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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 5/2015, de 26 de Outubro

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Sumário

As mais-valias decorrentes de actos de alienação de acções detidas há mais de 12 meses que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho, particularmente no período compreendido entre 1 de Janeiro e 26 de Julho de 2010, continuam a seguir o regime legal de não sujeição a tributação previsto no n. 2, alínea a), do artigo 10.º do Código do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43.º do CIRS

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 5/2015

Processo 1292/14 - Pleno da 2.ª Secção

Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1 - A ...e B ..., com os demais sinais dos autos, dirigiram ao Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 25.º do Decreto-Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (regime jurídico da arbitragem em matéria tributária), recurso do acórdão proferido na sequência de pedido de pronúncia arbitral no processo 107/2014-T do CAAD, que teve por objecto o acto de liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2010 e respectivos juros compensatórios, no montante global de (euro) 1.072.733,80.

Invocam, para o efeito, a oposição desse acórdão arbitral com os acórdãos proferidos pela 2.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 4/12/2013 e de 8/01/2014, proferidos nos recursos com os nsº 01582/13 e n.º 1078/12, respectivamente, e rematam as alegações do recurso com o seguinte quadro conclusivo:

I. A decisão arbitral de que ora se recorre foi notificada aos Recorrentes em 03/10/2014, pelo que o recurso é tempestivo uma vez que deveria ter sido apresentado no prazo de 30 dias a contar de tal notificação (Cfr. n.º 3 do artigo 25.º do RJAT, e n.º 1 do artigo 152.º do CPTA);

II. A decisão arbitral recorrida entendeu que "o regime legal da tributação em IRS das mais-valias resultante da alteração àquele Código introduzidas pela Lei 15/2010 de 26 de Julho, teve em vista a sujeição ao novo regime da totalidade das mais-valias auferidas no exercício de 2010, e que tal comando legislativo não enferma de qualquer inconstitucionalidade, nem é afastado por qualquer outra norma legal que com ela se encontre numa relação de antinomia";

III. O douto acórdão da 2.ª Secção do STA de 04/12/2013 tirado no âmbito do processo 1582/13 e o douto acórdão da 2.ª Secção do STA de 08/01/2014 tirado no âmbito do processo 01078/12 decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentido precisamente oposto.

IV. Não há qualquer acórdão de uniformização de jurisprudência emitido pelo STA nem é conhecida qualquer jurisprudência desse mesmo supremo areópago que abone no sentido da decisão recorrida.

V. O presente recurso deve ser admitido porque se encontram verificados os respectivos pressupostos.

VI. As mais-valias produzidas antes de 27/07/2010, com a alienação de acções detidas há mais de 12 meses, continuam a seguir o regime de não sujeição que vinha determinado no n.º 2 do CIRS anteriormente às alterações introduzidas pela Lei 15/2010 de 26 de Julho.

VII. E como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43.º do CIRS.

VIII. A decisão recorrida violou do n.º 2 do artigo 12.º da LGT, conjugado com o artigo 5.º da Lei 15/2010, de 26 de Julho.

IX. Consequentemente deve ser revogada e substituída por outra que dê procedência ao pedido de pronúncia arbitral e determine a anulação das liquidações impugnadas, ordenando a restituição aos recorrentes dos montantes por eles pagos, acrescidos dos respectivos juros indemnizatórios.

X. Deve ser mantida a jurisprudência do STA constante dos acórdãos da 2.ª Secção do STA: (a) de 04/12/2013 tirado no âmbito do processo 1582/13; (b) e de 08/01/2014 tirado no âmbito do processo 01078/12.

Sem conceder:

XI. Mesmo que assim não se entenda, a interpretação da norma da Lei 15/2010 que revogou o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS no sentido de que tal revogação atingiria as mais-valias em acções obtidas antes da sua entrada em vigor, sempre seria inconstitucional por manifesta violação do princípio da confiança estipulado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

XII. O que igualmente determinaria a procedência da acção e anulação das liquidações impugnadas. Como é de inteira JUSTIÇA!

1.2 - A Autoridade Tributária apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:

I. A decisão que ora se pede, importando no conceito de facto gerador do imposto, culmina na questão de saber se as mais-valias obtidas no ano de 2010, antes da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do IRS pela Lei 15/2010, de 02 de julho, ou seja, antes de 27/07/2010, concorrem ou não para o saldo a que alude o artigo 43.º do mesmo Código.

II. O legislador da Reforma da Tributação do Rendimento, operada em 1989, adoptou o conceito de rendimento para efeitos de tributação que melhor expressasse o índice da capacidade dos seus titulares de pagar imposto, considerando como rendimento para efeitos de IRS todo o fluxo de carácter patrimonial que de forma evidente revelasse adequadamente a capacidade de pagar imposto por parte dos seus detentores.

III. No entanto, muito embora tenha adotado esta conceção de rendimento para efeitos de tributação, o legislador não deixou de evidenciar algum desvio a este princípio. A título de exemplo, tomemos o facto de, nomeadamente, consagrar no citado artigo 10.º do Código do IRS, uma exclusão da tributação das mais-valias mobiliárias, em determinadas condições.

IV. Esta situação de exclusão das mais-valias provenientes da alienação de ações vinha sendo, no entanto, desde há muito, e por muitos, criticada, nomeadamente, no que ela atenta contra os princípios de igualdade tributária e de equidade do próprio sistema de tributação do rendimento, designadamente e a este propósito Xavier de Basto in obra supra citada.

V. Efectivamente, tal exclusão de tributação veio a ser revogada com a aprovação da Lei 15/2010, de 26 de Julho. O legislador de 2010, ao não consagrar nenhuma norma de direito transitório que salvaguardasse a tributação de factos tributários em formação, quis, expressamente, que as situações de realização de mais-valias durante o ano de 2010, das quais resultasse um saldo positivo, fossem sujeitas a tributação efectiva, independentemente da data da sua realização.

VI. O IRS caracteriza-se por ser um imposto direto e periódico de carácter anual.

VII. E, como vem sendo defendido pela generalidade da doutrina, o facto gerador do imposto verifica-se em 31 de Dezembro de cada ano, só assim se compreendendo o carácter unitário e global da tributação do rendimento, muito embora haja um recorte analítico das várias categorias de rendimentos de acordo com a sua fonte.

VIII. Na verdade, o facto gerador não é sequer o ganho resultante da alienação mas, sim, o saldo positivo apurado em determinado período de tributação entre as mais e as menos valias realizadas.

IX. Com o devido respeito, defender que o facto gerador seja a alienação das acções que deram origem às mais-valias tributadas, além de desvirtuar o carácter anual do imposto é, salvo o devido respeito, atentar contra o seu carácter unitário, princípio básico e estruturante da Reforma da Tributação do Rendimento levada a cabo pelo legislador em 1989.

X. A norma em apreço, e de cuja aplicação aqui se cuida, traduziu-se, tão só, na revogação da exclusão da tributação de que beneficiava a alienação de acções detidas pelos seus titulares há mais de 12 meses.

XI. A este propósito, Manuel Faustino, in obra citada, "[...] a norma que dispõe que "o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias" não pode deixar de ser qualificada como uma norma de desenvolvimento das regras de determinação da matéria colectável, que não tenham natureza meramente procedimental, específicas para cada tipo de mais-valias que se inscrevem no correspondente capítulo do Código do IRS. E ainda, devendo igualmente merecer a mesma qualificação, tem de relevar-se a norma que, excepcionando a estanquicidade do princípio da anualidade do imposto, permite o reporte de perdas verificadas em anos anteriores a resultados positivos obtidos no ano e que, no momento da liquidação, podem anular o saldo positivo obtido no ano em causa.".

XII. Donde, resulta claro que a liquidação impugnada não viola o n.º 2 do artigo 12.º da LGT, porquanto a administração tributária não aplicou a Lei 15/2010, de 26 de Julho, a um facto decorrido antes da sua entrada em vigor, mas sim, a um facto tributário - o saldo positivo apurado para aquele ano de 2010 - facto que ocorre já depois da sua entrada em vigor, a 31 de Dezembro.

XIII. O facto tributário não foi gerado no momento do ganho das mais-valias, o que resulta, quer atendamos à anualidade do imposto, quer à formação do rendimento a tributar.

XIV. O valor dos rendimentos sujeitos a mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, conforme dispõe o artigo 43.º do código do IRS, sendo que o facto tributário sujeito a imposto só está completo no último dia do período de tributação.

XV. A revogação da disposição normativa em análise, que excluía do rendimento as mais-valias auferidas com a alienação de ações detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, aplica-se às mais/menos valias ocorridas durante todo o ano de 2010.

XVI. O que é consonante com a aplicação, ao ano completo, das novas taxas de IRS aprovadas pela Lei 11/2010, de 15 de Junho, com entrada em vigor a 16 de Junho, e a Lei 12/2010, de 30 de Junho, com entrada em vigor a 01 de Julho.

XVII. Da mesma forma, o IRS é um imposto anual em que se tributa o englobamento de todos os rendimentos recebidos num determinado ano, pelo que o período de tributação só se estabiliza no fim do ano fiscal, em 31 de Dezembro.

XVIII. Confiram-se ainda o n.º 4 do artigo 45.º e o n.º 1 do artigo 48.º da lei geral tributária que estabelecem que os prazos de caducidade e prescrição de dívidas fiscais nos impostos periódicos, como é o caso do IRS, contam-se a partir do fim do ano em que se verificou o facto tributário, que o mesmo é dizer que cada facto gerador de rendimento individualmente considerado - como o recebimento de um salário ou a emissão de um recibo de honorários - não é por si só considerado um facto tributário autónomo, atento o carácter anual do imposto

XIX. Interpretação diversa viola o princípio constitucional da igualdade, ínsito no artigo 13.º da CRP e bem assim o n.º 1 do artigo 104.º da Lei Fundamental.

XX. Com efeito, não se pode ter por admissível que, por exemplo, os rendimentos do trabalho auferidos ao longo do ano sejam considerados como constituindo um facto tributário único a 31 de Dezembro, e rendimentos de outra natureza pretendam escapar ao facto tributário único e beneficiar de um rendimento mais favorável.

XXI. Por outro lado, e salvo o devido respeito, seria quase abusivo que se defendesse que o regime instituído pela Lei 15/2010 padecesse de inconstitucionalidade por violação da proteção da confiança.

XXII. Com efeito, no mês anterior à publicação da Lei 15/2010, de 26 de Julho, foram publicados outros diplomas com medidas adicionais de consolidação orçamental que visaram reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).

XXIII. Efectivamente, o Tribunal Constitucional quando chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade da Lei 11/2010, de 15 de Junho, que criou um escalão adicional de tributação em IRS, sujeitando os rendimentos superiores a esse escalão a uma taxa de 45 %, decidiu que: "Ora apesar de a introdução do novo escalão de 45 % bem como o aumento da taxa de IRS em todos os escalões terem, por certo, como consequência o aumento do montante do imposto a pagar no momento da liquidação e cobrança do mesmo, isso não significa que exista uma expectativa constitucionalmente tutelada de que essas alterações tenham de ser todas efectuadas pelo legislador logo no dia 1 de Janeiro de cada ano. No caso em apreço, várias foram as razões que levaram o legislador a proceder a essas alterações já no decurso do ano fiscal".

XXIV. Toda a argumentação utilizada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 399/2010, vale mutatis mutandis para a questão ora controvertida.

XXV. A liquidação de IRS em causa nos presentes autos não está ferida de qualquer vício de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, como pretendem os Requerentes, posição, de resto, pugnada pela doutrina. Socorremo-nos, aqui, na explanação de Jorge Menezes Leitão, acima citada.

XXVI. Com efeito, quer "o pensamento do legislador - o elemento histórico-genético", quer o direito positivo, interpretado no sentido da prevalência da lei especial sobre a lei geral, e que determina a que o artigo 43.º, n.º 1, do CIRS afaste a aplicação do n.º 2 do artigo 12.º da LGT, permitem concluir que a aplicação da nova regulação às mais-valias obtidas durante todo o ano de 2010 não configura uma situação de retroatividade, porquanto a nova lei aplica-se ao saldo apurado entre as mais e menos valias obtidas no final do ano.

XXVII. "O Código do IRS é auto-suficiente quanto à aplicação no tempo das regras nele compreendidas: valem e têm eficácia por todo o período anual de tributação". E, continuando a citar Menezes Leitão: Justamente, como, a factualidade tributária relevante neste âmbito é constituída pelo saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias apurado em relação a todo o ano, a e nova que constitui a Lei 15/2010 deve aplicar-se a todas as mais-valias realizadas desde 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2010. A disposição constante do n.º 1 do artigo 43.º do CIRS constitui, assim uma norma especial que afasta, por si mesma, qualquer fraccionamento pro rata temporis do período anual de tributação, pois impõe antes a consideração do período de tributação desde o seu início e na sua integralidade.

XXVIII. Resulta pois, como vem de se citar, que a aplicação da Lei 15/2010 às mais-valias, em causa nos autos, não viola as regras de aplicação da lei no tempo, porquanto o facto tributário ocorre a 31 de Dezembro, sendo relevante a normatividade que estiver em vigor no dia do encerramento do período de tributação.

XXIX. Outro tanto se dizendo quanto à questão da constitucionalidade, a que já nos referimos, aderindo a toda a argumentação utilizada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 399/2010, que aqui vale, mutatis mutandis, para a questão ora controvertida.

XXX. Posto que, o acórdão recorrido não merece a censura que lhe vem assacada.

XXXI. Dizendo-se ainda que, ao contrário do alegado pelo A., o acórdão arbitral não é construído sobre uma "omissão de raciocínio", qual seja a de "passar por cima da norma que fixa a entrada em vigor da Lei 15/2010". Confira-se, o penúltimo parágrafo a fls. 6 do acórdão, e, bem assim, o raciocínio expendido no mesmo.

XXXII. Resulta pois, evidente, que a decisão ínsita no acórdão recorrido constitui a "melhor aplicação do direito".

1.3 - O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso devia merecer provimento e a decisão arbitral devia ser revogada e substituída por acórdão que, aderindo à doutrina do acórdão fundamento, determinasse a anulação do acto de liquidação sindicado e dos respectivos juros compensatórios, argumentando o seguinte:

«[...]

1.º - A periodicidade anual do imposto não justifica a aplicação retroactiva da Lei 15/2010, 26 julho, a factos tributários ocorridos antes do início da sua vigência, sob pena de violação do princípio sobre a aplicação da lei tributária no tempo.

A tese da decisão arbitral incorre no erro de confusão conceptual entre facto tributário instantâneo (ganho resultante de cada alienação onerosa) e facto tributário complexo de formação sucessiva (saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no período anual do imposto); [...]

Nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo.

Deste conjunto de operações resulta uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias, para efeito de apuramento da matéria colectável, sujeita a incidência de taxa especial ou a englobamento nos rendimentos das demais categorias.

2.º - O acórdão Tribunal Constitucional n.º 399/10, 27 outubro 2010 (invocado pela recorrente) é inaplicável ao caso concreto na medida em que, após considerações sobre o princípio da irretroactividade das leis fiscais:

- emite pronúncia sobre questão distinta: aplicação do artigo 68.º n.º 1 CIRS a todos os rendimentos auferidos no ano 2010 após as alterações introduzidas pela Lei 11/2010, 15 junho (novo escalão para rendimento colectável superior a (euro)150 000, sujeito à taxa de 45 %) e pela Lei 12-A/2010, 30 junho (aumento do valor da taxa de todos os escalões, incluindo o escalão e a taxa introduzidos pela Lei 11/2010, 15 junho);

- não declara a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 68.º n.º 1 CIRS, nas sucessivas redacções conferidas pelos diplomas supra identificados.

Conclusão

O recurso merece provimento.

A decisão arbitral impugnada deve ser revogada e substituída por acórdão anulatório da liquidação adicional de IRS e respectivos juros compensatórios, em consequência da adesão à doutrina do acórdão fundamento.»

1.4 - Face ao disposto no artigo 25.º do Dec. Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (regime jurídico da arbitragem em matéria tributária), a decisão proferida na sequência de pedido de pronúncia arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (n.º 2), sendo aplicável a tal recurso, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do CPTA (n.º 3).

Os Recorrentes indicaram dois acórdãos do STA como fundamento da invocada oposição, quando a orientação que tem sido perfilhada, de forma pacífica e reiterada, neste Supremo Tribunal, em matéria de recurso para uniformização de jurisprudência, é no sentido de que só no caso de o acórdão recorrido conter mais que uma decisão e o recurso se reportar a todas ou a várias delas, poderá ser indicado um acórdão em oposição para cada uma dessas questões; já se é uma única a questão relativamente à qual se pretende ocorrer oposição de julgados, deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento.

Todavia, constata-se que nos dois indicados acórdãos foi apreciada e decidida precisamente a mesma e única questão de direito, e que ambos sufragaram a mesma argumentação e solução jurídica, que se mostra, aliás, sumariada de forma idêntica. Pelo que se nos afigura que redundaria em acto inútil convidar os Recorrentes a eleger apenas um acórdão fundamento de entre os dois indicados, e que pode e deve considerar-se como acórdão fundamento o que foi nomeado em primeiro lugar, ou seja, o proferido em 4/12/2013, no proc. n.º 01582/13, cuja fundamentação foi, de resto, reproduzida no acórdão referenciado em segundo lugar.

1.5 - Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência do Pleno da Secção.

2 - Na decisão arbitral recorrida julgaram-se como provados os seguintes factos:

1 - As liquidações impugnadas têm por origem a correcção meramente aritmética à matéria colectável em IRS de 2010, por omissão à declaração de rendimentos de mais-valias obtidas com a alienação de acções em 30/03/2010, as quais eram detidas pelos Requerentes há mais de 12 meses.

2 - A AT determinou um acréscimo à matéria colectável no montante de (euro)4.917.819,42, sobre o qual fez incidir a taxa de tributação autónoma de 20 % prevista no n.º 4 do artigo 72.º do CIRS (na redacção em vigor a 31/12/2010).

3 - Como fundamento desta imposição, a AT considerou que a alteração ao Código do IRS introduzida pela Lei 15/2010 de 26 de Julho é aplicável às mais-valias com venda de acções obtidas antes da sua entrada em vigor, nomeadamente quanto à revogação do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS e à alteração da taxa de tributação constante do n.º 4 do artigo 72.º

4 - A liquidação em causa foi emitida, com fundamento no Relatório de inspeção Tributária, levada a cabo ao abrigo da Ordem de Serviço 0I20 1303441, notificado ao Requerente pelo Ofício n.º 69404/0505 datado de 2013/10/30.

5 - A liquidação em causa, deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2013 00005097639 que tinha prazo de pagamento voluntário até ao dia 18/12/2013.

6 - Em 18/12/2013 os Requerentes pagaram o imposto em dívida ao abrigo do Regime Extraordinário de Regularização de Dívidas estatuído pelo Decreto-Lei 151-A/2013, pelo que ficou dispensado do pagamento de juros compensatórios e moratórios, cifrando-se o valor pago pelos Requerentes em 18/12/2013 no montante de (euro)980.013,56.

7 - O Requerente, no início do ano de 2010, era titular de 102.000 acções da sociedade anónima "C..., S. A.", com o NIPC ..., representativas de 25,5 % do respectivo capital social.

8 - A sociedade em causa foi constituída em 14/12/1977 sob a forma de sociedade por quotas e transformada em sociedade anónima em 19/11/2004.

9 - As 402.000 acções, alienadas em 30/03/2010, faziam parte de um lote de mais alargado de acções que advieram à titularidade do Requerente entre os anos de 1977 (por ocasião da constituição da empresa) e 2008 (altura em que adquiriu um último lote de 5.175 acções por permuta).

10 - Considerando que as acções derivadas da transformação em sociedade por quotas assumem a data de aquisição das quotas que lhe deram origem, as acções da sociedade que o Contribuinte marido deteve ao longo do tempo foram adquiridas nas datas constantes do Quadro ínsito no final da página 3/15 do RIT:

a. Em 14/12/1977 adquiriu, na constituição da empresa, o correspondente a 20.000 acções (isto é as quotas respectivas) pelo preço total de 20.000$00;

b. Em 16/10/1998 comprou o equivalente a 310.000 acções (em quotas correspondentes) pelo preço total de 310.000$00;

c. Em 14/10/2002 vendeu o equivalente a 60.000 acções pelo preço total de (euro)84.375,00;

d. Em 19/11/2004, por altura da transformação da empresa em S. A., adquiriu 20.523 acções por incorporação de reservas;

e. Em 31/05/2006 vendeu 4.800 acções;

f. Em 05/03/2008 adquiriu, por permuta, 5.175 acções;

g. Em 07 /03/2008 vendeu 86.858 acções;

h. Em 07 /05/2009 vendeu 40 acções;

i. Em 13/10/2009 vendeu 102.000 acções.

11 - Pelo que, após a última das operações descritas, o Requerente ficou detentor de um lote final de 102.000 acções, que vieram a ser vendidas em 30/03/2010, à empresa "D..., S. A." pelo preço global de (euro)5.038.272,40.

12 - O valor de aquisição destas acções, vendidas em 30/03/2010, tomando em consideração o método de imputação, first in, first out (as primeiras adquiridas são as primeiras a serem vendidas), é o constante do Quadro final da página 10/15 do RIT, ou seja:

a. 96.825 acções têm um valor de aquisição unitário de (euro) 0.0046783, num total de (euro) 452,98 para este lote;

b. 5.175 acções têm um valor de aquisição unitário de (euro) 23,188406 num total de (euro) 120.00000 para este lote.

13 - Perfazendo-se, para as 102.000 acções vendidas, um valor de aquisição de (euro) 102.452,98.

14 - As datas da respectiva aquisição pelo Requerente, foram as seguintes:

a.76.302 acções em 16/10/1998;

b. 20.523 acções em 19/11/2004;

c. 5.175 acções em 05/03/2008.

3 - No acórdão fundamento consta como provada a seguinte matéria de facto:

1 - No ano de 2010 a Impugnante esposa alienou as seguintes ações por si detidas:

(ver documento original)

- cf. doc. de fls 18 e 19 dos autos.

2 - No Anexo G à declaração Modelo 3 - IRS, relativa ao ano de 2010, os Impugnantes declararam, entre o mais, o seguinte:

(ver documento original)

- cf. docs. de fls. 13 e 14 dos autos.

3 - Com base na declaração de rendimentos apresentada foi emitida a liquidação n.º 20115004624767, entre o mais, com o seguinte teor,

(ver documento original)

- cf. doc. de fls. 9 dos autos.

4 - A liquidação referida no ponto anterior foi paga em 7.9.2011. - cf. doc. de fls. 9 dos autos.

4 - Como se deixou já referido, a decisão proferida na sequência de pedido de pronúncia arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, sendo aplicável a tal recurso, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no artigo 152.º do CPTA.

Razão por que importa, desde logo, apreciar se existe contradição entre o acórdão arbitral recorrido e o acórdão fundamento quanto à mesma questão fundamental de direito.

Como é consabido, para apurar a existência da referida oposição é exigível que (i) se trate do mesmo fundamento de direito, (ii) que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica e (iii) que se tenha perfilhado solução oposta nos dois arestos: o que, como óbvio, pressupõe a identidade de situações de facto, já que sem ela não tem sentido a discussão dos referidos pressupostos.

Daí que este tipo de recurso tenha por pressuposto necessário a identidade dos factos subjacentes (que terão de ser essencialmente os mesmos do ponto de vista do seu significado jurídico) e uma identidade do regime jurídico aplicado (ainda que em invólucros legislativos diferentes), já que sem essa identidade não será possível vislumbrar a emissão de proposições jurídicas opostas sobre a mesma questão fundamental de direito, que careça de uniformização jurisprudencial.

Vejamos, então, se, no caso, ocorrem os enunciados requisitos legais.

Nos arestos em confronto estavam em causa liquidações adicionais de IRS referentes ao ano de 2010, provocadas pela consideração de mais-valias decorrentes de actos de venda de acções em data anterior a 27/07/2010, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CIRS, tributados à taxa especial de 20 % prevista no artigo 72.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, tudo de acordo com a disciplina legal introduzida pela Lei 15/2010, de 26 de Julho, que entrou em vigor em 27 de Julho de 2010. E a questão que em ambos se colocava era a de saber se a tributação dessas mais-valias devia ser determinada à luz da lei vigente à data dessa venda ou se devia, antes, ser determinada à luz da disciplina introduzida por essa Lei 15/2010.

O acórdão fundamento, confirmando a sentença da 1.ª instância, teve por aplicável a lei vigente à data da venda das acções, no entendimento de que as mais-valias derivam de um facto tributário instantâneo, que se produz e esgota no momento da venda, e que, nessa circunstância, a aplicação da Lei 15/2010 a um facto tributário instantâneo ocorrido antes da sua entrada em vigor representaria uma retroactividade autêntica, proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP. E tendo em conta que essa Lei se limitou a definir a data da sua entrada em vigor sem nada mais dizer sobre a respectiva aplicação temporal, julgou-se, face às regras legais sobre a aplicação da lei no tempo contidas nos artigos 12.º da LGT e 12.º do C.Civil, que o novo regime legal tinha aplicação apenas às mais-valias realizadas a partir do início da sua vigência.

Já a decisão arbitral, em clara e expressa discordância com a jurisprudência contida no acórdão fundamento - e que os ora Recorrentes haviam invocado em prol da sua tese - julgou ser aplicável às mais valias obtidas com a alienação de acções em 30/03/2010 o novo regime introduzido pela Lei 15/2010, por ter entendido que o facto tributário gerador das mais-valias é complexo e de formação sucessiva, por a tributação incidir sobre a diferença ou saldo entre as mais-valias e as menos-valias apuradas no final do ano, pelo que não haveria obstáculo à aplicação da Lei 15/2010 uma vez que ela se encontrava já em vigor nesse final de 2010, não ocorrendo, portanto, qualquer retroactividade proibida pela Constituição. Para além disso, argumentou que o diploma em causa, sendo uma lei especial, afasta o regime geral contido no artigo 12.º, n.º 2, da LGT, e, por isso, não constituiria uma ilegalidade a aplicação da lei nova na determinação das mais-valias realizadas nesse ano e decorrentes da venda de acções antes da sua entrada em vigor.

É, pois, notório que em face de situações de facto substancialmente idênticas e enquadradas no mesmo panorama jurídico, os arestos em confronto, divergindo tanto no que toca à natureza do facto tributário, como no que toca à aplicação da lei no tempo, ditaram soluções opostas quanto à determinação do regime legal aplicável às mais-valias decorrentes da venda de acções no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2010 e 26 de Julho do mesmo ano, verificando-se, assim, a invocada contradição sobre a mesma questão fundamental de direito.

Razão por que se passará, de imediato, ao conhecimento do objecto do recurso.

4.1 - A questão fundamental de direito que opõe a decisão arbitral ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo consiste em saber se é ou não legalmente admissível submeter a tributação das mais-valias decorrentes da venda de partes sociais (acções) no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2010 e 26 de Julho de 2010 ao regime legal instituído pela Lei 15/2010, que entrou em vigor no dia 27 de Julho do mesmo ano.

No que toca à situação fáctica em apreciação, importa reter que a referida Lei 15/2010 revogou o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, que, na sua alínea a), excluía da tributação as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo respectivo titular durante mais de 12 meses, e alterou o n.º 4 do artigo 72.º do mesmo diploma, fixando em 20 % a taxa especial de tributação que era, anteriormente, de 10 %.

Sob o ponto de vista constitucional, ambos os arestos consideraram que a proibição da retroactividade das normas de natureza fiscal, a que alude o artigo 103.º, n.º 3, da CRP, veda a aplicação da lei nova a factos que tenham produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga. A divisão surge, porém, quanto ao momento em que ocorre o facto tributário que origina a obrigação tributária em questão: segundo o acórdão fundamento, o facto tributário é instantâneo, nascendo e completando-se no momento da alienação, dado que se consubstancia no incremento patrimonial que nela se realiza, enquanto segundo a decisão arbitral o facto tributário é complexo e de formação sucessiva, completando-se apenas no final do ano, dado que a tributação incide sobre a diferença ou saldo entre as mais-valias e as menos-valias apuradas no termo do exercício.

E tal problemática tem de ser prioritariamente analisada e resolvida, porquanto a norma que regula a aplicação da lei tributária no tempo, contida no artigo 12.º da LGT e que tem aplicação caso o legislador não regule expressamente a questão da aplicação no tempo de uma nova lei, estabelece que «1. As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos» e «2. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor». O que constitui a reafirmação do princípio geral de direito firmado no nosso sistema jurídico e constante do artigo 12.º do Cód.Civil, como do princípio constitucional da irretroactividade da lei tributária constante do artigo 103.º da CRP.

Vejamos, pois, tendo em atenção que se trata de matéria assaz controversa, que tem vindo a obter decisões opostas e contraditórias no seio do próprio tribunal arbitral (como se pode ver pela leitura nomeadamente, das seguintes decisões arbitrais: de 10/08/2012, no Proc n.º 25/2011-T, de 31/03/2015, no Proc. n.º 770/2014-T, de 18/01/2014, no Proc. n.º 135/2013-T, e de 27/02/2015, no Proc. n.º 509/2014T) (1), algumas das quais acolhem a posição sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo nos dois arestos que proferiu sobre a matéria, e outras divergem dela, como sucedeu no caso da decisão recorrida.

Como se sabe, os acréscimos patrimoniais que o Código do IRS considera como mais-valias tributáveis na Categoria G correspondem, essencialmente, a ganhos resultantes de uma valorização de bens (os denominados "ganhos trazidos pelo vento" ou windfall gains no dizer anglo-saxónico), cujo tratamento fiscal na legislação portuguesa contém muitas especificidades, desde logo face à opção, por parte do legislador, de apenas tributar as mais-valias no momento da realização (o que contradiz a teoria do rendimento-acréscimo, que caso fosse adoptada implicaria que fossem sujeitas a tributação todas as valorizações patrimoniais ocorridas, quer fossem ou não realizadas).

Com efeito, em matéria de incidência de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, o Código do IRS estabelece que "constituem mais-valias os ganhos obtidos que [...] resultem da alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários" e determina que "os ganhos consideram-se obtidos no momento da alienação" - artigo 10.º, n.º 1, al. b), e nsº 3 e 4. Isto é, estabelece, de forma clara e inequívoca, que os incrementos patrimoniais ou ganhos derivados da alienação onerosa de partes sociais, que se consubstanciam na diferença entre o valor da aquisição e o valor de realização desses bens, constituem mais-valias que se consideram obtidas no momento da alienação.

Por conseguinte, as mais-valias surgem logo que o valor arrecadado pelo respectivo titular/transmitente é superior ao valor pelo qual adquirira o bem, isto é, logo que ocorre a alienação e é alcançado o inerente ganho. O que quer dizer que é neste ganho, obtido no momento da alienação, que reside o facto tributário gerador das mais-valias. E sendo o ganho medido pela diferença entre o valor de realização e o da aquisição do próprio bem, e, por conseguinte, avaliado em cada concreto acto de alienação, torna-se claro que a mais-valia se reporta a cada ganho de per si.

Razão por que, com o devido e enorme respeito por todos aqueles que advogam e subscrevem a tese que obteve acolhimento na decisão arbitral recorrida, consideramos que o facto tributário se reporta ao momento em que se realizam as mais-valias, ou, por outras palavras, o facto tributário que as origina e conforma nasce e esgota-se no preciso momento (autónomo e completo) da alienação e coetânea realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo, e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano.

É certo que as mais-valias, tal como os demais rendimentos sujeitos a IRS, são declaradas anualmente (artigo 57.º do CIRS) e que o rendimento colectável anual do sujeito passivo corresponde ao saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias que se tenham concretizado no mesmo ano (artigo 43.º n.º 1 do CIRS). Mas essa operação de agregação entre as mais-valias e as menos-valias não tem a virtualidade de alterar ou transmutar a natureza dos factos tributários subjacentes. O que daí pode concluir-se é, apenas, que as mais-valias e as menos-valias alcançadas durante o mesmo ano são declaradas num único momento - na declaração anual de IRS - e que ambas concorrem para o apuramento do saldo final que vai servir para determinar e quantificar o rendimento anual sujeito a tributação em IRS.

Por outras palavras, a norma que prevê a agregação necessária ao apuro do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias em face de todos os actos de alienação ocorridos no ano, constitui uma norma sobre a determinação da base tributável para efeitos de IRS, isto é, uma norma sobre a determinação do rendimento colectável, e não uma norma sobre a incidência, como, de resto, ressalta da organização sistemática do Código do IRS, onde a referência a esse saldo se encontra inserida no capítulo que trata da determinação do rendimento colectável e não no capítulo que trata da incidência do imposto. (2) E, como é óbvio, o facto tributário tem de ser localizado no tempo em face da respectiva norma de incidência, e não em face da norma de determinação do rendimento colectável.

Em suma, o saldo positivo que será tributado não se confunde com o facto tributário em si. Tal saldo tem relevo apenas para o acerto do rendimento colectável e determinação da obrigação de pagamento de imposto que emerge (ou não) para o sujeito passivo em sede de IRS, carecendo de relevo para a formação do facto tributário em si, já que este, como se viu, surge isolado no tempo, ocorrendo por mero efeito da obtenção do ganho no momento de cada acto de alienação dos bens mobiliários em questão.

E o facto de o IRS ser um imposto de natureza periódica não inviabiliza que seja composto por rendimentos de formação instantânea e por rendimentos de formação sucessiva. Com efeito, enquanto alguns rendimentos são, pela natureza do seu facto gerador, de formação sucessiva no tempo (3), já outros, como os acréscimos patrimoniais que a lei fiscal considera como mais-valias tributáveis na Categoria G, provêm de operações isoladamente realizadas ou instantâneas, em que cada facto gerador se apresenta como autónomo e completo, isto é, sem exigência de qualquer facto ou ocorrência posterior.

Por tudo isto, somos levados a sufragar a posição acolhida no acórdão fundamento, cuja argumentação jurídica, dado o seu grau de convincência, consideramos ser essencial reproduzir.

«No que se reporta às mais-valias estas constituem aumentos inesperados do valor dos ativos patrimoniais, não sendo por definição um rendimento-produto, por não constituírem a contrapartida da participação na atividade produtiva (cf. neste sentido, José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 379).

Um dos princípios gerais da sua tributação é, desde logo, o princípio da realização, isto é, só há tributação quando a mais-valia é realizada, quando o ativo é transacionado, excluindo-se de tributação os aumentos de valor dos activos que não tenham sido objeto de alienação onerosa.

[...].

Em sede de IRS, o artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Código insere no campo de incidência da tributação as mais-valias de partes sociais e valores mobiliários, sendo que esta incidência supõe a realização da mais-valia, ou seja, a sua alienação onerosa. E é esta alienação onerosa o facto gerador (vd. José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397).

Como escreve José Guilherme Xavier de Basto (in IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397 e 427) "No que respeita ao momento em que o imposto é exigível [...] rege o n.º 3 do artigo 10.º, que estabelece, como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1". Quer dizer, o facto gerador reporta-se ao momento do ato que "realiza" a mais-valia. Dir-se-á, em termos gerais, que o momento relevante é, pois, o da alienação do activo em que se apuraram mais-valias tributáveis, ou operação a ela equiparada.". Daqui resulta que, em geral (opostamente ao que sucede na alínea b) deste normativo), a exigibilidade do imposto coincide com o momento em que se verifica o seu facto gerador.

Quanto ao seu regime fiscal, no caso das mais-valias mobiliárias, ele passa pela não obrigatoriedade do englobamento das mais-valias tributáveis (72.º, n.º 7 do CIRS) e pela tributação a uma taxa especial (artigo 72.º, n.º 4 do CIRS). E nos termos do artigo 43.º, n.,º 1 do CIRS o que se tributa nas mais-valias é "o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano".

Assim, optando pelo englobamento os rendimentos de mais-valias (ou melhor o saldo entre mais-valias e menos-valias) serão adicionados aos demais rendimentos para que sejam tributados pela globalidade às taxas gerais aplicáveis à situação particular, em função da totalidade dos rendimentos englobados. Não optando pelo englobamento, a mais-valia apurada é sujeita a tributação a uma taxa especial.

Ora, é bom de ver que no caso das mais-valias de participações sociais sendo o facto gerador do imposto a sua alienação onerosa, não estamos perante um facto tributário complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas sim perante um facto tributário instantâneo.

O facto tributário que dá origem ao imposto esgota-se na realização da mais-valia (Atente-se que já o imposto de mais-valias era tido como de obrigação única - cf. Ac. do STA de 18.1.1995, P. 18287).

E a este entendimento não obsta a circunstância de ser tributado "o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano", pois que o que está em causa no artigo 43.º, n.º 1 do CIRS é, ao lado das normas que regem a determinação do ganho sujeito a imposto, a determinação da matéria coletável no que se reporta aos rendimentos resultantes de mais-valias.

Trata-se, a nosso ver, de uma situação semelhante às tributações autónomas em sede de IRC, onde se concluiu que "o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação [...]" [cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 310/2012].

Com efeito, também nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeito de apuramento da matéria coletável, sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias.

A similitude com as situações de tributação autónoma é ainda maior quando, como in casu, o contribuinte não opta pelo englobamento, já que aqui ocorre verdadeiramente uma tributação separada, por aplicação de uma taxa fixa (vd. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS; Almedina, 2.ª edição, p. 171). Ou seja, a taxa vai ser aplicada ao saldo anual, não havendo qualquer influência da grandeza desse saldo na determinação da taxa.

Tendo em conta que a "[...] a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se." (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).

Entendemos que no caso da tributação das mais-valias estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, sem prejuízo de a matéria coletável ser apurada anualmente.».

Por conseguinte, e em suma, os ganhos qualificados como mais-valias resultantes da alienação onerosa de acções consideram-se, por força de expressa determinação legal, obtidos no momento da alienação; e daí que a alienação em causa na decisão arbitral recorrida, realizada em 30/03/2010, se configure como um facto gerador instantâneo e autónomo, que não carece de qualquer evento posterior para se completar. Ademais, tendo existido essa única operação de alienação durante o ano de 2010, o facto tributário sempre se teria esgotado nessa transacção, não fazendo sentido invocar a necessidade de realização de uma operação de apuro de um saldo com outros (inexistentes) incrementos patrimoniais.

Posto isto, a questão que importa passar a conhecer é a da aplicação da lei no tempo, isto é, a de saber qual a lei aplicável aos ganhos obtidos com a alienação de acções ocorrida em 30/03/2010 e detidas pelo seu titular por mais de 12 meses, tendo em conta que nesse momento estava em vigor o artigo 10.º, n.º 2, al. a), do CIRS, segundo o qual "excluem-se do disposto no número anterior (4) as mais-valias provenientes da alienação de: acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», mas que essa norma foi revogada pelo artigo 2.º da Lei 15/2010, de 26 de julho.

Esta Lei 15/2010 é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que "A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação". O que não pode deixar de representar uma opção silente do legislador no que toca a essa matéria, até porque essa problemática, da aplicação no tempo das alterações legislativas que o diploma veio introduzir na tributação das mais-valias, foi colocada e discutida no quadro do debate parlamentar que precedeu a aprovação desta Lei.

Ora, tendo o legislador optado por não disciplinar essa matéria, limitando-se a determinar a data da entrada em vigor do diploma no dia seguinte ao da sua publicação, sem estabelecer qualquer norma que permitisse a sua aplicação a um período tributário anterior, impõe-se, necessariamente, aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12.º da LGT, sendo insustentável afastar tal regra ou princípio geral com o argumento de que existirão elementos históricos e genéticos que permitem inferir que o legislador terá pretendido que a lei nova se aplicasse a todas as transmissões realizadas no ano de 2010. É que ainda que fosse essa a vontade inicial do legislador, o certo é que acabou por não a expressar e conformar no texto legislativo, e tal conduz, necessariamente, à aplicação do princípio geral sobre a aplicação da lei tributária no tempo, segundo o qual as normas tributárias se aplicam apenas aos factos posteriores à sua entrada em vigor.

Razão por que consideramos que a lei aplicável é a vigente na data da ocorrência do facto tributário instantâneo gerador. E não há, no caso, qualquer dificuldade em situar esse facto no tempo, dado que a alienação é datada (30/03/2010), nem há qualquer questão que se coloque quanto ao princípio da progressividade do imposto, já que a consequência da aplicação do artigo 12.º n.º 1 da LGT é a não consideração das mais-valias em questão para efeitos de liquidação do imposto.

Assim sendo, também no que diz respeito a esta questão, de saber se a liquidação em análise respeitou as regras de aplicação da lei tributária no tempo consignadas no artigo 12.º da LGT, se subscreve a argumentação jurídica tecida no acórdão fundamento.

E por todo o exposto julgamos ser claro que, no caso, ocorreu a aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados em momento anterior à data da sua entrada em vigor, o que envolve uma retroactividade autêntica, porquanto o que para esse efeito releva não é o momento da liquidação ou do apuramento do imposto, mas o momento em que ocorre o facto tributário que determina uma eventual liquidação e pagamento de imposto, pois é nessa altura que se exige que se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento do tributo (em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança), de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.

Em conclusão, as mais-valias em discussão nestes autos estão sujeitas ao regime legal vigente à data da venda, e preenchendo os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2, al. a), do CIRS, estão excluídas de tributação, sendo, por isso, ilegal a liquidação que sobre elas incidiu.

Pelo que se impõe anular a decisão arbitral recorrida (cf. n.º 6 do artigo 152.º do CPTA), por errada interpretação dos mencionados preceitos legais do CIRS e da Lei 15/2010, e julgar procedente o pedido de anulação da liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2010 formulado no processo 107/2014-T do CAAD - o que implica a restituição do imposto pago e o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos (tendo em conta que o imposto foi pago em 18/12/2013, com dispensa do pagamento de juros compensatórios e moratórios ao abrigo do Regime Extraordinário de Regularização de Dívidas, criado pelo Dec. Lei 151-A/2013).

5 - Pelo exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, anular a decisão arbitral recorrida e julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRS formulado no processo 107/2014-T do CAAD, com todas as devidas e legais consequências.

Custas pela Autoridade Tributária, que contra-alegou neste Supremo Tribunal.

Publique-se (artigo 152.º, n.º 4, do CPTA).

(1) E que cujo texto integral pode ser consultado através do seguinte site: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/

(2) As normas de incidência real do IRS são as que constam dos artigos 1.º a 12.º do Código do IRS, reportadas a factos abstratos que podem ocorrer, em concreto, na esfera jurídica dos sujeitos passivos, tal como identificados nas normas de incidência pessoal contidas nos artigos 13.º a 21.º do mesmo Código.

(3) Como os rendimentos das categorias A, B, F e H, em que os rendimentos e respetivas deduções se vão sucedendo no tempo, sendo o imposto liquidado em função dos escalões e taxas marginais que resultam da agregação destas categorias.

(4) Isto é, excluem-se do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, que prevê a sujeição a IRS dos ganhos (mais-valias) obtidos com a alienação onerosa de partes sociais.

Lisboa, 16 de Setembro de 2015. - Dulce Manuel da Conceição Neto (relatora) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - José da Ascensão Nunes Lopes - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Pedro Manuel Dias Delgado - Ana Paula Fonseca Lobo - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1881636.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2010-06-15 - Lei 11/2010 - Assembleia da República

    Altera o Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.

  • Tem documento Em vigor 2010-06-25 - Lei 12/2010 - Assembleia da República

    Segunda alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/100/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 20 de Novembro, reconhecendo os títulos profissionais búlgaros e romenos e permitindo o exercício da profissão de advogado em Portugal.

  • Tem documento Em vigor 2010-06-30 - Lei 12-A/2010 - Assembleia da República

    Aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).

  • Tem documento Em vigor 2010-07-26 - Lei 15/2010 - Assembleia da República

    Introduz um regime de tributação das mais-valias mobiliárias à taxa de 20 % com regime de isenção para os pequenos investidores, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de Novembro, e o Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 215/89 de 1 de Julho.

  • Tem documento Em vigor 2011-01-20 - Decreto-Lei 10/2011 - Ministério das Finanças e da Administração Pública

    Regula, no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, o regime jurídico da arbitragem em matéria tributária,

  • Tem documento Em vigor 2011-04-21 - Lei 10/2011 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de dispensa gratuita de medicamentos após alta de internamento, pelos serviços farmacêuticos dos hospitais que integram o Serviço Nacional de Saúde (SNS), independentemente do seu estatuto jurídico.

  • Tem documento Em vigor 2013-10-31 - Decreto-Lei 151-A/2013 - Ministério das Finanças

    Aprova um regime excecional de regularização de dívidas fiscais e à segurança social, cujo prazo legal de cobrança tenha terminado até 31 de agosto de 2013.

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