Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1.º O Ministério Público interpôs recurso para o Plenário, ao abrigo do artigo 79.º-D da Lei 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão 458/2007 (3.ª Secção) que conclui pela não inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 116.º do CPP quando interpretada no sentido de que a testemunha que não compareça a acto processual para que tenha sido convocada ou notificada e não justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito processual que a arrolou prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a inquirição. Invoca oposição com o acórdão 184/06 (2.ª Secção), em que o Tribunal julgou a mesma norma inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade resultante dos artigos 2.º e 18.º da Constituição.
2. O recurso foi admitido, sendo notificado para alegar o Ministério Público e a testemunha faltosa Maria Jacinta Matos Ramos Carvalho Grácio.
Apenas o Ministério Público apresentou alegações, nas quais sustentou a doutrina do acórdão fundamento e concluiu nos seguintes termos:
"1.º
É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a interpretação normativa do artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual deve ser aplicada sanção processual à testemunha faltosa, apesar de a mesma ter sido prescindida por quem a arrolou, e sem que o tribunal haja determinado a respectiva comparência, para efeito de inquirição oficiosa.
2.º
Não encontra suporte no texto da Lei Fundamental a interpretação segundo a qual é devida pelos cidadãos uma"cega obediência" ao conteúdo das notificações processuais, devendo a falta ser sancionada com multa, mesmo nos casos em que a realidade processual superveniente implique manifesta inutilidade na comparência em juízo, por não ter lugar a prestação do depoimento que justificava a originária notificação para comparência.
3.º
Termos em que deverá adaptar-se o entendimento subjacente ao decidido no Acórdão 184/06."
3 - Concluída a discussão, tendo por base o acórdão recorrido e memorando apresentado pelo relator, cumpre formular a decisão em conformidade com o vencimento apurado.
II - Fundamentos
4.º Verificam-se os pressupostos do recurso para o Plenário ao abrigo do artigo 79-.º-D da LTC, designadamente, o julgamento da questão de constitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado pelo Tribunal quanto à mesma norma.
Com efeito, os acórdãos de secção em confronto decidiram em sentido oposto a questão da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de Processo Penal (na versão do Código anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, sendo que este preceito não sofreu alteração), quando interpretado no sentido de que a testemunha que, em processo penal, falte a acto processual para que tenha sido convocada ou notificada e não justifique a falta incorre no pagamento da soma prevista nesse preceito legal, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a inquirição.
Aliás, o acórdão recorrido dá nota dessa divergência.
5 - A solução encontrada para a questão da constitucionalidade em apreciação surge assim justificada no acórdão recorrido:
"7. A"soma"referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime, designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas processuais.
A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão 315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cf. tb. o acórdão 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):
"Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por vezes, como «penas», é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia com «sanções punitivas» (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., reimpressão, 1981, p.261)
As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se, conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
[...]
Mas as multas processuais [...] constituem sanções indiscutivelmente estranhas ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, «... pela natureza dos respectivos bens jurídicos...(e)... pela desigual ressonância ética» e, decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito penal."
8. A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do CPP para a falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente notificada ou convocada para acto do processo penal sanciona um comportamento que, em extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, mas ao qual a lei tradicionalmente confere tratamento privilegiado, sancionando-o expeditamente com uma multa processual, aplicável mediante um incidente simplificado (Cf., a propósito de mecanismo sancionatório semelhante que já constava do artigo 91.º do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer 98/78, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e segs.)
O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do dever de colaboração para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto processo. Dever esse a cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente coagido (n.º 2 do artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP; cf., quanto ao processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC).
Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei 55/98, de 25 de Agosto. Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional (Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).
É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da testemunha regularmente convocada e que não justifica a falta, mas cujo depoimento é considerado prescindível tanto pelo sujeito processual que a arrolou como pelo tribunal, viola o princípio da proibição do excesso, concretizador do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
9. A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se desdobra nos deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no tribunal do júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos de recusa legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o Estado, de conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa fundamentalidade da expressa autorização constitucional para impor o cumprimento coercivo de tal dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico desse dever de colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades judiciárias quando a pessoa é regularmente convocada - alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento constitucional. De todo modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter de dever legal fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça (Parece ser esta a opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pág. 94).
Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v. gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da causa), mas não pode eliminar-se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as causas de adiamento das diligências - por exemplo, o maior rigor quanto aos termos de justificação das faltas - serão mesmo um instrumento para tornar globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois de outro modo a imposição do dever não teria eficácia.
10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que nenhum dos sujeitos processuais - nem aquele que a indicou, nem o tribunal por sua iniciativa - consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa, ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal) sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada, apenas, com a utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que, entre o conteúdo da decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha que não justificou a falta) e o fim que ela prossegue, haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do seu fim (Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, pág.186). Deste modo, se o fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas e dez UCs fosse exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de comparência da testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la a justificar a falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil - portanto, retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada - e impor-lhe uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria impor-lhe um encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de limitação do poder público que se ancora no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).
11 - Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de uma"soma" não se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em função do resultado concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça, que transcende esse resultado ou o perigo concreto.
Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais. E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o processo.
Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da correspondente imposição do pagamento da"soma" prevista no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer perante a autoridade judiciária para prestar depoimento.
Embora a regra essencial seja a de que só devem existir os deveres necessários e na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação custo-benefício) na imposição desse ónus de justificação.
A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa em apreciação - a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito não estão em dúvida - traduz uma opção do legislador por um modelo de relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.
Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição."
6. Acompanha-se este entendimento, remetendo-se para a fundamentação do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 79.º-D da LTC, uma vez que nada foi trazido à discussão que, no essencial, não tenha já sido objecto de ponderação (cf., sobretudo, os n.º s 10 e 11 do acórdão recorrido).
Apenas se acrescenta que não é exacto que isso signifique perfilhar o critério de que é devida pelos cidadãos uma"cega obediência" ao conteúdo das notificações para comparecimento emanadas dos tribunais ou das autoridades judiciárias. O que o acórdão recorrido considerou e, agora, se acompanha é que a norma tutela um bem jurídico que transcende a utilidade que, em"prognose póstuma", seja possível atribuir à convocatória para os fins da concreta diligência para que a comparência foi determinada e que é susceptível de justificar constitucionalmente o sancionamento da testemunha que, em processo penal, não cumpra o dever de comparecer e não apresente justificação para a falta nos termos dos artigos 116.º e 117.º do CPP. Há o dever de comparecer e o dever de justificar a não comparência, tendo as alterações introduzidas pela Lei 55/98 tornado mais apertadas as exigências desta, em particular quanto ao momento da apresentação da justificação, em ordem a permitir a reprogramação do serviço e, paralelamente, desmotivar a apresentação de justificações falsas ou inconsistentes. Este objectivo é susceptível de ser posto em risco por condutas, como a sancionada pela norma em apreciação, de desinteresse pela apresentação de qualquer justificação para a não comparência.
Por outro lado, salienta-se que o que está em causa é a conformidade constitucional da aplicação da sanção à testemunha que não compareça nem apresente qualquer justificação e não a questão de saber se deveria considerar-se justificada uma falta de comparência cujo pedido de justificação, porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v. gr., por informação sobre a disposição do sujeito processual que indicou a testemunha de vir a dispensar o seu depoimento) de factos que tornariam objectivamente inútil a comparência (ou, perspectivando a questão como de constitucionalidade normativa, a interpretação em que se fundasse a resposta negativa a um pedido de justificação da falta assim construído).
III - Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Abril de 2008. - Vítor Gomes - José Borges Soeiro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - João Cura Mariano - Ana Maria Guerra Martins (vencida, pelas razões constantes de declaração do conselheiro Mário Torres e pelos fundamentos constantes do acórdão 184/2006) - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, pelos fundamentos constantes do acórdão 184/2006 e pelas razões constantes da declaração de voto do conselheiro Mário Torres) - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos (vencido, pelas razões constantes do acórdão 184/2006, que subscrevi, e acompanhando a declaração de voto do conselheiro Mário Torres).
Declaração de voto
Votei vencido, por continuar a entender que, tal como decidido no Acórdão 184/2006, da 2.ª Secção, que subscrevi, a norma do artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido de que tribunal é obrigado a sancionar a testemunha faltosa, apesar de a mesma ter sido prescindida pelo sujeito processual que a apresentou e de o tribunal não ter oficiosamente determinado a sua inquirição, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, resultante dos artigos 2.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
O Acórdão 458/2007, da 3.ª Secção, agora confirmado, reconheceu que na situação em causa, isto é,"numa situação em que esteja adquirido que nenhum dos sujeitos processuais - nem aquele que a indicou, nem o tribunal por sua iniciativa - consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa, ou na marcha do processo", já que"se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal) sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais"."Nestas circunstâncias - prossegue o citado acórdão - , a sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do Código de Processo Penal: dever de testemunhar)". E, por isso, conclui o mesmo acórdão que,"se identificarmos o bem jurídico tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada, apenas, com a utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade". Como é óbvio, concordo inteiramente com esta constatação.
No entanto, o referido Acórdão 458/2007, cuja doutrina foi agora maioritariamente confirmada, acabou por entender não ocorrer violação do princípio da proporcionalidade, por a norma em causa se destinar também"a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça", de acordo com dois vectores: por um lado, pretender-se-ia,"mediante a imposição do dever de comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequência negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais"; e, por outro lado, visar-se-ia,"concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o processo".
É deste entendimento que divirjo.
A primeira perspectiva invocada é, salvo o devido respeito, manifestamente improcedente: a prévia comunicação da não comparência sempre seria irrelevante para a eficiência do serviço, pois a dimensão normativa em causa pressupõe justamente que a falta da testemunha, porque o seu depoimento foi considerado inútil não só pela parte que a ofereceu como também pelo tribunal, em nada afectou a descoberta da verdade nem foi, ela mesma, causa de qualquer adiamento processual.
Resta, assim, a última razão, que se reconduz, no fundo, ao relevo dado a considerações de"prevenção geral","intimidando os potenciais infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da efectividade desse dever [dever de colaboração com os tribunais], minorando a perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar justiça".
Entendo, no entanto, que estas preocupações, sem dúvida legítimas, não exigem que o tribunal seja sempre obrigado a sancionar a testemunha faltosa, podendo ser inteiramente garantidas com a atribuição ao tribunal da faculdade de sancionar, ou não, a testemunha de acordo com as especificidades do caso concreto.
Recorde-se que, em processo civil, o artigo 629.º do CPC não prevê a aplicação de sanção à testemunha faltosa que tenha sido prescindida pela parte que a ofereceu e, mesmo quando não seja prescindida, o n.º 5 desse preceito isenta de sanção a testemunha faltosa quando o julgamento tenha sido adiado por razão diversa da respectiva falta, desde que a parte se comprometa a apresentá-la no dia designado para a realização da audiência. A especificidade do processo penal em relação ao processo civil, por naquele incumbir ao tribunal oficiosamente a busca da verdade material e este estar sujeito ao princípio dispositivo, justifica que - na tese que defendo e que fora a seguida nas decisões recorridas - , para além de ser prescindida pela parte, se exija, para não tornar obrigatória a aplicação da sanção, que o próprio tribunal tenha considerado dispensável o depoimento da testemunha. Mas, fora essa diferença, não se me afigura que as razões ligadas à afirmação da autoridade dos tribunais sejam menos válidas em processo civil do que em processo penal.
Constitui um dado da experiência comum que, muitas vezes, os mandatários das partes sabem seguramente que, por diversos motivos, ligados ora ao próprio tribunal, ora às partes, determinada diligência processual, designadamente audiências de julgamento, não se irão realizar na data marcada e disso avisam as respectivas testemunhas. Nestas condições, a não comparência dessas testemunhas na data designada, para além de, como a própria posição maioritária reconheceu, em nada afectar a eficiência da administração da justiça, também não revelará, na generalidade dos casos, qualquer atitude de desrespeito perante uma ordem de comparência emitida por um tribunal. Nesse contexto, a única solução constitucionalmente conforme ao princípio da proporcionalidade será conferir ao tribunal a faculdade de, atentas as circunstâncias do caso, sancionar ou não essa falta.
Nem se diga, como o faz o precedente acórdão, que"o que está em causa é a conformidade constitucional da aplicação da sanção à testemunha que não compareça nem apresente qualquer justificação e não a questão de saber se deveria considerar-se justificada uma falta de comparência cujo pedido de justificação, porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v. g., por informação sobre a disposição do sujeito processual que indicou a testemunha de vir a dispensar o seu depoimento) de factos que tornariam objectivamente inútil a comparência (ou, perspectivando a questão como de constitucionalidade normativa, a interpretação em que se fundasse a resposta negativa a um pedido de justificação da falta assim construído)". É que a norma em causa neste recurso - sendo obviamente a que torna obrigatória a aplicação de sanção à testemunha faltosa - tem de ser apreciada em si e na sua circunstância, e desta"circunstância" faz parte, como um dado da questão, a restrição legal de justificação das faltas aos casos em que a falta foi motivada"por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado" (artigo 117.º, n.º 1, do CPP), sendo manifesto que o aviso da alta probabilidade ou mesmo certeza da não realização da diligência ou do propósito da dispensa do depoimento da testemunha não impediam esta de comparecer.
Por último, importa salientar que a obrigação da deslocação de testemunhas a tribunal, sendo obviamente uma decorrência perfeitamente aceitável do dever cívico de colaboração dos cidadãos na tarefa fundamental do Estado de administrar a justiça, envolve custos, desde logo pela restrição da liberdade das pessoas convocadas, com constrangimento do modo de organização da sua actividade pessoal, e também custos económicos, quer a nível individual, quer da colectividade.
A imposição, sob a ameaça de inarredável sancionamento, de comparência das testemunhas a actos processuais quando antecipadamente se conhece a desnecessidade ou inutilidade dessa comparência, representa, assim, uma solução desproporcionada, pois, como se tentou demonstrar, a protecção do único bem constitucionalmente relevante que se concluiu estar causa (após o afastamento, reconhecido pela própria maioria que fez vencimento, da consideração da necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais), a saber, o incremento de uma atitude de respeito perante as convocatórias dos tribunais), não exigia que aos tribunais fosse legalmente imposta a obrigação de aplicação da sanção, retirando-lhe a possibilidade de avaliar, em concreto, a respectiva justificação. Mário José de Araújo Torres.