Directiva n.º 2/2004. - Circular n.º 13/2004. - No uso da competência atribuída pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea b), do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98, de 27 de Agosto), profere-se o seguinte despacho:
I - A questão da repartição de competências entre os órgãos de polícia criminal quanto à investigação de crimes executados com armas de fogo tem suscitado algumas dificuldades de entendimento entre aquelas entidades, a exigir, muitas vezes, a intervenção do Ministério Público.
Porque tais dificuldades não podem constituir factor inibitório do início atempado da investigação e sendo manifesta a necessidade de uma interpretação com incidência nacional e uniforme, impõe-se a emissão de directiva, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º do Estatuto do Ministério Público.
II - A melhor interpretação dos preceitos legais em causa deve ter em conta o conteúdo do catálogo de crimes cuja investigação (no domínio da assistência policial à autoridade judiciária) a Lei de Organização da Investigação Criminal e a Lei Orgânica da Polícia Judiciária atribuem a este órgão de polícia criminal, no desenvolvimento das linhas definidas nos respectivos preâmbulos e trabalhos preparatórios.
Da respectiva leitura é possível extrair a ideia de que a complexidade da investigação (tida, comummente, como o elemento distintivo) não constitui o único critério de atribuição da competência policial de investigação à Polícia Judiciária.
Com efeito, a gravidade dos crimes associada, em regra, à sua natureza violenta bem como a organização no seu cometimento são também elementos diferenciadores entre os órgãos de polícia criminal de competência genérica.
Constata-se que constam do catálogo, além da criminalidade de perseguição complexa, crimes que demandam conhecimentos específicos, outros que se mostram, em geral, associados à constituição de redes, alguns que, pela sua violência, assumem particular gravidade e perigosidade e a criminalidade organizada.
Mais podemos concluir que as alterações à LOIC, em especial no que respeita à competência da Polícia Judiciária, têm acentuado a ideia de que certos crimes violentos (com particular relevo para todos os homicídios dolosos) não podem deixar de estar incluídos na sua esfera de acção investigatória.
Continuam a coexistir, no âmbito do catálogo de crimes da competência reservada da Polícia Judiciária, ao lado da criminalidade de investigação complexa, outra, por vezes aí incluída por razões sociológicas ou de política criminal, designadamente pelo seu carácter violento, ou até pelo particular melindre dos direitos e interesses envolvidos que justificam a sua atribuição a uma polícia mais apetrechada para a investigação criminal.
Ora, a criminalidade violenta encontra-se, sobretudo, associada à utilização de armas de fogo.
E, quanto a esta, a sociedade dificilmente toleraria menor saber acumulado e insuficiência de meios técnico-científicos adequados.
Os crimes executados com arma de fogo, quando susceptíveis de afectar a integridade física e a vida, assumem aquele grau de violência de tal modo insustentável para a sociedade que, por razões de índole criminológica, a lei os manteve na polícia tradicionalmente vocacionada para a investigação e dotada dos saberes apropriados.
Constituem, assim, crimes cuja investigação a lei comete, do ponto de vista policial, à Polícia Judiciária, sem restrição nem excepções.
III - O crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153.º do Código Penal, integra, em número não negligenciável de situações, o conjunto dos crimes executados com recurso à utilização de arma de fogo.
Trata-se, naturalmente, de ilícito criminal cuja atribuição à Polícia Judiciária causará maior perturbação, sobretudo considerando o relativo desvalor da conduta e a simplicidade da actividade investigatória.
O crime de ameaça não se reporta a um dano físico imediato, mas à criação de uma condição psicológica susceptível de afectar a liberdade de agir.
Mesmo quando praticado com recurso a arma de fogo, o crime não se dirige à integridade física ou à vida de outrem, não contendo, pois, a carga de violência que importa, do ponto de vista criminológico, para justificar (nos termos das normas jurídicas que vimos apreciando) a intervenção da Polícia Judiciária.
Com efeito, consistindo no anúncio de um mal futuro, sem outro propósito, o crime de ameaças não tem a potencialidade de gerar, de imediato, acto de violência sobre a integridade física ou a vida do ofendido, sob pena de descaracterização do tipo penal. A ameaça constitui um fim em si mesma.
Tal já não acontece, por exemplo, com o crime de coacção em que o agente pretende obter um resultado determinado e imediato com a acção criminosa - levar o ofendido a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade. Neste caso, a utilização de meios perigosos (por ex., uma arma de fogo) pode revestir-se de um especial risco de violência física grave, no quadro de uma ameaça destinada a constranger outrem.
Acresce que o crime de ameaças permite (e exige) uma intervenção, até preventiva e dissuasória, de polícia de proximidade.
Não é, pois, de incluir o crime de ameaça no conjunto de crimes executados com arma de fogo cuja investigação o legislador atribuiu (por razões claramente criminológicas), no âmbito policial, à Polícia Judiciária.
IV - Em suma, as normas contidas nos artigos 4.º, alínea n), da Lei de Organização da Investigação Criminal e 5.º, n.º 2, alínea n), da Lei Orgânica da Polícia Judiciária, na parte em que se referem aos crimes executados com arma de fogo, devem ser interpretadas nos seguintes termos:
O crime de ameaças, previsto e punido nos termos do artigo 153.º do Código Penal, quando cometido com recurso a arma de fogo, não está incluído na competência reservada da Polícia Judiciária prevista nos artigos 4.º, alínea n), da Lei 21/2000, de 10 de Agosto, e 5.º, n.º 2, alínea n), do Decreto-Lei 275-A/2000, de 9 de Novembro, podendo a competência para a investigação daquele crime ser delegada noutro órgão de polícia criminal.
Publique-se nos termos do n.º 3 do artigo 12.º do Estatuto do Ministério.
6 de Outubro de 2004. - O Vice-Procurador-Geral da República, António Pais Agostinho Homem.