrogatório, porquanto fora do objecto da produção de prova inexiste o dever de declarar, e as regras processuais relativas à prestação da declaração, quer seja por incompetência da entidade processual à qual se preste a declaração, porquanto o elemento da competência orgânica faz parte do tipo legal, quer seja por inobservância das formalidades essenciais ao acto no qual a declaração é prestada (ver nota 6).
No que diz respeito ao elemento da falsidade, sem prejuízo de entendimento diverso, entende o Tribunal, como aliás a doutrina maioritária, que se encontra consagrada pelo legislador a teoria objectiva, segundo a qual a falsidade da declaração 'reside na contradição entre o declarado e a realidade', em detrimento da posição da teoria subjectiva, segundo a qual é falsa a declaração quando exista 'contradição entre a declaração e a ciência ou conhecimento do declarante' (ver nota 7).
Finalmente, exige a norma típica o dolo, em qualquer das suas formas, abrangendo quer a consciência da falsidade da declaração, quer a consciência de que a declaração falsa se inclui no âmbito do dever de declarar com verdade, e, bem assim, o conhecimento da competência do tribunal ou funcionário competente para receber a declaração.
Nestes termos, atenta a especial configuração dos elementos típicos do crime previsto no n.º 1 do artigo 360.º do Código Penal, é certo que a conduta objectiva aí punível não é aquela pela qual se encontram pronunciados os arguidos.
De facto, os arguidos não possuem, desde logo, nenhuma das especiais qualidades que esta norma atribui aos agentes deste crime, nem tão-pouco declararam no âmbito de um processo judicial, onde a incriminação faz sentido.
Conclui o Tribunal que, atento o já exposto quanto à natureza do bem jurídico e requisitos típicos fundamentais, não pode subsumir-se uma conduta como aquela por que vêm pronunciados os arguidos ao tipo legal do n.º 1 do artigo 360.º
No entanto, na pronúncia faz-se ainda referência à qualificação do tipo fundamental ora sumariamente analisado, denominada de perjúrio e constante do n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal. Como já se referiu, quer atenta a remissão expressa constante do artigo 97.º do Código do Notariado quer atenta a natureza do bem jurídico protegido no âmbito da norma e dos especiais requisitos típicos, o tipo de crime de falsidade do artigo 360.º do Código Penal não é aplicável à conduta por que vêm indiciados os arguidos, servindo apenas como referente formal quanto à moldura abstracta aplicável no âmbito do tipo legal do artigo 97.º do Código do Notariado.
Sendo assim, e prevendo-se no tipo legal do n.º 3 do artigo 360.º um especial tipo qualificador da conduta, poderia colocar-se a hipótese de as mesmas circunstâncias poderem operar, igualmente, no âmbito da remissão feita pelo artigo 97.º do Código do Notariado. O Tribunal entende, como petição de princípio, que tal circunstância qualificadora é inaplicável, porquanto a norma remissiva refere-se apenas à moldura penal abstracta prevista no artigo 360.º do Código Penal, e não a qualquer elemento típico, porquanto a sua consideração extravasa o âmbito da remissão efectuada, por implicar a consideração de verificação em concreto dos elementos qualificadores - se estes se não verificarem, a moldura penal agravada aí prevista é inaplicável.
A ser assim, estaria a violar-se, designadamente, o princípio da legalidade e o princípio da determinabilidade das normas criminais.
No entanto, e mesmo que assim se não entendesse, este tipo qualificador seria sempre inaplicável em concreto. Com efeito, dispõe a norma do n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal que 'se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias'.
Neste tipo qualificador, existem três requisitos essenciais cuja verificação cumulativa é condição de punibilidade: o juramento; a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe; advertência feita por autoridade com competência.
Ora, e desde logo, para que possa considerar-se a aplicabilidade deste tipo qualificador, seria necessário que o agente tivesse a obrigatoriedade de prestar, para aquele acto em que presta a declaração, um juramento, enquanto 'afirmação solene da verdade de uma declaração' (ver nota 8), a realizar de acordo com as formalidades legalmente impostas.
No âmbito das leis notariais, não se prevê qualquer juramento legal a prestar pelos outorgantes ou declarantes em qualquer acto notarial, máxime uma escritura pública. Aliás, o único caso em que tal acontece no âmbito dos actos notariais é aquele previsto no âmbito da norma contida no n.º 1 do artigo 69.º do Código do Notariado, que dispõe que 'os intérpretes, peritos e leitores devem prestar, perante o notário, o juramento ou o compromisso de honra de bem desempenharem as suas funções', sendo que, nos termos do n.º 2 daquele preceito legal, este juramento será efectuado de acordo com as leis de processo.
Nestes termos, é inaplicável formal e substancialmente ao caso em apreço a norma contida no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal.
Ora, resta então verificar quais os requisitos típicos da norma típica incriminadora prevista no artigo 97.º do Código do Notariado.
Divisam-se os seguintes elementos deste tipo legal de crime:
Especial qualidade do agente - outorgantes;
Advertência legal, que deve constar da escritura;
Prestar ou confirmar declarações falsas;
Dolosamente e em prejuízo de outrem.
Assim definidos os elementos deste tipo legal de crime, restaria então proceder à subsunção dos factos à previsão da norma legal incriminadora do artigo 97.º do Código do Notariado.
No entanto, o Tribunal entende que a norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado padece de inconstitucionalidade orgânica, sendo portanto inaplicável ao caso.
Com efeito, o Código do Notariado foi aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto, dele constando, desde logo, a norma do artigo 97.º, ora em apreço, sendo decretado, de acordo com o preâmbulo do mesmo, ao abrigo da então alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição da República Portuguesa, norma esta actualmente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da lei fundamental, onde se dispõe que 'compete ao Governo, no exercício de funções legislativas [...] fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República'.
Como vimos, a norma do artigo 97.º do Código do Notariado é uma norma típica penal, sendo certo que, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, 'é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo [...] definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal'.
Ora, a norma do artigo 97.º define um crime e a sua pena, se bem que por remissão, sendo certo que o Governo legislou sobre esta matéria invocando uma competência própria, quando tal matéria era da competência relativa da Assembleia da República, pelo que apenas poderia emanar tal norma mediante uma lei de autorização legislativa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo então artigo 201.º, actualmente artigo 198.º da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe o artigo 204.º da lei fundamental que 'nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados', pelo que se impõe ao Tribunal, vinculado à lei fundamental e no âmbito da fiscalização da constitucionalidade, assegurar a garantia preventiva da Constituição, evitando a existência de actos normativos, formal e substancialmente violadores das normas e princípios constitucionais (ver nota 9). Impõe-se assim ao Tribunal a obrigação, oficiosa, de fiscalizar se as normas jurídicas aplicáveis ao casu decidendi são ou não válidas, ou seja, conformes à Constituição ou aos princípios nela consagrados.
Ora, a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por consubstanciar um tipo legal de crime, matéria cujo poder de legislar é da competência relativa da Assembleia de República, e ter sido emanada num acto normativo - decreto-lei - ao abrigo da competência exclusiva do Governo, viola frontalmente o disposto nas actuais alíneas c) do n.º 1 do artigo 165.º e a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição da República Portuguesa, padecendo de inconstitucionalidade orgânica, sendo inválida.
Nestes termos, porquanto emanada por órgão incompetente para legislar sobre esta matéria, padece a norma do artigo 97.º do Código do Notariado de inconstitucionalidade orgânica, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 277.º da lei fundamental, pelo que ao Tribunal mais não resta do que recusar a sua aplicação ao caso concreto, nos termos da norma contida no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa [...]"
2 - É desta decisão que vem interposto pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto, a que a decisão recorrida recusou aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
3 - Já neste Tribunal foi o Ministério Público, ora recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
"1.º A norma incriminatória, constante do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, não se configura como inovatória, já que o seu conteúdo corresponde inteiramente ao teor da que constava do artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de Março de 1967, tipificando o comportamento do outorgante em justificação notarial que, dolosamente e em prejuízo de outrem, tivesse prestado ou confirmado declarações falsas.
2.º E não sendo relevante, para apreciação do referido carácter inovatório, nem a mera alteração do 'artigo de lei' que reproduzia tal norma, nem a circunstância de - no que respeita à determinação da sanção aplicável - se ter passado - após a edição do Decreto-Lei 67/90 - a remeter para as penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, como mera consequência da reformulação sistemática dos tipos de crime, operada no Código Penal de 1982.
3.º Deste modo, radicando a norma incriminatória em preceito legal anterior à Constituição de 1976, está afastada a inconstitucionalidade orgânica, verificada pela decisão recorrida, o que determina a procedência do presente recurso."
4 - Por sua vez, os recorridos vieram apenas dizer que "não tem razão o recorrente Ministério Público nas suas alegações, pelo que deve manter-se a douta sentença ora recorrida".
II - Fundamentação. 5 - O artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto, tem o seguinte teor:
"Artigo 97.º
Advertência
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura."
Depois de proceder a uma comparação entre os elementos do tipo legal de crime de "falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução", previsto no artigo 360.º do Código Penal, e do tipo legal de crime previsto no artigo 97.º do Código do Notariado supra-referido, concluiu a decisão recorrida pela substancial autonomia do segundo e, consequentemente, pela impossibilidade de o mesmo ser editado pelo Governo ao abrigo da então alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição da República Portuguesa [a que corresponde hoje a alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º], ou seja, invocando a sua competência legislativa própria. É que, como então se ponderou, a definição dos crimes e das penas é, atento o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, matéria de competência reservada da Assembleia da República.
Não questionando que a matéria da definição de crimes e penas seja da competência reservada da Assembleia da República, alega, porém, o Ministério Público, recorrente, que o preceito em questão não tem carácter inovatório, uma vez que a sua redacção corresponde integralmente à que constava do artigo 106.º do precedente Código do Notariado, na redacção emergente do Decreto-Lei 67/90, de 1 de Março, que, por sua vez, havia já reproduzido norma praticamente idêntica constante do artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de Março de 1967. Partindo destes pressupostos, conclui aquele magistrado que "no essencial, a norma incriminatória cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida tem a sua origem no direito pré-constitucional, o que, como é incontroverso, afasta liminarmente a verificação do vício de inconstitucionalidade orgânica, face, nomeadamente, ao previsto no artigo 290.º, n.º 2, da Constituição".
Vejamos, pois, se é assim.
6 - O artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de Março de 1967, tinha o seguinte teor:
"Artigo 107.º
Advertência aos outorgantes
Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura."
Com o Decreto-Lei 67/90, de 1 de Março, que procedeu a várias alterações ao Código do Notariado de 1967, o tipo legal de crime em causa passou a constar do artigo 106.º e a ter a seguinte redacção:
"Artigo 106.º
Advertência aos outorgantes
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura."
Esta redacção foi transposta para o artigo 97.º do actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto.
7 - A comparação entre o artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado de 1967 e o actual artigo 97.º do Código do Notariado de 1995 permite constatar as seguintes diferenças: i) há, em primeiro lugar, uma alteração de numeração do artigo; ii) constatam-se, depois, pontuais diferenças de redacção - onde antes se lia "advertência aos outorgantes" passou a ler-se "advertência"; onde se dizia "serão sempre advertidos" passou a dizer-se "são advertidos"; onde se falava em "prejuízo de terceiro", passou a falar-se em "prejuízo de outrem"; onde se escrevia "tiverem prestado ou confirmado", passou a escrever-se "prestarem ou confirmarem"; iii) verifica-se, finalmente, que, enquanto o actual preceito remete para a pena prevista para o crime de "falsas declarações perante oficial público", o anterior remetia para a pena prevista para o crime de "falsidade".
Importa, então, decidir se as notadas alterações ao preceito permitem afirmar o seu carácter inovatório, pois disso depende efectivamente o juízo de constitucionalidade a formular nos presentes autos.
7.1 - Tem, desde logo, razão o Ministério Público quando alega que é irrelevante a circunstância de ter sido alterada a numeração do "artigo de lei" que incorpora a "norma" em causa. Com efeito, mantendo-se, como se mantém, o enquadramento sistemático do preceito no âmbito do processo de justificação notarial, não resulta, por simples efeito dessa renumeração do artigo, qualquer alteração da norma que nele se contém.
7.2 - Por outro lado, também as alterações de redacção a que fizemos referência não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito se contém.
7.3 - Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito - bem como o artigo 106.º que o precedeu - ter passado a remeter para a pena prevista para o crime de "falsas declarações perante oficial público", enquanto o artigo 107.º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena prevista para o crime de "falsidade". Vejamos.
O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967) continha, no título III do livro II, um capítulo VI, "Das falsidades", onde se incriminavam as "declarações falsas" e que incluía as seguintes secções: I, "Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado"; II, "Da falsificação de escritos"; III, "Da falsificação de selos, cunhos e marcas"; IV, "Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo"; V, "Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados"; VI, "Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública".
O Código Penal de 1982 eliminou o capítulo antes designado por "Das falsidades" e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nele se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que - tal como os de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas - são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (capítulo II do título IV) e, por outro, aqueles que são considerados "crimes contra a realização da justiça", e como tal incluídos no título dos "crimes contra o Estado" (capítulo III do título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359.º do Código Penal, ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360.º do mesmo Código, preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito infraconstitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o artigo 97.º do actual Código do Notariado remeteria.
Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que - como nota o Ministério Público na sua alegação - a diferença que nesta parte se constata entre a redacção do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967 e o artigo 97.º do actual Código do Notariado - recorde-se: a substituição da remissão para o crime de "falsidade" pela remissão para o crime de "falsas declarações perante oficial público" - é "meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal", visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982.
8 - Assim sendo, como efectivamente é, não se mostrando a norma contida no artigo 97.º do actual Código do Notariado inovadora nem representando qualquer alteração face ao anterior regime, já que o seu conteúdo corresponde, nos termos acima descritos, ao teor da que constava do artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de Março de 1967, não incorre aquela norma no vício de inconstitucionalidade orgânica. Improcede, deste modo, o juízo de inconstitucionalidade que se formulou na decisão recorrida.
III - Decisão. Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
(nota 1) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999, de p. 460 a p. 462.
(nota 2) Apud Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, reimpr., Coimbra Editora, 1999, p. 65.
(nota 3) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. II, parte especial, Coimbra Editora, 1999, p. 680.
(nota 4) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999, p. 463.
(nota 5) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999, pp. 465 e 466.
(nota 6) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999, pp. 466 e segs.
(nota 7) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999.
(nota 8) Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, parte especial, Coimbra Editora, 1999, p. 481.
(nota 9) Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Garantia da Constituição, 6.ª ed., Almedina, p. 883.
Sem custas, por a elas não haver lugar.
Lisboa, 22 de Junho de 2005. - Gil Galvão (relator) - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Artur Maurício.