Acórdão 160/2000/T. Const. - Processo 843/98. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - 1 - Por apenso aos autos de acção executiva que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, que Albino da Silva Barbosa e mulher, Zulmira Ferreira Silva, movem a António Fernando da Cruz Novo e mulher, Maria Lídia da Silva Pinto Brochado, veio o Centro Regional de Segurança Social do Norte, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 865.º do Código de Processo Civil e 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, reclamar o pagamento da quantia de 1 274 495$00, correspondente a contribuições referentes aos meses de Dezembro de 1992 até Julho de 1995, acrescida de 524 677$00, correspondente a juros de mora vencidos até 31 de Julho de 1996, e de juros vincendos, alegando estar o seu crédito garantido por privilégio mobiliário geral e ainda imobiliário sobre os bens imóveis dos devedores, além de hipoteca legal sobre os ditos imóveis.
Reclamados outros créditos, não tendo sido deduzida qualquer oposição e considerando as garantias de que goza o crédito da segurança social, foi este crédito graduado em primeiro lugar, à frente do crédito exequendo, que, como os demais reclamados, gozava de garantia hipotecária.
Desta decisão apelaram os exequentes, impetrando a revogação do decidido para que o crédito da segurança social seja graduado depois do crédito deles, recorrentes.
O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 2 de Junho de 1998, conhecendo do recurso, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
2 - Inconformados com este aresto, os recorrentes, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpuseram o presente recurso, pelo qual pretendem ver apreciada a (in)constitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º do Decreto-Lei 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, que entendem violar "o princípio do Estado de direito democrático, vertido no artigo 2.º da Constituição, na sua vertente de Estado de direito (nomeadamente os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão)".
Nas alegações que oportunamente apresentaram, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
"1 - O privilégio imobiliário geral contido no artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80 (e antes deste no artigo 2.º do Decreto-Lei 512/76, de 3 de Junho) constitui uma derrogação do princípio geral consagrado no artigo 735.º, n.º 3, do Código Civil de que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
2 - Pelo que a norma contida no artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80 tem de considerar-se uma norma excepcional relativamente ao princípio geral consagrado no aludido artigo 735.º, n.º 3, do Código Civil.
3 - Ora, sendo certo que o citado decreto-lei nada nos diz quanto ao concurso do privilégio imobiliário geral por ele criado com outras garantias reais (nomeadamente a hipoteca), nem regula a sua relação com os direitos de terceiros, também é certo que tais questões terão de resolver-se com recurso às normas dos artigos 686.º, n.º 1, e 751.º do Código Civil.
4 - Com efeito, o artigo 748.º do Código Civil, para o qual nos remete o aludido artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, regula apenas o concurso de créditos com privilégios imobiliários especiais consagrados no Código Civil (v. artigos 743.º e 744.º do Código Civil).
5 - Acontece que o artigo 751.º do Código Civil, por sua vez, regula apenas a relação dos privilégios imobiliários especiais (os únicos, aliás, que o actual Código Civil conhece) com os direitos de terceiros e o seu concurso com as restantes garantias reais.
6 - Assim, em caso de concurso entre privilégios imobiliários gerais (mesmo que criados por legislação especial) e a hipoteca legalmente constituída e registada regulará a norma do artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, o crédito garantido com hipoteca preferirá aos demais créditos que não gozem de privilégio especial.
7 - O que equivale a dizer que a norma do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, tem de ser interpretada com o sentido de que o privilégio imobiliário geral dos créditos da segurança social deve ser graduado logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil, sem prejuízo da preferência resultante das garantias reais legal e anteriormente constituídas e registadas.
8 - Pelo que, a não ser deste modo, isto é se prevalecer a interpretação plasmada no acórdão recorrido, então a norma contida no artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio (bem como, aliás, a do artigo 2.º do Decreto-Lei 512/76, de 3 de Julho), está ferida de inconstitucionalidade por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão emanados do princípio do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
9 - Donde resulta que as normas contidas nos artigos 2.º do Decreto-Lei 512/76 e 11.º do Decreto-Lei 103/80, interpretadas, como foram, no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas contido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, estão impugnadas de inconstitucionalidade material por violação do princípio do Estado de direito democrático."
O recorrido não contra-alegou.
II - 1 - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade a apreciação da conformidade à Constituição das normas constantes dos artigos 2.º do Decreto-Lei 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, interpretadas, como foram no acórdão recorrido, no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.
Entendem os recorrentes que a referida interpretação viola os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão emanados do princípio do Estado de direito democrático, na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da lei fundamental.
Cumpre apreciar.
2 - Anteriormente à vigência do actual Código Civil, os créditos por contribuições devidas às caixas sindicais de previdência gozavam do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 167.º do Decreto-Lei 45 266, de 23 de Setembro de 1963.
Com a publicação do Decreto-Lei 47 344, de 25 de Novembro de 1966 (diploma que aprovou o Código Civil), questionou-se a subsistência deste privilégio atribuído por "legislação especial", face ao disposto no artigo 8.º deste diploma.
Com o objectivo de definir as garantias que assistem aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos respectivos juros, o Decreto-Lei 512/76, de 3 de Julho, consagrou e ampliou os privilégios da previdência, reconhecendo - no n.º 1 do seu artigo 1.º - aquele privilégio mobiliário geral e estabelecendo - no artigo 2.º - o privilégio imobiliário geral.
Dispõe este preceito:
"Art. 2.º Os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil."
Por sua vez, o Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio (diploma que aprovou o regime jurídico das contribuições para a previdência), veio a consagrar idêntica disposição:
"Artigo 11.º
Privilégio imobiliário
Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil."
Importa ainda chamar à colação o que dispõe o artigo 748.º (disposição a que se referem as normas aqui sob sindicância) e os artigos 751.º e 735.º, n.º 3, todos do Código Civil, inseridos na secção VI ("Privilégios creditórios"), que são invocados na fundamentação da decisão recorrida:
"Artigo 735.º
Espécies
1 - ...
2 - ...
3 - Os privilégios imobiliários são sempre especiais."
"Artigo 748.º
Ordem dos outros privilégios imobiliários
1 - Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações;
b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial."
"Artigo 751.º
Privilégio imobiliário e direitos de terceiro
Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores."
3 - Compulsados os autos, verifica-se que estão em causa dívidas de contribuições à segurança social relativas ao período compreendido entre Dezembro de 1992 e Julho de 1995 e respectivos juros de mora.
Na respectiva graduação de créditos, à qual, além da segurança social, concorreram outros credores munidos de garantia real - no caso a hipoteca - o acórdão recorrido confirmou a sentença da 1.ª instância, que graduou aquele crédito em primeiro lugar, preferindo aos demais.
Para tanto, baseou-se a Relação na seguinte argumentação:
"[...] os diplomas em causa tiveram por escopo fundamental erigir um regime próprio de garantias que, no concurso de credores, desse prevalência ao crédito por impostos, logo seguido do crédito da segurança social, uma vez que os respectivos contribuintes são, normalmente, os mesmos - por actividades comerciais, industriais ou de serviços -, e qualquer deles tem por função abastecer as correspondentes tesourarias - Boletim do Ministério da Justiça, n.º 415, p. 365.
De harmonia com o artigo 751.º do Código Civil, os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca e ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
É certo que, de acordo com o regime geral do Código Civil, os privilégios creditórios (artigo 733.º) são mobiliários e imobiliários (artigo 735.º), sendo estes sempre especiais - n.º 3 deste artigo 735.º - e restritos a despesas de justiça, à contribuição predial e a impostos de transmissão - artigos 743.º e 744.º
E porque só estes créditos do Estado e das autarquias gozam - no regime do Código Civil, repete-se - desta garantia, natural é que a graduação entre os referidos créditos se faça de acordo com o disposto no artigo 748.º
Criado ou alargado à segurança social o privilégio imobiliário geral, aqueles artigos 2.º e 11.º (de 1976 e 1980, respectivamente) tiveram o cuidado de estabelecer que os créditos assim garantidos deviam ser graduados logo a seguir aos créditos do Estado referidos no artigo 748.º, independentemente da data da sua constituição. Portanto, não pode querer-se imutável e específico dos privilégios do Código Civil o regime de preferência do artigo 751.º
Dir-se-á que aquele artigo 751.º está pensado apenas para os privilégios concedidos pelo Código Civil, sempre especiais e restritos. Pelo que o crédito da segurança social, garantido por privilégio imobiliário geral, não beneficiaria deste regime do artigo 751.º e, consequentemente, não preferiria à hipoteca, sobretudo se anteriormente registada.
Não é assim. A circunstância de poder entender-se que é geral o privilégio imobiliário criado pelo Decreto-Lei 512/76 - tal como o do Decreto-Lei 103/80 - não afecta esta conclusão, porque a norma que se transcreveu não faz qualquer diferenciação entre privilégios mobiliários gerais ou especiais, traçando para ambas as espécies o mesmo regime.
Pelo contrário, não querendo criar regime diferente do estabelecido pelo Código Civil para o privilégio imobiliário então reconhecido, omitiu qualquer referência aos efeitos deste, já mencionados na lei geral - Boletim do Ministério da Justiça, n.º 297, p. 280.
Como assim, os créditos pelas contribuições em dívida à caixa de previdência são de graduar-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil e, pois, com preferência sobre a hipoteca anteriormente constituída a favor da exequente Caixa Geral de Depósitos.
E esta conclusão imposta pelo referido artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80 não é de surpreender, na medida em que a anterioridade da constituição da hipoteca não é, em si mesmo e face ao Código Civil, um acto necessariamente de atender-se para efeitos de graduação de créditos - Boletim do Ministério da Justiça, n.º 336, p. 417."
Quanto à questão de constitucionalidade, que os recorrentes oportunamente suscitaram, para o caso de prevalecer a interpretação plasmada na decisão recorrida, concluiu a Relação não ter sido arbitrária e intoleravelmente abalada a confiança dos credores hipotecários e que, por isso, "as normas do artigo 2.º do Decreto-Lei 512/76 e do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, interpretadas, como foram, no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, não estão inquinadas de inconstitucionalidade, nomeadamente por violação do princípio do Estado de direito democrático".
4 - O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do artigo 10.º do Decreto-Lei 103/80, que estabelece um privilégio mobiliário geral para os créditos da segurança social (cf. Acórdão 688/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Março de 1999).
Neste aresto, o tribunal, após concluir pela inexistência de qualquer limitação ao direito de acesso do credor aos tribunais, por via da norma impugnada, perspectivou a questão sob o filtro do princípio da igualdade, averiguando então se a consagração deste privilégio, com o consequente afastamento da "condição paritária" dos credores estabelecida pelo Código Civil, se afigurava sem adequado suporte material e, logo, violadora do princípio da igualdade.
Assim, após definir os contornos do princípio da igualdade, passou este aresto a averiguar se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artigo 10.º do Decreto-Lei 103/80, tendo como pano de fundo (reitere-se) a par conditio creditorum estabelecida pelo principal compêndio legislativo civil, era perspectivável como uma arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante (ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio), tendo concluído pela negativa, fundamentando-se no seguinte:
"[...] de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à segurança social (n.º 1 do artigo 63.º), impondo como uma das tarefas do Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (n.º 2 do mesmo artigo).
Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido que uma importante parte dos créditos da segurança social advém das contribuições impostas para esse fim, designadamente as a cargo ou da responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do devedor (destarte postergando outros direitos reais de garantia - excepção feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído) e, de outra, que não está em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63.º da lei fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de qualquer garantia especial."
Porém, a questão objecto deste aresto é diferente da dos presentes autos, pois, não só são diferentes as normas impugnadas - no primeiro, a norma do artigo 10.º do Decreto-Lei 103/80 e, neste, a norma do artigo 11.º do mesmo diploma - como a questão agora suscitada vem equacionada na perspectiva da violação dos princípios constitucionais da protecção da confiança e da segurança jurídica.
5 - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2.º do Decreto-Lei 512/76 e 11.º do Decreto-Lei 103/80 pretendeu dar alguma preferência aos créditos da segurança social ao determinar que os créditos ali consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748.º do Código Civil.
No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751.º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751.º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
Não se questiona que, face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas - como é o caso da segurança social, cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63.º -, se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da par conditio creditorum (como se concluiu no do já citado Acórdão 688/98), nem, tão-pouco, que se atribua um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cf. Acórdãos n.os 51/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Abril de 1999, e 281/99, inédito).
6 - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio imobiliário geral.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cf., inter alia, os Acórdãos n.os 303/90 e 625/98, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Dezembro de 1990, e de 18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se - e os recorrentes fazem-no - que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, p. 333; Isabel Pereira Mendes, "Repercussão no registo das acções dos princípios do direito registral e da função qualificadora dos conservadores do registo predial", in O Direito, ano 123, 1991, pp. 599 e segs., máxime, p. 604; Paula Costa e Silva, "Efeitos do registo e valores mobiliários. A protecção conferida ao terceiro adquirente", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, vol. II, 1998, pp. 859 e segs., máxime, p. 862).
Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à segurança social.
Ora, não estando o crédito da segurança social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade - a existência de um crédito da segurança social - que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio "geral" e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à segurança social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743.º e 744.º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da segurança social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a segurança social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12.º do Decreto-Lei 103/80.
A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República.
III - Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 2.º da Constituição da República, as normas constantes dos artigos 2.º do Decreto-Lei 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em consonância com o juízo de constitucionalidade.
Sem custas, por isenção do recorrido.
Lisboa, 22 de Março de 2000. - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida.