Processo 35277. - Tribunal pleno - Relação de Lisboa - Recorrente o
Ministério Público e recorrido Alfredo Gomes.
Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em sessão plena:
O Exmo. Adjunto do Procurador da República junto da Relação de Lisboa interpôs o presente recurso para o tribunal pleno, nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal, com o objectivo de se fixar jurisprudência obrigatória no sentido de se decidir se em processo correccional por crime público ou semipúblico o ofendido que deduziu acusação tem ou não legitimidade para posteriormente interpor recursos das decisões que lhe sejam desfavoráveis, e isto sem se constituir assistente.
Alegou e provou que na Relação de Lisboa foram proferidos os Acórdãos de 7 de Março e 31 de Maio, ambos de 1978, cujas certidões se juntaram, adoptando soluções opostas, tomadas no domínio da mesma legislação.
Com efeito, no primeiro decidiu-se que tal ofendido, nessas condições, não podia recorrer, já que a Lei (artigo 647.º, n.º 2.º, do Código de Processo Penal) só concede tal faculdade aos assistentes. No segundo acórdão, pelo contrário, decidiu-se que podia recorrer, tendo para tal legitimidade, uma vez que o artigo 387.º do Código de Processo Penal lhe permite formular acusação e intervir na fase posterior, considerando-o, assim, a lei (artigo 392.º do mesmo diploma) acusador e, por isso, com legitimidade para recorrer, e dessa forma se deve interpretar extensivamente aquele n.º 2.º do artigo 647.º Tais decisões, nos termos do disposto no artigo 646.º, n.º 6.º, do mesmo Código, não eram susceptíveis de recursos ordinários, tendo transitado em julgado.
Desta forma o acórdão da secção criminal de fl. 22 a fl. 24, inclusive, ao mandar prosseguir o presente recurso, por existir a oposição e as demais condições constantes do dito artigo 669.º do referido Código, decidiu bem.
No prosseguimento dos autos, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu o seu parecer, devidamente fundamentado, de fl. 27 a fl. 29, no sentido de se lavrar assento na orientação de que tais ofendidos têm legitimidade para interpor recursos das decisões que lhes forem desfavoráveis, mesmo sem se constituírem assistentes.
Foi o processo aos vistos dos Exmos. Juízes Conselheiros deste Supremo e nada obsta a que se conheça do objecto do recurso.
No regime do Código de Processo Penal constante do Decreto 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, existindo as figuras do ofendido, do réu, do Ministério Público e da parte acusadora, só estes três últimos tinham legitimidade para recorrer (artigo 647.º, n.os 1.º e 2.º).
Os ofendidos podiam denunciar os ilícitos, indicando as provas a produzir, durante o chamado corpo de delito e constituir-se parte acusadora.
Sem esta constituição não podiam acusar, nem recorrer.
Com a publicação do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945, deixou de haver parte acusadora e criou-se a figura do assistente, considerado como auxiliar do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvo nas excepções da lei (artigo 4.º, seus números e § 1.º).
Continuou-se o sistema de ser necessária a constituição de assistente para se deduzir acusações, para intervir directamente na instrução contraditória, oferecendo provas e requerendo ao juiz as diligências convenientes (§ 2.º, n.os 1.º e 2.º, do dito artigo 4.º).
Pelo n.º 3.º deste § 2.º concede-se expressamente legitimidade ao assistente para recorrer do despacho de pronúncia definitiva e da sentença ou despacho que ponha termo ao processo, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
Também pelo § 4.º desse artigo 4.º, quando os assistentes formulem acusação por factos diversos dos que constituem objecto da acusação do Ministério Público, não poderão recorrer da decisão do juiz se este receber a acusação do Ministério Público.
Como novidade do nosso sistema processual penal, o artigo 27.º desse decreto-lei concedeu a faculdade ao denunciante, com legitimidade para se constituir assistente, de reclamar para o procurador da República na falta de dedução de acusação por parte do Ministério Público.
Com a publicação do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, surgiram algumas modificações do Código de Processo Penal, transcrevendo-se as que aqui interessam.
O artigo 387.º do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redacção:
As pessoas com legitimidade para intervir como assistentes poderão, no prazo de cinco dias a contar da notificação ao ofendido, e com base no inquérito policial, requerer o julgamento, indicando, sem dependência de artigos, o infractor, os factos que lhe são imputados, a lei que os pune, o rol de testemunhas e mais elementos de prova. O requerimento para julgamento deverá ser subscrito por advogado, sendo este patrocínio obrigatório na fase ulterior do processo. Quando se tratar de crime particular, deverá naquele requerimento ser pedida a admissão nos autos como assistente.
Também o artigo 392.º do mesmo Código, ao fixar o número de testemunhas de acusação, além do mais que preconiza, dispõe que, se «além da acusação do Ministério Público houver mais acusações, poderá o Ministério Público indicar até seis testemunhas e cada um dos acusadores oferecer mais duas testemunhas», e, «se diversas pessoas se tiverem constituído assistentes, cada uma delas poderá oferecer mais duas testemunhas».
Estas as disposições legais que mais interessam à resolução do problema em crise.
Como já se referiu, actualmente não há parte acusadora, mas assistente, ofendido e acusador.
Daqui resulta que fica sem aplicação o que sobre recursos prescreve o n.º 2.º e § 5.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal quanto à parte acusadora.
O legislador do Decreto-Lei 35007, ao criar o assistente em substituição da parte acusadora, sabendo que tais princípios daquele artigo 647.º não lhe podiam ser aplicados, pelo n.º 3.º do § 2.º do artigo 4.º concedeu-lhe legitimidade para recorrer despacho de pronúncia definitiva e da sentença ou despacho que ponha termo ao processo, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.
E, quanto ao preceituado no § 5.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal, não é preciso regra especial aplicável ao assistente, pois o aí legislado resulta directamente dos princípios sobre recursos constantes do regime processual civil (artigos 676.º, n.º 1.º, 680.º, n.º 2.º, 682.º, n.º 1.º, e outros do Código de Processo Civil) aplicável face ao § único do artigo 1.º do Código de Processo Penal, de que só se pode recorrer da parte de decisão desfavorável.
Daqui resulta também que tal n.º 2.º e § 5.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal não podem aplicar-se ao assistente, nem há disso necessidade.
Mas poderão aplicar-se tais preceitos ao ofendido que, sem se constituir assistente, deduza acusação nos termos do disposto no artigo 387.º do Código de Processo Penal? Parece-nos bem que não.
A nossa lei processual dispõe sempre sobre a possibilidade da prática de actos judiciais, os quais não são admissíveis sem lei expressa.
E, do exposto nestes autos, isso facilmente se conclui, bastando recordar que, quando o Decreto-Lei 35007 criou a figura do assistente, logo providenciou sobre a possibilidade de interpor recursos.
Porém, ao ser alterado o artigo 387.º do Código de Processo Penal, com a sua actual redacção, pelo Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, nada se legislou sobre a possibilidade de o ofendido-acusador poder interpor recursos, inserindo-se artigo ou disposição expressa nova, ou alterando a redacção do artigo 647.º do mesmo Código de Processo Penal.
E não se pode dizer que foi esquecimento, já que no artigo 392.º referido se regulamentou a indicação de testemunhas por parte de tal ofendido-acusador.
Alega-se não ser razoável permitir-se ao ofendido deduzir acusação e acompanhar o processo mediante patrocínio obrigatório na fase ulterior e não poder interpor recurso das decisões desfavoráveis.
Porém tal argumento não procede, já que no nosso sistema processual penal há algumas restrições em matéria de interposição e admissibilidade de recursos.
Podem ver-se os artigos 390.º, n.º 2.º, 397.º, § único, 646.º e outros do Código de Processo Penal e os artigos 20.º e 21.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, demonstrativos de tais restrições.
Não há, assim, que interpretar extensivamente o disposto no n.º 2.º e § 5.º do referido artigo 647.º para conceder legitimidade ao ofendido-acusador para interpor recursos.
Aliás, se tal aplicação se consentisse, não se fazia interpretação extensiva, mas aplicar-se-iam tais preceitos a uma situação que tais preceitos não enquadrou.
Com efeito, a parte acusadora referida nessas disposições legais já deixou de existir no nosso sistema processual penal e a figura do ofendido-acusador criada pelo artigo 387.º do Código de Processo Penal é diferente, tendo em vista, ao que parece, apenas a introdução do feito em juízo, dando possibilidades ao juiz de decidir sobre tal matéria.
E o contrôle da decisão do juiz através do recurso, no caso do ofendido-acusador, só poderá ser da iniciativa do Ministério Público, do réu ou do assistente, se existir.
Também da decisão do procurador da República sobre a reclamação que o artigo 27.º do Decreto-Lei 35007 facultará ao denunciante não há qualquer recurso ou nova reclamação.
Desta forma, sem necessidade de outras considerações, se lavra o seguinte assento:
O ofendido não assistente que formule acusação nos termos do disposto no artigo 387.º do Código de Processo Penal não tem legitimidade para recorrer da decisão judicial que a não receba.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 16 de Outubro de 1979. - Eduardo Botelho de Sousa - Ferreira da Costa - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Costa Soares - Artur Moreira da Fonseca - Hernâni de Lencastre - Aníbal Aquilino Ribeiro - Octávio Dias Garcia - Manuel Alves Peixoto - António Correia de Melo Bandeira - Augusto de Azevedo Ferreira - Adriano Vera Jardim - João Moura - Alberto Alves Pinto [vencido. O artigo 387.º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 8.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, ao facultar às pessoas com legitimidade para intervirem como assistentes no processo penal o direito de, nos crimes públicos ou quase públicos, requererem julgamento não pode ter o significado de conceder, contra o princípio expresso no artigo 2.º do Código de Processo Civil, esse direito sem a garantia do recurso.
A posição de parte no processo confere ao acusador legitimidade para recorrer.
Aliás, o n.º 2.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal não proíbe o recurso.
A regra é a da sua admissibilidade (artigo 645.º do Código de Processo Penal), pelo que só havendo lei a proibi-lo - e não é o caso - é que a parte que deduzisse acusação estaria impedida de impugnar por esse meio a decisão que lhe fosse desfavorável.
Não pode, assim, negar-se a quem exerça o direito conferido pelo referido artigo 387.º do Código de Processo Penal a faculdade de defender pelo recurso a sua pretensão] - António Furtado dos Santos (vencido, concordando com o douto voto que antecede) - Henrique Justino da Rocha Ferreira (vencido, pelas razões expostas pelo Exmo.
Colega Alves Pinto) - Oliveira Carvalho (vencido, pelas razões constantes do voto do Exmo. Colega Alves Pinto) - Miguel Caeiro (vencido, pelos fundamentos constantes do voto do Exmo. Colega Alvos Pinto) - Rui Corte Real (vencido, pelas razões do Exmo.
Colega Alves Pinto) - Francisco Bruto da Costa (vencido, pelos fundamentos do douto voto do Exmo. Colega Alvos Pinto) - Jacinto Rodrigues Bastos (vencido, pelas razões expostas no voto de vencido do Exmo. Conselheiro Alvos Pinto) - Daniel Jaime Ferreira (vencido, pelas razões expostas no voto do colega Alvos Pinto) - Abel de Campos (vencido, pelas mesmas razões) - Santos Victor (vencido, pelas razões expostas pelo Exmo. Colega Alves Pinto).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Outubro de 1979. - O Escrivão-Adjunto, Ângelo Rodrigues Lopes de Almeida.