Acórdão 284/2000 /T. Const. - Processo 305/2000. - I - 1 - Do Acórdão proferido em 9 de Março de 1999 pelo tribunal colectivo do 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Loures e que o condenou na pena única de oito anos e seis meses de prisão pela prática de factos que foram subsumidos ao cometimento de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alíneas c), f) e g), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 275.º, n.os 1 e 2, do mesmo Código, e 3.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, recorreu o arguido Carlos Gomes Osório de Carvalho para o Supremo Tribunal de Justiça.
Este, por Acórdão de 24 de Junho de 1999, porque entendeu que o recurso não visava exclusivamente matéria de direito, não conheceu do recurso, o que motivou a representante do Ministério Público a requerer a aclaração daquele aresto no sentido de se saber se no mesmo se perfilhou a óptica segundo a qual não havia lugar à aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 33.º do Código de Processo Penal, ou seja, a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, acrescentando que, a ser adoptada tal óptica, isso representaria uma interpretação daquele normativo atentatória do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
Por Acórdão de 14 de Outubro de 1999, veio o Supremo Tribunal de Justiça a dizer, inter alia:
"Efectivamente, dir-se-á aí a este respeito que, abordando o recurso matéria de facto, nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o recorrente terá de interpô-lo para o Tribunal da Relação, sob pena de transitar em julgado a respectiva (de) decisão (ou seja a decisão da 1.ª instância) - v. o ponto 2 do acórdão, a fl. 240 v.º
Ora, face ao decidido, é obvio que é esta a situação que ocorre in casu. De facto, como o presente recurso, por versar matéria de facto, foi indevidamente interposto para este Supremo Tribunal, é evidente que este Tribunal dele não pode conhecer. E não há que remetê-lo para a Relação competente, pois, entretanto, transitou em julgado a decisão da 1.ª instância, por dela não ter sido interposto, em tempo, recurso para a dita Relação. E disto só o recorrente foi culpado.
Enfim, face a esta situação, não há lei que imponha a referida remessa, nem mesmo o artigo 33.º, n.º 1, do CPP, que não se coloca no plano da competência hierárquica que é o que aqui ocorre (note-se que neste plano não é configurável um conflito de competência), mas só quando estiverem em causa tribunais que funcionem em 1.ª instância - v. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, 7.ª ed., pp. 106 (nota 2 ao artigo 27.º) e 113 (nota 3 ao artigo 33.º)."
Do Acórdão de 24 de Junho de 1999, aclarado pelo Acórdão de 14 de Outubro do mesmo ano, veio a representante do Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e com vista à apreciação da inconstitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 427.º, 428.º, n.º 1, 432.º, alínea d), e 33.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal "quando interpretados no sentido de que a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo, no qual se invoque a existência de vício a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, implica a irremediável preclusão de recurso para o Tribunal da Relação, por, entretanto, ter transitado o acórdão recorrido".
Não tendo o recurso sido admitido por despacho proferido pelo conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça em 12 de Novembro de 1999, dele reclamou a representante do Ministério Público para o Tribunal Constitucional, o qual, pelo Acórdão 155/2000, deferiu a reclamação, nele se dizendo, por entre o mais:
"Ora, está em causa um complexo normativo que é, se assim se pode dizer, 'comandado', no caso, pelo n.º 1 do artigo 33.º do CPP - a implicar a remessa do processo para o tribunal competente. A não observância deste normativo - a sua não aplicação - constitui objectivamente uma surpresa, na medida em que os demais como que o pressupõem.
O certo é que estas últimas normas - as dos artigos 427.º, 428.º, n.º 1, e 432.º, alínea d), do CPP - foram autonomizadas daquele artigo 33, n.º 1, na decisão recorrida, para dar sentido ao afastamento da aplicação do artigo 33.º, n.º 1. Ou seja, tais normas foram aplicadas no sentido de que o artigo 33.º, n.º 1, não é aplicável aos recursos.
São pois estas normas, com essa interpretação, que constituem o objecto do recurso.
O insólito da decisão resulta, precisamente, da interpretação que, na verdade, deu à norma do n.º 1 do artigo 33.º, ao não remeter os autos para o tribunal competente, como na mesma se ordena, e, antes, considerando precludido o recurso para este último [...]"
2 - Determinada a feitura de alegações, determinação essa na qual se fez referência a qual deveria ser o objecto do recurso, ponderado o decidido no Acórdão 155/2000, rematou o recorrente a por si efectuada com as seguintes "conclusões":
"1 - A interpretação normativa dos preceitos que delimitam as competências para apreciação dos recursos penais pelas relações e pelo Supremo Tribunal de Justiça - dos quais decorre que só há recurso directo para o Supremo quando incida sobre decisões do colectivo e vise exclusivamente o reexame da matéria de direito -, traduzida em considerar absolutamente irremediável e preclusivo o erro do recorrente na determinação do tribunal hierarquicamente competente para apreciar o recurso interposto - não admitindo nem o suprimento oficioso de tal incompetência nem facultando ao recorrente oportunidade processual para direccionar correctamente o recurso, e considerando que tal vício determina o não conhecimento in totum das questões suscitadas (não reduzindo o objecto do recurso às 'questões de direito' suscitadas pelo recorrente) - viola os princípios consignados nos artigos 20.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."
Ponderando a circunstância de o arguido se encontrar preso preventivamente desde 26 de Março de 1998, foram dispensados os "vistos", com a finalidade de, mais celeremente, se obter decisão no presente caso.
Cumpre, por isso, decidir.
II - 1 - Determina o artigo 427.º do Código de Processo Penal que, exceptuados "os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação"; já no n.º 2 do artigo 428.º se comanda que, sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º, as declarações do Ministério Público, do defensor, do advogado do assistente e das partes civis, estas no tocante ao pedido de indemnização, de que prescindem de documentação da audiência perante tribunal singular, ou a falta de requerimento, em processo sumário ou no processo abreviado e por parte de quem tiver legitimidade para recorrer da sentença, a solicitar a documentação dos actos de audiência, vale como renúncia ao recurso em matéria de facto; a alínea d) do artigo 432.º estatui, por seu lado, que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça dos "acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame de matéria de direito"; por último, o n.º 1 do artigo 33.º estipula que, declarada "a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os actos que se não teriam praticado se perante eles tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa".
Está, pois, em causa a interpretação do complexo normativo acima indicado de harmonia com a qual, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não deve determinar a remessa do processo ao tribunal da relação nem apreciar somente a matéria de direito, assim se precludindo qualquer forma de reapreciação daquela decisão.
Adiante-se, desde já, que uma tal interpretação, que denota desde logo um acentuado formalismo, se anteolha como não compaginável com normas e princípios constitucionais, pelo que o recurso deverá merecer provimento.
2 - Na verdade, desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, e até à vigência das suas alterações ditadas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, os recursos dos acórdãos finais dos tribunais colectivos de 1.ª instância eram interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, ao qual estava cometida a apreciação de determinados vícios sobre a matéria de facto nos termos dos n.os 1 e 2 do seu artigo 410.º
Com a entrada em vigor das ditas alterações, o sistema de impugnação daqueles acórdãos veio a ser alterado, precisamente nos termos que decorrem de alguns dos preceitos cujo teor acima se indicou. Neste circunstancialismo, é, de certa forma, de aceitar como desculpável (para também se usar a palavra usada pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto) que o defensor de um arguido tivesse incorrido em lapso ao endereçar ao Supremo Tribunal de Justiça um recurso de uma decisão final tomada pelo tribunal colectivo da 1.ª instância, recurso esse em que, face ao que foi mencionado na motivação, se punha também em causa matéria de facto.
Esse lapso, porém, de acordo com a interpretação do conjunto normativo ora questionada, implicou uma total preclusão do direito do arguido à reapreciação, por via de recurso, da decisão condenatória que sobre ele impendeu, pois que de tal interpretação decorre, de um lado, que o Supremo Tribunal de Justiça não determina, após se ter considerado incompetente para curar do recurso, que o processo seja remetido ao competente tribunal de relação e, de outro, que nem sequer, afastando embora o reexame da matéria de facto (pois que para tanto está legalmente desprovido de poderes), pode aquele Supremo reapreciar a matéria de direito.
É esta total preclusão que, ao fim e ao resto, decorre verdadeiramente de um sentido interpretativo dado ao n.º 1 do artigo 33.º do Código de Processo Penal e de acordo com o qual o dever de remessa ali prescrito não é aplicável quando em causa estejam recursos indevidamente interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, que este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa entende não poder ser sufragado, porquanto se mostra desconforme ao direito ao recurso como uma das garantias que a lei fundamental determina que devem enformar o processo criminal.
3 - De facto, como assinala o recorrente, no próprio processo civil, relativamente ao qual a Constituição não consagra uma regra geral de imposição garantística tal-qualmente sucede com o processo criminal no n.º 1 do artigo 32.º, não se pode indeferir um requerimento de interposição de recurso com fundamento no erro da espécie de recurso (cf. o n.º 3 do artigo 673.º do respectivo Código); também se comanda nesse Código que, se porventura foi interposto recurso directamente para o Supremo Tribunal de Justiça e se resultar porém do recurso que há para apreciar questões que ultrapassam o âmbito da revista, determinar-se-à, ex vi do n.º 4 do artigo 725.º, que o processo baixe à relação, a fim de o recurso aí ser processado, nos termos gerais, como de apelação; extrai-se ainda do n.º 6 desse artigo 725.º, em conjugação com o seu n.º 5 e com os n.os 1 e 2 do artigo 722.º, que, se no recurso foram aduzidas questões que ultrapassam as meras questões de direito e, não obstante, o relator determinou o seu prosseguimento, não tendo havido reclamação para a conferência, o recurso será processado como revista, de onde resulta, de uma parte, que não deixa, quanto às questões de direito, de haver reapreciação das mesmas e, de outra, que não há uma total preclusão da pretendida impugnação.
Mas, se isto é assim no domínio processual civil, não deixa de ser desproporcionada a interpretação normativa sub iudicio que, como se viu, vai implicar que, no âmbito do processo criminal - onde, repete-se, a Constituição é mais exigente quanto às garantias que o mesmo deve revestir, de entre elas avultando, para o que ora releva, o direito ao recurso das decisões condenatórias -, o intento de impugnação da decisão condenatória vai, na prática, ficar desprovido de qualquer conteúdo útil.
Uma interpretação normativa que, não tendo uma unívoca decorrência do texto legal, conduz a acentuado formalismo que, por essa via, vai postergar uma garantia constitucional consagrada para o processo criminal não pode, na verdade, ser sufragada por este Tribunal.
3.1 - De facto, a jurisprudência pelo mesmo seguida tem, em dados casos, repudiado esses tipos de interpretações quando delas resulte uma incompatibilidade com os princípios constitucionais do acesso à justiça e das garantias de defesa do arguido em processo criminal.
É o que se passou, designadamente, com a interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 412.º e no artigo 420.º, ambos do Código de Processo Penal e no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo arguido, questões que se levantaram a propósito do carácter sintético das conclusões elaboradas na motivação de recurso (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 193/97, 43/99, 417/99 e 43/2000, o 1.º publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 395 a 406, os 2.º e 3.º publicados na 2.ª série do Diário da República, de 26 de Março de 1999 e de 13 de Março de 2000 e o último ainda inédito) ou com a interpretação dos artigos 63.º, n.º 1, e 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contra-Ordenações, quando interpretados no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação ou a falta das próprias conclusões levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação (cf. os Acórdãos n.os 303/99 e 319/99, publicados na 2.ª série do jornal oficial de, respectivamente, 16 de Julho e 22 de Outubro de 1999).
É evidente que se não quer com isto dizer que a exigência de formalidades, designadamente a imposição de determinados ónus ou obediência a certos "rituais" a prosseguir pelos actores do e no processo penal, aí se incluindo os próprios arguidos, representa, só por si, uma causa de desconformidade com o diploma básico, tendo em conta as garantias que o mesmo confere a esse processo.
Simplesmente, se de uma interpretação que não é absolutamente imposta ou inequivocamente extraível da letra da lei resulta que aquele critério funcional, que porventura legitima a exigência do formalismo ou da imposição de determinados ónus ou "rituais" em face da razão de ser substancial dessas exigências ou imposição (cf., neste particular, o Acórdão deste Tribunal n.º 275/99, in Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1999), se não configura como adequado e proporcionalmente fundamentador dessa interpretação, então haverá que concluir que esta última se vai contender com ou, mais propriamente, se vai precludir na sua totalidade uma garantia constitucionalmente consagrada, como, in casu, é a do direito ao recurso, tal interpretação há-de ser reprovada do ponto de vista da sua compatibilidade com a lei fundamental.
É o que se passa na vertente situação.
Na interpretação ora em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça nem determinou a remessa dos autos ao tribunal que, na sua óptica, deveria ser o competente para curar do recurso (o tribunal da relação), nem convidou o recorrente a indicar se, em face do lapso em que incorreu, porventura não desejaria que a impugnação por si pretendida viesse a ter por objecto tão só questões de direito e, assim, "deixando cair" o recurso sobre questões de facto, limitasse o recurso a matéria incluída na competência do mais alto Tribunal da ordem dos tribunais judiciais, vindo este, na afirmativa, a conhecer, nessa parte, do recurso.
Essa interpretação, pelo contrário, deixou o recorrente - arguido condenado em pena criminal -, em face de um lapso quanto à correcta indicação do tribunal para onde deveria endereçar o recurso (e já que, quanto à vontade de recorrer, essa era inequívoca), desprovido totalmente de desfrutar da via de impugnação da sentença condenatória, impugnação que até lhe é concedida como garantia constitucional, visto que foi entendido que, agora (isto é, após a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal de Justiça que consubstanciou o não conhecimento do recurso), a decisão condenatória já havia transitado em julgado.
E é esse sentido dado ao texto legal pela decisão em análise que deve, pelo exagerado formalismo que denota, ser rejeitado por conflitualidade com o diploma básico, pois que a razão de ser da exigência da correcta indicação do tribunal para onde se intenta recorrer não pode ser levada tão longe que, havendo lapso na indicação, daí decorra a total preclusão do direito ao recurso.
Uma última nota para acentuar que não caberá a este Tribunal, uma vez alcançado o juízo de inconstitucionalidade sobre a interpretação dada ao complexo normativo sub specie, indicar se a reforma da decisão deverá implicar ou a remessa dos autos à relação competente ou que o Supremo Tribunal de Justiça formule o convite a que acima se fez referência.
III - Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por ofensa do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição do complexo normativo constituído pelos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2, e 432.º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao tribunal da relação; e
b) Em consequência, determinar a revogação do acórdão impugnado, a fim de o mesmo ser reformado em consonância com o juízo de inconstitucionalidade ora formulado.
Lisboa, 17 de Maio de 2000. - Bravo Serra (relator) - Guilherme da Fonseca - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.