Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Por despacho de 17 de Outubro de 2005, o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria decidiu não admitir, por extemporâneo, o recurso interposto por Luís Miguel dos Reis Ribeiro da sentença condenatória contra si proferida por esse tribunal. Tal despacho tem o seguinte teor:
"A fl. 207, veio o arguido Luís Miguel dos Reis Ribeiro requerer sejam passadas guias a favor do arguido destinadas ao pagamento da multa referente ao 1.º dia útil posterior ao termo de interposição do recurso, por considerar que ao processo penal é aplicável a dilação de 10 dias prevista no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, por pretender, no caso concreto, recorrer da matéria de facto.
O Ministério Público pronunciou-se a fl. 243 no sentido da improcedência do requerido.
Cumpre apreciar e decidir.
Determina o artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o prazo para interposição de recurso é de 15 dias, contados a partir da notificação, ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria, ou ainda, no caso de decisão oral reproduzida em acta, a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente.
O artigo 698.º, n.º 6, do CPC, determina que 'se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, são acrescidos de 10 dias os prazos referidos nos números anteriores'.
Em nosso entender, esta norma não é susceptível de aplicação analógica ao processo penal.
Desde logo, porque o Código de Processo Penal regula expressamente os prazos de interposição de recurso, não ocorrendo aqui nenhuma lacuna legal: o legislador entendeu que o prazo é de 15 dias, havendo ou não recurso versando sobre a reapreciação da matéria de facto, uma vez que não distinguiu as duas situações (o legislador beneficia da presunção de se ter exprimido em termos adequados - cf. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, a hipótese contemplada no n.º 6 do artigo 698.º do CPC não tem qualquer correspondência no regime de recursos do processo penal, aplicando-se apenas às alegações na apelação, articulado que o processo penal não prevê.
É este também o entendimento da jurisprudência, sendo de referir, neste sentido e a título de exemplo, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 27 de Fevereiro de 2002 - Colectânea de Jurisprudência, XXVII, t. I, p. 58, e da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2003 - Colectânea de Jurisprudência, XXVIII, t. 5, p. 153.
Assim, considerando que não há lugar ao acréscimo de 10 dias do artigo 698.º, n.º 6, do CPC, tendo a sentença sido lida e depositada no dia 25 de Maio de 2005, transitou em julgado a 9 de Junho de 2005.
Tendo as alegações de recurso entrado a 21 de Junho de 2005, não há lugar à aplicação do disposto no artigo 145.º do CPC, por já terem decorrido os três dias úteis seguintes, sendo a interposição de recurso claramente extemporânea, dado que a sentença transitou já em julgado.
Em face do exposto, indefiro o requerido, julgando extemporâneo o recurso apresentado."
Dessa decisão reclamou o arguido para o presidente do Tribunal da Relação de Coimbra que, por despacho de 26 de Junho de 2006, decidiu indeferir a referida reclamação. Pode ler-se nessa decisão:
"1 - Luís Miguel dos Reis Ribeiro, arguido no processo comum n.º 2460/03.9TALRA, pendente no 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Leiria, interpôs recurso, visando a revogação da sentença condenatória ali proferida.
No entanto, o M.º Juiz a quo não admitiu o recurso, por extemporâneo. Inconformado apresentou a presente reclamação, visando obter o recebimento daquele recurso.
Não foi oferecida resposta e o M.º juiz a quo manteve o despacho reclamado.
II - Para a dilucidação da reclamação importa ter presente os seguintes elementos:
1 - A sentença foi proferida e depositada no dia 25 de Maio de 2005.
2 - A audiência foi gravada.
3 - No dia 27 de Maio de 2005, o defensor do arguido remeteu requerimento a solicitar cópia da gravação, fornecendo três fitas magnéticas.
4 - No dia 3 de Junho de 2005 foram entregues ao arguido, conforme indicação telefónica do seu defensor, as três cassetes contendo a gravação da audiência.
5 - O recurso foi interposto a 21 de Junho de 2005.
III - Perante estes elementos há, agora, que apreciar da bondade da decisão de não admitir o recurso. Não obstante este visar também a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e as provas terem sido gravadas, o prazo para a sua interposição é de 15 dias (artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), na medida em que, ao contrário do que sustenta o arguido, o alargamento previsto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil não é aplicável subsidiariamente em processo penal.
É certo que, pretendendo o arguido impugnar a decisão no que respeita à matéria de facto, devia ter a possibilidade de ouvir a gravação da prova, para poder convenientemente avaliar e ponderar de eventuais incorrecções na apreciação da prova feita pelo M.º Juiz a quo. E também é certo que, para esse efeito, podia pedir a respectiva cópia. Só que isso, por si só, não implica a suspensão da contagem do prazo de interposição de recurso. Tal só ocorreria se o arguido tivesse pedido aquela cópia, fornecendo o necessário suporte magnético, e o tribunal a entregasse fora do tempo útil para ser usada no recurso.
Ora, não foi claramente isso que sucedeu no caso em apreço, uma vez que a gravação foi colocada à disposição do arguido, no dia 3 de Junho de 2005, ponderando que o prazo de recurso só terminava no dia 15 desse mês, afigura-se-me que dispôs de tempo mais que suficiente para a poder analisar exercer o seu direito. Para ouvir três cassetes chega bem um dia, quanto mais 12 dias!
Deste modo, se o arguido não apresentou o recurso dentro do prazo que a lei lhe concede, só ao seu defensor o deve. Mais, apelidar de inconstitucional a interpretação feita no despacho reclamado sobre a contagem do prazo de recurso é que não parece muito razoável, mas insere-se na orientação, hoje infelizmente muito em voga, de contestar qualquer tentativa de disciplina processual tendente a acelerar o processo penal. Não creio, salvo o devido respeito por contrária opinião, que a situação configure por qualquer forma a violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
O prazo para a interposição do recurso é de 15 dias e conta-se da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria (artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Como a sentença foi depositada na secretaria no dia 25 de Maio de 2005, o dito prazo, cuja contagem não sofreu qualquer interrupção ou suspensão, terminou no dia 15 de Junho de 2005 (artigos 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 144.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Todavia, o arguido poderia ainda interpor o recurso nos três dias úteis subsequentes, mediante o pagamento de multa, faculdade que lhe é conferida pelos artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Sucede que também não o fez dentro desse prazo suplementar, nem invocou justo impedimento. Assim sendo, a interposição de recurso, a 21 de Junho de 2005, terá de ser considerada extemporânea, como acertadamente se ajuizou no despacho reclamado, que não merece censura.
Não assiste, pois, razão ao reclamante em se insurgir contra a decisão do M.º juiz a quo, que, ao não admitir o recurso, por extemporâneo, fez a melhor interpretação e aplicação do disposto nos artigos 144.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, 411.º, n.º 1, e 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal."
2 - O arguido interpôs desta decisão o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), nos seguintes termos:
"Luís Miguel dos Reis Ribeiro, reclamante nos autos à margem identificados, não se conformando com a douta decisão que lhe foi notificada, vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
"O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro);
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (abreviadamente, CPP) com as (duas) interpretações com que foi aplicada na decisão da reclamação, a saber:
Quando o recurso tenha por objecto a reapreciação de prova gravada, o prazo de 15 dias não se suspende com o pedido legítimo da cópia das cassetes, com o registo fonográfico da prova; e
No recurso em que se impugna matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, não acrescem 10 dias ao prazo previsto no normativo em epígrafe, pois não há lugar à aplicação subsidiária do n.º 6 do artigo 698.º do Código de Processo Civil.
Tal norma, com qualquer das interpretações que precedem, viola o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição; e
A questão de inconstitucionalidade foi suscitada na reclamação, a que se reporta o n.º 1 do artigo 405.º do CPP."
Admitidos os autos no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar.
O recorrente concluiu pela seguinte forma as suas alegações:
"1 - Antes de interpor recurso da sentença condenatória, dentro do respectivo prazo legal e logo que lhe foi possível, o arguido requereu a gravação da prova, tendo, para tanto, fornecido ao tribunal o necessário suporte magnético.
2 - É essencial à preparação da alegação de recurso que o arguido e o seu representante tenham acesso ao registo fonográfico da prova, para que a mesma possa ser utilizada para efeitos de preparação da sua defesa, assumindo, este registo, particular importância, na hipótese de haver recurso em matéria de facto.
3 - Enquanto o tribunal não lhe entregou a gravação da prova o arguido estava impedido de interpor recurso.
4 - Só quando o arguido teve acesso ao registo fonográfico da prova é que teve a possibilidade de medir os prós e os contras da interposição do recurso.
5 - A gravação da prova, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei 39/95, deve ser entregue pelo tribunal em tempo de não prejudicar o prazo de recurso que o arguido dispõe.
6 - A entrega posterior, dentro do prazo que o arguido dispunha para interpor recurso, pela secretaria da aludida gravação não pode ser assacada ao ora recorrente.
7 - A possibilidade do arguido ter acesso aos fundamentos das decisões que o afectam consubstancia um dos requisitos necessários para que a contagem do prazo de recurso se possa legitimamente iniciar a partir de uma determinada data.
8 - O recurso apresentado pelo arguido em 21 de Junho de 2005 deve ser considerado tempestivo, porquanto com o pedido legítimo da cópia das cassetes, com o registo fonográfico da prova, deduzido no dia 27 de Maio de 2005, sendo o dia anterior feriado, o prazo deveria ter-se por suspenso desde a data do depósito da sentença (25 de Maio de 2005), começando o mesmo a correr a partir de 4 de Junho de 2006, o dia seguinte àquele em que as cassetes foram entregues ao recorrente, e findando no dia 18 de Junho de 2005, mas porque os dias 18 e 19 de Junho de 2005 foram sábado e domingo, respectivamente, a possibilidade legal de prática do acto transferiu-se para o 1.º dia útil seguinte, ou seja o dia 20 de Junho de 2005, e atento o artigo 145.º do CPC, o arguido podia interpor recurso até ao dia 23 de Junho de 2005.
9 - É inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, quando interpretada no sentido de que quando o recurso tenha por objecto a reapreciação de prova gravada, o prazo de 15 dias não se suspende com o pedido legítimo da cópia das cassetes, com o registo fonográfico da prova, voltando o prazo a correr logo que o interessado a elas tenha acesso."
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, contra-alegando, concluiu:
"1.º Pelas razões constantes da fundamentação do Acórdão 545/2006, é inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa, a interpretação normativa do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que considera iniciado o prazo para interpor e motivar o recurso, versando sobre matéria de facto e tendo a prova sido gravada, com o depósito da sentença na secretaria, e não da data em que foram disponibilizados ao arguido cópias de suportes magnéticos, tempestivamente requeridos, por se tratar de elemento essencial à formação esclarecida da vontade de recorrer e à fundamentação da eventual impugnação deduzida quanto à matéria de facto.
2.º Termos em que deverá, nesta medida, proceder o presente recurso."
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - Há que começar pela delimitação do objecto do recurso.
Como este Tribunal tem por várias vezes salientado, e escreveu, por exemplo, no Acórdão 20/97 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Março de 1997), "delimitado o objecto do recurso pelo requerimento de interposição, pode este ser posteriormente circunscrito - mas não ampliado - pelos recorrentes [...] tal como pode ser restringido nas conclusões das alegações apresentadas no Tribunal Constitucional", neste sentido se invocando vária jurisprudência deste Tribunal e o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil.
Ora, consultando as alegações apresentadas pelo recorrente, não se descortina nelas (e não apenas nas suas conclusões, mas em todo o seu conteúdo, designadamente no n.º II, "Fundamentos do recurso") qualquer referência à questão de constitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual "no recurso em que se impugna matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, não acrescem 10 dias ao prazo previsto no normativo em epígrafe, pois não há lugar à aplicação subsidiária do n.º 6 do artigo 698.º do Código de Processo Civil", a que fazia referência no seu requerimento de recurso.
Tem, pois, de concluir-se que o recorrente abandonou nas suas alegações a pretensão de ver apreciada a constitucionalidade dessa norma. E, portanto, não pode conhecer-se agora da sua conformidade constitucional, por opção que tem de ser imputada ao recorrente.
4 - Circunscrito, assim, o objecto do recurso à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, "quando o recurso tenha por objecto a reapreciação de prova gravada, o prazo de 15 dias não se suspende com o pedido legítimo da cópia das cassetes, com o registo fonográfico da prova", cumpre recordar que este Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade constitucional dessa norma. Fê-lo através do Acórdão 545/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito de recurso (v. ainda o disposto no Acórdão 546/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Pode ler-se na respectiva fundamentação:
"[...]
2.2 - O Tribunal Constitucional já foi, por diversas vezes, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de normas relativas ao início do prazo para apresentação do requerimento de interposição de recurso em processo penal, que deve, por regra, conter a respectiva motivação (ou ao início do prazo para apresentação da motivação do recurso, no único caso em que esta pode ser posterior à interposição: interposição, por simples declaração na acta, de recurso de decisão proferida em audiência - artigo 411.º, n.º 3, do CPP).
O critério seguido nessa jurisprudência tem sido o de que tal prazo só se pode iniciar quando o arguido (assistido pelo seu defensor), actuando com a diligência devida, ficou em condições de ter acesso ao teor, completo e inteligível, da decisão impugnanda, e, nos casos em que pretenda recorrer também da decisão da matéria de facto e tenha havido registo da prova produzida em audiência, a partir do momento em que teve (ou podia ter tido, actuando diligentemente) acesso aos respectivos suportes, consoante o método de registo utilizado (escrita comum, meios estenográficos ou estenotípicos, gravação magnetofónica ou áudio-visual).
2.2.1 - Quanto ao primeiro aspecto (acesso ao teor da decisão condenatória que se pretende impugnar), há a registar:
O Acórdão 75/99, que não julgou inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que o prazo de interposição de recurso se conta a partir da data em que a sentença foi proferida na presença do arguido e do seu defensor, tendo nesse mesmo dia sido depositada na secretaria, e não apenas da data em que posteriormente foi notificada por via postal, pois desde aquela primeira data o arguido ficou em posição de conhecer integralmente a sentença;
O Acórdão 109/99, que não julgou inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, lido em conjugação com o artigo 113.º, n.º 5, do CPP, na interpretação segundo a qual, com o depósito da sentença na secretaria do tribunal, o arguido que, justificadamente, não esteve presente na audiência em que se procedeu à leitura pública da mesma, deve considerar-se notificado do seu teor, para o efeito de, a partir desse momento, se contar o prazo para recorrer da sentença, se, nessa audiência, esteve presente o seu mandatário;
Os Acórdãos n.os 148/2001 e 202/2001, que julgaram inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, quando interpretado no sentido de determinar a contagem do prazo de interposição do recurso da data do depósito na secretaria da sentença manuscrita de modo ilegível, e não da data em que o defensor do arguido é notificado da cópia da sentença dactilografada, tempestivamente requerida, juízos de inconstitucionalidade que se fundaram no entendimento de que 'o direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito', o que 'pressupõe a plena estabilidade e inteligibilidade da decisão recorrida';
O Acórdão 87/2003, que julgou inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual o prazo para interpor recurso de acórdão de Tribunal da Relação, proferido em conferência, nos termos do artigo 419.º, n.º 4, do CPP, e não em audiência (com prévia convocação, para além de outros intervenientes, do defensor, de acordo com o artigo 421.º, n.º 2, do mesmo Código), se conta a partir do depósito do acórdão na secretaria, e não da respectiva notificação, tendo o Tribunal Constitucional sublinhado que, uma vez que 'nem o recorrente nem o seu defensor tinham sequer conhecimento da data de realização da conferência, que não lhes foi comunicada', não lhes era exigível uma diligência que se traduziria no 'controlo cego do hipotético dia da tomada de decisão por parte do Tribunal da Relação';
O Acórdão 36/2004, que não julgou inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que, quando os arguidos e um defensor oficioso nomeado estão presentes à leitura da sentença, mas o advogado constituído falta e é posteriormente notificado dela, o prazo de interposição de recurso se conta a partir do depósito da sentença na secretaria, efectuada no próprio dia da sua leitura, pois, em tal hipótese, os arguidos tomaram conhecimento directo da decisão e tiveram oportunidade de, actuando com a diligência exigível, esclarecer de imediato quaisquer dúvidas com o advogado nomeado para o acto, tendo disposto de 15 dias para exame da sentença com o seu advogado constituído, com quem lhes incumbia entrar em contacto;
O Acórdão 186/2004, que julgou inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que o prazo para apresentação da motivação de recurso interposto por declaração na acta da audiência onde foi proferida a sentença se conta a partir da data dessa interposição, mesmo que a sentença só posteriormente haja sido depositada na secretaria, tendo o Tribunal Constitucional considerado que "há que reconhecer que 'a mera leitura da sentença na presença do arguido e do seu defensor oficioso no mínimo pode não permitir uma completa apreensão do teor da sentença para efeito de motivação do recurso', pois 'a interposição de um recurso pressupõe uma análise minuciosa da decisão que se pretende impugnar, análise essa que não é de todo possível realizar por mero apelo à memória da leitura do texto da sentença', antes exige o acesso ao texto da sentença, o que apenas se torna possível com o seu depósito na secretaria"; e
O Acórdão 312/2005, que, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, determinou que a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP fosse interpretada no sentido de que o prazo para interposição do recurso da decisão condenatória do arguido ausente se conta a partir da notificação pessoal e não a partir do depósito na secretaria, independentemente dos motivos que determinaram tal ausência e se os mesmos são ou não justificáveis.
2.2.2 - Com mais directa relevância para o caso ora em apreço surgem as decisões deste Tribunal relativas ao prazo de interposição de recurso penal que vise (exclusiva ou cumulativamente) a impugnação da decisão da matéria de facto. Embora nenhuma dessas decisões tenha incidido sobre a concreta dimensão normativa que constitui objecto do presente recurso, delas se colhe, reiteradamente, o entendimento de que o acesso à documentação da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente às cassetes contendo a gravação da prova - mas já não o acesso à posterior transcrição das partes das gravações seleccionadas para sustentar a impugnação de tal decisão - é essencial para assegurar um consciente e eficiente direito ao recurso nessa sede.
Num caso em que as declarações orais prestadas em audiência não haviam sido objecto de gravação magnetofónica, mas sim de documentação em acta, o Acórdão 363/2000 julgou inconstitucionais as normas dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 146.º, n.º 1, do CPC, interpretados no sentido de a impossibilidade de consulta das actas de julgamento, por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal, juízo de inconstitucionalidade que se fundou no entendimento de que o acesso a essas actas constitui 'um elemento importante para a preparação da defesa do arguido, concretamente para a elaboração da alegação do recurso'.
Versando situações em que ocorrera gravação magnetofónica da prova produzida em audiência, mas em que os recorrentes pretendiam que o prazo de interposição de recurso se iniciasse apenas a partir da disponibilização da transcrição (em suporte de papel) das referidas gravações, os Acórdãos n.os 433/2002 e 17/2006, não tendo julgado inconstitucionais as interpretações atacadas pelos recorrentes, desenvolveram fundamentação que evidencia a essencialidade do acesso às gravações (que não às posteriores transcrições das mesmas).
O primeiro acórdão citado (Acórdão 433/2002) decidiu não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 107.º, n.º 2, do CPP, segundo a qual, havendo possibilidade de acesso ao suporte material da prova gravada, a impossibilidade de acesso às transcrições das declarações prestadas em audiência (quando tenha sido requerida a respectiva gravação), por as mesmas ainda não estarem disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal. Esse acórdão salientou a diferença da situação então em apreço com aquela sobre que incidiu o Acórdão 363/2000 (em que o único suporte de registo das declarações prestadas em audiência eram as actas escritas, que ainda não estavam elaboradas), pois agora, em que existia gravação magnetofónica, embora ainda não transcrita, 'a impugnação do julgamento da matéria de facto pode perfeitamente basear-se no próprio suporte material da prova gravada (que é, afinal, o registo originário da prova), à disposição do arguido desde o início do prazo para a interposição do competente recurso', pelo que 'não tem razão o recorrente quando alega [...] que, não lhe sendo facultada a transcrição da prova gravada em tempo útil, lhe é cerceada a possibilidade de interpor recurso, resultando violada a norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição'.
Por último, o Acórdão 17/2006 não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do CPP, interpretados no sentido de que o prazo de interposição de recurso penal em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se procedeu a gravação da prova produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação. Nesse acórdão, começou por referenciar-se o decidido no aludido Acórdão 433/2002 e bem assim no Acórdão 542/2004, que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 411.º, n.os 1 e 3, do CPP, na interpretação segundo a qual, em caso de recurso que tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de 15 dias fixado no primeiro preceito não acresce o prazo de 10 dias a que se refere o artigo 698.º, n.º 6, do CPC, por considerar que essa interpretação não violava o direito de recurso, já que aquele prazo de 15 dias para apresentação da motivação não se mostrava desrazoável ou inadequado, 'mesmo tendo em conta que o asseguramento efectivo dessas possibilidades de defesa passará pela audição das cassetes e pela preparação, estudo e elaboração da alegação de recurso, com as referidas especificações [as exigidas no artigo 412.º, n.os 3, alíneas b) e c), e 4, do CPP]', nem ofendia o princípio da igualdade, face ao regime processual civil, por a celeridade processual, expressamente contemplada no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, ter, no processo penal, 'uma fonte e intensidade constitucional diferente da que concerne à defesa de outros direitos, à qual se refere o n.º 4 do artigo 20.º da CRP'. De seguida, procedeu-se à transcrição de parte da fundamentação do Acórdão 9/2005, do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 2005 - que fixou a seguinte jurisprudência: 'Quando o recorrente impugne a decisão em matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o recurso deve ser interposto no prazo de 15 dias, fixado no artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não sendo subsidiariamente aplicável em processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil' -, onde se evidencia a diversidade das finalidades específicas da motivação, da gravação da prova e da sua subsequente transcrição, salientando, quanto a estas duas últimas, que as especificações referidas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP têm de ser feitas, por força do subsequente n.º 4, relativamente aos suportes técnicos da gravação da prova, e não relativamente à transcrição, que 'é um acto posterior que incumbe ao tribunal efectuar [...] nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, e destina-se a permitir (rectius, a facilitar) ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada', para concluir que, face ao regime legal vigente, 'os elementos necessários à impugnação da matéria de facto - suportes materiais da prova gravada - podem estar à disposição do recorrente desde o início do prazo para a interposição do recurso' e que 'em caso de demora na disponibilidade das cópias, o interessado sempre disporá da faculdade de invocar justo impedimento'. Após estas referências, o Acórdão 17/2006 desenvolveu a seguinte argumentação:
'Embora, em rigor, no presente recurso não esteja directamente em causa a divergência interpretativa sobre que incidiu o acórdão de fixação de jurisprudência acabado de referir [isto é: a aplicabilidade aos recursos penais da regra do acréscimo de 10 dias dos prazos para alegações estabelecidos no artigo 698.º do CPC sempre que o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, mas antes a questão de saber se é constitucionalmente imposto que o início do prazo de interposição e de motivação de recurso penal visando (também) a matéria de facto, quando tenha havido gravação da prova, se conte apenas a partir da data em que o tribunal disponibiliza ao recorrente a transcrição dessa gravação], o certo é que as considerações nele tecidas sobre a finalidade desta transcrição - facilitar ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada, e já não habilitar o recorrente a elaborar a sua motivação (que, bem compreendida, deve constituir tão-só a enunciação dos fundamentos do recurso, com a função de delimitar o respectivo objecto, podendo o recorrente desenvolver a fundamentação nas alegações, orais ou escritas, a produzir no tribunal ad quem - artigos 411.º, n.º 4, e 423.º, n.º 3, do CPP), pois para tal lhe basta, para lá da assistência e intervenção em toda a audiência de julgamento e do conhecimento do teor integral da decisão condenatória, o acesso às gravações da prova produzida [até porque é em relação a estes suportes técnicos, e não à sua posterior transcrição, que devem ser feitas as especificações exigidas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP] - reforçam o juízo de razoabilidade do regime estabelecido que, na sequência do Acórdão 433/2002, se entende não poder ser reputado como envolvendo uma limitação constitucionalmente intolerável do direito de recurso em matéria penal.
[...]
Conclui-se, assim, que, não tendo o recorrente solicitado, podendo tê-lo feito, o acesso à gravação da prova logo após a notificação da sentença, e considerando-se que com a possibilidade desse acesso o arguido ficava em condições de exercitar - consciente, fundada e eficazmente - o seu direito de recurso, nenhuma censura merece o juízo de não inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.'
2.3 - Da precedente descrição da jurisprudência deste Tribunal resulta que, embora a específica dimensão normativa que constitui objecto do presente recurso ainda não tenha sido alvo de qualquer juízo expresso de inconstitucionalidade, já por diversas vezes o Tribunal considerou que, quando se pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, o acesso aos respectivos suportes de gravação é essencial para um consciente e eficiente exercício do direito de recurso, constitucionalmente consagrado.
No presente caso, a audiência de julgamento desenrolou-se por sessões realizadas em 14 e 23 de Junho e 4 de Julho de 2005. Apesar de inicialmente marcada para 14 de Julho, a leitura da sentença só veio a ocorrer em 19 de Julho de 2005, perante o arguido e seu mandatário e com imediato depósito da mesma na secretaria. Estando já em curso o período de férias judiciais, o prazo de 15 dias para interposição do recurso só começou a correr em 15 de Setembro de 2005, mas, antes dessa data, no dia 12 desse mês, o arguido requereu cópias das cassetes, o que foi deferido por despacho do dia 19, de que foi notificado no dia 23, tendo nesta mesma data apresentado as cassetes para duplicação e requerido a suspensão do prazo de interposição do recurso desde o dia 15 (data em que ele se teria iniciado) até à data da efectiva disponibilização das cassetes duplicadas, por considerar essa disponibilidade essencial para a elaboração da motivação do recurso. Depreende-se dos autos, designadamente do despacho de 12 de Outubro de 2005 e da motivação do recurso dele interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, que as cassetes não chegaram a ser disponibilizadas ao recorrente antes de esgotado o prazo de interposição do recurso, contado desde 15 de Setembro de 2005.
Impõe-se, assim, a emissão de um juízo de inconstitucionalidade, que, no fundo, se traduzirá na reprodução de idêntico juízo proferido no Acórdão 363/2000, com a única diferença de aí a documentação da prova constar de acta e aqui de suportes magnéticos. Mas, em ambos os casos, o acesso à documentação da prova, independentemente do respectivo suporte, constitui um elemento importante não apenas para a preparação e elaboração da motivação do recurso, mas até para a formação esclarecida da vontade de recorrer."
É verdade que, no caso dos autos, as cassetes foram colocadas à disposição do recorrente antes do esgotamento do prazo para interposição de recurso contado desde 25 de Maio de 2005, data do depósito da sentença na secretaria - mais precisamente, no dia 3 de Junho de 2005, 6 dias (e não 12, como se afirma na decisão recorrida tendo em conta que o acto poderia ainda ser praticado num dos três dias úteis seguintes ao termo do prazo, nos termos do artigo 145.º, n.os 5 a 7, do Código de Processo Civil) antes de esgotado o prazo de 15 dias interposição do recurso contado a partir daquele dies a quo.
Mas este elemento não é decisivo para alterar o resultado da argumentação anteriormente transcrita, considerando, designadamente, que logo no dia 27 desse mês de Maio o arguido solicitou o acesso à gravação da prova, tendo nesta mesma data apresentado as cassetes para duplicação. Como bem salienta o Ministério Público nas suas contra-alegações, "no caso dos autos, não se vislumbra qualquer negligência, imputável ao arguido, na demora no acesso à gravação, já que requereu cópia das 'cassetes' no dia útil seguinte ao depósito da sentença pelo que se verificam, também aqui, os pressupostos que levaram o Tribunal Constitucional a emitir o referido juízo de inconstitucionalidade". Ora, já a redução do prazo normal de interposição do recurso, sem qualquer actuação negligente do recorrente, para menos de metade, pela tardia disponibilização de elementos fundamentais, não pode deixar de ser considerada violadora do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República.
Como se vê, conclui-se, portanto, que a questão de constitucionalidade relevante nestes autos se perfila, no essencial, de forma análoga à da citada decisão do Tribunal Constitucional, devendo merecer solução idêntica, mediante remissão para a sua fundamentação. E há, pois, que conceder provimento ao recurso.
III - Decisão. - Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito de recurso; e, consequentemente
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Março de 2007. - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos.