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Acórdão 228/2007, de 23 de Maio

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Sumário

Julga inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25.º, 26.º e 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita; julga inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior

Texto do documento

Acórdão 228/2007

Processo 980/2006

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Nos autos de inquérito NUIPC3401/00.OJAPRT, a correr termos no DIAP do Porto, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

"Requerimentos de fls. 986 a 996, 999 a 1001, 1003 a 1012 e 1028 a 1034:

Considerando que se mostram dirigidos ao JIC junto do TIC deverão ser remetidos a tal Tribunal para apreciação e decisão.

Reiteramos, contudo, nesta sede, as posições por nós tomadas sobre o assunto nos despachos de fls. 837 a 841, 862, 876/877, 896 e 918.

Refutamos, por conseguinte, a posição assumida pelos arguidos que - à falta de consentimento expresso - não é admissível a recolha de vestígios biológicos com vista à posterior realização de perícia de biologia forense de identificação de perfis genéticos (ADN).

Como salientamos no despacho inicial em que nos debruçamos sobre a admissibilidade e legalidade da realização dos exames, o arguido é perspectivado como sujeito e objecto de prova. E o que resulta - à partida - do seu estatuto processual consagrado no artigo 61.º, n.º 3, alínea d), do CPP, ou seja, no que ora interessa, o dever de sujeitar-se a diligências de prova como é o caso presente que consagração positivada no artigo 171.º, n.º 1, do mesmo diploma pelo que não faz sentido a asserção de que ao procedermos como se mostra documentado no processo se está perante um meio proibido de obtenção de prova.

De resto, não deixa de ser curiosa a posição assumida pelo Prof. Costa Andrade para este processo depois de confrontada com a que assume no seu estudo e no qual (também) nos apoiámos no despacho de fls. 838 e segs., mais propriamente a fls. 839, in fine.

Não houve, a nosso ver, qualquer violação da lei nem de princípios fundamentais legitimadores do processo penal razão por que não deve ser atendido o requerido pelos arguidos."

Na sequência de tal despacho, o juiz de instrução criminal decidiu a arguida nulidade nos seguintes termos:

"Fls. 986 e segs., 999 e segs., 1003 e segs., 1028 e segs. e 1045 e segs.:

Respeitam os presentes autos à investigação, entre outros, da prática de factos susceptíveis de integrar dois crimes de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alíneas c), f) e i), do Código Penal.

No local onde ocorreram os homicídios foram recolhidos vestígios biológicos, sendo eles ou alguns deles, pertencentes ao(s) autor(es) de tais crimes.

No decurso da investigação, em face da falta de testemunhas presenciais daqueles homicídios, decidiu o MP ordenar a prova por meio de exames à pessoa dos suspeitos entretanto constituídos como arguidos, com vista à colheita de vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente comparação com os dos vestígios biológicos encontrados no local dos crimes.

Verifica-se do exame dos autos que tais exames, já ordenados em Maio do corrente ano, não lograram efectuar-se nas datas sucessivamente fixadas para o efeito pelas mais diversas razões: ou porque os arguidos entenderam ser o despacho que o ordenou ilegível e apesar de posteriormente dactilografado o consideram ilegal e se recusaram submeter-se ao exame, ou porque a ele faltaram por motivo de doença, ou porque se encontravam ausentes e não era possível a sua notificação - cf. fls. 638 a 640, 822, 838 a 948, 955 e 965 a 970.

Só em 20 de Setembro de 2005 se conseguiu efectuar o predito exame apenas ao arguido Armando Luís Monteiro Rodrigues, o qual no acto, declarou não ser sua vontade sujeitar-se a tal exame, pese embora a fl. 974 tivesse afirmado ''estar inteiramente disposto a submeter-se à prova de ADN''.

Em 19 de Setembro de 2005, o mesmo arguido apresentou o requerimento a fls. 986 e segs., afirmando não se disponibilizar para colaborar ou permitir a pretendida colheita e invocando a ilegalidade da sua concretização por via coactiva.

Juntou ainda uma ''opinião/consulta'' subscrita pelo Prof. Manuel da Costa Andrade sobre a legalidade ou ilegalidade da imposição coactiva do arguido no processo penal à análise de ADN - cf. fls. 992 a 996.

Os arguidos Maria Luísa Pinto Coelho e José Pedro Oliveira no mesmo dia 19 de Setembro de 2005 reiteraram o alegado pelo arguido Armando Rodrigues - cf. fls. 992 a 1026.

A fls. 1028 e segs., veio o arguido Armando Rodrigues requerer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade e consequente proibição absoluta de valoração da prova obtida através da sujeição coactiva do arguido à colheita da saliva através de zaragatoa realizada no IML do Porto efectuada no dia 20 de Setembro de 2005.

A fls. 1000 e 1001, 1005 a 1007, vieram os arguidos Maria Luísa Coelho e José Pedro Oliveira, respectivamente, requer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade do despacho do MP que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de amostra biológica para tipificação de ADN.

Por último, a fls. 1045 e segs., veio o arguido Armando Rodrigues reiterar o pedido efectuado a fls. 1028 e segs., requerendo ainda a este Tribunal que ordene a instauração de procedimento criminal contra todos os que ordenaram, efectuaram e colaboraram ou de qualquer forma participaram na colheita de saliva ao arguido, por entender ter sido praticado o crime previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Cumpre decidir.

Desde já começamos por adiantar que, pese embora o muito respeito que nos merece quem perfilha de opinião contrária, entendemos não assistir qualquer razão aos arguidos.

É consabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.

O artigo 32.º, n.º 5, da CRP consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que ''o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'', ao qual, é inerente o princípio do contraditório.

E no n.º 1 do mesmo artigo 32.º da CRP prescreve-se que ''O processo criminal assegura todas as garantias de defesa''.

O sistema de estrutura acusatória caracteriza-se (entre outros aspectos que para o caso dos autos não interessam chamar à colação) pela parificação do posicionamento jurídico entre a acusação e a defesa em todos os actos jurisdicionais, configurando-se o arguido como um sujeito processual que tem intervenção em todas as fases do processo, inclusive na fase do inquérito, embora nesta fase processual muito mais limitada do que na instrução e julgamento, porquanto o inquérito tem uma estrutura predominantemente inquisitória.

Conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias o ''Afirmar-se [...] que o arguido é sujeito e não objecto do processo significa [...] ter de assegurar àquele uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal''.

Isto significa que, se ao arguido, é imputado um conjunto de factos que podem originar responsabilidade por uma infracção penal, certo é também que lhe é garantido o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou negar esses factos e seu enquadramento jurídico.

Neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional no Acórdão 172/92, de 6 de Maio, dizendo: ''O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo [...].

Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório.''

Assim, porque o direito processual penal é direito constitucional aplicado, no CPP existem normas que garantem ao arguido esta paridade de posicionamento com o MP, para poder ilidir ou enfraquecer as provas recolhidas oficiosamente pela acusação e pelos órgãos de polícia criminal, não obstante estas entidades se orientarem apenas para a descoberta da verdade, instruindo a favor e contra o suspeito.

Aliás, afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade que ''o Ministério Público é entre nós pacificamente encarado como um órgão da administração da justiça cuja actuação deve subordinar-se a estritos critérios de legalidade e objectividade. E a que, nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do CPP, cabe colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade''.

E citando o Prof. Figueiredo Dias, transcreve um pequeno trecho do seu estudo sobre ''Os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal'', in O Novo Código do Processo Penal, CEJ, p. 25: ''Dada a condicional intenção de verdade e justiça [...] que preside à intervenção do Ministério Público no processo penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade.''

Dispõe o artigo 272.º, n.º 1, do CPP: ''Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação.'' E o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CPP estabelece: ''é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal''.

Por sua vez o artigo 61.º, n.º 1, do CPP enumera (embora não exaustivamente), um conjunto de direitos de que o arguido goza.

Ao impor, a lei, o interrogatório do suspeito como arguido, pretende o dar-se a este conhecimento imediato da existência do processo contra si instaurado, para que o arguido fique em condições de, tempestiva e mais eficazmente, tomar posição sobre os factos que lhe são imputados e requerer a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias - artigo 61.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

Por outro lado, e do ponto de vista do titular da acção penal, o dar-se conhecimento ao arguido de que contra ele corre um inquérito, deve ser feito tão cedo quanto possível, pois pode suceder que o arguido forneça elementos de prova para o processo que facilitem o esclarecimento da notícia do crime, nomeadamente apresentando provas que permitam excluir, desde logo, a sua eventual responsabilidade, evitando-se dessa forma um inquérito inútil.

Neste sentido decidiu ainda o Acórdão da RP de 12 de Junho de 2002, no processo 362/02, afirmando que ''Consequência da estrutura acusatória do processo penal - artigo 32.º, n.º 5, da CRP - é o princípio da igualdade de oportunidades ou igualdade de armas. O processo deve estar estruturado em termos que permitam que a acusação e a defesa disponham de idênticas possibilidades para intervir no processo, para demonstrarem perante o tribunal a validade das suas alegações''.

Por isso todas as exposições, memoriais e requerimentos do arguido devem ser sempre integrados nos autos - cf. artigo 98.º, n.º 1, do CPP - embora os requerimentos de diligências não sejam vinculativos para o MP, que só ordena a realização das que entender necessárias - artigo 267.º do CPP.

Porém, entende o arguido Armando Rodrigues que a realização coactiva do exame para colheita de saliva por forma a determinar o seu perfil genético a que foi sujeito, ''integra a prática do crime previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CPP por todos os que o ordenaram, o realizaram e nele de qualquer forma participaram'' e os restantes arguidos, a declaração de nulidade do despacho do MP que determinou a realização de idêntico exame a eles referente.

É certo que a CRP estabelece no artigo 25.º, n.º 1, que ''A integridade moral e física das pessoas é inviolável''.

Por sua vez o artigo 32.º, n.º 8, da Lei Fundamental prescreve que ''São nulas todas as provas obtidas mediante [...] ofensa da integridade física ou moral da pessoa''.

De acordo com tais normas, dispõe o artigo 126.º do CPP:

''1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante [...] ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:

a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de [...] ofensas corporais [...];

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [...]'' - realce nosso.

A partir das normas que se acabam de citar, cabe a interpretação de que a utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal está sempre limitada pelo integral respeito pela decisão da sua vontade, ao longo de todo o processo penal, e, no que para o caso dos autos interessa, também na fase do inquérito, pelo que, os arguidos ao não terem dado consentimento para a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição da valorado como prova, do resultado obtido através da sua análise, nos termos do artigo 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e c).

Em anotação ao estabelecido no n.º 8 do artigo 32.º da CRP dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros que ''O que há de novo no n.º 8 não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas [...]; seria intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei'' - realce nosso.

Porém, com todo o respeito por quem sufraga opinião contrária, em nossa muito modesta opinião, não é aquela a interpretação que o legislador pretendeu fazer-se quando incluiu no CPP a norma do artigo 172.º, n.º 1, que, à primeira vista, parece contradizer o preceituado no artigo 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e c).

De acordo com o CPP, o arguido para além dos direitos e deveres consagrados de forma não exaustiva no artigo 61.º do CPP, tem, como todas as pessoas em geral, o dever de colaboração com as autoridades judiciárias para a realizado da justiça nomeadamente o dever de se submeter a exame - artigos 171.º e segs. do CPP.

O exame tem por fim fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória.

A perícia, por sua vez, consiste num meio de prova em que a percepção ou a apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos - artigo 151.º do CPP.

Como faz notar o Prof. Figueiredo Dias, o facto de o arguido ser considerado um sujeito do processo penal 'não quer dizer que o arguido não possa, em determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de auto-incriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua livre personalidade' - realce nosso.

Mas haverá que interpretar cum grano salis esta afirmação do insigne professor.

De acordo com a sua lição, o arguido pode constituir meio de prova autónomo no processo penal, quer em sentido material através das declarações que presta sobre os factos, quer em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames.

Nesta perspectiva, os exames têm uma dupla natureza:

Por um lado, ''são meio de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto têm primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de 'inspecção' ou 'perícia''';

Por outro lado, ''como verdadeiro meio de coacção processual na medida em que a entidade competente que preside à fase processual em causa, pode tornar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força'' - realce nosso.

No actual CPP, de acordo com o disposto no artigo 60.º do CPP, ''Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercido de direitos e deveres processuais, sem prejuízo [...] da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei'' - realce nosso.

Conforme estatui expressamente o artigo 61.º, n.º 3, do CPP: ''Recaem em especial sobre o arguido os deveres de sujeitar-se a diligências de prova [...] ordenadas e efectuadas por entidade competente'', ou seja, a todas as que se entenderam como necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça - sendo a regra a da atipicidade das diligências da prova - desde que não estejam proibidas por lei - cf. o artigo 125.º do CPP.

Daí que o arguido possa ter de submeter-se a exame e a perícia - artigos 151.º a 171.º do CPP - como sucedeu no caso dos autos, ordenada pela autoridade judiciária competente que preside à respectiva fase processual, neste caso, o MP.

E tal obrigação vem expressamente prescrita e salvaguardada no artigo 172.º, n.º 1, do CPP: ''Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame [...] pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.''

Mas esta sujeição do arguido a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de coacção da prisão preventiva, quando a realização da justiça não possa alcançar-se através de outras diligências, por forma a não contender-se com a decisão de vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenção no processo representar um meio de defesa que lhe é atribuído no nosso processo penal.

Daí que o Prof. Figueiredo Dias tenha considerado o exame, e para o que interessa para o caso dos autos, mutatis mutandis também a subsequente perícia, como ''um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma pessoa [...] esta vê-se constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de investigação sobre si mesma [...] e por isso, as normas que os permitem não poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, máxime com a prisão preventiva: em um conto ror outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a excepção'' - carregado e itálico nossos.

No mesmo sentido afirma Maia Gonçalves que o que no artigo 172.º do CPP ''se dispõe sobre a possibilidade de a autoridade judiciária compelir alguém a sujeitar-se a qualquer exame ou a facultar coisa que deva ser examinada é um dispositivo geral, podendo portanto ser afastado pela aplicação de algum regime especial consagrado na lei. É o caso por exemplo, do condutor que recusa submeter-se à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas'' - cf. artigos 156.º e 157.º, n.os 1 e 4, do Código da Estrada, alterado pelo Decreto-Lei 44/2005, de 25 de Fevereiro.

Para o caso dos autos, a lei não só não afasta a citada regra imposta pelo artigo 172.º, n.º 1, do CPP, como pelo contrário, estatuiu no artigo 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei 11/98, de 24 de Janeiro, que ''Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este for necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que seja ordenado pela autoridade judiciária competente nos termos da lei de processo'' - realce nosso.

E no artigo 44.º, n.º 1, do mesmo diploma prescreve que ''Qualquer pessoa devidamente convocada pelo responsável do serviço do instituto [...] para a realização de uma perícia tem o dever de comparecer no dia, hora e local designados, sob pena das sanções previstas na lei do processo''.

Certo é, recordemos, que o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva.

No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presenciais dos homicídios qualificados em investigação, de que foram vítimas Maria da Conceição Ferreira Pacheco e Albano da Silva Borges e, consequentemente, de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.

Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, este Tribunal decide julgar improcedente a invocada nulidade e consequente proibição da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido Armando Rodrigues e ainda a efectuar aos restantes arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo magistrado do MP titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal.

Notifique e oportunamente devolva o inquérito aos competentes serviços do MP."

Os arguidos José Pedro Couto Soares Bravo de Oliveira e Maria Luísa Pinto Coelho interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, concluindo do seguinte modo:

"I - No direito português vigente, por falta de lei expressa, só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN;

II - Uma vez que os recorrentes manifestaram a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, é manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar questão que devia conhecer, e sobre a qual o tribunal recorrido não se pronunciou sendo portanto tal despacho nulo nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

III - Dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade de tal mandado e posterior despacho quanto à sobredita colheita, nos termos em que está configurada com todas as legais consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s) por em manifesta violação do disposto, entre outros, no artigo 25.º, n.º 1, da CRP.

IV - Decidindo de forma diversa, o juiz a quo violou, entre outras, as normas contidas nos artigos 25.º, 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, todos da CRP, o artigo 8.º da CEDH, o artigo 12.º da DUDH, o artigo 17.º do PIDCP e o artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, bem como o artigo 172.º, n.º 1, ambos do CPP.

V - De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do artigo 172.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de possibilitar ao MP ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

VI - Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do CPP, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na conclusão anterior.

VII - É que dada ser esta matéria das restrições aos direitos, liberdades e garantias está sujeita à reserva de lei formal e material.

VIII - Ou seja os direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos senão por via de lei.

IX - E só podem ser regulados por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei governamental autorizado por aquele órgão legislativo, nos termos dos artigos 167.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP.

X - Garantindo-se assim que os direitos, liberdades e garantias não ficam à disposição do poder regulamentar da administração e que o seu regime há-de ser definido pelo próprio órgão representativo, e não pelo Governo, e muito menos pelas entidades públicas dotadas de poder de auto-regulação.

XI - Ou seja, nesta matéria não há lugar para regulamentos autónomos ou interpretações extensivas ou inventivas (artigo 115.º da CRP).

XII - Porque se inserem tais questões no âmbito consagrado nos preceitos constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias.

XIII - São inconstitucionais as leis e despachos dentro do qual o recorrido é - que infrinjam os ditos preceitos constitucionais, artigos 18.º, 19.º, 29.º, 168.º, n.º 1, e 282.º, n.º 3, todos da CRP.

XIV - O que se requer seja superiormente declarado."

O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 13 de Setembro de 2006, considerou o seguinte:

"III - 2) Deixando de lado aspectos colaterais ao real objecto do recurso, traduzidos, por exemplo, numa menos correcta identificação do despacho que se visa impugnar, a sua definição essencial incide na legalidade e constitucionalidade da decisão do Ministério Público, em inquérito, de sujeitar os recorrentes a ''exame'', traduzido na recolha de saliva para definição do seu perfil genético e subsequente comparação com vestígios biológicos encontrados no local onde se verificou um determinado homicídio, a fim de assegurar o desenvolvimento da sua investigação.

Na respectiva resposta, introduz-se, no entanto, a questão da própria admissibilidade do recurso.

III - 2) Vejamos no entanto, primeiro, as partes mais significativas do despacho de que se recorre:

Respeitam os presentes autos à investigação, entre outros, da prática de factos susceptíveis de integrar dois crimes de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alíneas e), f) e i), do Código Penal.

No local onde ocorreram os homicídios foram recolhidos vestígios biológicos, sendo eles ou alguns deles, pertencentes ao(s) autor(es) de tais crimes.

No decurso da investigação, em face da falta de testemunhas presenciais daqueles homicídios, decidiu o MP ordenar a prova por meio de exames à pessoa dos suspeitos entretanto constituídos como arguidos, com vista à colheita de vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente comparação com os dos vestígios biológicos encontrados no local dos crimes.

Verifica-se do exame dos autos que tais exames, já ordenados em Maio do corrente ano, não lograram efectuar-se nas datas sucessivamente fixadas para o efeito pelas mais diversas razões: ou porque os arguidos entenderam ser o despacho que o ordenou ilegível e apesar de posteriormente dactilografado o consideram ilegal e se recusaram submeter-se ao exame, ou porque a ele faltaram por motivo de doença, ou porque se encontravam ausentes e não era possível a sua notificação - cf. fls. 638 a 640, 822, 838 a 948, 955 e 965 a 970.

Só em 20 de Setembro de 2005 se conseguiu efectuar o predito exame apenas ao arguido Armando Luís Monteiro Rodrigues, o qual no acto, declarou não ser sua vontade sujeitar-se a tal exame, pese embora a fls. 974 tivesse afirmado ''estar inteiramente disposto a submeter-se à prova de ADN''.

Em 19 de Setembro de 2005, o mesmo arguido apresentou o requerimento de fls. 986 e segs., afirmando não se disponibilizar para colaborar ou permitir a pretendida colheita e invocando a ilegalidade da sua concretização por via coactiva.

Juntou ainda uma ''opinião/consulta'' subscrita pelo Prof. Manuel da Costa Andrade sobre a legalidade ou ilegalidade da imposição coactiva do arguido no processo penal à análise de ADN - cf. fls. 992 a 996.

Os arguidos Maria Luísa Pinto Coelho e José Pedro Oliveira no mesmo dia 19 de Setembro de 2005 reiteraram o alegado pelo arguido Armando Rodrigues - cf. fls. 992 a 1026.

A fls. 1028 e segs., veio o arguido Armando Rodrigues requerer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade e consequente proibição absoluta de valoração da prova obtida através da sujeição coactiva do arguido à colheita da saliva através de zaragatoa realizada no IML do Porto efectuada no dia 20 de Setembro de 2005.

A fls. 1000, 1001 e 1005 a 1007, vieram os arguidos Maria Luísa Coelho e José Pedro Oliveira, respectivamente, requerer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade do despacho do MP que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de amostra biológica para tipificação de ADN.

Por último, a fls. 1045 e segs., veio o arguido Armando Rodrigues reiterar o pedido efectuado a fls. 1028 e segs., requerendo ainda a este Tribunal que ordene a instauração de procedimento criminal contra todos os que ordenaram, efectuaram e colaboraram ou de qualquer forma participaram na colheita de saliva ao arguido, por entender ter sido praticado o crime previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Cumpre decidir.

Desde já começamos por adiantar que, pese embora o muito respeito que nos merece quem perfilha de opinião contrária, entendemos não assistir qualquer razão aos arguidos.

É consabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.

O artigo 32.º, n.º 5, da CRP consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que ''o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'', ao qual, é inerente o princípio do contraditório.

E no n.º 1 do mesmo artigo 32.º da CRP prescreve-se que ''O processo criminal assegura todas as garantias de defesa''.

O sistema de estrutura acusatória caracteriza-se (entre outros aspectos que para o caso dos autos não interessam chamar à colação) pela parificação do posicionamento jurídico entre a acusação e a defesa em todos os actos jurisdicionais, configurando-se o arguido como um sujeito processual que tem intervenção em todas as fases do processo, inclusive na fase do inquérito, embora nesta fase processual muito mais limitada do que na instrução e julgamento, porquanto o inquérito tem uma estrutura predominantemente inquisitória.

Conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias o ''Afirmar-se [...] que o arguido é sujeito e não objecto do processo significa [...] ter de assegurar àquele uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal''.

Isto significa que, se ao arguido, é imputado um conjunto de factos que podem originar responsabilidade por uma infracção penal, certo é também que lhe é garantido o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou negar esses factos e seu enquadramento jurídico.

Neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional no Acórdão 172/92, de 6 de Maio, dizendo: ''O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo [...].

Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório.''

Assim, porque o direito processual penal é direito constitucional aplicado, no CPP existem normas que garantem ao arguido esta paridade de posicionamento com o MP, para poder elidir ou enfraquecer as provas recolhidas oficiosamente pela acusação e pelos órgãos de polícia criminal, não obstante estas entidades se orientarem apenas para a descoberta da verdade, instruindo a favor e contra o suspeito.

Aliás, afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade que ''o Ministério Público é entre nós pacificamente encarado como um órgão da administração da justiça cuja actuação deve subordinar-se a estritos critérios de legalidade e objectividade. E a que, nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do CPP, cabe 'colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade'''.

E citando o Prof. Figueiredo Dias, transcreve um pequeno trecho do seu estudo sobre ''Os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal'', in O Novo Código do Processo Penal, CEJ, p. 25: 'Dada a condicional intenção de verdade e justiça [...] que preside à intervenção do Ministério Público no processo penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade'.

Dispõe o artigo 272.º, n.º 1, do CPP: 'Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação.'

E o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CPP estabelece: ''[...] é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.''

Por sua vez o artigo 61.º, n.º 1, do CPP enumera (embora não exaustivamente), um conjunto de direitos de que o arguido goza.

Ao impor, a lei, o interrogatório do suspeito como arguido, pretende o dar-se a este conhecimento imediato da existência do processo contra si instaurado, para que o arguido fique em condições de, tempestiva e mais eficazmente, tomar posição sobre os fados que lhe são imputados e requerer a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias - artigo 61.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

Por outro lado, e do ponto de vista do titular da acção penal, o dar-se conhecimento ao arguido de que contra ele corre um inquérito, deve ser feito tão cedo quanto possível, pois pode suceder que o arguido forneça elementos de prova para o processo que facilitem o esclarecimento da notícia do crime, nomeadamente apresentando provas que permitam excluir, desde logo, a sua eventual responsabilidade, evitando-se dessa forma um inquérito inútil.

Neste sentido decidiu ainda o Acórdão da RP de 12 de Junho de 2002, no processo 362/02, afirmando que ''Consequência da estrutura acusatória do processo penal - artigo 32.º, n.º 5, da CRP - é o princípio da igualdade de oportunidades ou igualdade de armas. O processo deve estar estruturado em termos que permitam que a acusação e a defesa disponham de idênticas possibilidades para intervir no processo, para demonstrarem perante o tribunal a validade das suas alegações''.

Por isso todas as exposições, memoriais e requerimentos do arguido devem ser sempre integrados nos autos - cf. artigo 98.º, n.º 1, do CPP - embora os requerimentos de diligências não sejam vinculativos para o MP, que só ordena a realização das que entender necessárias - artigo 267.º do CPP.

Porém, entende o arguido Armando Rodrigues que a realização coactiva do exame para colheita de saliva por forma a determinar o seu perfil genético a que foi sujeito ''integra a prática do crime previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do CPP por todos os que o ordenaram, o realizaram e nele de qualquer forma participaram'' e os restantes arguidos, a declaração de nulidade do despacho do MP que determinou a realização de idêntico exame a eles referente.

É certo que a CRP estabelece no artigo 25.º, n.º 1, que ''A integridade moral e física das pessoas é inviolável''.

Por sua vez o artigo 32.º, n.º 8, da Lei fundamental prescreve que ''São nulas todas as provas obtidas mediante [...] ofensa da integridade física ou moral da pessoa''.

De acordo com tais normas, dispõe o artigo 126.º do CPP:

''1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante [...] ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:

a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de [...], ofensas corporais [...];

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei.''

A partir das normas que se acabam de citar, cabe a interpretação de que a utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal, está sempre limitada pelo integral respeito pela decisão da sua vontade, ao longo de todo o processo penal, e, no que para o caso dos autos interessa, também na fase do inquérito, pelo que, os arguidos ao não terem dado consentimento para a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição da valoração como prova, do resultado obtido através da sua análise, nos termos do artigo 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e c).

Em anotação ao estabelecido no n.º 8 do artigo 32.º da CRP dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros(s) que ''O que há de novo no n.º 8 não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas [...]; seria intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei''.

Porém, com todo o respeito por quem sufraga opinião contrária, em nossa muito modesta opinião, não é aquela a interpretação que o legislador pretendeu fazer-se quando incluiu no CPP a norma do artigo 172.º, n.º 1, que, à primeira vista, parece contradizer o preceituado no artigo 126.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e c).

De acordo com o CPP, o arguido para além dos direitos e deveres consagrados de forma não exaustiva no artigo 61.º do CPP, tem, como todas as pessoas em geral, o dever de colaboração com as autoridades judiciárias para a realização da justiça, nomeadamente o dever de se submeter a exame - artigos 171.º e segs. do CPP.

O exame tem por fim fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória.

A perícia, por sua vez, consiste num meio de prova em que a percepção ou a apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos - artigo 151.º do CPP.

Como faz notar o Prof. Figueiredo Dias, o facto de o arguido ser considerado um sujeito do processo penal ''não quer dizer que o arguido não possa, em determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de auto-incriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua livre personalidade''.

Mas haverá que interpretar cum grano salis esta afirmação do insigne professor.

De acordo com a sua lição, o arguido pode constituir meio de prova autónomo no processo penal, quer em sentido material através das declarações que presta sobre os factos, quer em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames.

Nesta perspectiva, os exames têm uma dupla natureza:

Por um lado, ''são meio de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto têm primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de 'inspecção' ou 'perícia''';

Por outro lado, ''como verdadeiro meio de coacção processual na medida em que a entidade competente que preside à fase processual em causa, pode tornar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força''.

No actual CPP, de acordo com o disposto no artigo 60.º do CPP, ''Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo [...] da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei''.

Conforme estatui expressamente o artigo 61.º, n.º 3, do CPP: ''Recaem em especial sobre o arguido os deveres de sujeitar-se a diligências de prova [...] ordenadas e efectuadas por entidade competente'', ou seja, a todas as que se entenderam como necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça - sendo a regra a da atipicidade das diligências da prova - desde que não estejam proibidas por lei - cf. artigo 125.º do CPP.

Daí que o arguido possa ter de submeter-se a exame e a perícia - artigos 151.º a 171.º do CPP - como sucedeu no caso dos autos, ordenada pela autoridade judiciária competente que preside à respectiva fase processual, neste caso, o MP.

E tal obrigação vem expressamente prescrita e salvaguardada no artigo 172.º, n.º 1, do CPP. ''Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame [...] pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.''

Mas esta sujeição do arguido a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de coacção da prisão preventiva, quando a realização da justiça não possa alcançar-se através de outras diligências, por forma a não contender-se com a decisão de vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenção no processo representar um meio de defesa que lhe é atribuído no nosso processo penal.

Daí que o Prof. Figueiredo Dias tenha considerado o exame, e para o que interessa para o caso dos autos, mutatis mutandis também a subsequente perícia, como 'um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma pessoa [...] esta vê-se constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de investigação sobre si mesma [...] e por isso, as normas que os permitem não poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, máxime com a prisão preventiva: em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a excepção'.

No mesmo sentido afirma Maia Gonçalves que o que no artigo 172.º do CPP ''se dispõe sobre a possibilidade de a autoridade judiciária compelir alguém a sujeitar-se a qualquer exame ou a facultar coisa que deva ser examinada é um dispositivo geral, podendo portanto ser afastado pela aplicação de algum regime especial consagrado na lei. É o caso, por exemplo, do condutor que recusa submeter-se à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas'' - cf. artigos 156.º e 157.º, n.os 1 e 4, do Código da Estrada, alterado pelo Decreto-Lei 44/2005, de 25 de Fevereiro.

Para o caso dos autos, a lei não só não afasta a citada regra imposta pelo artigo 172.º, n.º 1, do CPP, como, pelo contrário, estatuiu no artigo 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei 11/98, de 24 de Janeiro, que ''Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este for necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que seja ordenado pela autoridade judiciária competente nos termos da lei de processo''.

E no artigo 44.º, n.º 1, do mesmo diploma prescreve que ''Qualquer pessoa devidamente convocada pelo responsável do serviço do instituto [...] para a realização de uma perícia tem o dever de comparecer no dia, hora e local designados, sob pena das sanções previstas na lei do processo''.

Certo é, recordemos, que o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva.

No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presenciais dos homicídios qualificados em investigação, de que foram vítimas Maria da Conceição Ferreira Pacheco e Albano da Silva Borges e, consequentemente, de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.

Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, este Tribunal decide julgar improcedente a invocada nulidade e consequente proibição da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido Armando Rodrigues e ainda a efectuar aos restantes arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo magistrado do MP titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal.

III - 3.1) Como vimos, o essencial das razões de discordância dos recorrentes tem como alvo 'mediato' um despacho do Ministério Público proferido em inquérito a ordenar a realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva, a que aqueles não aderiram, quer de facto, emprestando a sua disponibilidade para a respectiva realização, quer de direito, impugnando-a, e títulos.

Antes de podermos abordar essa temática, haverá no entanto que apreciar uma outra, atravessada a título prejudicial pelo Sr. Magistrado que assegura a resposta ao recurso, já que de um modo mais radical consequencia a sua não admissibilidade.

Na base desta posição, está o entendimento perfilhado em como tal despacho não é sindicável pelo juiz de instrução criminal, nos termos em que o foi, já que naquela fase de processo, ''fora das situações previstas nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, o mesmo não pode conhecer da arguição de nulidades'', donde a respectiva decisão, por maioria de razão, não o dever ser a título de recurso.

Não sofre qualquer contestação, para o que não se torna necessário voltar a citar disposições legais já amiúde referidas nestes autos, que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometido exclusivamente ao Ministério Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não.

Sendo assim naquela fase o dominus do processo, como é habitual dizer-se, fácil será compreender que mantenha a iniciativa e o controlo dos actos por si determinados, mesmo numa perspectiva de legalidade, já que alia à sua autonomia como órgão de administração da justiça, uma orientação balizada exactamente por tal princípio (cf. artigo 221.º da CRP e artigo 1.º do respectivo estatuto).

A articulação naquela mesma fase com a intervenção do juiz de instrução criminal, entidade que superintende a seguinte, caso requerida, mas que não deixa de naquela poder intervir, já que de acordo com os artigos 17.º do Código de Processo Penal e 59.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, exerce as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos prescritos no referido Código, opera-se basicamente em torno dos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal.

Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:

''1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:

a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;

b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;

c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177.º, n.º 3, 180.º, n.º 1, e 181.º;

d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do artigo 179.º, n.º 3;

e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;

f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.''

Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:

a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º;

b) Apreensões de correspondência, nos termos do artigo 179.º, n.º 1;

c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º;

d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

III - 3.2) É claro que, na alínea f) do n.º 1 daquele artigo 268.º, cabem diversos actos dispersamente prevenidos no Código de Processo em que a intervenção daquele juiz é convocada. Assim, entre outras, a título meramente exemplificativo, a admissão de assistente (artigo 68.º, n.º 3), a detenção perante falta injustificada (artigo 116.º, n.º 2), as declarações para memória futura (artigo 271.º).

Em qualquer dos casos, a situação ora suscitada não encontra cabimento expresso em nenhum desses actos avulsos especialmente regulados.

Se percorremos as disposições reguladoras do meio de obtenção da prova - exames (artigos 171.º a 173.º do Código de Processo Penal) - não encontraremos aí, também, qualquer referência a uma autorização a conceder pelo juiz de instrução criminal.

Ora se a esta constatação juntarmos a estruturação acusatória do nosso processo, facilmente se alcançará a confirmação do acerto, em tese geral, da posição assumida pelo magistrado do Ministério Público.

Parafraseando o Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III vol., p. 81, ''se a lei confia ao Ministério Público a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do inquérito''.

E como se opera?

Precisamente pela instrução, a fase cuja finalidade específica é exercer tal controlo.

Confira-se, por exemplo, que de harmonia com o disposto no artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, antes de proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, o ''juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer''.

E nessa conformidade, tendo em vista a aí contemplar, designadamente, as nulidades arguidas no decurso do inquérito, a jurisprudência autonomizou do artigo 310.º do mesmo diploma, um recurso específico de tal segmento da decisão (assento 6/2000, de 19 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Março de 2000) a que inclusive atribuiu ''subida imediata'' de acordo com o Acórdão do STJ n.º 7/204, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Dezembro de 2004.

Dito por outras palavras, havendo discordância sobre a legalidade de acto praticado na fase de inquérito e influindo a mesma na decisão de acusação, deverá o requerente solicitar a abertura da instrução e aí fazer a invocação das razões que entenda pertinente contrapor-lhe.

É essa a sede própria, por exemplo, para discutir-se uma proibição de prova, e por isso mesmo, a sua influência pertinente na demonstração de facto ou factos que importem à responsabilização criminal, não o seu ajuizamento abstracto em função da prática de actos tidos por úteis ou inúteis, matéria de cujo conhecimento aquele obviamente está arredado.

É este o esquema que salvaguarda a separação das fases mencionadas e respeita a autonomia de funções das magistraturas encarregadas da sua superintendência, em obediência a um quadro de intervenções legal e constitucionalmente bem definidas.

Ou seja, para resumir, na sistemática e coerência do modelo processual actual, não cabe a impugnação avulsa para o juiz de instrução criminal, acto a acto do Ministério Público em inquérito, com fundamento na sua eventual nulidade.

III - 3.3) Mas se temos este entendimento como seguro para a generalidade das situações, ainda assim é possível encontrar um domínio de excepção onde será possível admitir (mais não seja para melhor poder testá-lo), uma intervenção pontual do juiz de instrução criminal sobre a legalidade das iniciativas processuais assumidas pelo Ministério Público no inquérito: a dos actos 'necessários à salvaguarda dos seus direitos fundamentais'.

Tal como refere o Germano Marques da Silva na obra já citada, pp. 79-80, ''competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. Para a prática de algum desses actos pode necessitar da intervenção do juiz, quer para os consentir, quer mesmo para os praticar mas só por sua promoção podem ter lugar (o que não é a situação dos autos), a menos que se trate de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais dos requerentes''.

''Mesmo na interpretação prevalecente e restritiva do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com os direitos fundamentais.''

Nesta conformidade, e tal como já se decidiu no recurso com o n.º 6541/05, de que este é simétrico, vamos admitir o recurso nesta base, já que também na mesma se situou a intervenção da juíza de instrução criminal.

III - 3.4) Como acima já deixamos sublinhado, discute-se no presente recurso, essencialmente, a legalidade e constitucionalidade da decisão que determina a submissão dos arguidos a sujeitar-se a exame (colheita de saliva através de zaragatoa bucal), para assegurar uma determinada investigação criminal conexa com dois homicídios de que não existe prova testemunhal, ainda que nesse sentido concorra a recusa daqueles em nela colaborarem voluntariamente.

Estatui o artigo 171.º, n.º 1, do Código de Processo Penal ''que por meio de exames das pessoas [...] inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido'', sendo que o preceito seguinte esclarece, que ''se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.''

Não havendo dúvidas que na fase de inquérito tal autoridade é o Ministério Público (artigos 263.º, n.º 1, e 267.º do Código de Processo Penal) e que entre os deveres específicos decorrentes da situação de arguido se encontra o de ''se sujeitar a diligências de prova'' (artigo 61.º, n.º 3), não é menos verdadeiro que de harmonia com o estabelecido com o artigo 126.º do mesmo diploma, ''são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante [...] coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas''.

Em todo o caso, até pela unidade do pensamento legislativo que regulamenta toda esta matéria, zonas haverá seguramente onde a obrigação de alguém a submeter-se a um exame não integra coacção, ofensa moral ou à integridade física da mesma, sob pena de outra maneira aquela primeira norma ficar vazia de sentido.

III - 3.5) É sabido que a nosso ordenamento jurídico prevê ''várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas.

Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade'' (cf. acórdão da Relação de Coimbra no recurso n.º 3261/01).

Para além do arresto do Tribunal Constitucional aí mencionado, no Acórdão 319/95 do mesmo Tribunal discutia-se o artigo 6.º do Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, ao permitir que a autoridade policial efectue exames na pessoa do arguido (sopro em balão), sem a presença do Ministério Público, concluindo-se que tal disposição não violava o princípio da igualdade, o direito ao bom nome e à reputação, à reserva da intimidade privada, à imagem, destacando-se na sua fundamentação o seguinte trecho:

''A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do artigo 6.º, n.º 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação, nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.''

Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de direito impõe é que o processo (maxime, o processo criminal) se reja ''por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade'' (cf. Acórdão 128/92, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992).

Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal.

No Acórdão 161/05, estava em causa a aplicação, a inconstitucionalidade, da norma do n.º 1 do artigo 172.º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que pode ser ordenada a detenção de arguido, pelo tempo indispensável à realização de exame médico em caso de falta injustificada a diligência anteriormente designada para tal efeito (exame psiquiátrico).

Aí se considerou, designadamente, que ''Entre as provas cuja realização no processo penal é admissível, desde logo na fase do inquérito, figuram as provas periciais (cf. artigos 151.º e segs. do CPP), nelas se contando a perícia psiquiátrica, vocacionada, entre o mais, para determinar se o arguido sofre de estados patológicos do foro mental que o tornem incapaz de se autodeterminar livremente, ou seja, se é inimputável criminalmente em razão de qualquer patologia que afecte a sua capacidade de entender, de se decidir e de agir livremente ou em termos racionais (cf. artigos 159.º, n.º 2, e 351.º, do CPP), o que, a acontecer, acarretará que o mesmo não possa ser sujeito de sanções penais.

A prova pericial psiquiátrica pode, deste modo, incidir sobre a própria pessoa do arguido, pelo que a sua produção demanda a sua presença física na respectiva diligência processual e ter lugar logo na fase do inquérito.

A norma em apreciação prende-se com a necessidade de garantir a presença do arguido a esse exame pericial psiquiátrico, tendo a decisão recorrida recusado a sua aplicação por entender que, não obstante o arguido haver faltado injustificadamente aos exames antes marcados ao abrigo do disposto no artigo 273.º do CPP e a detenção pedida ser apenas pelo período indispensável à realização do exame médico, a privação da sua liberdade era para ser presente a diligência a ser efectuada sob a presidência e direcção apenas de quem pratica o respectivo acto de exame médico.''

Para se concluir que ''não existe dúvida de que é conforme com aquela prescrição constitucional uma norma infraconstitucional que permita a detenção de arguido pelo tempo indispensável à realização da diligência de exame pericial psiquiátrico a levar a cabo na sua pessoa sob a presidência de agente do Ministério Público ou de juiz'', isto depois, de entre o mais se ter sopesado que ''Em face daquele princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade - o que há então que decidir é a questão de saber se a restrição do direito à liberdade, em situações como a retratada nos autos, se encontra ou não autorizada por aqueles n.os 2 ou 3 do artigo 27.º da Constituição.''

III - 3.6) Como regra os nossos comentadores são muito parcos sobre o sentido a conferir àquela compulsão referida no artigo 172.º, n.º 1.

Já no domínio da doutrina, o Prof. Germano Marques da Silva menciona na decorrência da alínea c) do n.º 3 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, que ''o arguido tem o dever de sujeitar-se a diligências de prova e medidas de coacção e garantia patrimonial''.

''No que às diligências de prova respeita, tem de sujeitar-se a todas as que não forem proibidas por lei (artigo 125.º), entre outras, a interrogatório (prova por declarações - artigos 140.º e segs.) a acareação (artigo 146.º) a reconhecimento (artigo 147.º) e reconstituição dos factos (artigo 150.º) a perícia e exame (artigos 151.º e 171.º).''

E ainda que num domínio processual e constitucional já não vigente, o Prof. Figueiredo Dias ensinava que: ''Na medida, porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se vê constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigação sobre si mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual - como claramente o inculca, de resto, a segunda parte do corpo do artigo 178.º do CPP, ao estatuir que, para realização de um exame, pode 'o juiz tomar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força ...' -, tendo por isso de submeter-se aos princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a admissibilidade de tais meios e coacção.

Sendo os exames, na parte referida, um meio de coacção processual, as normas que os permitem não poderão deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão preventiva; em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela a excepção. Excepção que, aliás, não deixa de ser constitucionalmente imposta: assegurando o artigo 8.º, n.º 1, da Constituição Política a todos os cidadãos o direito à integridade pessoal, quaisquer limitações que a tal direito sejam feitas pela lei ordinária relativa a exames em processo penal terão de obedecer à máxima strictissime sunt interpretanda.''

Todo este tipo de preocupações esteve presente no despacho recorrido ao se ter consignado que ''o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva.

No caso sub judicio, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e subsidiariedade, porquanto não existem testemunhas presenciais dos homicídios qualificados em investigação, de que foram vítimas Maria da Conceição Ferreira Pacheco e Albano da Silva Borges e, consequentemente, de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores''.

III - 3.7) No fundo, em sede constitucional, a ideia fundamental a retirar nesta matéria, é aquela já assinalada no referido acórdão da Relação de Coimbra, posto que invocando ideia de outro autor, em como ''apenas é ilegítima a restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria, sendo certo que mesmo no caso de falta de preceito constitucional que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Constituição da República.''

Ora como aí também se disse, a ''Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 29.º permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores enunciados: 'direitos e liberdades de outrem', 'justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática'''.

Os recorrentes chamam em seu abono, entre outros, o seu direito à integridade física constitucionalmente protegido no artigo 25.º (1 - a integridade moral e física das pessoas é inviolável; 2 - ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos), outros direitos pessoais mencionados no artigo 26.º, n.º 1 (a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação), e a garantia do processo criminal contida no artigo 32.º, n.º 8, todos da Constituição da República Portuguesa (são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações), sendo que estes, basicamente, preenchem a matriz dos direitos invocados nos demais textos declarativos invocados.

Haverá que ponderar por outro, o interesse comunitário e do Estado na administração da justiça, para que um crime com a gravidade das consequências patenteadas nestes autos, sem mais, fique sem investigação.

Estamos ainda muito longe do estabelecimento de eventuais responsáveis.

Ora naquele vastamente aqui citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, entendeu-se, para além do mais, que a colheita de saliva embora ofendendo o direito à autodeterminação corporal dos recorrentes, o fazia em ''grau ou medida desprezível, isto é irrelevante''.

O mesmo sucedeu no Acórdão desta Relação de 3 de Maio de 2006, no recurso n.º 6541/05, de que também fomos co-subscritores, e onde em jeito de conclusão se deixou referido:

''Deste modo e tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de Direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida ao abrigo da norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que atribui à autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os artigos 25.º, n.º 1 (acrescentaríamos 26.º, n.º 1), e 32.º, n.º 8, da Constituição da República, na parte em que ordena o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do(s) recorrente(s) em medida irrelevante.''

Sendo este entendimento de manter, igualmente em face do artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 17.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que no fundo previnem as intromissões ''arbitrárias e ilegais'' contra a vida privada, família, domicílio correspondência, honra e reputação, nesta conformidade, consideramos não ser de dirigir censura ao despacho recorrido."

Em consequência, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso.

2 - José Pedro Couto Soares Bravo de Oliveira interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:

"O recurso vai interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, na redacção dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro.

O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade e ilegalidade das normas constantes nos artigos 53.º, 61.º, n.os 1, alínea f), e 3, 154.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, e 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, todos do CPP, no sentido de possibilitar ao MP ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para tipificação e comparação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua oposição à dita colheita, com base na ausência de suporte legal expressa por ser matéria muito específica - atinente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais o que está sujeita a reserva de lei formal e material, o que implicaria a sua proibição de valoração como prova.

As normas acima referidas violaram no entendimento acima referenciado os artigos 26.º, n.os 1 e 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 25.º, n.º 1, 27.º, n.os 2 e 3, 32.º, n.º 8, 115.º, 167.º, 168.º, n.º 1, alínea b), e 283.º, n.º 3, todos da CRP.

A questão da inconstitucionalidade e ilegalidade acima referida foi suscitada nos autos em requerimentos de fls. 992 a 1026 dirigidos ao juiz de instrução criminal e na motivação e conclusões do recurso interposto para o tribunal agora recorrido.

Deverá o recurso subir imediatamente, em separado, fixando-lhe efeito suspensivo do processo, já por ser esse o regime regra como também prover manter os efeitos de subida do regime anterior."

Junto do Tribunal Constitucional o recorrente alegou, concluindo o seguinte:

"I - No direito positivo vigente em Portugal só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN, sendo por isso juridicamente inadmissível quer a recolha coactiva de tais vestígios, quer a sua ulterior e não consentida análise genética com vista a determinação da chamada ''impressão digital genética'', para fins de processo criminal;

II - Para que semelhante colheita e posterior análise genética fossem juridicamente admissíveis, seria absolutamente necessária uma lei específica que as autorizasse e prescrevesse o respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais), já que por força dos princípios da legalidade e de reserva de lei, consagrados no artigo 18.º da CRP, só essa lei emprestaria as aludidas medidas e indispensável legitimidade constitucional - lacuna essa que o intérprete e o aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar;

III - Semelhantes medidas, com efeito, são portadoras de um potencial de danosidade e de devassa que está muito para além da que foi pressuposta pelo legislador ao regular os ''normais'' exames e perícias ou, mesmo, ao prescrever a recolha de sangue para determinar se um condutor está influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas;

IV - Mercê disso, dever-se-ia ter desaplicado as normas contidas nos artigos 172.º, n.º 1, e 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do CPPEN e cuja inconstitucionalidade foi expressamente invocada pelo ora recorrente, de molde que fosse reconhecida e declarada a intransponível proibição de produção prova relativamente aquelas medidas, com a consequente proibição de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s);

V - Decidindo de forma diversa e não tendo julgado essas normas inconstitucionais, o acórdão recorrido violou frontalmente os preceitos e princípios da nossa lei fundamental que se deixaram devidamente enunciados contidos nos artigos 26.º, n.os 1 e 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 25.º, n.º 1, 27.º, n.os 2 e 3, 32.º, n.º 8, 115.º, 167.º, 168.º, n.º 1, alínea b), e 283.º, n.º 3, todos da CRP e, além do mais que de resto, constavam já do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional."

O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:

"1 - Não são inconstitucionais as normas dos artigos 172.º, n.º 1, e 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de poder valer como prova a obtida através de exame a vestígios biológicos, ordenada pela autoridade judiciária competente e conseguidos através de colheita coactiva (consistente em zaragatoa bucal para extracção de saliva) para determinação de perfil genético a arguido, contra a sua vontade e recusa expressa em colaborar ou permitir tal colheita.

2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

3 - As questões de constitucionalidade são suscitadas a partir da formulação segundo a qual violam a Constituição [os artigos 26.º, n.os 1 e 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 25.º, n.º 1, 27.º, n.os 2 e 3, 32.º, n.º 8, 115.º, 167.º, 168.º, n.º 1, alínea b), 283.º, n.º 3], as normas constantes dos artigos 53.º, 61.º, n.os 1, alínea f), e 3, 154.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, e 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do CPP, nos termos das quais se possibilita ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para tipificação e comparação do seu perfil genético, quando este tenha manifestado a sua oposição à dita colheita, com base na ausência de suporte legal expresso por ser matéria - muito específica - atinente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, que está sujeita a reserva de lei formal e material, não sendo, consequentemente, valorável como prova.

A partir desta longa formulação destacam-se, porém, três questões de constitucionalidade: a eventual violação de proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais do arguido; a eventual violação de uma legitimação legal para a intervenção em causa; e, por último, a questão da violação do espaço de competência do juiz de instrução, nos termos do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, na realização de tal intervenção.

O Acórdão 155/2007 do Tribunal Constitucional, debruçando-se sobre caso idêntico, respondeu às duas primeiras questões de modo negativo, não julgando inconstitucional a norma em causa e respondeu, positivamente, à última das questões, julgando inconstitucional a dimensão normativa questionada.

O Tribunal adere aos fundamentos do juízo de inconstitucionalidade formulado nesse aresto. Tal perspectiva situa-se na linha de anterior jurisprudência relativa à articulação dos poderes do Ministério Público com os do juiz de instrução (cf., entre outros, Acórdãos n.os 7/87, 23/90 e 395/2004). Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do processo penal consagrada no artigo 32.º, n.os 4 e 5, do Código de Processo Penal.

4 - Por outro lado, o Tribunal adere, no essencial, às razões que justificaram a conclusão pela não inconstitucionalidade das restantes questões, tendo em consideração a dimensão normativa concretamente questionada. Assim, admite-se que, em si mesmo, não existirá desproporcionalidade na utilização de tais métodos invasivos do corpo da pessoa (mas não lesivos da integridade física), da sua liberdade e privacidade, como único meio para obtenção da prova em situações (tal qual a do presente caso) de extrema gravidade dos factos perpetrados, com base numa ponderação de todas as circunstâncias a efectuar por um juiz imparcial que não tem a seu cargo ou sob o seu domínio a investigação do processo, e sendo assegurado o controlo de todo o aproveitamento possível dos resultados de tal intervenção.

Tratando-se, no presente caso de fiscalização concreta de constitucionalidade, sempre haverá que tomar em consideração os específicos critérios normativos subjacentes à decisão judicial. Ora, entre tais critérios salvaguardam-se dois que o Tribunal considera essenciais: o interesse do Estado na realização da justiça em face de um crime com a elevada gravidade patenteada nos autos e a medida diminuta de afectação dos direitos à autodeterminação corporal e à própria intimidade pessoal, a par da utilização exclusiva para tais fins do material biológico recolhido.

Por outro lado, a menor densificação da lei existente que autorize tais intervenções, nomeadamente ao prever critérios de ponderação, procedimentos e limitação da utilização de tais materiais, não redunda, no caso concreto, em inconstitucionalidade porque a "norma do caso" formulada pelo tribunal recorrido quanto a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação, integrou os elementos substanciais que, de modo suficiente e exigente, poderiam assegurar a adequação e proporcionalidade que são exigidas pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.

Também não é determinante, no presente caso, em face da dimensão normativa em causa, o facto, em si mesmo, de a lei não densificar os critérios de recolha de prova com esta natureza, com efeito, não estamos perante uma intervenção restritiva de direitos fundamentais não autorizada legalmente nem da ausência de densificação resultou, segundo os critérios fixados, uma intervenção arbitrária. Finalmente, tratando-se de recolha de prova, sem alternativas, dada a falta de testemunhas, em matéria de crime de muita elevada gravidade, a exigência de densificação da lei como exigência de constitucionalidade não consideraria a "necessidade investigatória" urgente em confronto com a medida diminuta de sacrifício dos direitos fundamentais no caso concreto.

Não estamos, assim, perante situação comparável, qualitativa e quantitativamente, a qualquer substituição do legislador pelo julgador em sede de definição do tipo legal de crime. Aí, o valor da segurança democrática relativamente ao que é proibido impõe-se sem quaisquer restrições. Nesta matéria, é admissível que, em circunstâncias de necessidade investigatória, o juiz ainda possa fazer uma ponderação que, segundo os padrões garantísticos da mais exigente das ponderações de acordo com os critérios da Constituição, o legislador nunca poderia excluir ao densificar a lei que autoriza a recolha de tais materiais como meios de prova.

Assim, em face destes critérios normativos, e tendo presente o que se disse no Acórdão 155/2007, o Tribunal entende não ser inconstitucional a dimensão normativa agora em causa.

III - Decisão

5 - Nestes termos, o Tribunal decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25.º, 26.º e 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

b) Consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.

c) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora se formula.

Lisboa, 28 de Março de 2007. - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto (nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada também por falta de habilitação legal suficiente para proceder ao exame em causa. Apesar de menos "intrusivo" do que certos outros exames médicos, o exame de ADN para a identificação de perfis genéticos, envolvendo ainda uma restrição a direitos, liberdades e garantias (designadamente, a direitos relativos ao controlo sobre a própria informação genética, que devem reputar-se consagrados no artigo 26.º), carece, a meu ver, de uma habilitação legal específica, que não existia e que não pode considerar-se satisfeita com a mera remissão (constante do Acórdão 157/2007 e aceite na presente decisão) para a concretização da norma que foi efectuada no caso concreto pelo tribunal: a "densificação" judicial da norma habilitante não pode suprir a necessária habilitação legislativa específica, que, a meu ver, é exigida pela Constituição da República. - Paulo Mota Pinto.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1567832.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1990-04-14 - Decreto-Lei 124/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Establece o novo regime sancionatório da condução sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1998-01-24 - Decreto-Lei 11/98 - Ministério da Justiça

    Estabelece o regime jurídico da organização médico-legal e o âmbito material e territorial de actuação dos serviços médico-legais. Publica, em anexo, os mapas nºs 1 e 2 que fixam, respectivamente, a área das circunscrições médico-legais, por círculos judiciais e a área dos institutos de medicina legal e dos gabinetes médico-legais por comarcas.

  • Tem documento Em vigor 2000-03-07 - Assento 6/2000 - Supremo Tribunal de Justiça

    A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

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