Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Estratégia - Produção de Eventos Culturais, Lda., instaurou no Tribunal Cível do Porto acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra Publicomando - Publicidade, Lda., pedindo que a ré fosse "condenada a pagar à autora a quantia de 14.000,00 euros, acrescida de juros, à taxa de 9,25 %, desde a citação, e no mais legal".
Por despacho de 13 de Dezembro de 2006, a 1.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Porto decidiu que "a presente acção declarativa passa a seguir os termos do processo comum sumário, em conformidade com a indicação feita pela autora na petição inicial e o disposto nos artigos 462.º e 783.º e segs. do CPC, devendo submeter-se os autos a nova distribuição, agora sob a 2.ª espécie, dando-se baixa da anterior (cf. artigos 220.º, a), 221.º e 222.º, todos do CPC)."
Para assim concluir, a decisão recorrida recusou "a aplicação do artigo único da Portaria 955/2006, de 13 de Setembro, assim como a norma correspondente ao artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006, de 08/06, na interpretação de que constitui autorização suficiente para implementação da medida acolhida pelo Ministro da Justiça através da dita Portaria, por se considerar que ambas as normas violam o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP e, consequentemente, não aplicar a esta acção o regime processual civil experimental aprovado pelo cit. Decreto-Lei."
Nos termos da respectiva fundamentação, "a questão que necessariamente se impõe é a de saber se há ou não razões juridicamente válidas que justifiquem a imposição e, simultaneamente, limitação da aplicação a um tão escasso número de tribunais com competência cível, o mesmo é dizer, em função das regras da competência territorial previstas nos artigos 73.º, 74.º, 76.º, 85.º a 87.º e 89.º, todos do CPC, a um tão escasso número de cidadãos e empresas de um Estado de Direito democrático como é a República Portuguesa (artigo 2.º da CRP)." O tribunal a quo confessa a sua "total perplexidade perante o elenco e natureza dos argumentos utilizados para fundamentar a desigualdade de tratamento de cidadãos e empresas no plano do exercício de direitos e interesses subjectivos através do recurso aos tribunais. Julgamos mesmo que tais argumentos, assentes em meras considerações de natureza abstracta, vaga e imprecisa, estão muito longe de constituir justificação objectiva e racional para o que quer que seja." "Antes de mais, temos por historicamente adquirida a ideia de que a mera localização territorial das causas, que por sua vez é consequência da localização das pessoas, das coisas ou dos interesses considerados relevantes, não poderá nunca constituir critério legítimo, ao menos num Estado de Direito Democrático e Unitário, para fundamentar a aplicação de diferentes formas de processo ao mesmo tipo de causas, o mesmo é dizer de diferentes conjuntos de actos estruturados, fundados em concepções diversas quanto aos meios mais adequados para alcançar a justa composição jurisdicional de conflitos de interesses de igual natureza." Pelo que questiona: "Na verdade, como poderá entender-se que uma acção de despejo, pelo simples facto de ter por objecto um imóvel situado no Porto, assuma necessariamente tramitação diversa da assumida por uma acção de despejo que tenha por objecto um imóvel situado em Vila Nova de Gaia, ou Vila Velha de Ródão, ou Vila Flor?!"
O tribunal a quo acrescenta: "Mas, mesmo à luz dos critérios de selecção alinhados na portaria em análise, a eleição dos quatro únicos referidos tribunais com competência para aplicação obrigatória do RPCE não pode deixar de merecer a qualificação de acto destituído de justificação racional e objectiva e, por isso, arbitrário." E mais adiante na fundamentação questiona: "À luz dos critérios tidos pela portaria como legítimos para justificar a diferença de tratamento de cidadãos e empresas no processo de obtenção de resolução de um litígio de interesses particulares através dos tribunais, como compreender racionalmente que na área metropolitana do Porto apenas os juízos cíveis e os juízos de pequena instância cível reúnam os requisitos indispensáveis ao merecimento da aplicação do novo regime processual?" "E que dizer, no que respeita à área metropolitana de Lisboa, quando se considera que apenas os juízos cíveis de Almada e Seixal merecem ter papel activo em tão maravilhosa experiência legislativa dos tempos modernos?!"
Ainda segundo a decisão recorrida, "está bom de ver que o carácter experimental do regime em causa não tem qualquer virtualidade para fundamentar objectiva e racionalmente uma resposta positiva à questão enunciada em III)." "Na verdade, o regime em causa não é nem mais nem menos experimental do que qualquer outro regime, no sentido de que enquanto vigorar no ordenamento jurídico nacional, produzirá inevitavelmente efeitos jurídicos concretos, afectando, consequentemente, o equilíbrio das relações jurídicas de toda a comunidade. Como qualquer outro regime legal em vigor, estará inevitavelmente sujeito a permanente juízo de avaliação de conformidade político-legislativa, podendo ser objecto de revisão ou revogação a todo o tempo por órgão constitucionalmente competente para o efeito." "A originalidade da experimentação está, afinal, tão só, no facto de se aplicar apenas a algumas causas em tribunal, deixando de fora causas do mesmo tipo." "Assim sendo, é o próprio carácter experimental do novo regime, na definição que ele mesmo apresenta, que se assume como razão de ser da desigualdade de tratamento materialmente infundada que vimos evidenciando. Dizendo de outro modo, fundamentar a discriminação de tratamento no seu carácter experimental significa qualificar tal experiência como discriminatória e, por isso, intolerável." "Aplicar ao caso dos autos o RPCE, ou o regime do processo sumário previsto no CPC (aplicável a iguais causas nas demais comarcas do país, com excepção das comarcas de Almada e Seixal), não será com certeza indiferente à solução do mesmo (ou não estivéssemos, nas palavras do próprio legislador, perante «uma alteração de vulto num domínio sensível»."
2 - Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82), "para apreciação da declarada inconstitucionalidade do artigo único da Portaria 955/2006, de 13 de Setembro, e a norma correspondente ao artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006, de 8 de Junho".
Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações, concluindo:
1.º As normas constantes do artigo 21.º do Decreto Lei 108/2006, de 8 de Junho, e do artigo único da Portaria 955/2006, de 13 de Setembro, enquanto delimitam a apenas determinadas circunscrições judiciais a aplicabilidade do "regime processual experimental", ali previsto, não ofendem o princípio constitucional da igualdade.
2º Na verdade, a diversidade de tratamento processual que se verifica entre as partes que litiguem nesses tribunais, onde já vigora o dito regime, e as que litigam nos tribunais sediados nas restantes circunscrições, decorre da prossecução de um interesse relevante na administração da justiça, evitando os inconvenientes que inevitavelmente decorreriam da aplicação generalizada de soluções discutíveis, drasticamente inovatórias e insuficientemente testadas pela prática judiciária.
3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de não inconstitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.
Estratégia - Produção de Eventos Culturais, Lda. não alegou.
Tendo havido redistribuição, em virtude de nova composição do Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
A) A questão de constitucionalidade
3 - As normas sob juízo
Estão sob juízo, no presente recurso de constitucionalidade, as normas contidas no artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006 e no artigo único da Portaria 955/2006.
É a seguinte, a redacção do artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006:
Artigo 21.º
Aplicação no espaço
1 - O presente decreto-lei aplica-se nos tribunais a determinar por portaria do Ministério da Justiça.
2 - Os tribunais a que se refere o número anterior devem ser escolhidos de entre os que apresentem elevada movimentação processual, atendendo aos objectos de acção predominantes e actividades económicas dos litigantes.
Determina por seu turno o artigo único da Portaria 955/2006
Artigo único
Aplicação no espaço
O regime processual experimental, aprovado pelo Decreto-Lei 108/2006, de 8 de Junho, aplica-se aos seguintes tribunais:
a) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca de Almada;
b) Juízos Cíveis do Tribunal de Comarca do Porto;
c) Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal de Comarca do Porto;
d) Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal de Comarca do Seixal.
A decisão de que interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público (desde logo ao abrigo da alínea a) do artigo 280.º da Constituição) recusou a aplicação destas normas com fundamento em violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
É no entanto impossível compreender o sentido e o alcance da questão de constitucionalidade que, por este modo, é colocada ao Tribunal se as normas sob juízo não forem antes do mais lidas no contexto da regulação em que se inserem.
4 - O regime de processo civil experimental
Partindo do princípio - expresso na sua exposição de motivos - segundo o qual «[a] realidade económico-social actual é consideravelmente diferente da que viu nascer o Código de Processo Civil», o Decreto-Lei 108/2006 aprovou, para ser aplicado às acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, um regime autodesignado como regime processual experimental (artigo 1.º). Desenhado (ainda de acordo com a referida exposição de motivos) sob o signo da «simplicidade», da «flexibilidade» e da confiança «na capacidade e no interesse dos intervenientes forenses em resolver com rapidez, eficiência e justiça os litígios em tribunal», este regime processual experimental estrutura-se em torno de algumas regras e princípios essenciais, bem caracterizados de resto no texto da decisão de que interpôs recurso o Ministério Público. Assim, e inter alia, enfatiza-se o dever de gestão processual (artigo 2.º); possibilita-se que os actos processuais venham a ser praticados por forma electrónica (artigo 3.º); prevê-se que haja distribuição diária (artigo 4.º) e que a citação edital seja feita através de anúncios em página informática de acesso público (artigo 5.º); cria-se a figura da 'agregação de acções' e admite-se a 'prática de actos em separado' (artigos 6.º e 7.º); como se permite que a matéria de facto seja decidida na sentença, podendo esta limitar-se à parte decisória (artigo 15.º); que, no âmbito de procedimentos cautelares, se antecipe o juízo sobre a causa principal (artigo 16.º) e que, em regra, se limitem a dois os articulados (artigo 8.º).
A 'alma' do sistema parece estar, porém, no dever de gestão processual, consagrado no artigo 2.º, e que impende naturalmente sobre o juiz. Não discutindo agora - por inútil - a questão de saber em que medida será novo um tal dever, face ao já fixado nos artigos 265.º e 265.º-A do Código de Processo Civil, a verdade é que a amplitude com que agora ele vem reafirmado (no artigo 2.º do RPE) parece fazer crer que, aqui, foi clara a intenção do legislador ordinário. Por um lado, o regime processual experimental fixa um paradigma de tramitação processual, assaz simplificado, e que é aplicável a todas as acções declarativas cíveis, qualquer que seja o seu valor; mas por outro lado - e justamente porque existe agora um amplo dever judicial de gestão processual, entendido como «dever de adoptar a tramitação processual às especificidades da causa» - tal paradigma simplificado de tramitação parece não ser mais do que um 'modelo-padrão', ao qual o juiz pode aderir, mas a partir do qual pode também ele próprio vir a 'construir' a tramitação (mais complexa) que seja adequada ao caso. A ser assim, o abandono do princípio da legalidade e da tipicidade das formas processuais - em benefício de um princípio novo, o da possibilidade de construção casuística, pelo juiz, dessas mesmas formas - , parece ser a matriz essencial do regime processual experimental (assim, Luís Filipe Brites Lameiras, Comentário ao Regime Processual Experimental, Coimbra, Almedina, 2007, p. 31.)
Foi o próprio legislador que qualificou este regime como sendo experimental (artigo 1.º do Decreto-Lei 108/2006). E como toda a «experimentação» implica a existência de um «teste, ou de um «ensaio», antes da adopção de uma qualquer solução 'definitiva', o legislador, em coerência com a qualificação por ele mesmo feita, resolveu limitar no tempo e no espaço a vigência do regime, a fim de poder avaliar os seus efeitos antes que se se dispusesse pela 'vigência plena' do novo paradigma. Por isso, determinou, no artigo 20.º, que o Decreto-Lei 108/2006 fosse revisto no prazo de dois anos a contar da sua entrada em vigor - que foi a 16 de Outubro de 2006; e que, durante todo este período de vigência, se garantisse a «respectiva avaliação legislativa através dos serviços do Ministério da Justiça competentes para o efeito.» Como dispôs que, durante o tempo da «experimentação», o novo modelo de processo civil fosse só aplicado a certos tribunais «a determinar por portaria do Ministério da Justiça» (artigo 21.º).
5. O objecto do recurso
É exactamente sobre esta última disposição legislativa - e sobre a sua concretização através de portaria - que incide a questão de constitucionalidade posta ao Tribunal no presente recurso.
Com efeito, e como o sublinha, nas suas alegações, o representante do Ministério Público no Tribunal, não se inclui no objecto do recurso a questão de saber se serão ou não conformes à Constituição alguma ou algumas das normas da nova tramitação processual instituída, individualmente tomadas. O que antes se procura saber é se será ou não conforme à Constituição - mais precisamente, ao princípio da igualdade - a decisão legislativa de aplicar todo este sistema de normas apenas a certas circunscrições judiciais e não a outras, decisão essa desde logo tomada no artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006 e concretizada pelo artigo único da Portaria 255/2006.
Uma tal decisão é, como já se viu, 'explicada' pela «natureza experimental» que confessadamente se conferiu ao modelo instituído. O legislador não quis que tal modelo fosse tido como 'definitivo', ou capaz de substituir imediatamente o regime processual vigente. Ao invés, o que pretendeu foi «testar e aperfeiçoar os dispositivos de aceleração, simplificação e flexibilização processuais consagrados, antes de alargar o seu âmbito de aplicação» (exposição de motivos do Decreto-Lei 108/2006, itálico nosso). Semelhante intuito de «experimentação» levou a que não apenas se limitasse no tempo a vigência do decreto-lei, determinando a sua revisão obrigatória no prazo de dois anos, como também a que se «opta[sse], num primeiro momento, por circunscrever a aplicação deste regime a um conjunto de tribunais a determinar pela elevada movimentação processual que apresentem...» (exposição de motivos do decreto-lei).
Estão assim estreitamente associadas a questão da «natureza experimental» do regime e a questão da sua limitação no espaço (apenas ao número contado de tribunais identificados pela norma da portaria). Dessa estreita associação tem aliás perfeita consciência a decisão recorrida, quando sustenta que «é o próprio carácter experimental do novo regime, na definição que ele mesmo apresenta, que se assume como a razão de ser da desigualdade de tratamento materialmente infundada que vimos evidenciando» (fls. 32 dos autos).
A ser deste modo, deve a questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca ao Tribunal equacionar-se como segue: é constitucionalmente tolerável - desde logo face ao princípio da igualdade - que o regime processual civil instaurado pelo Decreto-Lei 108/2006, por ser um regime «experimental», seja apenas aplicável às circunscrições judiciais identificadas (por autoridade da lei) no artigo único da Portaria 255/2006? Nesta questão vão incluídos dois problemas que, por razões de método, devem ser distinguidos: (i) o problema de saber se é ou não conforme à Constituição a aplicação do regime processual civil àquelas, e apenas àquelas, circunscrições judiciais que foram identificadas, por autoridade da lei, pelas normas regulamentares em questão; (ii) o problema de saber se é a própria «experimentação legislativa» constitucionalmente censurável. Como já se viu - e como se confirmará pela exposição subsequente - os dois problemas estão estreitamente associados: a sua distinção é apenas operativa sob o ponto de vista metodológico.
B) Regime Processual Civil Experimental e Princípio da Igualdade
6 - O parâmetro constitucional
É antiga, e firme, a jurisprudência constitucional que vem densificando o conteúdo do princípio da igualdade contido no artigo 13.º da CRP, naquela vertente que, aqui, exclusivamente nos interessa - como vínculo específico do legislador e não como princípio aplicável ao poder administrativo e, ou, ao poder judicial. É sabido que o Tribunal tem sempre dito que, nessa sua vertente, «igualdade» não significa proibição de tratamentos jurídicos diferenciados; significa antes a proibição de diferenças que afectem as pessoas e que não sejam fundamentadas à luz do próprio sistema constitucional. No dizer de Dworkin, não está - não pode estar - aqui em causa um «direito» das pessoas a um tratamento em todos os casos iguais; o que está em causa é o «direito» a ser-se tratado como um igual. (Ronald Dworkin, Sovereign Virtue, The Theory and Practice of Equality, Harvard University Press, 2000, p. 11).
Esta orientação foi sempre sufragada pelo Tribunal, num lastro de jurisprudência que, por ser vasto, não pode agora vir a ser integralmente convocado: basta que se recorde, por exemplo, a sua continuação recente nos Acórdãos n.º s 442/2007 e 620/2007 e no Acórdão 232/2003 - que faz neste domínio uma síntese expressiva de todo o acervo jurisprudencial anterior (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)
No entanto, e ainda neste campo, é por demais vago identificar o conteúdo do princípio da igualdade com recurso, apenas, à 'categoria' da proibição de diferenças [de tratamento legislativo] que não sejam fundamentadas à luz do sistema constitucional.
Com efeito, e como se disse no Acórdão 412/2002 (também referido pelo Acórdão 232/2003), «o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais [...]; a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v.g., ascendência, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 54.º vol., p. 417)
Significa isto que - e se deixarmos por agora de lado a última destas três «dimensões», que coloca o problema complexo, e neste momento de abordagem inútil, das chamadas «discriminações positivas» - , se deve introduzir um distinguo nessa classe ampla das «diferenças não [constitucionalmente] fundamentadas» cuja imposição é proibida pelo princípio da igualdade, quando dirigido ao legislador. Uma coisa é a proibição do arbítrio, ou de diferenças legislativamente impostas e que não tenham a justificá-las um qualquer fundamento racional bastante; outra, a proibição de discriminação, ou de diferenças que encontrem o seu fundamento em certos 'critérios subjectivos' que, pela sua estreita relação com a dignidade das pessoas, a Constituição entendeu serem à partida insusceptíveis de justificar a existência de regimes jurídicos distintos. A utilidade do 'distinguo' - disse-o o Tribunal, por exemplo, no Acórdão 191/88 (DR, 1.ª série, n.º 231, p. 4080) - não está apenas no facto de ele ter acolhimento no próprio texto da Constituição, que reserva o n.º 2 do artigo 13.º à enunciação separada da proibição de discriminação; está ainda, e sobretudo, no facto de às duas 'dimensões da igualdade' corresponderem testes de constitucionalidade dotados de diversa 'densidade'. É que «quando ao nível normativo se estabelece uma diferenciação que se escora em um desses factores» [os tais 'critérios subjectivos' que se mostram à partida como insusceptíveis de fundamentar diferenças de trato entre as pessoas], então, «será de presumir, ao menos à partida, que se está perante uma discriminação constitucionalmente inadmissível», sendo que «se posterior investigação revelar que tal factor é a única e exclusiva causa da diferenciação, então será certo e seguro que se registará infracção ao princípio constitucional da igualdade» (Acórdão 191/88, loc. cit.) Mas se forem outros e diferentes os motivos que fundaram a diferença diverso terá que ser, também, o teste de constitucionalidade que se lhes aplicará. A instância que for competente para a realização de um tal 'teste' terá nessa altura que averiguar da racionalidade e da objectividade dos motivos que fundaram a diferença, merecendo o legislador censura quando, e apenas quando, se mostrar que foram arbitrárias ou absurdas as suas 'razões', por não haver motivo 'racional' e 'objectivo' - ou que seja intersubjectivamente apreensível como tal - que as possa justificar.
Sustenta a decisão recorrida que as normas sob juízo violam o artigo 13.º da Constituição. E, embora identifique por diversas vezes tal lesão como relevando do «arbítrio legislativo» - por entender que é destituída de qualquer justificação racional e objectiva a decisão do legislador de aplicar o regime processual experimental apenas aos tribunais identificados pela Portaria 955/2006 - , não deixa de convocar também, e noutros momentos, aquela lesão do princípio que se identifica com a proibição de discriminação. Fá-lo não apenas quando se abona num tratamento doutrinário do parâmetro constitucional que não exclui nenhuma das suas duas dimensões (fls. 25 dos autos); mas também quando afirma a natureza intolerável, porque discriminatória, da própria «experimentação» legislativa, em si mesma considerada (fls. 32). Importa, no entanto - e pelas razões já aduzidas - distinguir.
7 - As normas sob juízo e a proibição de discriminação
A proibição de discriminação, contida no artigo 13.º, n.º 2, da CRP - e entendida, no presente contexto, enquanto vínculo do legislador - corresponde a uma tradição funda do constitucionalismo que pode ser compreendida por intermédio do recurso a três elementos fundamentais, todos eles interrelacionados. Primeiro, pela particular 'densidade' do controlo que se faz das escolhas do legislador, sempre que este institua diferenças de regime jurídico que se possam incluir no âmbito da referida proibição. Segundo, pela particular natureza dos motivos que, neste domínio, fundamentam a proibição das diferenças legislativas. Terceiro, pelo próprio conteúdo do acto legislativo discriminatório, ou seja, pela intensidade e espécie de diferenças que, a serem acolhidas pelo legislador, devam ser entendidas como discriminação. Ao primeiro elemento, relativo à 'densidade' do controlo, já nos referimos antes, pelo que a ele não voltaremos. Fixemo-nos agora na análise do segundo e terceiro elementos.
O n.º 2 do artigo 13.º da CRP enumera os motivos que fundamentam a proibição de discriminação, em consonância, aliás, com o que se passa em ordens constitucionais próximas da nossa (veja-se, a título de exemplo, o artigo 3.º, n.º 3, da Constituição alemã e o artigo 14.º da Constituição espanhola). No entanto, e como nenhuma destas 'enumerações' pode ser entendida como um elenco fechado - mas apenas como uma 'definição' enunciativa: quanto a este ponto, e por exemplo, veja-se o Acórdão 191/88, loc.cit. - , a técnica da enumeração, presente na nossa ordem e ordens constitucionais próximas da nossa, não dispensa neste domínio o esforço de abstracção e de conceitualização. Alguma natureza especial terão que ter estes motivos, que fundamentam em qualquer caso a proibição constitucional de discriminação. Tem entendido normalmente a doutrina que tal natureza especial deve ser achada a partir do valor constitucional da igual dignidade das pessoas - ou, no dizer de Dworkin, no «direito» que elas têm a ser tratadas como iguais - de forma a que se considerem motivos ou factores discriminatórios todos aqueles «que se baseiem exclusivamente em atributos [subjectivos] sobre os quais as pessoas não têm qualquer possibilidade de controlo, ou em opções de vida (...) que as pessoas são livres de formar» (assim, Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 110). No mesmo sentido, o direito norte-americano, que conta neste domínio com uma rica elaboração doutrinária, atribui a estes 'factores' ou 'motivos' discriminatórios - que aí não são sequer enunciados na lei positiva - a designação plástica de «categorias suspeitas» [suspect categories]. (Assim, Lawrence H. Tribe, American Constitutional Law, The Foundation Press, 1988, 2.ª ed., p. 1465.)
Quanto ao terceiro elemento - qual o conteúdo das diferenças que, a serem acolhidas pelo legislador, são de espécie e intensidade suficientes para serem tidas como discriminatórias - deve dizer-se que o direito português, pela sua formulação positiva, confere ao intérprete orientações mais claras do que aquelas que são concedidas por outros ordenamentos. Com efeito - e vejam-se uma vez mais os exemplos já citados do artigo 3.º, n.º 3, da Lei Fundamental de Bona e do artigo 14.º da Constituição espanhola - , normalmente os textos constitucionais não explicitam o conteúdo típico do acto discriminatório. Ao invés, diz o n.º 2 do artigo 13.º da CRP que «[n]inguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de um direito ou isento de qualquer dever em razão de (...)». A explicitação confere, como se vê, orientações claras ao intérprete quanto à consistência da própria 'discriminação'.
É bem evidente que das normas sob juízo decorrem diferenças de tratamento entre as pessoas. Como resulta das disposições conjugadas dos artigos 21.º do Decreto-Lei 108/2006 e do artigo único da Portaria 955/2006 que o regime processual experimental só será aplicável às acções declarativas cíveis a que não corresponda processo especial e às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos cujos termos correrem em certos tribunais e não noutros, é claro que quem for parte num desses processos terá, por meras razões de localização territorial das causas, «tratamento diverso» daquele que valerá para os outros casos, em que permanecerá aplicável o regime processual comum. Mas o que não é de modo algum claro é que tal «diversidade de tratamento» consubstancie uma discriminação constitucionalmente proibida, no sentido exacto que deve ser dado a tal «proibição» e que acabou de se identificar.
Com efeito, é desde logo assaz duvidoso que a «mera razão de localização territorial» - critério decisivo, in casu, para a aplicação da diferença de regimes - possa ser vista como um 'critério' ou 'motivo' discriminatório, análogo, pela sua natureza, aos enunciados no elenco aberto do n.º 2 do artigo 13.º É certo que se trata aqui de um «motivo» em relação ao qual - e para usar os termos da orientação atrás esboçada - «as pessoas não têm qualquer possibilidade de controlo»; mas também é certo que se não confunde ele com nenhum «atributo subjectivo» que, pela sua relação com o princípio da igual dignidade das pessoas, deva logo à partida ser desconsiderado como fundamento de diferenciações constitucionalmente admissíveis.
Por outro lado, do conteúdo da diferença - ou da diversidade de tratamento, resultante da aplicação de diferentes regimes processuais - não resulta que [alguém] seja «privilegiado, beneficiado (...) ou privado de qualquer direito», nos termos do n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Na verdade - e ao contrário do que parece decorrer, a certo passo, do entendimento perfilhado pela decisão recorrida (fls. 22 dos autos) - não se retira de nenhuma disposição constitucional a existência de um qualquer direito dos particulares a uma certa e determinada conformação do processo [civil], que se imponha ao legislador ordinário como um standard fixo de tramitação processual que deva ser adoptada ne varietur. Como o Tribunal tem sempre dito - e vejam-se, a este propósito, os Acórdãos n.º s 960/96, 222/90, 86/88 e 404/87 - a conformação legislativa do processo civil está vinculada ao princípio do due process of law, consagrado desde logo no artigo 2.º e decorrente do artigo 20.º da CRP. O que decorre deste princípio é o direito a uma solução jurídica dos conflitos que seja obtida em prazo razoável, dispensada com a observância das garantias de imparcialidade e independência e com um correcto funcionamento do princípio do contraditório. Sendo estas as vinculações constitucionais do processo civil, para além delas situa-se o espaço de liberdade conformadora do legislador, que não é portanto previamente limitado pela existência de um direito a uma certa e determinada tramitação processual.
É certo que - e a decisão recorrida di-lo, a fls. 23 - juízo e modo de instauração do juízo não são nunca variáveis independentes, pelo que a existência de processos diferentes pode conduzir à existência de 'juízos' diferentes. Tal não chega, porém, para que se qualifique como discriminatória a 'diferença' que, indiscutivelmente, o regime agora em causa possibilita. Resta por isso apenas saber se não será ela arbitrária.
8 - As normas sob juízo e a proibição do arbítrio
Como já se viu, o artigo único da Portaria 955/2006 determina que o regime processual experimental seja aplicado, apenas, nos Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada; nos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto; nos Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal de Comarca do Porto e nos Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca do Seixal. Fá-lo, como também já se sabe, por determinação do artigo 21.º do Decreto-Lei 108/2006.
Sustenta a decisão recorrida que os «argumentos» utilizados para fundamentar esta restrição da aplicação no espaço do regime experimental, «assentes em meras considerações de natureza abstracta, vaga e imprecisa», «estão muito longe de constituir justificação objectiva e racional para o que quer que seja» (fls. 27 dos autos). Em seguida, aduz a decisão algumas razões que, no seu entendimento, ilustrariam a natureza 'arbitrária' - isto é, nem 'racional' nem 'objectiva' - das escolhas feitas, neste domínio, pelo legislador.
Em primeiro lugar, o 'facto' de se ter eleito, como critério determinante da aplicação das normas do RPE, «a mera localização territorial das causas» (fls. 28 dos autos): a este respeito diz a decisão recorrida que, em Estado de direito democrático e unitário, tal nunca poderá constituir critério legítimo para «fundamentar a aplicação de diferentes formas de processo ao mesmo tipo de causas» (ibidem). Depois, alega-se a discrepância existente entre os motivos que teriam levado o legislador a fixar um novo modelo processual e o seu âmbito de aplicação: «[i]nicialmente projectado para responder a necessidades particulares de certo tipo de litigância, a protagonizada pelos chamados 'litigantes de massa' (...), o novo regime processual acaba afinal por ter aplicação a todas as acções declarativas cíveis (comuns) que corram nos referidos tribunais» (fls. 29). Finalmente, questionam-se, à luz desses mesmos motivos, as escolhas concretas de aplicação territorial que foram feitas, perguntando-se, a fls. 30: «como compreender racionalmente que na área metropolitana do Porto apenas os juízos de pequena instância cível reúnam os requisitos indispensáveis ao merecimento da aplicação do novo regime processual? (.) E que dizer, no que respeita à área metropolitana de Lisboa, quando se considera [...] apenas os juízos cíveis de Almada e Seixal?»
Foram pois estas as «perplexidades» que levaram o tribunal a quo a recusar a aplicação in casu do regime experimental aprovado pelo Decreto-Lei 108/2006, com fundamento no carácter arbitrário da desigualdade de tratamento que dele decorreria para cidadãos e empresas «no plano do exercício de direitos e interesses subjectivos através do recurso aos tribunais».
No entanto, e a propósito do princípio da proibição do arbítrio, decorrente do n.º 1 do artigo 13.º da CRP, tem sempre sublinhado o Tribunal duas ideias essenciais que importa agora recordar. Antes do mais, que não estão aqui em causa - que não podem estar aqui em causa - 'juízos' sobre a bondade das soluções legislativas; depois, que proibindo a Constituição neste domínio apenas «as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor constitucionalmente relevantes» (Acórdão 39/88, in AcTC, 11.º vol., pp. 233 e ss.), deve descobrir-se a ratio das disposições em causa, para, a partir dessa mesma ratio, se poder avaliar se as mesmas possuem ou não uma «fundamentação razoável» (Acórdão 232/2003 e doutrina aí citada: AcTC, 56.º vol., p. 39).
Ora a ratio das disposições em juízo encontra-se, como já se viu, na natureza «experimental» deste regime processual novo, assente nos princípios da «simplicidade», da «flexibilidade» e da confiança «na capacidade e no interesse dos intervenientes forenses em resolver com rapidez, eficiência e justiça os litígios em tribunal». Justamente porque o legislador quis «testar» e «aperfeiçoar» um regime assim desenhado antes de alargar o seu âmbito de aplicação, é que - e recorde-se a exposição de motivos do decreto-lei - se optou, num primeiro momento, por circunscrever a aplicação deste regime a «um conjunto de tribunais a determinar pela elevada movimentação processual que apresentem».
Compreende-se que, à luz desta razão, se não pudessem escolher todos os tribunais que apresentassem elevada movimentação processual, mas apenas alguns deles (a questão colocada pela decisão recorrida quanto à eleição, nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, de 'apenas' aqueles juízos e não de outros tem assim alguma resposta razoável). Como se compreende, ainda à luz da mesma razão, que, no número contado de tribunais escolhidos para «testar» o regime, se decidisse que, neles - num universo já por si limitado - , se aplicasse o novo modelo processual a todas as acções declarativas cíveis. Como se compreende finalmente que, a aceitar-se a razoabilidade do «teste» e do «ensaio», ele não poderia ser feito com outro critério que não o da «mera localização territorial das causas».
É certo que desta ratio resultam diferenças de tratamento entre as pessoas. Como afirma o tribunal a quo, por causa dela «uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil emergente de acidente de viação» pode assumir «um ou outro regime processual consoante o acidente tenha ocorrido num ou noutro lado (...)». Mas certo é também que tais diferenças não são nem absurdas nem arbitrárias: encontrou-se para elas uma razão de ser, um fundamento inteligível, e esse não foi outro que a natureza «experimental» do novo regime de processo civil.
Justamente por concordar que assim é - que a desigualdade de tratamento é razoavelmente fundada na natureza experimental do regime - é que a decisão de que se interpôs recurso acaba por contestar a «experimentação» em si mesmo considerada: «aqui chegados, é tempo de chamar à discussão o autoproclamado carácter 'experimental' do regime processual em causa por forma a saber se o mesmo poderá ou não constituir razão objectiva (...) para justificar a discriminação (..)» (fls. 30-1 dos autos). A questão, diga-se desde já, tem toda a pertinência. Como tem dito o Tribunal, não é uma qualquer «razão» que pode justificar as diferenças de tratamento entre as pessoas. Idóneos para libertar o legislador de um juízo de censura - quando está em causa a proibição do arbítrio - serão apenas aquelas «razões» ou «fundamentos materiais bastantes» que correspondam a critérios de valor constitucionalmente relevantes. Resta por isso saber se se inclui na categoria o fenómeno da «experimentação legislativa», em si mesmo tomado.
C) Fundamentos constitucionais da experimentação legislativa
9 - O regime processual instituído pelo Decreto-Lei 108/2006 é, de acordo com a qualificação que lhe foi dada pelo próprio legislador, um «regime experimental» Tal significa - como já se viu - que, antes que o regime fosse adoptado como modelo definitivo de regulação, se procurou testar ou ensaiar a aplicação das suas normas, limitando tal aplicação no tempo e no espaço de modo a melhor poder avaliar os efeitos dela decorrentes.
Como salienta, nas suas alegações, o representante do Ministério Público no Tribunal, não é novo entre nós um tal «método» de legislação, que aliás tem sido densamente discutido em direito comparado (veja-se, por todos, Charles-Albert Morand (org.), Évaluation Législative et Lois Expérimentales, Presses Universitaires d'Aix-Marseille, 1993). O que o caracteriza é a indecisão do legislador.
Com efeito, a «normação experimental» pressupõe antes do mais um legislador indeciso, ou ao qual faltam certezas quanto à regulação definitiva a adoptar para o cumprimento de certas políticas públicas ou para a disciplina de certos domínios da vida colectiva. Ao invés, por isso, de esperar que a adequação do Direito às realidades se faça, na continuidade, pela jurisprudência, ou na descontinuidade, por reformas legislativas sucessivas - como sucede com o método, chamemos-lhe assim, 'clássico' de normação - , o «legislador experimental» testa ou ensaia primeiro, num espaço e num tempo limitados, a aplicação e os efeitos da aplicação das suas normas, a fim de evitar os riscos que, em situações de elevado grau de incerteza quanto aos efeitos de certa regulação, geraria porventura a adopção de sistemas normativos 'definitivos'. (Pierre-Henri Bolle, «Lois Expérimentales et Droit Pénal», em Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 321-335). Assim, o legislador que «experimenta» - tal como o legislador que toma 'medidas' para situações que não são nem gerais nem abstractas - parece ser movido por uma racionalidade técnico-económica que será diversa daquela que orienta os métodos 'comuns' de legiferação.
Sustenta a decisão recorrida que merecem censura constitucional estes métodos «experimentais», em si mesmo considerados, por serem eles desde logo discriminatórios.
Já vimos, porém, que, no caso dos autos, assim não é. E, sendo certo que ao Tribunal não está vedado a formulação de juízos com fundamentos diversos dos que foram, no recurso, invocados (artigo 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional), a verdade é que também se não vê que outras regras e princípios constitucionais poderiam sustentar a censura da adopção, pelo legislador, do método «experimental», em si mesmo tomado.
Com efeito - e o Tribunal já o tem dito por diversas vezes: veja-se, a título de exemplo, o Acórdão 1/97 - , não decorre de nenhuma norma da Constituição que, entre nós, a função legislativa deva ser entendida de modo a excluir, de forma apriorística, certos e determinados conteúdos em detrimento de outros. Como se afirmou no Acórdão atrás citado, nem a ordenação constitucional do princípio da separação dos poderes (artigo 111.º da CRP) nem as regras de distribuição da função legislativa pela Assembleia da República e pelo Governo (artigos 161.º, 164.º, 165.º e 198.º da CRP) comportam semelhante exclusão.
Algo diverso se poderá passar em outros ordenamentos jurídicos, em que, ao invés, se terá sedimentado um certo conceito constitucional de lei que, pelo seu conteúdo, será avesso à racionalidade técnico-económica que é própria da «legislação experimental». Parece ser esse o caso do direito francês. Com efeito - e após uma pronúncia por parte do Conselho Constitucional - a Constituição francesa teve que ser revista, de forma a comportar hoje, no seu artigo 37-1, uma autorização expressa, endereçada ao legislador, para a emissão de «legislação experimental» (Sobre o assunto: Florence Crouzatier-Durand, «Reflexões sobre o Conceito de Experimentação Legislativa», in Legislação, Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 39, Janeiro-Março 2005, pp. 5-29). Pelo contrário, e em direito português, não é necessária uma tal autorização constitucional expressa. Semelhante autorização vai implícita no conceito aberto de lei que a CRP alberga.
É claro que, sendo entre nós a «lei experimental» uma lei como as outras - ou seja, expressão da actividade constitucionalmente permitida do legislador - , não poderá ela em caso algum furtar-se à obediência dos princípios constitucionais (orgânicos, procedimentais e materiais) que regem toda a função legislativa. Nessa medida, haverá desde logo que ter em conta que o legislador de um Estado de direito não poderá nunca desonerar-se do dever, que é o seu, de procurar criar um Direito que seja, tanto quanto possível, estável; que poderá haver certos domínios da ordem jurídica que, pela natureza, intensidade e relevo dos bens jurídicos neles protegidos, sejam pelo seu conteúdo hostis ao uso da técnica da «experimentação»; que, sempre que de uma tal técnica resultarem encargos especiais para as pessoas, deverão eles ser reduzidos ao mínimo possível de acordo com o princípio da proporcionalidade. Que, finalmente e por razões de segurança, deve em qualquer caso o legislador que «experimenta» dizer que o faz: deixar claro quais são os limites, temporais e espaciais, de aplicação das normas que ficam sujeitas à avaliação do 'ensaio' ou da 'experiência'.
Como, no caso sob juízo, se perfazem todas estas condições ou limites, por nenhuma razão merece ele qualquer censura constitucional.
III - Decisão
Por estes motivos, decide-se conceder provimento ao recurso, reformando-se a decisão recorrida de acordo com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008. - Maria Lúcia Amaral - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - João Cura Mariano - Vítor Gomes - José Borges Soeiro - Ana Maria Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Rui Manuel Moura Ramos.