Acórdão 319/2000/T. Const. - Processo 521/99. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Alberto João Prazeres da Silva Urbano interpôs, no Tribunal Central Administrativo, "recurso contencioso de anulação do despacho de indeferimento tácito do Chefe do Estado-Maior do Exército [...] que se formou sobre o seu requerimento de ingresso no serviço activo" apresentado em 7 de Outubro de 1996, "nos termos da Portaria 162/76, de 24 de Março".
Para o que agora releva, o recorrente, que "em 16 de Fevereiro de 1974 passou à situação de pensionista de invalidez, por ser DFA, com o posto de segundo-sargento miliciano" justificou que, "após a entrada em vigor do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, nunca efectuou opção pelo serviço activo, por se encontrar impedido pela alínea a) do n.º 7 da Portaria 162/76, de 24 de Março, de requerer tal opção", mas que, tendo a norma da referida alínea a) sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão 563/96 deste Tribunal, veio requerer o seu ingresso no serviço activo, na data atrás indicada.
O recurso foi julgado procedente, por Acórdão do Tribunal Central Administrativo de 17 de Junho de 1999, a fl. 57.
Para o efeito, entendeu o Tribunal Central Administrativo que seria aplicável à pretensão do recorrente o disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei 134/97, de 31 de Maio, diploma aprovado pelo Governo na sequência da referida declaração de inconstitucionalidade, porque a restrição, dele constante, aos "militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas" é violadora do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
2 - Pelo requerimento de fl. 67, a Magistrada do Ministério Público em funções junto do Tribunal Central Administrativo veio interpor "recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional", ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, entendendo que o acórdão recorrido "recusou a aplicabilidade" da "norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 134/97, de 31 de Maio, enquanto apenas se aplica aos militares deficientes das Forças Armadas oriundos do quadro permanente e não também aos militares oriundos do quadro de complemento", por inconstitucionalidade material.
Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou as suas alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
No mesmo sentido se pronunciou Alberto João Prazeres da Silva Urbano.
3 - Em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 704.º do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 69.º da Lei 28/82, as partes foram notificadas do parecer a fl. 94.
Apenas respondeu o Ministério Público, que reafirmou o entendimento de que o acórdão recorrido recusou efectivamente a aplicação "do sentido normal do preceito em causa no presente recurso, a qual foi essencial e determinante para a solução jurídica que veio a ser adoptada", o que é suficiente para abrir "a via do recurso prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82".
4 - O artigo 1.º do Decreto-Lei 134/97 tem o seguinte conteúdo:
"Os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda, à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos."
Da leitura do artigo 2.º compreende-se que, com esta promoção, os destinatários "passam a ter direito à pensão de reforma correspondente ao posto a que forem promovidos e no escalão vencido à data da entrada em vigor do presente diploma, não havendo lugar a quaisquer efeitos retroactivos".
Quer o acórdão recorrido quer o Ministério Público, nas alegações apresentadas neste Tribunal, vêem no artigo 1.º transcrito "um automatismo do reingresso no activo, sem a realização de quaisquer reabilitações", que teria sido aprovada pelo Governo por reconhecer que seria impossível esse reingresso, mais de 20 anos depois, obrigando-se "o militar [...] a satisfazer as reabilitações vocacional e profissional com resultados favoráveis reconhecidos [n.º 7.º, alínea b), da Portaria 162/76]" (acórdão recorrido, fl. 63 e alegações referidas, fl. 81).
Sucede, porém, que do artigo 1.º do Decreto-Lei 134/97 não decorre qualquer "reingresso no activo" de militares deficientes das Forças Armadas "na situação de reforma extraordinária", sejam ou não dos quadros permanentes; com efeito, a norma apenas prevê que são promovidos ao posto que teriam à data da entrada em vigor do diploma (cf. artigo 3.º) se tivessem optado pelo serviço activo. Não se compreenderia de outra forma o aumento da "pensão de reforma" prevista no artigo 2.º
5 - Não cabe, porém, ao Tribunal Constitucional nem questionar a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido nem conhecer senão da eventual inconstitucionalidade da norma cuja aplicação haja sido recusada por esse fundamento.
É requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82 que se encontrem reunidas as seguintes condições:
a) Recusa (ainda que implícita) da aplicação pela decisão recorrida de uma norma jurídica (ou de uma sua dada interpretação), com fundamento em inconstitucionalidade;
b) Constituir essa recusa um dos fundamentos da decisão-decisão de desaplicação ou de recusa de aplicação - e não um mero obiter dictum ou desenvolvimento argumentativo ad ostentationem (Acórdão deste Tribunal n.º 152/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Maio de 1998).
Entende o Tribunal Constitucional que se encontram preenchidos estes requisitos no caso concreto.
Com efeito, perante duas interpretações possíveis do mesmo preceito - uma, excluindo do seu âmbito de aplicação os deficientes das Forças Armadas do quadro complemento, outra abrangendo-os -, o acórdão recorrido afastou a primeira, considerando-a contrária ao princípio constitucional da igualdade, e aplicou a segunda. Só assim, aliás, se entenderá a decisão de julgar procedente o recurso: "Desta feita o indeferimento tácito da pretensão do recorrente traduz a inaplicabilidade ao seu caso do artigo 1.º do Decreto-Lei 134/97, de 31 de Maio, e, sendo tal inaplicabilidade claramente violadora do artigo 13.º da Constituição (princípio da igualdade), então o referido indeferimento mostra-se ferido do vício de violação de lei.
3 - Decisão. - Face ao exposto os juízes da 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo acordam em conceder provimento ao recurso e anular o acto recorrido por violação do artigo 13.º da Constituição."
6 - Constitui, assim, objecto do presente recurso a norma que o acórdão recorrido considerou contida no n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei 134/97, segundo a qual se reserva aos militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, em situação de reforma extraordinária, nas condições ali previstas, a reintegração automática no serviço activo. Excluem-se, portanto, desta reintegração automática os militares do quadro complemento em situação de pensão de invalidez. No entender do Tribunal Central Administrativo, tal exclusão infringe o princípio da igualdade, razão pela qual recusou aplicar a norma em questão.
O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que, naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ela a não infrinja. Assim, por exemplo, no Acórdão 563/96, atrás citado, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º, pp. 47 e segs., foram assim descritas:
"1.1 - O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo 13.º da Constituição da República que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que 'ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.
Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125) o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição)' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cf., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, na 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e na 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 'razoável, racional e objectivamente fundadas', sob pena de, assim não sucedendo, 'estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes', no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como 'princípio negativo de controlo' ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador -cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.os 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados 330/93 e 335/94- sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425; e Acórdão 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei, implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402), o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença' de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciados os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
O n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplificativo, cf., v. g., os Acórdãos n.os 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Agosto de 1986, e 1.ª série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer 1/86 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 1.º, pp. 5 e segs., máxime, p. 11. A intenção discriminatória em situações como a presente, não expressamente aludida naquele catálogo, não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade.
Importa, a esta luz, decidir se a normação em causa é materialmente fundada ou, pelo contrário, se mostra inadequada, desproporcionada e, no fim de contas, arbitrária."
No caso presente, coloca-se a questão de saber se é constitucionalmente admissível excluir os militares deficientes das Forças Armadas do quadro complemento da reintegração automática no serviço activo,' decorrente, segundo o acórdão recorrido, da norma que julgou inconstitucional, a processar-se nos termos previstos no Decreto-Lei 134/97.
Está, pois, em causa, uma distinção operada no universo dos destinatários possíveis da norma: apenas abrangendo os militares deficientes das Forças Armadas dos quadros permanentes, a norma afasta da sua aplicação os militares deficientes das Forças Armadas do quadro de complemento, que não poderiam beneficiar da reintegração automática no serviço activo por não pertencerem a esses quadros permanentes.
Ora, a verdade é que existem regimes globalmente diferenciados para os militares dos quadros permanentes e para os militares do quadro complemento, nomeadamente distinguindo-os para efeitos de definição de regime de carreira e de promoções - e, portanto, justificando diferenças no regime de integração no serviço activo de uns e de outros; assim, aliás, procedeu o Decreto-Lei 43/76, de 20 de Janeiro (v., em particular, o seu artigo 7.º, que trata separadamente o exercício do "direito de opção pela continuação no serviço activo" para os dois grupos de militares deficientes das Forças Armadas.
Ora o regime definido pelo Decreto-Lei 134/97 para os militares deficientes das Forças Armadas do quadro permanente não toma em conta, naturalmente, as diferenças globalmente existentes entre os dois regimes.
Como o Tribunal Constitucional teve já ocasião de afirmar, nomeadamente no seu Acórdão 287/2000, ainda não publicado, "não é aceitável [...] isolar um ponto do regime global para fazer a comparação." E, citando o Acórdão 683/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Fevereiro de 2000: "[...] Como se salientou recentemente no Acórdão 555/99 (e, em sentido semelhante, ainda mais recentemente, no Acórdão 663/99, ambos inéditos), em relação à comparação de pontos parciais do estatuto ou do regime jurídico da relação de emprego público (no caso, de funcionários civis, e militares), 'o carácter tendencialmente fechado e totalizante do quadro normativo que definiu o estatuto [...] levanta um decisivo obstáculo a que se considere exigível e decorrente da observância do princípio da igualdade a "extensão" de um determinado direito [...]'. Note-se que os Acórdãos n.os 555/99 e 663/99 foram, entretanto, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Março de 2000 e de 24 de Fevereiro de 2000, respectivamente.
A mesma advertência se pode encontrar, nomeadamente, no Acórdão 367/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 9 de Março de 2000): '[...] a igualdade é sempre um conceito de relação (cf. parecer da Comissão Constitucional n.º 5/81, Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol., pp. 309 e segs., e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 44/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 133 e segs.) e o de que a igualdade é um conceito predominantemente valorativo. Por outras palavras, aferir da igualdade desigualdade entre duas situações não passa apenas pela sua consideração isolada, antes é, sobretudo, um trabalho de ponderação dos valores que estão subjacentes à disciplina legal de cada uma delas e da sua harmonização'.
E, no Acórdão 663/99, atrás citado, tirado a propósito da constitucionalidade da diferença de tratamento estabelecida entre trabalhadoras da função pública e trabalhadoras vinculadas por contrato individual de trabalho no que toca à licença de maternidade, disse-se: 'Pretender fazer valer uma igualdade formal em matéria de uma regalia específica ou norma específica, desconsiderando todo o universo de diferenças que a justifica, bem como o sentido da própria regulamentação globalmente considerada que a impõe (diverso, como se disse, perante relações de direito privado e no domínio público), seria desconsiderar o próprio sentido do princípio da igualdade, que exige o tratamento diferenciado do que é diferenciado tanto quanto exige o tratamento igual do que é igual. Sendo certo, aliás, que a igualação de uma circunstância pode, no conjunto, agravar a desigualdade - basta que tal igualização se faça a favor da parte mais favorecida em todas as outras circunstâncias, menos naquela.'"
Estando, portanto, em causa uma norma que prevê a reintegração automática no serviço activo, a verificar-se nos termos previstos nos restantes preceitos do Decreto-Lei 134/97, pois que foi com este sentido que a norma objecto deste processo foi interpretada, não pode considerar-se violado o princípio da igualdade pela circunstância de se não abranger no seu âmbito os militares deficientes das Forças Armadas do quadro complemento.
Nestes termos, julga-se procedente o recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
21 de Junho de 2000. - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida.