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Acórdão 193/2001/T, de 17 de Julho

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Texto do documento

Acórdão 193/2001/T. Const. - Processo 584/2000. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - A Caixa Geral de Depósitos, S. A. (CGD), impugnou judicialmente a autoliquidação do IRC e derrama do exercício de 1993, com fundamento na dedutibilidade da derrama para efeitos de determinação do lucro tributável do exercício.

A impugnação foi julgada improcedente por sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância; dela recorreu a CGD para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), que, por acórdão a fl. 147, negou provimento ao recurso.

A decisão do STA assentou fundamentalmente no seguinte:

A redacção dada ao n.º 1 do citado artigo 41.º pela Lei 10-B/96, de 23 de Março, de natureza interpretativa, consoante o disposto no artigo 28.º, n.º 7, desta lei, atendeu à melhor caracterização do fenómeno económico-financeiro que se traduziria na indedutibilidade da derrama;

A lei interpretativa integra-se na lei interpretada retroagindo os seus efeitos à data da entrada em vigor do CIRC;

O artigo 28.º, n.º 7, da Lei 10-B/96, ao visar sanar um diferendo jurisprudencial, que não inovar na matéria, corresponde ao escopo das leis interpretativas, pelo que não assume o carácter inovatório que a recorrente lhe aponta quando diz que ele visa tornar retroactivamente aplicável a nova redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC com violação do princípio da legalidade tributária constitucionalmente consagrado;

O preceito não enferma de inconstitucionalidade - quando o legislador visa resolver com uma lei interpretativa uma questão que se prende com a certeza e igualdade na aplicação da lei que alicerçam o princípio da legalidade, logra liberdade de conformação com a Constituição desde que se não afaste do escopo interpretativo e se limite a fixar um dos sentidos da lei que vinha sendo jurisprudencialmente sustentado, como foi o caso.

É deste acórdão que vem interposto pela CGD o presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, pretendendo a recorrente a verificação da constitucionalidade do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, na redacção dada pelo n.º 1 do artigo 28.º, n.º 1, da Lei 10-B/86 e de acordo com o n.º 7 do mesmo preceito.

Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:

"I - A derrama é um imposto distinto e autónomo do IRC, e é ademais um imposto municipal, assente no princípio constitucional da autonomia financeira das autarquias locais;

II - Tendo em atenção a sua natureza autónoma face ao IRC, no exercício de 1993, na redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC então em vigor, é insustentável a interpretação de que a derrama não é custo fiscalmente dedutível, atento o estatuído no artigo 23.º do mesmo Código, sob pena de violação dos princípios da legalidade e tipicidade tributária consagrados expressamente no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, anterior n.º 2 do artigo 106.º;

III - Com efeito, a derrama não podia considerar-se prevista no mencionado artigo 41.º do CIRC, visto que tal interpretação não tem o mínimo de correspondência na letra do preceito nem cabe na sua ratio, uma vez que se trata de imposto autónomo do IRC;

IV - É que aquele preceito delimitando negativamente o âmbito do artigo 23.º do mesmo diploma elenca taxativamente os custos contabilísticos que não relevam para efeitos fiscais e tem, pois, natureza excepcional;

V - Desta forma, a interpretação daquela norma que considera que o imposto municipal da derrama não é dedutível para efeitos fiscais no exercício de 1993 faz uma aplicação analógica da alínea a) do artigo 41.º do CIRC;

VI - E a aplicação analógica desta norma, tratando-se de norma definidora de incidência tributária, viola frontalmente os princípios da tipicidade e legalidade tributárias decorrentes do n.º 2 do actual artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa, anterior artigo 106.º;

VII - Só com a redacção introduzida pela Lei 10-B/96, de 23 de Março, é que passou a constar daquele normativo, para além do IRC, também 'quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros' (abrangendo então na sua previsão a derrama);

VIII - Assim, a Lei 10-B/96 ao introduzir uma nova redacção àquele normativo assume um carácter inovatório e retroactivo não obstante se autoqualificar como lei interpretativa;

IX - E o conteúdo retroactivo pretendido atribuir à nova redacção dada à alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC pelo n.º 7 do artigo 28.º da Lei 10-B/96 é igualmente inconstitucional por violar o princípio da legalidade tributária consagrado no actual artigo 103.º, n.º 2, da Constituição (antigo artigo 106.º);

X - O regime fiscal decorrente da alteração ao disposto na alínea a) do artigo 41.º do CIRC, introduzida pela Lei 10-B/96, só pode ter aplicação aos exercícios fiscais posteriores à sua entrada em vigor;

XI - No que respeita à dedutibilidade da derrama em anteriores exercícios fiscais aplica-se o regime que decorre deste mesmo preceito na redacção que anteriormente vigorava visto que a obrigação tributária só pode ser regulada, na sua substância, pela lei vigente à data em que ocorrem os factos nela previstos;

XII - Por conseguinte deve igualmente ser declarada a inconstitucionalidade do n.º 7 do artigo 28.º da Lei 10-B/96, por violação do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da CRP nos moldes peticionados;

XIII - Consequentemente, aplicando-se ao caso dos autos a primitiva redacção daquele normativo terá de se aceitar como custo fiscalmente relevante no exercício de 1993 a quantia paga a título de derrama e por isso deverá ser anulada a liquidação do IRC nos ternos em que foi impugnada."

A representante da Fazenda Pública contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2 - A norma aplicada no acórdão recorrido é a que consta do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redacção introduzida pelo artigo 28.º, n.º 1, da Lei 10-B/96, de 23 de Março, e que, por força do n.º 7 do mesmo artigo, foi considerada de natureza interpretativa.

A norma daquele artigo 41.º, n.º 1, alínea a), estabelecia na sua primitiva redacção o seguinte:

"1 - Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos ou perdas de exercício:

a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incluindo as importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta;"

Na redacção agora em causa, esta alínea a) passou a dispor:

"O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros."

E, como atrás se disse, a esta nova redacção do preceito do IRC foi atribuída a natureza interpretativa.

A questão que deu lugar à dúvida que está na génese de uma tal alteração foi historiada no Acórdão 275/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39.º vol., p. 597, nos seguintes termos:

"Antes da reforma fiscal de 1988, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1989, o artigo 5.º, n.º 1, da Lei das Finanças Locais (Lei 1/87, de 6 de Janeiro) previa que os municípios podiam 'lançar derramas que não excedam 10% sobre as colectas liquidadas na respectiva área em contribuição predial rústica e urbana e em contribuição industrial' (sobre a situação do direito anterior vejam-se o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 69/84, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 345, pp. 72 e segs.; C. A. Carvalho Jordão, 'O problema da correcção legal, na liquidação das derramas municipais', in Scientia Ivridica, XXXVI, ano 1987, pp. 132-138; Soares Martinez, Direito Fiscal, 9.ª ed., Coimbra, 1997, pp. 485 e segs.; A. L. Sousa Franco, Finanças do Sector Público. Introdução aos Subsectores Institucionais, Lisboa, 1990-1991, pp. 470 e segs., sobre a evolução dos regimes de finanças autárquicas).

No domínio da versão originária da Lei de Finanças Locais de 1987, era entendido que a derrama era um imposto local autónomo, embora dependente, e não um imposto acessório, a ele ficando mesmo sujeitas as pessoas temporariamente isentas dos impostos principais (n.os 3 e 4 do artigo 5.º dessa lei). Tal solução fora, aliás, já consagrada pelo Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março (cf. Acórdão 606/95, do Tribunal Constitucional, in Diário da República, 2.ª série, n.º 64, de 15 de Março de 1996).

Com a eliminação do sistema de tributação directa antiga (impostos cedulares sobre o rendimento, com um imposto correctivo de sobreposição, o imposto complementar), por força de aprovação da reforma de 1988, foi publicado um novo diploma, o Decreto-Lei 470-B/88, de 19 de Dezembro, que deu nova redacção ao artigo 5.º da Lei das Finanças Locais, passando a determinar-se que os municípios podem 'lançar uma derrama, que não pode exceder 10% sobre a colecta do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica' (veja-se a apreciação da constitucionalidade do artigo 38.º da Lei 106/88, de 17 de Setembro, sobre a permissão de lançamento de derramas pelos municípios constante do Acórdão 57/95, n.º 13.2, in Diário da República, 2.ª série, n.º 87, de 12 de Abril de 1995).

A eliminação dos n.os 3 e 4 da redacção anterior do artigo 5.º da Lei das Finanças Locais pretendeu tornar a derrama um imposto acessório. voltando-se à opção legislativa da Lei das Finanças Locais de 1979. Nessa medida, a administração fiscal veio a entender que não podia o montante da derrama ser considerado como custo para efeitos da alínea f) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC ('Encargos fiscais e parafiscais') despacho de 13 de Fevereiro de 1990 (processo 85/90), referido pelo ora recorrente no artigo 5.º da petição de impugnação, solução que veio a constar da circular n.º 14/95, da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. A regra do acessorium principale sequitur impedia, pois, a consideração da derrama como custo fiscal, aplicando-se a norma do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do CIRC.

O entendimento da administração fiscal começou por ser sufragado pela jurisprudência da 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, mas um acórdão de 1 de Fevereiro de 1995 desse alto Tribunal afastou-se de tal entendimento, tendo decidido que a derrama devia ser considerada como custo fiscal, nos termos do artigo 23.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC. Nesse acórdão considerou-se que, sendo a regra geral a dedutibilidade de todos os encargos fiscais como custos, a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IRC seria excepcional e, por isso, insusceptível de aplicação analógica (cf. Rogério Fernandes Ferreira, criticando a doutrina do Acórdão de 1995, 'A derrama é ou não um custo fiscal?', in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 378, pp. 9-15). Nessa medida, não se podendo confundir os conceitos de IRC e de derrama, e não podendo ver-se a derrama como mero adicional do IRC, mas antes como um imposto local acessório deste, tinha que se concluir que a derrama não podia caber na norma excepcional da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IRC.

[...]

6 - Face a esta controvérsia jurisprudencial, o legislador fiscal interveio em 1996 esclarecendo que a derrama não podia ser considerada como custo fiscal, e que a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IRC (na redacção de 1996), era interpretativa do direito anterior."

Sobre a norma em causa foram proferidos por este Tribunal diversos acórdãos, a saber:

Acórdão 275/98 (ob. cit. e loc. cit.);

Acórdão 540/98 (inédito);

Acórdão 620/98 (in Diário da República, 2.ª série, de 18 de Março de 1999);

Acórdão 689/98 (inédito);

Acórdão 172/00 (in Diário da República, 2.ª série, de 25 de Outubro de 2000).

Nos primeiros quatro acórdãos a decisão foi de não inconstitucionalidade, em contrário do último, em que se formulou um juízo de inconstitucionalidade, com fundamento na violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, na versão posterior à revisão de 1997.

Só, porém, aparentemente, as soluções foram contraditórias. Na verdade, a diferença entre os quatro primeiros arestos e o último residiu tão-só no parâmetro de constitucionalidade por que a norma foi aferida: naqueles, a Constituição na versão anterior à revisão de 1997, neste, a Constituição na versão posterior à mesma revisão.

Neste aspecto, a opção assentou num mesmo critério: o momento em que fora proferido o acórdão recorrido. E assim é que, embora todos os acórdãos do Tribunal Constitucional tenham sido proferidos já na vigência da revisão de 1997, nos quatro primeiros, a circunstância de os acórdãos então impugnados datarem de antes da revisão de 1997 ditou a não ponderação do actual artigo 103.º, n.º 3, da CRP e, no último, o facto de o acórdão recorrido ter sido já posterior à mesma revisão determinou um julgamento de inconstitucionalidade assente no confronto com aquele preceito constitucional.

Daí resultou que, nos quatro primeiros acórdãos, não estando ainda constitucionalmente consagrado o princípio da não retroactividade da lei fiscal no momento da aplicação judicial da norma - e muito embora se reconhecesse que a ausência de tal princípio não determinasse, só por si, a constitucionalidade da norma e se admitisse, em certos casos, a violação do princípio da confiança (designadamente, quando a lei impõe "a retroactividade em termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes" - Acórdão 408/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. II, p. 1176, devendo ela ser qualificada como arbitrária, intolerável ou opressiva), se tivesse entendido que a retroactividade decorrente da adopção de uma lei interpretativa não tivesse, no caso, violado de forma intolerável ou chocante as expectativas dos contribuintes e, no último, se julgasse a norma inconstitucional por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP.

Este critério entronca, aparentemente, numa jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional sobre a aplicação da lei constitucional no tempo. Disso nos dá conta o recente Acórdão 556/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 6 de Fevereiro de 2001, onde se escreveu:

"Constitui jurisprudência corrente que, quando estão em causa normas constitucionais de competência, forma ou de procedimento - que relevam em termos de inconstitucionalidade orgânica ou formal -, o princípio a observar é o do tempus regit actus, ou seja, a competência e a forma dos actos normativos devem aferir-se pelas normas constitucionais vigentes no momento da sua produção.

Quando se trate de apurar a existência de contradição entre o conteúdo de uma norma de direito ordinário e o conteúdo normativo da Constituição - configurando-se um problema de inconstitucionalidade material (como é o caso dos autos) -, observou-se em jurisprudência deste Tribunal que se há-de atender, designadamente, 'às normas e princípios constitucionais resultantes de uma revisão constitucional posterior a essas normas infraconstitucionais, as quais, por virtude dessa revisão, podem tornar-se supervenientemente inconstitucionais' (assim, os Acórdãos n.os 408/89 e 597/99, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Janeiro de 1990 e de 24 de Fevereiro de 2000, respectivamente).

Neste sentido jurisprudencial, as normas ou princípios constitucionais a ter em conta são, em regra, os que estiverem em vigor no momento em que esse confronto houver de ser feito. É assim que, no Acórdão 408/89, se refere que: '[...] enquanto a inconstitucionalidade formal e a orgânica nascem com as normas e jamais as abandonam (mas também não podem sobrevir-lhes a posteriori), a inconstitucionalidade material existe ou deixa de existir no decurso da vigência temporária de uma norma, de acordo com o parâmetro constitucional vigente em cada momento'. E, concluiu-se neste aresto, 'quando esteja em causa a inconstitucionalidade material, o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada'."

Cabe, desde já, assinalar que o citado Acórdão 172/00 formulou o seu juízo de inconstitucionalidade sem ter afrontado a questão de saber qual a exacta dimensão do princípio da não retroactividade tal como vem expresso no artigo 103.º, n.º 3, da CRP {'Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos [...] que tenham natureza retroactiva'}, em especial quanto a saber se nele se compreendem leis verdadeiramente interpretativas relativas a um elemento essencial do imposto.

Crê-se, contudo, que, também aqui, se torna desnecessário tomar posição sobre uma tal questão, no ponto em que, no caso, ocorrendo os pressupostos de facto da obrigação do imposto muito antes da revisão constitucional de 1997 - sendo embora posterior o acórdão recorrido - o parâmetro de constitucionalidade será o texto constitucional anterior à revisão de 1997.

A tese que fez vencimento no Acórdão 172/00 deixa a descoberto uma incontornável consequência: a diferença de tratamento de situações tributárias contemporâneas pela única razão de as (últimas) decisões judiciais - nem já sequer a liquidação do imposto - que se pronunciam sobre a legalidade do imposto ocorrerem em momentos diversos. Diferença que, precisamente, o princípio da não retroactividade da lei fiscal repudia (sendo uma das suas mais sólidas razões fundantes) e é aqui fruto de um facto meramente aleatório.

A verdade é que a questão da aplicação da lei constitucional no tempo não pode dissociar-se quer do princípio geral da não retroactividade a que a Constituição não abre excepção para os seus princípios e normas quer do tipo de situações em causa e da natureza desses mesmos princípios e normas e dos sectores do ordenamento jurídico a que especificamente respeitam.

Não pode, com efeito, esquecer-se que, por exemplo, no contencioso administrativo, a intervenção judicial se faz para apreciação da legalidade de uma decisão da Administração que foi produzida num determinado momento e no quadro de um ordenamento jurídico então vigente, de acordo com o princípio, assente pacificamente, do tempos regit actum.

Não há, assim e em regra, qualquer razão para os princípios e normas constitucionais especificamente reguladoras desse contencioso se não regerem quanto à sua aplicação no tempo pelas mesmas regras que disciplinam o direito administrativo infraconstitucional.

E se se diz em regra é porque se não rejeita que, em situações de ruptura constitucional, os novos princípios ou normas adquiram uma força vinculante que se projecte para o passado.

No caso em apreço, está em causa a legalidade de um imposto cuja aferição se há-de reportar ao momento em que se verificaram os respectivos pressupostos de facto, como é comummente aceite na doutrina e na jurisprudência (cf., por todos, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, pp. 215 e segs.), e, por outro lado, a norma constitucional introduzida pela revisão de 1997 que seria convocável para aferir da constitucionalidade da norma que é objecto do presente recurso pertence ao que, na declaração de voto proferida no Acórdão 172/2000 pelo Presidente deste Tribunal, se qualifica de 'constituição fiscal', devendo estar sujeita ao mesmo princípio de aplicação da lei fiscal no tempo.

Isto mesmo se diz - e aqui se reitera - na citada "declaração de voto", a propósito do parâmetro de constitucionalidade então adoptado, que se passa a transcrever:

"2 - Ora, a respeito desse ponto, tudo está em que ele tem a ver ou se perfila como um problema de aplicação da Constituição no tempo, e em que é meu entendimento que um tal problema não só há-de equacionar-se nos mesmos moldes, como há-de obedecer, na sua solução, a princípios, e aos critérios estruturais em que estes se plasmam, idênticos ou semelhantes aos que regem para o problema da aplicação da lei no tempo.

Pois bem: desde logo se contando entre esses princípios, como princípio regra, o da não retroactividade - isto é, o de que as leis só valem, em princípio, para o futuro -, também desde logo o mesmo princípio se aplicará às normas constitucionais. E, que assim é, evidencia-o o próprio texto da Constituição Portuguesa de 1976, no n.º 2 do seu artigo 282.º - cujo alcance, a esse respeito, se afigura inequívoco. Face a este texto, na verdade, bem se deverá concluir que uma aplicação 'retroactiva' da lei fundamental há-de ser excepcional e apenas ocorrer em situações ou domínios específicos, por força de normas ou princípios também específicos dela (esse poderá ser, paradigmaticamente, o caso do domínio penal, quando aí caiba aplicar o princípio consignado na parte final do artigo 29.º, n.º 4, ainda da Constituição). Como regra, as normas constitucionais e suas alterações não se aplicarão retroactivamente.

Entretanto, da regra da não retroactividade já emerge que o momento determinante para a escolha da lei aplicável (quando duas leis se sucedam e conflituam no tempo) não é necessária e automaticamente o da decisão judicial (de uma qualquer decisão judicial) do caso, em termos de este dever ser resolvido de harmonia com a lei então em vigor; e se essa regra, de todo o modo, consente que em muitas situações seja assim (isto é, que se aplique a norma vigente no momento da decisão), a verdade é que, a tal respeito, tudo dependerá da matéria e do tipo de situações em presença, e dos critérios estruturais, postulados pela mesma regra (e desenvolvidos a partir dela), aplicáveis justamente a cada matéria e situação típica. Daí que - segundo a premissa inicial de que parto - também estes mesmos critérios hajam de observar-se quando, numa dada situação concreta, importe determinar o padrão constitucional relevante.

Ora, em matéria fiscal, e no tocante a normas 'substantivas' de tal domínio jurídico, o critério aplicável é o de que sob o império de tais normas caem as situações (só elas, mas todas elas) cujo facto gerador (o 'facto gerador' ou o 'pressuposto de facto' da imposição) tenha ocorrido durante a sua vigência - sendo o momento ou a época desse facto, ou pressuposto, pois, o decisivo, para a escolha da lei aplicável ratione temporis (e não, seguramente, o da aplicação administrativa ou judicial da lei). É esta a doutrina indiscutida, em toda a parte (entre nós, v., classicamente, Oliveira Salazar, "Da não retroactividade dos impostos", no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. IX, pp. 87 e segs.): impõe-na razões de segurança jurídica, mas também razões de igualdade (a que alguns chegam, aliás, a atribuir a primazia); por outro lado, é a que corresponde ao critério, tido como de âmbito geral, plasmado no artigo 12.º do Código Civil (cf. J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed., 1972, pp. 231 e segs.); e, por último, é (salvo alguma rara voz discordante) uma doutrina que cumprirá aplicar ainda quando a lei fiscal 'nova' seja de conteúdo mais favorável ao contribuinte (quanto a este preciso aspecto, v., decididamente, Teixeira Ribeiro, "Anotação", na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 106.º ano, pp. 74 e segs.).

Mas, se é assim, então - uma vez que os critérios estruturais de resolução do problema da aplicação no tempo de normas constitucionais e de normas legais não hão-de diferir entre si - os mesmos princípios acabados de referir valerão também para a determinação das normas ou princípios da 'constituição fiscal' relevantes numa dada situação tributária. O que significa que também essas normas e princípios constitucionais outros não poderão ser senão os vigentes à data em que ocorreu o 'facto gerador' dessa situação.

3 - Posto isto, torna-se claro que a norma constitucional em que expressamente passou a consignar-se, em termos genéricos, o princípio da proibição da retroactividade dos impostos, introduzida em 1997, só pode valer para eventuais normas tributárias retroactivas 'futuras'; isto é, emitidas e entradas em vigor após essa revisão da Constituição, e não para as que o hajam sido antes. É que, no tocante à 'dimensão retroactiva' de uma norma tributária quer dizer, à sua aplicação a situações anteriores ao início da sua vigência - o 'facto gerador' da imposição ocorre no momento da sua mesma entrada em vigor, pois é esta última, na verdade, que, conjugada com essas situações ou factos anteriores, gera a obrigação de imposto. Por consequência, e de acordo com o antecedentemente exposto, é à luz da 'Constituição' então vigente que caberá apurar da admissibilidade e legitimidade de uma tal dimensão normativa. Fazê-lo à luz de uma 'Constituição' ulterior (v. g., a vigente no momento da apreciação ou reapreciação contenciosa da legalidade da liquidação do imposto) equivalerá a conferir a essa nova 'Constituição' eficácia retroactiva - o que é, como se disse, contrário ao princípio regra básico da aplicação da Constituição no tempo.

Assim sendo, claro é também que a questão da legitimidade constitucional da norma do n.º 7 do artigo 28.º da Lei 10-B/96 - a qual, ao qualificar como 'interpretativa' a nova redacção dada pelo n.º 1 desse mesmo artigo ao preceito da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IRC, confere a essa nova redacção eficácia retroactiva - nunca haverá de ser aferida e decidida por referência ao que actualmente se consigna, de modo expresso, na parte final do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, mas sempre (e independentemente do momento em que ocorra a aplicação administrativa ou judicial dessa norma) por referência ao que antes (antes da revisão de 1997) se entendia ser o parâmetro constitucional a considerar em matéria de normas fiscais retroactivas.

4 - Eis por que discordei - e, desta vez, com grande força de convicção da orientação que vez vencimento no precedente acórdão. Resta-me, todavia, aduzir duas notas complementares.

A primeira será para destacar a possibilidade de o ponto de vista que ora perfilho encontrar afinal ainda algum arrimo, contra todas as aparências, no próprio Acórdão 408/89 (a matriz donde arranca a solução que veio a prevalecer), em certas suas passagens. Mas certamente o não encontra na fórmula chave desse aresto - a do relevo, para a decisão das questões de inconstitucionalidade 'material'; das normas ou princípios constitucionais 'que estiverem em vigor no momento em que esse confronto [o confronto da lei com a Constituição] houver de ser feito' -, esclarecido, como depois se esclarece, que tal momento é o da 'aplicação da norma que é questionada'. O que justamente entendo é que não basta recorrer à distinção entre os diferentes tipos de vícios de inconstitucionalidade, conjugada com a regra tempus regit actum, para delimitar o âmbito de aplicação de duas normas constitucionais que se sucedem no tempo, e decidir sobre qual delas será a aplicável na espécie: penso antes, pelas razões que atrás expendi, que ainda situações de eventual inconstitucionalidade 'material' haverá que devem ser apreciadas à luz da Constituição do tempo em que a norma legal questionada entrou a vigorar."

Na linha desta orientação que, no caso, se perfilha e sendo o imposto relativo à tributação de rendimentos ocorridos muito antes da revisão constitucional de 1997 (exercício fiscal de 1993), como muito anterior é a liquidação efectuada (1994), terá o Tribunal em conta, como parâmetro de constitucionalidade, o texto constitucional anterior àquela revisão, ou seja, o mesmo que foi adoptado nos quatro primeiros acórdãos supracitados embora por razões substancialmente diversas.

Mas, sendo assim, resta reiterar o decidido naqueles arestos - não inconstitucionalidade da norma do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redacção introduzida pelo n.º 1 do artigo 28.º da Lei 10-B/86, considerada interpretativa nos termos do n.º 7 do mesmo artigo 28.º - para cuja fundamentação se remete, sem necessidade de outras considerações, ficando igualmente prejudicadas (tal como sucedeu no Acórdão 275/98) as questões suscitadas pela recorrente sobre a inconstitucionalidade da interpretação analógica da norma.

Não merece, pois, censura o acórdão recorrido.

3 - Decisão. - Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.

Lisboa, 8 de Maio de 2001. - Artur Maurício - Vítor Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2037225.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-03-29 - Decreto-Lei 98/84 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Administração Interna

    Aprova o novo regime das finanças locais.

  • Tem documento Em vigor 1987-01-06 - Lei 1/87 - Assembleia da República

    Finanças locais.

  • Tem documento Em vigor 1988-09-17 - Lei 106/88 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a aprovar os diplomas reguladores do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e legislação complementar.

  • Tem documento Em vigor 1988-12-19 - Decreto-Lei 470-B/88 - Ministério do Planeamento e da Administração do Território

    Altera algumas disposições da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, relativa às receitas dos municípios.

  • Tem documento Em vigor 1996-03-23 - Lei 10-B/96 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 1996.

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