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Acórdão 12/2005/T, de 28 de Junho

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Texto do documento

Acórdão 12/2005/T. Const. - Processo 3/2000. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Vítor Manuel Carreto Ribeiro intentou uma acção declarativa de condenação contra o Estado Português, pedindo o pagamento de uma indemnização no valor de 12 500 000$, por danos sofridos com prisão preventiva de 19 meses no âmbito do processo penal em que figurava como arguido, e decretada, em seu entender, sem que se tivessem verificado no caso concreto os respectivos pressupostos de aplicação.

Por sentença do Tribunal Judicial do Círculo de Torres Vedras, proferida em 13 de Outubro de 1998, esta acção foi considerada improcedente e o demandado absolvido do pedido, dizendo-se:

"O direito:

Em sede de 'Direitos. Liberdades e garantias', estabelece a Constituição da República Portuguesa no n.º 1 do artigo 27.º que todos têm direito à liberdade e à segurança.

Nos termos do n.º 2 do normativo constitucional citado, ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória ou de aplicação judicial de medida de segurança.

O n.º 3 consagra taxativamente as excepções ao princípio referido, prevendo a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, incluindo-se na alínea a) a prisão preventiva.

Prevê o n.º 5 da mesma norma constitucional que a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.

Dispõe o n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal:

'Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.'

Prescreve o n.º 2 do normativo em apreço:

'O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade [...]'

Vejamos quais os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Estado, decorrente da prisão preventiva:

1 - Os previstos no n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal. - Exige a lei que a prisão preventiva seja 'manifestamente ilegal'.

Na apreciação deste pressuposto, o conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, no parecer 12/92, conclui que 'É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas [...] será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência. Em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas punida com multa'.

No mesmo sentido, escreve o conselheiro Maia Gonçalves na anotação à norma referida, que a ilegalidade manifesta é aquela que necessariamente se torna evidente numa mera apreciação superficial (Código de Processo Penal Anotado, ed. de 1987).

Em suma: o juízo a partir do qual se conclui pela existência de 'ilegalidade manifesta' é de natureza objectiva, traduzindo-se na constatação (óbvia) de que naquela situação em concreto nunca seria possível a aplicação da prisão preventiva, já que se indicia a prática de um crime (absolutamente) insusceptível de aplicação da medida coactiva em causa.

A situação do autor não se integra na previsão legal do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, já que se considerou indiciado a prática, para além de outros, do crime de associação criminosa, pelo que 'considerando-se existirem fortes indícios dessa prática', sempre a prisão preventiva seria legal.

Questão diversa é a confirmação de existência ou não da indiciação imperativamente exigida pela lei, o que nos leva ao n.º 2 do artigo 225.º

2 - Pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal. - Como ficou referido, exige o n.º 2 do artigo 225.º que o lesado tenha '[...] sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação de liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade [...]'

Escreve o conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, ed. de 1997, 8.ª ed., p. 410):

'Os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no comprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a uma margem de erro. Por isso mesmo, a lei aqui só leva em conta, para fundamentar a responsabilidade do Estado e consequente direito à indemnização, o erro grosseiro, isto é, aquele em que um agente minimamente cuidadoso não incorreria.'

Na anotação ao artigo 225.º do Código de Processo Penal, (ob. cit., p. 411), cita-se o Dr. Castro e Sousa (in Jornadas de Direito Processual Penal, pp. 162-163), que traça a seguinte distinção:

'O n.º 1 do artigo 225.º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do n.º 5 do artigo 27.º da Constituição [...] por sua vez o n.º 2 estabelece que a reparação a arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal, mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia [...]'

No parecer citado (conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 12/92) traça-se a seguinte fronteira entre 'erro' e 'erro grosseiro':

'O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou jurídica envolvente de uma determinada situação. O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de diligência.'

No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 17 de Outubro de 1995 (in Código de Justiça do Supremo Tribunal de Justiça, ano 3, 1995, t. 3, p. 65): 'erro grosseiro não pode deixar de significar erro absurdo, contra manifesta evidência, demonstrativo de que não houve o mínimo de cuidado por parte de quem decidiu'.

Em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, concluiu o meritíssimo juiz de instrução criminal, que estava indiciado entre outros a prática do crime de associação criminosa, à época previsto e punido no artigo 287.º do Código Penal.

Decorre do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 209.º do Código Penal, que, sempre que o crime imputado for o previsto no artigo 287.º do Código Penal '[...] o juiz deve, no despacho sobre medidas de coacção, indicar os motivos que o tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva'.

Escreve o conselheiro Maia Gonçalves em anotação a este normativo (ob. cit., p. 260), que os crimes aqui previstos são grosso modo aqueles que na lei anterior - Decreto-Lei 477/82, de 22 de Dezembro - considerava crimes incaucionáveis, concluindo que '[...] são crimes de muita gravidade, aferida pelos valores que violam e pelas penas que a lei comina, e que, em regra, são motivo de grande alarme social'.

Perante este cenário, o meritíssimo juiz de instrução criminal aferiu a situação como justificativa da aplicação ao ora autor da medida de prisão preventiva.

O desenvolvimento da investigação e a evolução do processo não lhe deram razão.

É fácil hoje, com a objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar que a decisão assumida pelo meritíssimo juiz de instrução criminal não foi confirmada sequer pela investigação.

Mas, para avaliar se se verificou o 'erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto', de que fala o n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, temos que nos colocar na posição do juiz de Instrução, sem a 'omnisciência' que o decurso do tempo permite.

Ora, perante aquele quadro concreto, o meritíssimo juiz de Instrução fez uma avaliação da situação, que, apesar de não ter sido confirmada, não se poderá considerar 'erro grosseiro'.

Repete-se aqui a definição já traçada, de erro grosseiro como 'erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de diligência'.

Do juiz, como 'último reduto' da liberdade do cidadão, espera-se que respeite essa liberdade, mas também se espera que proteja a sociedade e os seus valores essenciais de estabilidade e segurança, sacrificando a liberdade do cidadão sobre quem recaiam sérios indícios da prática de crime grave, nas situações em que tal sacrifício é absolutamente indispensável para garantir a realização da justiça penal, sempre que se verifiquem os pressupostos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal: perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito, perigo de perturbação da ordem pública ou da continuação da actividade criminosa.

A avaliação que o juiz faz no momento em que lhe é apresentado um arguido para interrogatório alicerça-se em meros indícios, que o futuro confirmará ou não.

Do facto de a investigação não confirmar os indícios iniciais, não se retira automática e necessariamente a existência de 'erro grosseiro'.

Decidindo em função de indícios, muitas vezes numa fase embrionária da investigação, na encruzilhada entre o direito à liberdade do arguido como regra e as necessidades cautelares do processo penal, que excepcionalmente se sobrepõem e justificam a prisão preventiva, ao juiz impõe-se que assuma uma decisão sobre a medida coactiva, num momento em que apenas pode estabelecer um juízo de probabilidade, quer sobre a forma como ocorreram os factos, quer sobre o êxito da investigação.

O juízo de probabilidade envolve sempre o risco da não confirmação, em duas vertentes possíveis: quer porque se conclua que o arguido não praticou os factos, quer porque a investigação criminal não teve êxito, não logrando demonstrar a confirmação dos indícios susceptíveis de justificar a acusação.

Recorde-se que o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que reapreciou a medida coactiva e, em acórdão (certificado a fl. 673 dos autos), concluiu pela verificação dos seus requisitos, nos termos que se transcrevem:

'[...] o perigo de fuga está fundamentado, no despacho de fls. 14/17, no facto de ter conseguido proporcionar a saída do território nacional a outros co-arguidos [...].

Ora, é bem certo que, se o recorrente proporcionou fuga a outrem para o subtrair à acção da justiça, existe concretamente o perigo de ele próprio, uma vez solto, vir a usar do mesmo meio, com o mesmo objectivo.

Quanto ao perigo das restantes perturbações, que o recorrente qualifica de fantasias, ele é também concreto, no que respeita ao processo, porque já mostrou dispor de condições para dificultar como dificultou a aquisição de provas (169 a 176 da acusação). No que à ordem e tranquilidade públicas concerne, por ser evidente, face à gravidade e natureza das infracções praticadas e à extensão da actividade delituosa da organização em que se integrava, que a sua soltura geraria preocupação e insegurança sociais.

Tudo, enfim, claramente, no sentido da confirmação, e não da alteração, dos pressupostos de facto do despacho que ordenou a prisão preventiva - alteração que, aliás, o recorrente não invoca - e, consequentemente, da sua manutenção'.

3 - A lesão de um direito, cuja reparação a lei não prevê. - Sempre se poderá colocar esta questão: decorre dos direitos de cidadania, previstos constitucionalmente, que as pessoas são inocentes até ao trânsito em julgado da sua condenação, nunca se presumindo a culpa, pelo que, fica sem reparação a lesão de um direito fundamental, quando ocorre a absolvição no âmbito de um processo em que foi aplicada a prisão preventiva.

A questão que objectivamente se suscita, resume-se no entanto a saber se, da situação vivida pela pessoa a quem foi aplicada a prisão preventiva - no caso sub judice pelo ilustre advogado autor, decorre para o Estado qualquer obrigação de indemnização.

Quanto aos danos alegados e provados, dúvidas não restam sobre a sua existência, já que a mera privação da liberdade se traduz num dano, do qual emergem inevitavelmente outros, de natureza material e moral.

Não rege no entanto nesta matéria o princípio geral previsto nos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil, nem o Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro 1967 (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 124, p. 77), mas sim uma norma mais restritiva, prevista no artigo 225.º do Código de Processo Penal, que, conforme já vimos, exige imperativamente dois requisitos (ilegalidade manifesta e erro grosseiro), que não estão presentes no caso em apreço.

Tendo sido absolvido - com decisão transitada em julgado -, é inquestionável a inocência do autor, que não ocorre apenas após o acórdão do Supremo Tribunal, mas que se mantém desde o início de todo o processo. Não basta no entanto essa inocência, já que nos termos da lei à qual os tribunais devem obediência, só recairia sobre o Estado a obrigação de indemnizar o autor se se verificassem os requisitos imperativos enunciados.

Conforme já concluímos, tais requisitos não se verificam, pelo que, apesar da inocência do autor - decorrente do facto de não se terem provado em sede de julgamento os factos indiciados -, e dos danos sofridos com a prisão preventiva, não impende sobre o réu Estado qualquer obrigação de indemnização.

4 - A função de advogado e a medida coactiva de prisão preventiva. - No que concerne aos 'indícios' que estiveram na base da medida coactiva imposta ao ilustre advogado autor, permitimo-nos a seguinte reflexão:

É ao seu cliente que o advogado deve toda a lealdade e, no processo penal, sobre ele não recai qualquer dever jurídico, ou outro, de contribuir para a descoberta da verdade, quando a mesma possa implicar a condenação de quem defende.

O advogado funciona no nosso sistema jurídico-penal como um garante fundamental dos direitos de defesa do arguido, um aliado e confidente, numa relação de confiança garantida pelo sigilo que a lei protege.

No entanto, na relação entre o advogado e o cliente, existe algures uma fronteira, marcada pela objectividade profissional, a partir da qual se definem os contornos de dois caminhos que não se confundem: o percurso eventualmente desviante do cliente e o acompanhamento solidário, mas profissional do advogado, a quem o conhecimento da ilicitude dessa conduta não torna de forma alguma cúmplice.

Ocorrem no entanto, na investigação criminal, situações em que, pelo menos na aparência se confundem os percursos e as condutas, legitimando-se então uma 'leitura indiciária' por parte de quem tem competência investigatória, susceptível de comprometer o advogado, já que não surge clara a fronteira definida.

Foi, em nossa opinião e salvo o devido respeito, o que ocorreu no caso sub judice, conclusão que se retira dos factos vertidos no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que atrás se transcreveram.

Da relação entre o ilustre advogado autor e o arguido 'Zezinho Chalaça' (de quem o autor não tinha procuração no processo em apreço), chegavam às autoridades judiciárias ecos que vieram a ser interpretados como indícios de envolvimento do autor na actividade criminosa do arguido Chalaça e dos restantes arguidos, tendo sido tais indícios interpretados como susceptíveis de enquadramento no tipo legal de crime de associação criminosa (veja-se a esse propósito o facto de ter ficado provado que o ilustre advogado autor viabilizou a fuga do arguido Chalaça, prometeu falar com pessoas que alegadamente conhecia e que permitiriam a libertação do arguido Vasco, e que "o arguido Dr. Carreto Ribeiro, em contrapartida da libertação do Vasco, tencionava receber 1000 contos, que este pagaria, e o 'Zezinho', caso aquele recebesse essa quantia, iria, por isso, ganhar cerca de 200 contos em dinheiro" - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça na parte transcrita).

Tais indícios fundamentaram a aplicação da medida coactiva de prisão preventiva aplicada ao ilustre advogado autor, bem como a acusação que o Ministério Público veio a deduzir, não tendo no entanto sobrevivido em sede de julgamento, já que não se provaram factos susceptíveis de configurarem a prática de qualquer ilícito criminal por parte do ilustre advogado, que veio a ser integralmente absolvido.

É sempre 'chocante' a aplicação da prisão preventiva a uma pessoa que exerce a profissão de advogado, à qual são inerentes um estatuto e dignidade decorrentes da própria lei processual penal. No entanto, tal medida coactiva - desde que verificados os seus pressupostos -, é aplicável à generalidade dos cidadãos.

Pensamos, sempre ressalvando o devido respeito, que talvez o ilustre advogado do autor se tenha deixado arrastar para uma situação que, pelo menos aparentemente, era susceptível de ser interpretada como indiciadora de um envolvimento, que, afinal, não se veio a confirmar, contribuindo assim para um desfecho, do que resultou uma situação de grande sofrimento.

Quanto à decisão de aplicação de uma medida coactiva, há sempre inevitavelmente, uma margem de subjectividade. Do facto de outros juízes poderem avaliar a mesma situação de forma diferente, não decorre necessariamente a existência de 'ilegalidade manifesta' ou de 'erro grosseiro', sendo certo que o Tribunal da Relação de Lisboa oportunamente confirmou na íntegra o despacho que decretou a prisão preventiva.

Em conclusão:

Foi imposta ao arguido - ora autor -, uma situação de sofrimento em que inevitavelmente se traduz a privação da liberdade, no entanto, esta medida coactiva não derivou de qualquer 'erro grosseiro', mas sim de uma avaliação indiciária que não se confirmou, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 225.º do Código de Processo Penal."

2 - Inconformado, o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, por um lado, a nulidade da sentença da 1.ª Instância com base no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:

"[...]

Para melhor fundamentar a causa de pedir nesta acção contra o Estado Português (n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal) o recorrente teve o cuidado de invocar que tinha sido vítima de um 'erro grosseiríssimo, que consistiu na deficiente e negligente compreensão, policial e judiciária, da conduta que tinha o direito (talvez o dever) de adoptar como advogado' [...] Todavia, o que se observa é que a douta sentença recorrida é também omissa quanto a essa questão capital [...] A douta sentença recorrida incorreu na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil."

Por outro lado, o recorrente defendeu a inconstitucionalidade do artigo 225.º do Código de Processo Penal, dizendo a esse respeito:

"[...]

7 - Há outro aspecto, de não menos importância, e é que na douta sentença recorrida se fez a aplicação de uma norma inconstitucional, como é o disposto no n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal.

8 - O erro grosseiro e ilegalidade manifesta da prisão (previsão do artigo 225.º do Código de Processo Penal) viola os princípios gerais do Direito Internacional, nomeadamente o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que exige, num sentido restritivo, que a indemnização seja apenas atribuída em função daqueles dois requisitos (erro grosseiro e ilegalidade manifesta [...]).

Assim, e desde o momento em que o juiz interroga o arguido e o prende com base em certas normas que se presumem violadas pela imputação ilícita atribuída ao arguido, impossibilidade material e formal do erro grosseiro.

E desde o momento em que o juiz legaliza a prisão, há também impossibilidade objectiva e concreta de ilegalidade da prisão, o que equivale a dizer que os requisitos nunca se verificam, ou nunca se podem verificar e contendem directamente com os princípios gerais da responsabilidade civil.

Sendo certo que o artigo 225.º do Código de Processo Penal, por ser norma restritiva relativamente ao estatuído nos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil, deve ser interpretado num sentido amplo e de acordo com o tecto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - artigo 5.º -, e ainda de acordo com o disposto nos artigos 5.º e 9.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Ora, o artigo 225.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, porquanto restringe leis gerais e convenções internacionais; na verdade, o artigo 225.º do Código de Processo Penal ofende os princípios gerais contidos nos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil, ao limitar os danos a uma pseudo ilegalidade e a um erro grosseiro, afastando ostensivamente a responsabilidade objectiva (e, ou, pelo risco).

A douta decisão sob recurso, ao interpretar o artigo 225.º do Código de Processo Penal como afastando os princípios gerais que regem o Código Civil no âmbito da responsabilidade civil aplicou norma que tem de ser considerada inconstitucional; na verdade, o artigo 225.º ofende não só o estatuído nos artigos 483.º e seguintes e 562.º e seguintes do Código Civil como o disposto no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ainda o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República, porquanto:

a) Viola-se o princípio de presunção de inocência;

b) Impede que qualquer cidadão injustiçado a quem foi aplicada a medida de coacção mais gravosa possa vir a ser indemnizado, pois desde que o juiz legaliza a prisão não existe erro grosseiro ou ilegalidade (o juiz aplica a lei, logo há legalidade);

c) A lei especial (Código de Processo Penal) não pode afastar princípios gerais e convenções internacionais;

d) Todo o indivíduo vítima de prisão ou de detenção ilegal terá direito a compensação - artigo 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [...]

O artigo 225.º do Código de Processo Penal é ofensivo da dignidade e liberdade das pessoas, na medida em que dá ao Estado uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem serem ressarcidas nos termos de convenções internacionais que, nos termos do artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa constituem direito interno e às quais Portugal deve obediência [...]"

O Ministério Público, por sua vez, defendeu a inexistência de omissão de pronúncia na sentença recorrida e de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, concluindo nos seguintes termos:

"1 - Não se verifica ilegalidade manifesta no despacho que ordenou a prisão preventiva.

2 - Não há, nesse mesmo despacho, erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, de que depende essa mesma prisão preventiva.

3 - Não se verificam, em consequência, os pressupostos de que dependeria a atribuição de indemnização ao recorrente.

4 - O disposto no artigo 225.º do Código de Processo Penal não viola a norma constitucional do artigo 28.º, n.º 2, já que esta diz respeito ao momento em que é aplicada a prisão preventiva.

[...]

8 - Os pressupostos de que, nos termos do artigo 225.º do Código de Processo Penal, depende o arbitramento de uma indemnização por privação ilegal ou injustificada da liberdade, não constituem restrições ao comando constitucional inserto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

9 - São ao invés a concretização dos interesses e valores protegidos pela mesma norma constitucional, em ordem a uma correcta ponderação e a um justo equilíbrio dos contra valores que existem na problemática da responsabilidade dos tribunais por decisões contra lei.

10 - Do mesmo modo, não são redutores dos princípios gerais da responsabilidade civil, constituindo, antes, os elementos caracterizadores, o substrato da ilicitude característica da responsabilidade civil.

11 - Assim, não padece, o artigo 225.º do Código de Processo Penal, de qualquer inconstitucionalidade."

Por Acórdão de 23 de Março de 1999, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida, dizendo, designadamente, o seguinte:

"São duas as questões que o recorrente sintetiza nas conclusões das suas alegações.

Na primeira, invoca a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, com o fundamento na falta de pronúncia sobre o erro grosseiro do Estado que consistia em confundir o estatuto profissional de um advogado do crime.

Na segunda, alega que a sentença recorrida aplicou uma disposição legal inconstitucional - o artigo 225.º do Código de Processo Penal.

[...]

Quanto à primeira questão, começa o recorrente por alegar que teve o cuidado de invocar que havia sido vítima de um 'erro grosseiríssimo, que consistia na deficiente e negligente compreensão, policial e judiciária, da conduta que tinha o direito (talvez o dever) de adoptar como advogado'.

[...]

A sentença recorrida faz uma extensa e douta referência ao erro grosseiro a que alude o n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal como pressuposto do direito à indemnização reclamada pelo autor. A esse propósito cita diversa doutrina e jurisprudência sobre o assunto, nomeadamente sobre o que deve entender-se por erro grosseiro. Conclui que, no caso concreto, esse erro grosseiro não se verificou. E acrescenta que, embora seja fácil agora, com a objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar que a decisão do meritíssimo juiz de instrução criminal não foi confirmada pela investigação, desta não confirmação não se pode retirar automática e necessariamente a existência de erro grosseiro.

É, portanto, por demais evidente que a sentença se pronunciou, e de forma exuberante, sobre a questão do erro grosseiro.

[...]

Na segunda questão o apelante invoca que a sentença aplicou uma disposição legal inconstitucional, como é o artigo 225.º do Código de Processo Penal, porquanto este preceito viola o princípio geral consagrado no n.º 2 do artigo 28.º da Constituição da República e ainda os artigos 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

[...]

O artigo 225.º do Código de Processo Penal prevê as indemnizações para os casos em que a privação da liberdade - que não é inconstitucional nos casos excepcionais previstos na lei em conformidade com a Constituição - tiver sido manifestamente ilegal ou venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro.

Sendo a prisão preventiva consentida, embora a título excepcional, pela Constituição, a privação da liberdade só pode dar direito a indemnização ao que a sofreu, não apenas por a ter sofrido, mas porque a mesma ocorreu em determinadas circunstâncias. Nem todos os casos de prisão preventiva são, portanto, susceptíveis de dar origem a tal direito. Não é aceitável conceber-se uma situação em que se atribua sempre esse direito a indemnização a todas as pessoas que estiverem legalmente detidas, pelo facto de terem sido absolvidas das infracções indiciadas, apenas por falência da prova produzida em julgamento.

Pelas razões apontadas, o artigo 225.º do Código de Processo Penal não é, a nosso ver, inconstitucional.

[...]"

3 - Desta decisão foi interposto, em 29 de Março de 1999, recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo o recorrente a sua posição em relação às duas questões nucleares anteriormente suscitadas no recurso para a Relação: por um lado, o facto de os pressupostos no artigo 225.º do Código de Processo Penal, de cujo preenchimento depende a atribuição de uma indemnização nos termos pretendidos, restringirem de uma forma inadmissível princípios de direito internacional, nomeadamente o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e princípios gerais da responsabilidade civil; por outro lado, a defesa da tese segundo a interpretação feita pelo acórdão recorrido é inconstitucional, "ao limitar a obrigação de indemnizar a uma condição - erro grosseiro - é ofensivo [o artigo controverso] da dignidade e liberdade das pessoas na medida em que dá ao Estado uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem serem ressarcidas nos termos de Convenções Internacionais que, nos termos do artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa constituem direito interno e às quais Portugal deve obediência [...]"

Por acórdão de 11 de Novembro de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento à revista, reafirmando o entendimento das decisões anteriores no que diz respeito à conformidade com a lei fundamental da norma vertida no artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Pode ler-se nesse aresto do Supremo Tribunal de Justiça:

"O artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa afirma que a lei só pode ser restringida nos casos previstos na Constituição devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos.

Ora bem.

É incontroverso o interesse público que a investigação criminal prossegue e a fundamentalidade da sua função. Por outro lado, como sustenta Maia Gonçalves no seu comentário ao artigo 225.º do Código de Processo Penal (in Código de Processo Penal Anotado) 'os órgãos de polícia criminal por mais zelosos que procurem ser [...] estão sujeitos a uma margem de erro. Por isso, a lei só leva em conta para fundamentar a responsabilidade do Estado [...] o erro grosseiro.'

Só que, se isto é assim, então porque se trata de um preceito garantido por lei fundamentadora (Lei 59/98, de 25 de Agosto) com limites claramente permitidos (não se vislumbra qualquer exagero ou negação de responsabilidade) pela Constituição (artigo 27.º, n.º 5) terá de se ilacionar: são válidas as restrições dos direitos contempladas no artigo 225.º do Código de Processo Penal, especificadamente os referentes aos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 9.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 7.º do Código Civil, e 483.º e 562.º, igualmente ambos do mesmo Código, além do direito à presunção de inocência (cf. Gomes Canotilho in Direito Constitucional, 1991, pp. 614 e segs.).

[...]

A causa de pedir do recorrente assenta no facto de ter sido detido e preso preventivamente na decorrência de um inquérito e processo criminal. Não alinhou, porém, o recorrente - nem tais factos foram sequer apurados circunstâncias que, sendo particularmente anómalas, tivessem ocorrido durante a sua detenção ou prisão preventiva (e lhe causassem uma situação muito mais gravosa do que a suportada por qualquer detido em geral).

Que dizer?

Desde logo, que é de todo inaplicável à problemática em análise o conjunto de regras proclamadas mencionadas no proclamado artigo 22.º, dado o tema caber por inteiro na previsão do artigo 225.º do Código de Processo Penal.

Depois, que inexistindo qualquer inconstitucionalidade deste último normativo e não se tendo verificado - os factos firmados são disso evidência - o cometimento de qualquer erro grosseiro a conclusão só pode ser a que se segue: pese embora o sucedido este Tribunal não pode dar razão ao recorrente."

4 - O recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade dessa decisão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo "em vista apreciar as diversas inconstitucionalidades suscitadas na motivação de recurso para este alto tribunal, nomeadamente":

"A) O erro grosseiro e ilegalidade manifesta da prisão - artigo 225.º do Código de Processo Penal - viola o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 22.º da Lei Fundamental, na medida em que exige, num sentido restrito, que a indemnização seja apenas atribuída em função daqueles dois requisitos e entendido no sentido de que desde o momento em que o juiz interroga o arguido, conduz à impossibilidade material e formal de haver erro grosseiro e, logicamente, à compensação de danos por prisão abusiva e injustificada.

B) O artigo 225.º do Código de Processo Penal por ser norma restritiva relativamente ao estatuído nos artigos 483.º e 562.º do Código Civil, deve ser interpretado num sentido amplo e de acordo com o texto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda de acordo com o disposto nos artigos 5.º e 9.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, pelo que, na interpretação expendida no acórdão sob recurso, há manifesta violação do artigo 28.º, n.º 2, da Lei Fundamental, devendo aquele normativo ser considerado inconstitucional.

C) No caso vertente, a prisão infligida atentou contra o princípio de presunção de inocência e como medida 'maxime' gravosa poderia e deveria ter sido substituída por medida mais favorável ao recorrente em obediência ao disposto no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia e no artigo 28.º, n.º 2, da Lei Fundamental, disposições estas violadas pela decisão sob recurso, sendo certo que a Lei Especial (Código de Processo Penal) não pode nem deve afastar princípios gerais da responsabilidade civil e convenções internacionais."

5 - O recorrente concluiu as suas alegações no Tribunal Constitucional do seguinte modo:

"a) O artigo 255.º do Código de Processo Penal, ao limitar a obrigação de indemnização a uma condição - erro grosseiro - é ofensivo da dignidade e liberdade das pessoas, na medida em que dá ao Estado uma amplitude na questão de manter presas as pessoas sem serem ressarcidas nos termos de convenções internacionais que, nos termos do artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa constituem Direito interno e às quais Portugal deve obediência [...]

b) Pelo que, face aos danos verificados e atenta a danosidade verificada no caso sub judice, e verificada a obrigação de indemnização, deve ser proferida a condenação do réu Estado, considerando-se inconstitucional o artigo 225.º do Código de Processo Penal, dada a sua desconformidade com os preceitos constitucionais e de direito internacional invocados no precedente n.º 11 [querendo com certeza referir-se o n.º 9, onde se invoca o artigo 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição]."

O Ministério Público concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:

"1.º Não se verificam os pressupostos do recurso de fiscalização concreta interposto relativamente às questões enunciadas sob as alíneas a) e c) do respectivo requerimento de interposição, já que, no primeiro caso, a norma constante do artigo 225.º do Código de Processo Penal não foi aplicada, no acórdão impugnado, com a interpretação, alegadamente inconstitucional, que o recorrente lhe atribui; e, no segundo caso, não se mostra sequer delineada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso interposto.

2.º Estabelecendo o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa que a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer apontando, pois, claramente para a estatuição de um regime especial para tal responsabilidade do Estado por facto emergente do exercício da função jurisdicional - é manifestamente improcedente a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente na alínea b) do seu requerimento de interposição de recurso.

3.º Na verdade, tal remissão para os termos que a lei estabelecer revela-se claramente incompatível com a plena e automática aplicação, nesta sede, do regime geral, há muito estabelecido na lei civil acerca dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.

4.º Aliás, tendo o recorrente fundado a sua pretensão indemnizatória exclusivamente na imputação dos danos sofridos a erro grosseiríssimo do juiz na valoração dos pressupostos fácticos da prisão preventiva que lhe foi infligida - sem curar de, a nível subsidiário, alegar outros factos em que pudesse assentar a imputação ao Estado dos referidos danos - é manifesto que - caso tal erro grosseiríssimo não fosse considerado provado pelas instâncias - a acção sempre teria de improceder, por não competir ao Tribunal averiguar oficiosamente da existência de matéria não alegada, para nela fundar, em termos alternativos, o reconhecimento da pretensão do autor.

5.º Termos em que não deverá conhecer-se das questões enunciadas sob as alíneas a) e c) do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, julgando-se o mesmo improcedente quanto à matéria contida na alínea b) do mesmo requerimento."

Notificado para se pronunciar sobre as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, o recorrente veio dizer que discorda delas, considerando-as improcedentes e mantendo tudo quanto fez constar da sua alegação.

Cumpre apreciar e decidir, começando pelas questões prévias suscitadas.

II - Fundamentos:

A) Questões prévias. - 6 - Importa começar por tratar das questões prévias relativas à delimitação do objecto do presente recurso, suscitadas pelo Ministério Público. Segundo este, duas das questões enunciadas pelo recorrente não poderiam ser objecto de conhecimento por este Tribunal, por a norma do artigo 225.º do Código de Processo Penal não ter sido aplicada, no acórdão impugnado, com a interpretação que o recorrente lhe atribui, e por no segundo caso não vir delineada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.

Começando por este último ponto, reporta-se ele à alegação do recorrente de que "a prisão infligida atentou contra o princípio de presunção de inocência e como medida 'maxime' gravosa poderia e deveria ter sido substituída por medida mais favorável ao recorrente" [alínea c) do requerimento de recurso e n.º 7 das alegações - itálico aditado]. Na verdade, tal alegação reporta-se, não a qualquer norma ou dimensão normativa que o recorrente impugne como inconstitucional, mas antes a uma determinada actuação judicial, de imposição da medida de coacção de prisão preventiva e sua manutenção.

Tal acusação de ilegalidade da prisão preventiva não é, aliás, relevante para a questão da conformidade constitucional do artigo 225.º do Código de Processo Penal, quer do seu n.º 1, quer do seu n.º 2 (que, aliás, se reporta à hipótese de a prisão não ser ilegal). A questão da legalidade da prisão preventiva não poderia estar em causa mesmo na apreciação, em recurso de constitucionalidade, da conformidade constitucional desse artigo 225.º do Código de Processo Penal, pois para esta apreciação a conclusão sobre a legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva seria um dado, apurado pelas instâncias para efeito do preenchimento (ou não) da hipótese do seu n.º 1.

Ora, como se sabe, e resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal Constitucional (artigos 280.º e 70.º, respectivamente, para a fiscalização concreta), no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas, sendo tal de há muito repetido na jurisprudência deste Tribunal (cf., por ex., o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Maio de 1996) e na doutrina (v., por ex., J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 821).

Há, assim, que excluir do objecto do presente recurso a questão indicada pelo recorrente na alínea c) do requerimento de recurso, relativa à alegada violação da presunção de inocência pelo decretamento da sua prisão preventiva e à violação do artigo 28.º, n.º 2, da Constituição (para além do artigo 5.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) por a prisão não ter sido substituída por medida mais favorável ao recorrente.

7 - O recorrente impugna no seu requerimento de recurso a norma do artigo 225.º do Código de Processo Penal "na medida em que exige, num sentido restrito, que a indemnização seja apenas atribuída em função daqueles dois requisitos [ilegalidade manifesta e erro grosseiro] e entendido no sentido de que desde o momento em que o juiz interroga o arguido, conduz à impossibilidade material e formal de haver erro grosseiro e, logicamente, à compensação de danos por prisão abusiva e injustificada" (itálico aditado).

Consultando a decisão recorrida, verifica-se que ela se baseou na circunstância de não se terem verificado, nem factos anómalos, que "tivessem ocorrido durante a sua detenção ou prisão preventiva (e lhe causassem uma situação muito mais gravosa do que a suportada por qualquer detido em geral)", nem qualquer erro grosseiro, dizendo-se que "os factos firmados são disso evidência". E também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e a sentença da 1.ª Instância, no que se refere ao erro grosseiro, se basearam, não em qualquer entendimento segundo o qual "desde o momento em que o juiz interroga o arguido, conduz à impossibilidade material e formal de haver erro grosseiro", mas antes numa análise dos indícios que fundamentaram a aplicação daquela medida de coacção, tal como podia ser efectuada pelo tribunal que a aplicou, em decisão confirmada, em via de recurso, pelo Tribunal da Relação. Acrescentando que seria "fácil agora, com a objectividade da distância e do tempo decorrido, constatar que a decisão do meritíssimo juiz de instrução criminal não foi confirmada pela investigação", concluiu-se, porém, que "desta não confirmação não se pode retirar automática e necessariamente a existência de erro grosseiro", e que este se não verificou no caso concreto.

A decisão recorrida não se baseou, pois, na dimensão normativa impugnada pelo recorrente, na alínea a) do seu requerimento de recurso, como ratio decidendi, pelo que se não verificam os requisitos para o Tribunal Constitucional apreciar, no presente recurso, a constitucionalidade dessa norma.

8 - Resta, pois, a norma indicada na alínea b) do requerimento de recurso que se reporta a uma interpretação do artigo 225.º do Código de Processo Penal que se qualifica como "restritiva relativamente ao estatuído nos artigos 483.º e 562.º do Código Civil", dizendo o recorrente que, por esse facto, "a interpretação expendida no acórdão sob recurso" é inconstitucional. Dispunha esse artigo 225.º, na sua redacção originária:

"Artigo 225.º

Modalidades

1 - Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.

2 - O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro."

Este preceito foi alterado pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, passando o seu n.º 2 a exigir apenas que a prisão preventiva, não ilegal, "venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia", e já não que a privação da liberdade tenha causado quaisquer "prejuízos anómalos e de particular gravidade". No presente caso, é, porém, a redacção anterior aquele diploma de 1998 a que está em causa, pois foi ela que foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como resulta da referência à falta de prova de "circunstâncias que, sendo particu larmente anómalas, tivessem ocorrido durante a sua detenção ou prisão preventiva (e lhe causassem uma situação muito mais gravosa do que a suportada por qualquer detido em geral)".

Por outro lado, e como se sabe, o artigo 225.º do Código de Processo Penal reporta-se, nos seus n.os 1 e 2, a hipóteses distintas: enquanto no primeiro está em causa a prisão preventiva em violação da lei, o n.º 2 abrange o caso de prisão preventiva que "não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada". Como se disse no Acórdão 116/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52.º vol., p. 551), resulta "logo da leitura do citado artigo 225.º que nele se prevêem diversos fundamentos para a obrigação de indemnização - desde logo, nos seus dois números - e que estes est[ão] submetidos a requisitos susceptíveis de mais do que uma interpretação assim, por exemplo, a exigência de anormalidade e particular gravidade dos prejuízos ([...] que foi revogada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto), e o entendimento do que seja uma ilegalidade manifesta, pod[e]m suscitar divergências de interpretação.

Ora, não se pode excluir - e é mesmo o mais certo - que este artigo 225.º do Código de Processo Penal de 1987 devesse merecer, no confronto com a Lei Fundamental, apreciações diversas, consoante estivesse em causa um ou outro segmento normativo (um ou outro requisito), previsto num ou noutro dos seus números, e entendido segundo uma ou outra interpretação."

Importa atentar, assim, para delimitar o objecto do presente recurso, em que ele apenas pode consistir na apreciação da constitucionalidade da norma ou segmento normativo que tenha sido aplicado pelo tribunal a quo e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo e que tenha sido aplicada pelo tribunal recorrido.

Ora, como o recorrente afirmou no recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a acção contra o Estado Português foi fundamentada no n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, invocando o recorrente "que tinha sido vítima de um 'erro grosseiríssimo'". E, perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade desta norma - o artigo 225.º, n.º 2 - "ao limitar a obrigação de indemnizar a uma condição - erro grosseiro".

Assim, no presente recurso não pode estar em causa o n.º 1 desse artigo 225.º, ou toda esta norma, sendo certo, aliás, que a questão da constitucionalidade relativa à possibilidade de previsão de um regime especial de responsabilidade civil em relação às normas do Código Civil indicadas se afigura, como bem salientou o Ministério Público, manifestamente improcedente, considerando não só que estão em causa actos de direito público (pelo que, quando muito, se poderia justificar um paralelo com o regime do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967) como também que a própria Constituição da República não deixou de prever, em norma específica, o dever do Estado de indemnizar por privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Trata-se antes, e apenas, do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na medida em que nele se contém a exigência legal de um erro grosseiro para a indemnização por prisão preventiva injustificada, pois foi nela que se baseou o tribunal recorrido, não entendendo que a prisão preventiva do recorrente tenha sido de todo ilegal. Não só, pois, foi neste n.º 2 do artigo 225.º que a acção que deu origem a este recurso foi intentada, como foi a falta de prova das condições nele previstas - atinentes à justificação material da sua prisão preventiva - que fundamentou a decisão recorrida.

Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na sua redacção originária.

9 - Antes de prosseguir, importa, porém, precisar que está em causa no presente recurso a conformidade constitucional do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção originária, mas apenas na parte em que exige, como pressuposto da atribuição do direito, a uma indemnização por "prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada", um erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva - e não na parte em que requer que a prisão preventiva tenha causado ao lesado "prejuízos anómalos e de particular gravidade". Na verdade, é aquele primeiro o pressuposto cuja exigência o recorrente impugna, e foi sobre ele que se pronunciou o tribunal recorrido (note-se, de todo o modo, que, ainda que estivesse também em causa o requisito "prejuízos anómalos e de especial gravidade", se o Tribunal Constitucional chegar à conclusão de que a exigência de um "erro grosseiro" não é inconstitucional, sempre se tornaria dispensável apreciar igualmente a exigência daqueloutro, pois a pretensão indemnizatória do lesado, ora recorrente, claudicaria logo por esta última razão, não se vendo qualquer efeito útil, nessa hipótese, que pudesse produzir um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre outros pressupostos do dever de indemnizar).

B) Questão de constitucionalidade. - 10 - O recorrente entende que a norma em causa é inconstitucional, e invocando, nesse sentido, para além de normas de instrumentos internacionais (o artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), os artigos 22.º e 28.º, n.º 2, da Constituição.

A alegada violação do artigo 28.º da Constituição, sobre prisão preventiva, apenas poderia relevar, porém, no contexto da análise da legalidade dessa prisão - e não já, como se disse, para a questão da conformidade constitucional do n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal (que se refere apenas a prisão preventiva que não é ilegal, mas vem a revelar-se injustificada), ou, sequer, do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, pois para esta a conclusão sobre a legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva é um dado, relevante para a verificação da sua hipótese.

Pôr-se-á, pois, de lado aquele artigo 28.º, como parâmetro de controlo da norma em questão, que é relativa à indemnização por prisão preventiva injustificada, e não às condições para o decretamento ou manutenção da prisão preventiva.

Por outro lado, e apesar da possibilidade de o Tribunal Constitucional atender, na apreciação da constitucionalidade da norma impugnada, a parâmetros diversos dos invocados pelo recorrente - nos termos do artigo 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional, importa afastar, como parâmetro de controlo do artigo 225.º do Código de Processo Penal, o artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, que reconhece aos "cidadãos injustamente condenados" o "direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos". Na verdade, não é esta indemnização por condenação injusta - ou a indemnização em caso de erro judiciário, a que se reporta o artigo 3.º do protocolo 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1984 -, prevista também já na Constituição de 1933 (artigo 8.º, n.º 20, para o caso de revisão das sentenças criminais) e, hoje, no artigo 462.º do Código de Processo Penal de 1987 (bem como, anteriormente, no artigo 126.º, §§ 5.º, 6.º e 7.º, do Código Penal de 1886) que é objecto da previsão do artigo 225.º do Código de Processo Penal. Para o caso de revisão de uma decisão condenatória, o artigo 462.º do Código de Processo Penal prevê que a sentença deve atribuir "ao arguido indemnização pelos danos sofridos", paga pelo Estado. Diversamente, o artigo 225.º do Código de Processo Penal refere-se à privação da liberdade ilegal ou injustificada causada por prisão preventiva (ou por detenção), a qual, como se sabe, constitui uma medida de coacção - a medida de coacção mais gravosa - aplicada no decurso do processo penal (normalmente logo nas fases de inquérito ou instrução), cuja fundamentação pode ser - e normalmente terá mesmo de ser - mais precária do que a da privação da liberdade aplicada em consequência de uma decisão condenatória em pena de prisão, proferida depois do julgamento, no termo de um processo com todas as garantias de defesa.

Para a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei (sem pressupor já uma decisão de condenação), o legislador constitucional previu, antes, especificamente no artigo 27.º, n.º 5, que ela "constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer". É esta a norma constitucional que é directamente aplicável ao caso dos autos. Isto, porém, sem descurar, igualmente, a possibilidade de confronto, quer com princípios como os do respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de direito (artigos 1.º e 2.º da Constituição), quer com a garantia institucional consagrada no artigo 22.º da Constituição, de responsabilidade civil do Estado "por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

Como, porém, se encontra no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição uma previsão específica para a indemnização por privação da liberdade em processo penal "contra o disposto na Constituição e na lei", começar-se-á pela apreciação da conformidade do artigo 225.º, n.º 2, da Constituição com esta norma.

11 - Antes de prosseguir, cumpre, ainda, porém, vincar um ponto que se afigura especialmente importante. É ele o de que não compete ao Tribunal Constitucional decidir qual é o regime da responsabilidade civil do Estado por detenção ou prisão preventiva injustificada que se afigura, em abstracto ou na hipótese dos autos, mais conveniente, ou, sequer, mais justo. Antes lhe cumpre apenas apreciar a conformidade com as normas e princípios constitucionais das soluções normativas sobre a obrigação de indemnização por prisão ou detenção injustificada, ainda que estas soluções possam, aos olhos de alguns ou mesmo de uma maioria, revelar-se menos convenientes ou, até, injustas.

É que, como se sabe, para a previsão e definição de um tal regime torna-se indispensável conciliar exigências de sinal contrário, para cuja avaliação, ponderação e satisfação, estabelecendo os indispensáveis compromissos político-legislativos, é o legislador quem está especialmente legitimado e apetrechado, e não este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade. Assim, não compete, por exemplo, a este Tribunal decidir a questão, de política legislativa, de saber se a melhor solução é a de serem sempre suportados pelo Estado os danos resultantes de uma prisão preventiva cuja falta de justificação apenas se possa vir a revelar ex post mas apenas se é exigida pela Constituição uma tal solução (aliás, também não excluída pela decisão recorrida, que se limitou a concluir que o recorrente não provou os pressupostos exigidos pelo artigo 225.º do Código de Processo Penal). A ponderação de valores, a realizar para a decisão de política legislativa - questionando se a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser justificada pelo interesse geral, e, designadamente, ajuizando sobre a conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de um facto criminoso (ou da sua aparência) -, não compete, pois, a este Tribunal, o qual apenas concretiza o quadro constitucional no qual tal ponderação (por natureza de política legislativa, e a realizar por órgãos legitimados e apetrechados para tal) se há-de realizar. E não é de excluir que, perante a solução final encontrada, se possa afirmar que outra melhor, ou até mais justa, seria pensável, tendo-se, porém, antolhado aquela solução (por exemplo, condicionadora da indemnização a certos pressupostos) mais conveniente ao legislador, por razões de segurança, de eficiência ou, mesmo, simplesmente de praticabilidade, sem que esta última seja, logo por esse facto, inconstitucional: podendo não corresponder ao melhor direito, ou ao direito mais justo, não terá, logo por isso, de ser fulminada como "não-direito", constitucionalmente censurável.

12 - O Tribunal Constitucional teve já ocasião de analisar o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, confrontando com ele o artigo 225.º da Constituição (no caso, o seu n.º 1) e explicitando o sentido e os limites que resultam, para o legislador, da consagração constitucional do dever do Estado de indemnizar o lesado, nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Fê-lo no Acórdão 160/95 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., p. 807), recordando igualmente o que se havia dito anteriormente, no Acórdão 90/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 267), e considerando também o artigo 5.º, n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nos termos seguintes:

"[...]

A marcação do confronto passa pela consideração do afastamento do artigo 5.º, n.º 5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ('Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização' - é o seu texto), que o recorrente invoca, pois, como regista o Ministério Público, nada aditando aquela Convenção ao que já consta da Constituição, no seu artigo 27.º, não interessa apreciar, no recurso de constitucionalidade, como é este, a eventual desconformidade entre norma de direito interno - aquele n.º 1 do artigo 225.º e a aludida Convenção.

Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 5.º da Convenção consente que qualquer pessoa seja presa ou detida 'a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido', o que cobre claramente as situações de prisão preventiva, em termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos artigos 27.º, n.º 3, alínea c), e 28.º da nossa Constituição, pelo que, neste ponto, não é possível ofender aquela Convenção sem simultaneamente ofender a Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, o n.º 5 do artigo 27.º desta lei fundamental garante indemnização por privação por liberdade contra o disposto 'na lei', e, para este efeito, a aludida Convenção cabe neste conceito de 'lei' (neste sentido, cf. Ireneu Cabral Barreto, 'Nota sobre o direito à liberdade e à segurança', na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fascículo 3, pp. 443 e segs., em especial p. 473).

E a mesma marcação passa ainda pela consideração do afastamento do artigo 22.º da Constituição, que, conjugando-se com o artigo 271.º, consagra o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, ponto em que o Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em demonstrar que o âmbito normativo-material daquele artigo 22.º 'não abrange a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional' e não é, por isso, com base nele que 'há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada'.

É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo Ministério Público, com judiciosas considerações, não é caso de chamar à colação a norma do artigo 22.º da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nem nas conclusões das suas alegações, sendo meramente pontual e episódica no texto das mesmas alegações a referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79.º-C da Lei 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2.º da Lei 85/89, de 7 de Setembro, nunca seria caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em geral, o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, 'por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício', também no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, se consagra de igual modo o mesmo princípio da responsabilidade civil do Estado, mas por actos de 'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei'(como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, aí se "consagra expressamente o princípio da indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por autoridade judicial sem o 'processo devido'), o que representa o alargamento da responsabilidade civil do Estado (cf. artigo 22.º) a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro judiciário (cf. artigo 29.º, n.º 6)" - Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 187.

No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o artigo 22.º regula essa responsabilidade, em geral, e o artigo 27.º, n.º 5, regula-a para a situação específica de 'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei'. Daí que, de forma mais linear, se possa afirmar, como faz o Ministério Público, que não é com base naquele artigo 22.º que 'há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada', na medida em que a hipótese sub judicio se localiza no plano de uma 'privação da liberdade', sofrida pelo recorrente.

12 - Feita, assim, a redução da controvérsia presente ao confronto entre o n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal e o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição, é bem de ver desde logo que este Tribunal Constitucional já se debruçou sobre esta norma constitucional.

E fê-lo nos termos que se seguem, quando ainda não era conhecido, nem estava em vigor aquele n.º 1 do artigo 225.º:

"Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da responsabilidade do Estado consignado no artigo 27.º, n.º 5, não pode efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assina apenas uma tarefa ao legislador (uma 'incumbência legislativa'); antes simultaneamente se reconhece um 'direito fundamental', a cuja efectivação essa incumbência se preordena.

Que é assim, resulta logo do teor do preceito - no qual se impõe ao Estado um 'dever' cujo natural correlato será certamente um 'direito'; e resulta, bem assim, da sua função ou finalidade normativa específica - pois que está aí em causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas: naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou, afinal, o seu 'direito à liberdade'. Mas que no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, se reconhece já um 'direito' dos cidadãos é corroborado ainda pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos fundamentais isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à definição de 'posições jurídicas subjectivas' (à definição das 'estruturas constitucionais subjectivas', como também se diz), a qual nessa insuprível 'dimensão subjectiva' tem a sua marca característica, e a razão da sua especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, especialmente pp. 84 e segs.).

Significa isto que - continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do princípio do artigo 27.º, n.º 5, sem uma prévia intervenção legislativa - essa inviabilidade decorre, não da inexistência de um direito, e sim apenas da falta de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito, só que, não exequível, enquanto a lei não definir 'os termos' do seu exercício. Ora essa circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do prosseguimento do presente recurso" (Acórdão 90/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., 1984, pp. 278-279).

Noutro passo, a propósito da situação de "uma privação 'inconstitucional' da liberdade", que terá sido 'produzida por um acto judicial (por acto de um juiz)', pode ler-se no mesmo acórdão:

"[...] não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto judicial lícito pois que proferido no uso de uma competência legal [...] e com respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função judicial (o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam apenas o controlo 'material' do conteúdo das decisões, e não o controlo 'funcional' da conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade 'funcional' da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigências deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso, não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de 'administrar a justiça' (artigo 205.º) com plena e integral 'independência' (artigo 208.º), isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua definição do direito do caso teria adquirido carácter definitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele [...], e que este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro" (mas, sendo assim - acrescenta-se ainda no acórdão - "o que teremos é a exigência ao Estado de uma indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente em tal veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto 'poder' ou 'função' judicial" - loc. cit., pp. 274-275).

Por seu turno, quanto ao regime de indemnização por privação da liberdade fixado inovatoriamente no Código de Processo Penal vigente - o regime ainda não conhecido na data em que foi proferido o citado Acórdão 90/84 - João Castro de Sousa ('Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal', Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal) escreveu:

'[...]No capítulo V do mesmo título regula o Código a indemnização por privação da liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante esta seja ilegal ou injustificada.

O n.º 1 do artigo 225.º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do n.º 5 do artigo 27.º da Constituição e ao disposto no n.º 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no n.º 5 do artigo 5.º da Convenção Europeia.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo 225.º estabelece que a reparação a arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Todavia, em tal caso, a indemnização só será arbitrada caso a privação da liberdade tiver causado ao detido prejuízos anómalos e de particular gravidade, consagrando-se assim uma solução análoga à contida no artigo 9.º do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à responsabilidade do Estado pela prática de actos legais ou lícitos.'

E, no parecer 12/92, do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 30 de Março de 1992 (cuja doutrina foi tornada obrigatória para todos os magistrados e agentes do Ministério Público através da circular n.º 5/92, da Procuradoria-Geral da República), concluiu-se:

"1.ª A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer (artigo 27.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa);

2.ª Os cidadãos que hajam sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal têm direito a exigir do Estado indemnização pelos danos decorrentes dessa privação da liberdade (artigo 225.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);

3.ª Os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva legal que se venha a revelar supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou negligência, têm direito a indemnização pelo Estado se da privação da liberdade lhes advieram prejuízos anómalos e de particular gravidade (artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal);

4.ª As causas que não sejam atribuídas por lei a jurisdição especial são da competência dos tribunais comuns (artigos 66.º do Código de Processo Civil e 14.º da Lei 38/87, de 23 de Dezembro);

5.ª Inscreve-se na competência do contencioso administrativo o conhecimento das acções de indemnização intentadas pelos particulares contra o Estado por danos decorrentes de actos de gestão pública (alínea b) do § 1.º do artigo 815.º do Código Administrativo);

6.ª Concretamente, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções referidas na conclusão anterior (artigo 51.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril);

7.ª O Estado realiza a actividade que lhe é própria no quadro das distintas funções política ou governamental, legislativa, jurisdicional e administrativa;

8.ª O conceito 'actos de gestão pública' a que se referem a alínea b) do § 1.º do artigo 815.º do Código Administrativo e a alínea h) do n.º 1 do artigo 51.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reporta-se à actividade administrativa stricto sensu do Estado, portanto não incluindo os actos que integram a função jurisdicional;

9.ª O conhecimento das acções relativas à indemnização dos danos decorrentes do exercício da função jurisdicional e parajurisdicional a que se reportam as conclusões 2.ª e 3.ª não compete, pois, aos tribunais administrativos;

10.ª Compete aos tribunais comuns de jurisdição cível conhecer das acções de indemnização intentadas contra o Estado por danos decorrentes da prisão preventiva ou detenção ilegais ou da prisão preventiva injustificada."

Procedendo à análise do artigo 225.º do Código de Processo Penal, e após transcrevê-lo, afirmou-se nesse parecer:

'É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas.

Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas punível com pena de multa.

Trata-se da responsabilidade civil do Estado tendente à reparação dos prejuízos derivados de erros judiciários, configurando-se em termos de responsabilidade por actos lícitos.

Contraponto da referida obrigação de indemnizar por parte do Estado é o direito subjectivo dos cidadãos directamente lesados com a privação da liberdade ao ressarcimento.

O prejuízo reparável abrange, à míngua de distinção pela lei e de inexistência de motivação razoável para que o intérprete a ela proceda, a partir do tempo da prisão preventiva ilegal, os danos patrimoniais - emergentes e os lucros cessantes -, e os morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, necessariamente resultantes da privação da liberdade.

O n.º 1 contém normação de amplitude e conteúdo diverso do n.º 2, pois ali prevê-se a privação de liberdade em razão de detenção ou de prisão preventiva, e aqui só em virtude da prisão preventiva.

Os pressupostos de indemnização a que alude o n.º 1 consubstanciam-se na privação da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável e de um nexo de causalidade adequada entre este e aquela.

A obrigação de indemnização - e o correspondente direito - a que se reporta o n.º 2 deste artigo depende, porém, da verificação dos seguintes elementos:

Prisão preventiva injustificada;

Motivação na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos com erro grosseiro;

Não ocorrência para aquele erro do visado por dolo ou negligência;

Verificação de prejuízos anómalos e de particular gravidade;

Existência de nexo de casualidade adequada entre o dano reparável e a prisão preventiva.

No n.º 2 prevê-se o caso da prisão preventiva haver sido legal, mas posteriormente se haver revelado total ou parcialmente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos.

O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou jurídica envolvente de uma determinada situação.

O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de diligência.

Tendo em consideração que a responsabilidade civil do Estado em apreço deriva de actos lícitos no exercício da actividade jurisdicional, nem todos os prejuízos derivados da prisão preventiva injustificada são reparáveis, mas só os anómalos e de particular gravidade.

A exigência, como pressuposto do direito ao ressarcimento, da anomalia e especial gravidade do prejuízo, aponta no sentido de que só são reparáveis os prejuízos excepcionalmente graves.

Ademais, com a limitação por via negativa do direito à indemnização no caso do arguido haver concorrido de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico para o erro de apreciação dos pressupostos fácticos de cominação da prisão preventiva, faz-se apelo à sua acção ou omissão intencional ou culposa no quadro do esclarecimento dos factos relevantes para o efeito.'

13 - A partir destes dados, tudo está em saber se a aplicação do n.º 1 do artigo 225.º que é feita no acórdão recorrido, com a interpretação nele seguida de que aí se abrangem 'não só as prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais', tipificando-se as condições em que estes podem agir ilegalmente, contraria o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição, quando este se reporta à 'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei'.

E parece que não.

Como também ficou dito no citado Acórdão 90/84, trata-se aqui de 'situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete para o legislador - a efectivação de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova ponderação normativa - complementar da que ele próprio fez, mas da qual não quis tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências. Ou seja: trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e resultados, a Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva' - loc. cit., p. 277.

O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo 225.º, prevendo aí os casos de 'detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal' e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do artigo 27.º limita-se a prever a 'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei', derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade.

'O artigo 225.º do novo Código de Processo Penal interpreta correctamente o sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelaram injustificados por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e se da privação da liberdade resultaram prejuízos anómalos e de particular gravidade. Haverá, pois, aqui uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito de liberdade' - é o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit., p. 188.

De igual modo, não se vê como possa considerar-se violadora da norma constitucional a interpretação que, na tese já acolhida, teria sido seguida no acórdão recorrido, para se fazer aplicação do n.º 1 do artigo 225.º, pois, reportando-se este preceito apenas a determinadas situações de prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais quando levadas a cabo por magistrados judiciais, está-se ainda no âmbito normativo constitucional do n.º 5 do artigo 27.º

Mesmo na óptica do recorrente de que 'é constitucionalmente bastante para que a prisão preventiva tenha sido objectivamente, a se, contra o disposto na lei', ou seja, é bastante 'uma responsabilidade objectiva e não subjectiva', a tipificação das hipóteses de 'detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal', quando se trata de actos de magistrados judiciais, como é feito no acórdão recorrido, assim se dando uma interpretação ao n.º 1 do artigo 225.º, não briga com a norma constitucional do n.º 5 do artigo 27.º Aqui não se veda ao intérprete uma tal tipificação, para alcançar o que é, no plano da privação da liberdade ilegal, atentar 'contra o disposto na Constituição e na lei': 'não só as prisões ou detenções [...] levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu múnus ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do cargo, se hajam determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância criminal, v. g. por peita, suborno e concussão.'

Daí que tenha o Supremo Tribunal Administrativo afirmado expressamente a legalidade da manutenção da prisão preventiva do recorrente, movendo-se então no campo de aplicação o n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, por não caber a hipótese sub judicio nos tipos de conduta de privação da liberdade ilegal, à luz da interpretação feita no n.º 1 do mesmo artigo 225.º

Com o que a 'interpretação e aplicação que as instâncias fizeram da norma do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal de 1987 em nada colidiu com o disposto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição', como também conclui o Ministério Público nas suas alegações."

Concluiu-se, pois, neste aresto, que o artigo 225.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 não violava o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, sendo esta a única decisão em que o confronto com este parâmetro foi analisado (diversamente, no citado Acórdão 116/2002, o Tribunal Constitucional não chegou a tomar conhecimento do recurso, por ter entendido que se não verificavam os respectivos pressupostos).

13 - As considerações do aresto transcritas no número anterior são de acompanhar, desde logo, no que se refere à invocação do artigo 5.º, n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Na verdade, este artigo 5.º, n.º 5, consagra um direito de indemnização em caso de "prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo", nas quais se prevê, designadamente, a possibilidade de prisão quando houver suspeita razoável de a pessoa em causa ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido, enquanto a Constituição se refere à privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e prevê, no artigo 27.º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios "de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos". Ora, ambos os textos limitam-se, pelo menos expressamente, a impor o ressarcimento em caso de falta de justificação formal da privação da liberdade (contrariedade às disposições da Convenção, da Constituição ou da lei), sendo certo que no presente caso o que está em questão é a sua falta de justificação material, por alegado erro de facto na avaliação dos respectivos pressupostos, que se vem a revelar posteriormente.

Pode, pois, dizer-se, que, para o aspecto ora em causa, a norma da Convenção nada acrescenta ao que já consta da Constituição (o mesmo podendo dizer-se do artigo 9.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, igualmente invocado pelo recorrente). Aliás, atendendo ao seu valor na ordem jurídica interna, as próprias disposições convencionais são de considerar como 'lei' (embora a elas correspondam também disposições de direito interno), para efeitos de preenchimento dos pressupostos para reconhecimento da indemnização imposta pela Convenção (neste sentido, o citado Acórdão 160/95, citando doutrina - sobre o valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no direito português, veja-se Rui Moura Ramos, "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sua posição face ao ordenamento jurídico português", in Da Comunidade Internacional e do seu Direito, Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais, Coimbra, 1996, pp. 39 e segs.).

Esta conclusão, relativamente à exigência de um "erro grosseiro" e de um prejuízo qualificado para a indemnização, não é, também, contrariada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não o é, designadamente, pelas decisões em que se censurou, como inconciliável com o artigo 5.º, n.º 5, o entendimento restritivo da regularidade da prisão, exclusivamente em referência ao direito interno (assim, várias decisões relativas ao Reino Unido, entre as quais, por exemplo, o acórdão Brogan, e também, em certa medida, o acórdão Ciulla, pois que neste se discutia o valor relativo da Convenção na ordem interna), tendo aquele Tribunal salientado que aquele artigo da Convenção é respeitado logo que se possa pedir uma compensação por uma privação da liberdade verificada em condições contrárias às enunciadas no artigo 5.º, n.os 1 a 4, da Convenção. Pressupõe, pois, que tal violação tenha sido provada (assim, por exemplo, a decisão no caso N. C. v. Itália, de 2001), e não proíbe que se exija a prova de um prejuízo pelo demandante (neste sentido, o acórdão Wassink). E também não é contrariada - como se salientou logo na decisão da 1.ª Instância - pela invocação da presunção de inocência, que estava em causa no acórdão Sekanina (num caso em que, apesar da existência de uma decisão absolutória, o tribunal austríaco ao qual fora dirigido o pedido de indemnização realizou uma apreciação da culpabilidade do demandante, tendo-se decidido que a expressão de suspeitas sobre a inocência, ainda que para efeitos indemnizatórios, depois de uma decisão de absolvição, viola a presunção de inocência), pois a decisão do tribunal a quo baseou-se, no presente caso, simplesmente na falta de prova dos requisitos de que dependia a indemnização, e não em quaisquer considerações sobre a inocência ou a culpabilidade do demandante. Antes foi logo a 1.ª Instância a preocupar-se em afirmar expressamente que a inocência do demandante era "inquestionável", e que "não ocorre apenas após o acórdão do Supremo Tribunal, mas que se mantém desde o início de todo o processo"; simplesmente, não "basta no entanto essa inocência, já que nos termos da lei à qual os Tribunais devem obediência, só recairia sobre o Estado a obrigação de indemnizar o autor se se verificassem os requisitos imperativos enunciados".

14 - Pode igualmente dizer-se, em segundo lugar, que a convocação do artigo 22.º da Constituição não conduz a solução diversa da que resulta da consideração do seu artigo 27.º, n.º 5, como se disse igualmente no citado Acórdão 160/95.

É certo que não se encontra, nas alegações do presente recurso, referência àquele artigo 22.º da Constituição ou ao paralelo com o regime da responsabilidade do Estado por actos lícitos, seja em geral, nos termos do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, seja em certas hipóteses especiais - como, por exemplo, no caso de expropriação por utilidade pública, nos termos do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição.

Mesmo considerando, porém, a possibilidade de o Tribunal Constitucional confrontar a norma impugnada com parâmetros constitucionais diversos dos invocados pelo recorrente (nos termos do artigo 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional), e mesmo admitindo que o âmbito normativo daquele artigo 22.º possa abranger a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional - questão que se deixa em aberto - não se vê, porém, que esta norma imponha uma conclusão no sentido da inconstitucionalidade.

Desde logo, não pode deixar de notar-se que se consagra aí uma garantia de responsabilidade civil do Estado em geral, "por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício" uma garantia institucional, como salienta a doutrina (assim José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, 2001, p. 140). Ora, encontra-se na Constituição uma norma - o artigo 27.º, n.º 5 - sobre a responsabilidade civil do Estado especificamente pela "privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei". Independentemente da questão de saber se assim se realiza um alargamento do princípio do artigo 22.º a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do erro judiciário (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 187), é seguro que as hipóteses de responsabilidade pela privação da liberdade haverão de ser confrontadas, em primeira linha, com as exigências resultantes do preceito que especialmente o legislador constitucional lhe dedicou - esse artigo 27.º, n.º 5. E isto tanto mais quanto, mesmo admitindo a aplicabilidade do artigo 22.º a actos jurisdicionais, nele se consagra uma garantia institucional que, como tem sido salientado (assim, J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 141 e 221), admite "um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal" pelo legislador, "assegurando a Constituição apenas a preservação da essência da figura contra a sua destruição, desfiguração ou descaracterização", isto é, a preservação do seu núcleo essencial. É, porém, justamente tal espaço de liberdade de conformação do legislador igualmente o que está em causa, nos mesmos termos, no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, pois que este prevê um direito cujo conteúdo é juridicamente moldado, por remissão constitucional, pelo legislador.

Importa, pois, confrontar a norma em causa com este artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, que é o preceito que directamente comporta a hipótese regulada por aquela norma - assim igualmente se afastando a relevância decisiva de eventuais lugares paralelos sobre a responsabilidade por actos lícitos, quer não limitados a entes públicos e previstos no direito infra-constitucional (e podendo, assim, servir sobretudo para argumentar no plano da indesejabilidade ou incongruência do regime da indemnização por privação da liberdade, que não no da inconstitucionalidade), quer com assento constitucional, como é o caso do artigo 62.º, n.º 2, para a expropriação por utilidade pública - cujo paralelismo com a hipótese do artigo 225.º, porém, para além de não ser decisivo, se afigura bastante limitado, considerando, designadamente, quer a diversidade das funções do Estado prosseguidas, quer as possíveis divergências quanto à justificação do sacrifício imposto ao lesado (seja por este lhe ter dado causa, seja por a falta de justificação poder ser apenas objectiva ou subjectivamente superveniente).

15 - Prevê o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição o dever do Estado de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Consagra-se aqui um direito cuja conformação é, porém, remetida para o legislador ordinário, deixando a este, pois, um espaço de escolha autónoma da solução adequada, no quadro do exercício das suas opções políticas. Mais, porém, do que um mero espaço para concretização do direito em questão, o legislador constitucional não deixou, porém, a obrigação de indemnização - e, por conseguinte, o correspectivo direito - com os seus pressupostos e conteúdo definidos logo a nível constitucional. Antes devolveu ao legislador a incumbência de construir o conteúdo do próprio direito fundamental em causa. Ora, é claro que, nestes casos, o tipo de controlo de constitucionalidade a efectuar tem de conhecer limites - desde logo, pela diversidade de alcance do parâmetro - mais apertados do que quando está em causa, por exemplo, simplesmente uma lei concretizadora, condicionadora ou restritiva de direitos. Na verdade, no caso do artigo 27.º, n.º 5, a intervenção legislativa, mais do que apenas uma concretização ou promoção do direito fundamental (e, assim, do que uma mera regulamentação da fixação da indemnização, na sua forma e quantum), é, por decisão do próprio legislador constitucional, constitutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma liberdade que a Constituição quis deixar às opções de política legislativa.

Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a Constituição se poderá aqui fazer apenas segundo um critério de evidência (isto é, destinado a apurar se é manifesta a inconstitucionalidade), e, designadamente, apenas quanto ao respeito pelo núcleo essencial do direito assegurado pelo artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto regime conformador.

Consultando a norma em causa - e independentemente do juízo sobre o mérito desta solução, repete-se - verifica-se que ela não diz respeito à privação da liberdade ilegal - ou em violação da Constituição -, isto é, que não prevê uma obrigação de indemnização para a "injustiça" formal, por ilegalidade, da prisão, mas antes um controlo material (para efeitos indemnizatórios) da prisão preventiva: a sua superveniente falta de justificação por erro grosseiro, apesar da legalidade. Isto, mesmo quando possa entender-se que tal sistema de controlo material da justificação da prisão, em termos de impor ao Estado uma responsabilidade pelo risco, é o mais desejável.

Pode, pois, duvidar-se que a Constituição - tal como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que apenas se refere à contrariedade às disposições sobre a prisão - imponha mais do que um sistema de controlo do respeito pela legalidade (incluindo a constitucional) da prisão preventiva, para efeitos indemnizatórios. E, como é óbvio, se as hipóteses de falta de justificação material da prisão não aparecem contempladas naquele n.º 5, muito menos poderá entender-se que a limitação da indemnização nessas hipóteses afecta manifestamente o núcleo essencial da garantia, ou a desfigura.

Seja, porém, como for quanto à necessidade de estender a obrigação de indemnização também a hipóteses de falta de justificação material da prisão, independentemente da ilegalidade desta, é claro, porém, que a disposição constitucional não afasta a possibilidade de previsão de sistemas condicionadores da indemnização - e não de indemnização automática - por privação da liberdade, que possibilitem tomar em conta as diversas particularidades dos casos em que não tenha existido violação da lei.

Designadamente, se o legislador constitucional se referiu apenas à privação da liberdade em contrariedade à Constituição e à lei, e não à posteriormente verificada falta de justificação da prisão (independentemente da causa pela qual tal falta de justificação só então pode ser constatada), não parece que possa extrair-se do artigo 27.º, n.º 5, a imposição de prever um dever de indemnizar sempre que o processo não finde com uma condenação, com fundamento numa comparação entre o juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido e o juízo definitivo de absolvição. Esta última opção corresponderá - repisa-se - ao sistema mais desejável, impondo ao Estado, e não ao cidadão, o risco do erro, revelado posteriormente, sobre a justificação da prisão preventiva, risco que naturalmente sobre ele recai no exercício do jus puniendi. Mas não se afigura que ela seja uma imposição constitucional - tal como não é imposta pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É antes ao legislador, e não a este Tribunal, que, se o entender, cabe subscrever e impor esse tipo de opções de política legislativa, dentro dos limites constitucionalmente exigidos.

Não parece, aliás, que possa dizer-se que também a garantia institucional de responsabilidade do Estado "por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem" (artigo 22.º da Constituição), ainda que seja aplicável a actos praticados no exercício da função jurisdicional, seja desfigurada ou descaracterizada, no seu núcleo essencial, pela previsão dos requisitos que constavam do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quanto à exigência de um "erro grosseiro" na actuação do tribunal - isto é, de uma manifesta incorrecção na apreciação dos pressupostos de facto da prisão.

Conclui-se, pois, pela inexistência de violação do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição pelo artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte em que exige um "erro grosseiro" para atribuição de indemnização por prisão preventiva que, não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada.

16 - Alcançada a conclusão precedente em face da norma que o legislador constitucional destinou especificamente à indemnização por prisão preventiva, cumpre ainda notar que essa conclusão não pode considerar-se contrária a outros princípios ou normas constitucionais, que, pela sua amplitude e carácter genérico ou carecido de densificação (ou mesmo pela sua natureza reassuntiva de um conjunto de outras normas constitucionais), comportam diversas soluções do problema que nos ocupa.

É o caso - se não tanto do princípio da igualdade, cuja invocação no presente caso, designadamente, com referência ao desconto da prisão preventiva na pena do condenado, improcede, desde logo, pela falta de comparabilidade entre as situações de desconto numa pena a impor pelo Estado e de surgimento de uma obrigação de indemnização quando não existiu ilegalidade (a diferença, afinal, entre a consideração da prisão para diminuição de um sacrifício a impor e a sua consideração para impor uma nova obrigação ao Estado) - dos princípios do Estado de direito e da protecção da dignidade da pessoa humana. Estes princípios são também compatíveis com sistemas não automáticos de indemnização por privação da liberdade, que, em caso de respeito pela lei, exijam condições objectivas ou subjectivas para tal ressarcimento.

Isto, sendo de notar, aliás, que a imposição da privação da liberdade, que se vem depois afinal a revelar injustificada, ocorre, justamente, no cumprimento da função do Estado de assegurar o respeito pela legalidade, designadamente com finalidades preventivas (as que justificam a imposição dessa medida de coacção) que, respeitando-se os preceitos legais e constitucionais, se enquadram na actuação do Estado como Estado de direito, e visando a protecção de bens jurídicos cujo étimo fundante mais profundo é justamente a dignidade da pessoa humana.

Pelo que, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1987, na parte em questão, há que negar provimento ao presente recurso.

III - Decisão. - Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional o artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1987, na parte em que faz depender a indemnização por "prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada" da existência de um "erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia";

b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;

c) Condenar o recorrente em custas, com 20 unidades de conta de taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2005. - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Voto a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 225.º do Código de Processo Penal questionada.

Reconheço que a Constituição não pode limitar o legislador ordinário quanto ao que ele venha a entender por prisão preventiva manifestamente ilegal e injustificada, na medida em que tais qualificativos dependem dos pressupostos legais da prisão preventiva que são definidos, com alguma amplitude, pelo legislador ordinário. Nesse sentido, do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, bem como dos preceitos constitucionais que regulam a prisão preventiva, não resulta, esgotantemente, um conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal ou injustificada, pelo que não se extrai de tais normas uma exigência absoluta quanto aos limites de tais conceitos, mas apenas, quando muito, um núcleo essencial da ilegalidade ou da "injustificabilidade" da prisão preventiva de acordo com os parâmetros constitucionais.

Daqui resulta que não é óbvio, no plano do sentido das palavras, que uma prisão preventiva seja injustificada ou passe a ser manifestamente ilegal se, apesar de ser ex ante absolutamente legal e fundamentada, o arguido venha a ser absolvido.

Não há uma exigência constitucional do conteúdo de tais conceitos que se imponha ao legislador ordinário. Aliás, o sentido das palavras não é regulável, em absoluto, pela Constituição, mas há-de resultar da definição dos fundamentos da prisão preventiva pelo próprio legislador ordinário.

Assim, também no plano da constitucionalidade não surge como vinculativa uma interpretação lata do teor do artigo 225.º do Código de Processo Penal pela via de um conceito pré-estabelecido constitucionalmente de ilegalidade ou de "injustificabilidade".

É já, porém, uma opção constitucional indiscutível a que se relaciona com a resposta à questão de saber se o artigo 225.º do Código de Processo Penal seria inconstitucional por não contemplar todos os casos possíveis em que o arguido venha a ser absolvido (da injustificabilidade da prisão preventiva constatada a posteriori) restringindo, por isso, as hipóteses de indemnização a certas situações determinadas segundo critérios ex ante, independentemente da futura absolvição do arguido.

Deste modo, só também na medida em que a prisão preventiva ilegal ou injustificada seja, exclusivamente, o pressuposto da obrigação de indemnização por parte do Estado é que haverá interferência das exigências constitucionais em tais conceitos.

A constitucionalidade de uma interpretação da norma em causa que não contemple senão a ilegalidade e "injustificabilidade" segundo um juízo prognóstico e técnico é, em primeira linha, sustentada por argumentos extraídos do texto constitucional.

Segundo tais argumentos, o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, não imporia uma obrigação de indemnização do Estado relativamente à prisão preventiva derivada de factos lícitos, quando o arguido viesse a ser absolvido, remetendo antes para os termos da lei os casos de privação da liberdade contra o disposto na Constituição [artigos 27.º, n.º 5, alínea b), e 28.º]. Por outro lado, a indemnização pela prisão preventiva não poderia ser assimilada pela responsabilidade civil por factos lícitos do Estado que flui do artigo 22.º da Constituição, não só porque tal preceito apenas se refere a entidades públicas e seus funcionários ou agentes, o que não abrangeria o exercício da função jurisdicional, mas também porque o artigo 27.º, n.º 5, é uma norma que especificamente regula a privação da liberdade contra a Constituição e, por isso, regularia em especial esse tipo de situações.

Assim, seguindo esta lógica argumentativa, o artigo 225.º do Código de Processo Penal seria a concretização no direito ordinário do artigo 27.º, n.º 5, desenvolvendo os seus pressupostos, nomeadamente através da figura da prisão preventiva injustificada, que apenas pressuporia uma ponderação deficiente da aplicação de uma medida de coacção excepcional (artigo 28.º, n.º 2, da Constituição).

A questão de atribuição de indemnização sobretudo em função da absolvição do arguido estaria, assim, num nível diferente do relativo ao pressuposto da contrariedade da prisão preventiva à Constituição, em que o referido artigo 27.º, n.º 5, se apoia.

A toda esta argumentação subjaz, porém, um enclausuramento da questão em apreço no preceito constitucional sobre a prisão preventiva.

A questão que este Tribunal, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar.

Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser absolvido.

Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá de se responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável lógica investigatória.

Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos ex ante da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim, num plano objectivo (e necessariamente ex post), da contemplação da "vitimização" do agente pelo próprio juízo de prognose correcto realizado pelo órgão de justiça penal.

Se o agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de indícios da prática de um facto criminoso não poderá recair sobre si o ónus de suportar todos os custos da privação da liberdade sem qualquer posterior reparação.

Na tradição jurídica portuguesa, esta lógica subjaz ao princípio da indemnização pelo erro judiciário que foi consagrado no Código de Seabra e no artigo 126.º, §§ 5.º, 6.º e 7.º, do Código Penal de 1886 (em consequência de revisão de sentença condenatória) e que a Constituição de 1933 manteve (cf. Maria da Glória Garcia, A Responsabilidade Civil do Estado e Demais Pessoas Colectivas Públicas, 1997, p. 24).

Mas é também um afloramento da mesma ideia de ressarcibilidade o que subjaz à exigência da reparação de prejuízos característica do conflito de interesses manifestada no estado de necessidade (artigo 339.º, n.º 2, do Código Civil) e que preside, obviamente, à responsabilidade civil do Estado por factos lícitos (artigos 22.º da Constituição e 8.º do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967).

Tal contrapartida de uma ponderação de interesses que exige um dever de solidariedade manifesta-se na ordem jurídica como princípio geral, tanto pela exigência de reparação de danos como pelas limitações da própria justificação pelo estado de necessidade aos casos em que seja razoável exigir do terceiro inocente o sacrifício dos seus interesses (artigo 34.º do Código Penal).

Esta ponderação não pode deixar de ter raiz constitucional, inserir-se numa ordem constitucional de valores e exprimir uma tarefa do Estado Constitucional. Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade pública (artigo 22.º, n.º 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito da responsabilidade por actos lícitos das entidades públicas (artigos 62.º, n.º 2, e 22.º, respectivamente, da Constituição). Manifestações deste princípio surgem, aliás, na jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à própria função jurisdicional (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 1998).

Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade.

São os fundamentos do Estado de direito baseado na dignidade da pessoa humana que justificarão esta solução - artigos 1.º, 2.º e 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição (cf. sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade do artigo 253.º do Código de Processo Penal, Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, 1992, p. 105, e Luís Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 1995, pp. 350 e segs.).

Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis. Mesmo a mais perfeita justificabilidade da prisão preventiva numa perspectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade processual, sobrepor-se ao direito do arguido - que não deu causa a essa situação por qualquer comportamento doloso ou negligente - a ser reparado dos prejuízos sofridos nos seus direitos fundamentais. Mas, muito menos será aceitável uma restrição da relevância ao erro grosseiro, deixando-se sem qualquer indemnização todos os casos de erro constatável ex ante (eventualmente por um jurista mais sagaz), mas que não atingem uma manifesta evidência.

Não deve, assim, em geral, um juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição, e em particular quando haja erro susceptível de ser ex ante configurado, justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos.

Isso limitaria, do ponto de vista das consequências, o valor da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição; cf., nesse sentido, Delmas-Marty, Procédures Pénales d'Europe, 1995, p. 499, e, sobretudo, as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Brogan, Ciulla e Sekanina, respectivamente de 29 de Novembro de 1988, série A, n.º 145-B, de 22 de Fevereiro de 1989, série A, n.º 181, e de 22 de Agosto de 1993, série A, n.º 266-A).

Não há, portanto, uma pura opção de sistema constitucional na reparação dos danos da prisão preventiva pelo legislador ordinário (note-se que o sistema de reparação abrangente é dominante no Direito europeu - cf. Luís Catarino, ob. cit., pp. 350 e segs., e Delmas-Marty, ob. cit., pp. 498 e segs.) sobre aquilo que constitui uma prevalência de interesses de ordem constitucional e aquilo que constitui a expressão de uma função de justiça do Estado de direito.

Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27.º, n.º 5, que se equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que formam a coerência global do Estado de direito democrático baseado na dignidade da pessoa humana.

A esta razão de fundo acresce a da inexplicável desigualdade entre aquele que, sendo condenado, viria a ser compensado pelo período em que cumpriu a prisão preventiva, mesmo em caso de perfeita justificabilidade ex ante de tal medida, através do desconto na pena de prisão em que seja condenado, e o arguido absolvido que não obteria qualquer compensação pela privação da liberdade se revelada ex post injustificada. - Maria Fernanda Palma.

Declaração de voto

Votei vencido por entender que é inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, n.º 5, e 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro (Código de Processo Penal), enquanto só prevê a concessão de indemnização pelos danos sofridos com a privação de liberdade "a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia" - única dimensão do preceito que constitui objecto do presente recurso, diversamente do que sucede no processo 350/00, sobre que recaiu o Acórdão 13/2005, desta mesma data, em que também estava em causa a restrição da concessão da indemnização aos casos em que a privação da liberdade tivesse causado ao lesado "prejuízos anómalos e de particular gravidade", de acordo com a redacção do citado preceito anterior às alterações introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, que eliminou este último condicionamento.

Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar que "a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer", não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão-só a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.os 2 e 3, da CRP).

Ora, como o demonstrou Rui Medeiros (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, pp. 105 e 106), "nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do Estado da existência de culpa", referindo-se o artigo 27.º, n.º 5, da CRP "apenas à privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e, por consequência, confer[indo] o direito à indemnização independentemente da culpa", pelo que "o artigo 225.º do Código de Processo Penal não pode restringir a obrigação de indemnizar aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade".

Não cumpre, neste contexto, tomar posição sobre a questão, discutida no âmbito do direito administrativo, de saber se o "erro sobre os pressupostos de facto" é um vício do acto enquadrável na categoria do vício de "violação de lei", com o argumento de que "a ideia falsa sobre os factos em que se fundamenta a decisão traduz violação da lei" na medida em que esta conferiu os poderes para serem exercidos verificada a existência de certas circunstâncias, que na realidade não ocorrem (neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª ed., Coimbra, 1982, p. 504; contra, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989, pp. 316 e 317). Mas é seguro que uma privação de liberdade é contrária à Constituição e à lei sempre que for imposta em situações em que a Constituição e a lei a não permitem, seja por "erro de direito" de quem a decretou (por directa infracção de prescrições constitucionais e legais vigentes), seja por "erro de facto" (erro na apreciação dos pressupostos de facto), pois também nesta última hipótese a privação da liberdade acabou por ser decretada numa situação em que a Constituição e a lei a não permitiam. Nesta perspectiva, surge como não inteiramente rigorosa a diferenciação, feita nos dois números do artigo 225.º do Código de Processo Penal , entre prisão "ilegal" (no n.º 1) e prisão "não ilegal" (no n.º 2), já que uma prisão preventiva decretada com base em errada representação dos pressupostos de facto acaba por ser também uma prisão preventiva decretada em situação não permitida por lei e, por isso, neste sentido, "ilegal".

O fundamento do juízo de inconstitucionalidade que formulo radica em que considero não existir, no caso de danos causados pela privação ilegal (ou injustificada) da liberdade, nenhuma razão constitucionalmente válida para negar o direito de indemnização que seria devido de acordo com o regime geral de responsabilidade do Estado e demais entes públicos por acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem (artigo 22.º da CRP e Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967), regime geral que não restringe esse direito indemnizatório aos casos em que o agente tenha actuado com erro grosseiro.

Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira do erro cometido pelo agente do Estado, quando essa restrição não existe na indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em pena privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do Código de Processo Penal, em execução do artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essa restrição não existe no caso de danos causados na propriedade por actos lícitos da Administração, como sucede na indemnização por requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP) ou na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º da CRP).

É incompreensível que a ofensa de um bem intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de direito (artigo 1.º), como é o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), tenha uma tutela mais débil que a ofensa a bens materiais.

O argumento, por vezes usado para justificar estas restrições do direito à indemnização, da existência de um dever de cidadania, a cargo de todos os cidadãos, que os levaria a ter de suportar privações da sua liberdade e só em casos muito excepcionais teriam direito a ser ressarcidos, "para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com o consequente enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das respectivas decisões judiciais", foi proficientemente rebatido por João Aveiro Pereira (A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, pp. 215 a 219), que justamente salientou a iniquidade de "fazer suportar a um indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido, geradora de danos graves - mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal -, ainda que em benefício da realização do interesse público geral de eficácia da instrução criminal", rematando:

"O princípio da repartição dos encargos públicos com a administração da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente refere Maia Gonçalves, 'os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a alguma margem de erro'. Porém, desde que para tal desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine), afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as consequências gravosas de actuações erróneas alheias.

O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito."

Subscrevo inteiramente as precedentes considerações, que, aliás, correspondem às soluções legislativas consagradas na generalidade dos países da nossa área civilizacional e se conformam à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça - O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, Coimbra, 1999, pp. 341 e segs.; e Catarina Veiga, "Prisão preventiva, absolvição e responsabilidade do Estado", Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro-Março de 2004, pp. 31-59).

Pelas razões sumariamente expostas votei no sentido de ser julgada inconstitucional a norma do artigo 225.º, n.º 2, do Código de Processo Penal , enquanto só prevê a indemnização por prisão preventiva injustificada quando o erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, erro para cuja ocorrência o preso não concorreu nem por dolo nem por negligência, seja de qualificar como grosseiro. - Mário José de Araújo Torres.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2320879.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1967-11-21 - Decreto-Lei 48051 - Ministérios do Interior e da Justiça

    Regula em tudo o que não esteja previsto em Leis especiais a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domímio dos actos de gestão pública.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1982-12-22 - Decreto-Lei 477/82 - Ministério da Justiça

    Define os crimes que não admitem liberdade provisória.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1987-02-17 - Decreto-Lei 78/87 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-23 - Lei 38/87 - Assembleia da República

    Lei orgânica dos tribunais judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

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