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Acórdão 133/2007, de 24 de Abril

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal

Texto do documento

Acórdão 133/2007

Processo 847/05

Acordam no Tribunal Constitucional:

1.1 - Carlos Pereira Cruz recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão da Relação de Lisboa proferido em 27 de Setembro de 2005, pelo qual foi definitivamente negada ao arguido ora recorrente, com fundamento no n.º 1 do artigo 3.º da Lei 45/2004, de 19 de Agosto, a possibilidade de designar um consultor técnico para acompanhar a realização de perícias médicas ordenadas pela autoridade judiciária sobre a personalidade de ofendidos e assistentes que vão depor nos autos como testemunhas ou declarantes, deferidas ao Instituto Nacional de Medicina Legal.

Pretende ver apreciada a questão da inconstitucionalidade daquela norma, interpretada no sentido de que a "restrição" prevista no aludido preceito "- quanto à possibilidade de nomeação pelo arguido de um consultor técnico para acompanhar as perícias realizadas no IML - se aplica na fase de julgamento".

O recurso foi admitido com efeito devolutivo.

Na sua alegação, concluiu o recorrente:

"A) A diligência em causa - a realização de novas perícias a alguns assistentes - é crucial para a defesa, podendo mesmo ser decisiva para o resultado final do julgamento, o que decorre dos autos não revelarem outra prova que não seja a das declarações desses jovens.

B) Essa relevância é ainda substancialmente acrescida em função das deficiências manifestas e graves que se verificam no processo de realização das anteriores perícias, como está reconhecido na decisão instrutória e decorre do parecer do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, bem como dos pareceres médicos entretanto juntos aos autos.

C) O direito a indicar um consultor técnico para acompanhar essa perícia nos termos do artigo 155.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - com as limitações que eventualmente decorram dos actos médicos ou de audição psicológica que tenham lugar - é garantia fundamental da defesa, pois permitir-lhe-á verificar a idoneidade, o rigor e os eventuais problemas que o modo de produção das perícias suscite, em que delicadas questões legis artis se poderão colocar.

D) Esse direito é ainda uma decorrência do princípio do contraditório, que, neste segmento, se traduz na possibilidade de efectivo controlo das provas produzidas, verificando se o seu processo de produção é idóneo e adequado para o fim em causa, o que, em sede de julgamento, tem consagração constitucional, nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da CRP.

E) Na verdade, a mera sindicância a posteriori do resultado das perícias - quando elas já tiveram lugar - não garante o exercício cabal e pleno do exercício do contraditório, o qual há-de compreender:

Por um lado, a possibilidade, durante o decurso da produção do meio de prova, serem apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes, que os peritos acolherão ou não;

Por outro lado, a possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, ser fiscalizada, através de consultor técnico, a idoneidade da metodologia adoptada, verificando o cumprimento da legis artis.

F) Deste modo, a regra resultante da interpretação conjugada do artigo 155.º, n.º 1, do CPP e do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 45/2004, efectuada no acórdão recorrido, bem como no despacho da 1.ª instância, no sentido de que o arguido, na fase de julgamento, não tem o direito de designar consultor técnico para acompanhar perícias realizadas no INML, é inconstitucional, por ofensa do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da CRP.

G) A falta de justificação razoável - técnica, científica ou processual - para essa limitação é a melhor demonstração da sua natureza desproporcionada, porque desnecessária.

H) Uma nota para o argumento inaceitável de que, admitindo-o, se poria em causa a independência do INML, que é uma entidade equidistante da acusação e da defesa; basta recordar que os juízes também o são e, durante o julgamento, não podem presidir à produção de prova sem a presença das partes processuais em disputa.

I) Finalmente, quanto ao argumento da perda de eficiência dos serviços, a que o acórdão recorrido também recorre, repetir-se-á que não se pretende que o consultor médico esteja presente em todas as fases da diligência, compreendendo-se as limitações que eventualmente decorram dos actos médicos a realizar e até da funcionalidade dos serviços, tudo no quadro da razoabilidade e da proporcionalidade (cf. supra n.º 6).

J) A limitação que a interpretação normativa em causa consagra ofende ainda o princípio de um processo equitativo, que a CEDH acolhe.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, com as legais consequências, designadamente quanto à declaração de inconstitucionalidade da regra resultante da interpretação normativa em pauta."

1.2 - Contra-alegou o representante do Ministério Público neste Tribunal, nos seguintes termos:

"1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

O presente recurso foi interposto pelo arguido Carlos Pereira Cruz do acórdão da Relação de Lisboa, que julgou não inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, da Lei 45/2004, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal.

Implicará, como pretende o recorrente, tal especificidade do regime das perícias médico-legais, realizadas nos gabinetes e delegações do INML, violação do princípio constitucional das garantias de defesa?

Como é evidente, não pode inferir-se directamente da Constituição a existência de um direito 'absoluto' e irrestrito das partes ou sujeitos processuais a directamente assistirem e participarem nos exames médico-legais, realizados no âmbito do próprio INML, por si ou através dos consultores técnicos que os coadjuvem nas matérias técnico-científicas envolvidas na prova pericial - sendo inquestionavelmente legítimo ao legislador moldar um regime específico ou particular para certos aspectos dos exames realizados no âmbito daquele Instituto, tendo em conta a sua posição institucional - e de particular credibilidade científica - e as necessidades de eficácia e bom funcionamento dos serviços.

Não pode, na realidade, olvidar-se que não estamos perante exames realizados por peritos 'ocasionais', nomeados 'ad hoc' para certo acto processual, mas face a uma diligência probatória que tem lugar, de forma institucional, num serviço público que tem como objecto precisamente a sistemática realização de perícias de certa natureza, em condições de particular apuro e credibilidade científica.

Como é evidente, tal natureza peculiar da entidade que funciona como 'perito' determina um regime particular e específico, no que respeita, por exemplo, à escolha e designação dos peritos, à indicação de data, hora e local da diligência, à assistência aos exames e perícias a realizar (cf., artigos 3.º, n.º 1, parte final, e 6.º, n.º 4, da Lei 45/2004, em conjugação com os artigos 154.º, 155.º e 156.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Daqui decorre que é incorrecto o modo como o recorrente equaciona a questão de constitucionalidade suscitada: não podendo inferir-se directamente da lei fundamental um 'direito' de assistência e participação em todos os exames periciais (incluindo os realizados institucionalmente no âmbito do INML), o que importa apurar é se as possibilidades legais de efectivo contraditório, face ao relatório pericial que venha a ser apresentado, se conformam ou não com o princípio constitucional das garantias de defesa do arguido em processo penal.

A resposta a esta questão é inquestionavelmente positiva: na verdade, é lícito aos sujeitos processuais - confrontados com o relatório pericial - requerer, não apenas a prestação de esclarecimentos complementares pelos peritos (por esta via se obtendo subsequentemente o resultado prático que radicaria numa eventual assistência ao acto do 'consultor técnico', face ao previsto nos n.os 2 e 3 do artigo 155.º do Código de Processo Penal), como inclusivamente obter a realização de nova perícia ou a renovação de perícia anterior, desde que (como refere o artigo 589.º do Código de Processo Civil) aleguem 'fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado', convencendo o tribunal da indispensabilidade da realização da nova diligência para descoberta e 'apuramento da verdade material' suprindo ou corrigindo 'a eventual inexactidão dos resultados' da primeira perícia.

Na verdade, a reforma do processo civil de 1995-1996 eliminou a regra que constava do n.º 3 do artigo 609.º do Código de Processo Civil, na redacção originária, segundo a qual não era admissível 'segundo arbitramento' quando o exame tivesse sido realizado por 'estabelecimentos oficiais' - assegurando-se, pois, a partir daí, a plena possibilidade de as partes ou sujeitos processuais sindicarem o relatório pericial, seja qual for a entidade que actuou como perito, e exercerem amplamente o contraditório relativamente ao juízo científico nele contido.

2 - Conclusão. - Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:

1 - Não pode inferir-se directamente da Constituição qual o preciso regime processual de realização de perícias médico-legais no âmbito do INML, sendo lícito ao legislador estabelecer algumas particularidades na respectiva tramitação, tendo em conta a natureza da entidade que institucionalmente realiza o exame, desde que não afronte o 'núcleo essencial' da garantia de o arguido contraditar o relatório pericial e sindicar a consistência científica das conclusões nele contidas.

2 - Tais garantias de contraditório e de defesa são plenamente asseguradas pelo facto de o arguido ter integral acesso ao relatório pericial e poder obter dos peritos os esclarecimentos que se revelem pertinentes, bem como a eventual realização de uma segunda perícia, quanto tal se mostre indispensável ao apuramento da verdade material.

3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."

2 - Cumpre decidir.

2.1 - O presente recurso vem interposto do acórdão da Relação de Lisboa que, na parte agora relevante disse:

"[...]

6 - O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se, tendo sido determinada a realização de perícia, a efectuar pela Delegação de Lisboa do INML, podem, ou não, os arguidos designar consultor técnico para assistir à realização da mesma.

II - 1 - Segundo o Prof. Manuel da Andrade, a perícia consiste num meio de prova que se traduz na 'percepção por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas'.

Por sua vez, a perícia médico-legal tem lugar quando, para a percepção e apreciação dos factos, sejam necessários especiais conhecimentos científicos do domínio da medicina legal.

Como meio de prova organizado e produzido no próprio processo em que se utiliza, encontra-se expressamente previsto na legislação processual, ou seja, no Código de Processo Civil (artigo 568.º, n.º 3), no Código de Processo do Trabalho (artigos 100.º e seguintes) e no Código de Processo Penal (artigo 159.º).

No caso, tendo sido determinada a realização de perícia destinada a avaliar a capacidade dos assistentes para prestarem testemunho, nos termos do artigo 131.º do CPP, foi deferida a sua realização à Delegação de Lisboa do INML, nos termos do artigo 159.º do CPP.

Pretende o recorrente que lhe seja reconhecido o direito de indicar consultor técnico para acompanhar tal perícia.

O Código de Processo Penal refere-se à figura do consultor técnico, nos seus artigos 155.º, 156, n.º 1, 157.º, n.º 1, 317.º, 318.º, 331.º e 350.º

O consultor técnico não presta compromisso de honra (artigo 156.º, n.º 1) e não está sujeito ao regime dos impedimentos, recusas e escusas, só previsto para o perito (artigo 153.º).

A função do consultor técnico é de fiscalização, que exerce assistindo à realização da perícia, com a possibilidade de intervir nos termos do artigo 155.º, n.º 2, e de ser ouvido em audiência (artigo 350.º).

O consultor técnico não participa na elaboração do relatório pericial (artigo 157.º), isto é, a independência técnico-científica do perito não é beliscada, só podendo o consultor técnico intervir na fase de realização do exame, sugerindo diligências, formulando observações e objecções (n.º 2 do artigo 155.º), dessa forma fazendo com que sejam trazidos ao processo mais dados para realização do relatório e permitindo a fiscalização por parte dos intervenientes processuais em relação à recolha dos dados que fundamentarão o mesmo relatório (por isso, tais sugestões, observações e objecções, ficarão a constar do auto - artigo 155.º, n.º 2).

Contudo, a designação e desempenho da função de consultor técnico não pode atrasar a realização da perícia e andamento normal do processo (artigo 155.º, n.º 4). Na verdade, o estatuto conferido ao perito, sujeito a compromisso de honra (dispensado de o prestar no caso da alínea b) do n.º 6 do artigo 91.º) e com possibilidade de escusa e recusa (artigo 153, n.º 2), é uma garantia de isenção e imparcialidade, o que aliado à qualificação técnico-científica que terá de ter (artigo 152.º, n.º 1), permitiu ao legislador presumir que está garantida a possibilidade de ser alcançado um juízo técnico certo, razão por que em nenhuma hipótese a intervenção de consultor técnico pode justificar qualquer atraso na realização na perícia ou no andamento do processo.

De entre as entidades previstas no artigo 159.º, como podendo realizar a perícia médico-legal, foi esta deferida à Delegação de Lisboa do INML.

Nos Estatutos do INML (em anexo ao Decreto-Lei 96/2001, de 26 de Março), apresentam-se como dados salientes, entre outros, os seguintes:

Caracterização do INML como 'instituto público dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, sujeito à superintendência e tutela do Ministro da Justiça' (artigo 1.º, n.º 1);

Enunciação de atribuições do INML, de que se destaca a de 'cooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração da justiça realizando os exames e perícias de medicina legal que lhe forem solicitados, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado' [artigo 2.º, n.º 1, alínea b)];

Definição do INML como instituição nacional de referência, no âmbito das suas atribuições (artigo 2.º, n.º 2).

Deste modo, o legislador coloca o INML (cujas delegações prosseguem na área de actuação as atribuições do Instituto - artigo 24.º, n.º 2, dos Estatutos) a um nível superior (de referência) em relação às outras entidades a quem pode ser deferida a realização das perícias médico-legais, isto é, entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto (artigo 2.º, n.º 2, do regime jurídico das perícias médico-legais e forenses Lei 45/2004, de 19 de Agosto).

O reconhecimento desse estatuto de referência pelo legislador manifesta-se na consagração legal de particularidades quanto ao regime normativo das perícias realizadas nas delegações do INML, como é o caso da exclusão da possibilidade de nomeação de consultores técnicos, consagrada pelo artigo 3.º, n.º 1, da citada Lei 45/2004.

Compreende-se que assim seja, pois, considerando a referida caracterização e definição do INML, a realização da perícia por uma delegação deste é uma garantia acrescida para os intervenientes processuais, desse modo ficando sem sentido o exercício de fiscalização próprio da intervenção dos consultores técnicos. de facto, além da realização da perícia por aquela entidade representar uma garantia acrescida, estando em causa uma instituição nacional de referência na matéria, não seria fácil apresentar quem fosse capaz de sugerir diligências úteis não previstas por esse serviço ou fiscalizar de forma relevante a legis artis seguida.

A consagração do INML como instituição de referência levou o legislador, ainda, a assegurar um tratamento diferenciado aos peritos do INML, no artigo 91.º, n.º 6, alínea b), do CPP (dispensando de juramento e compromisso, por serem funcionários públicos e intervirem no exercício das suas funções) e no artigo 350.º, n.º 3, permitindo a sua audição por teleconferência a partir do local de trabalho (sinal que em relação a eles não vê necessidade da imediação exigida em relação a outros - artigo 350.º, n.º 1).

Coloca-se, no entanto, a questão de saber se a restrição prevista no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 45/2004, quando aplicada na fase do julgamento, ofende o princípio do contraditório consagrado constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 5, da nossa lei fundamental.

Este princípio consiste, desde logo, no direito de contradizer ou de se pronunciar sobre as alegações, as iniciativas, os actos ou quaisquer atitudes processuais da autoria dos outros sujeitos processuais. para que o juiz possa decidir, por força do princípio do contraditório, essa decisão só pode ser proferida após ouvir todo aquele participante processual relativamente ao qual deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.

Garantindo o processo penal a possibilidade de serem pedidos esclarecimentos aos peritos (artigos 158.º e 350.º do CPP) e de em relação ao relatório pericial se pronunciaram os intervenientes processuais (artigo 327.º, n.º 2, do CPP), está assegurado o contraditório, definido naqueles termos, sem que para isso seja necessário assegurar o direito de designar consultor técnico para assistir à perícia.

Contudo, a Constituição não se limita a assegurar o direito ao contraditório, reconhecendo a todos, no artigo 20.º, n.º 4, o direito a um processo equitativo e estabelecendo no artigo 32.º, n.º 1, 'O processo penal assegura todas as garantias de defesa [...]'

Importa, então, analisar se a negação do direito do arguido indicar consultor técnico para assistir à realização da perícia por uma delegação do INML, implica um encurtamento inadmissível dos direitos de defesa.

Admitir tal possibilidade seria pôr em causa a autonomia e a independência técnico-científica do INML, que o legislador qualificou de instituição nacional de referência no âmbito das suas atribuições, sujeito à superintendência e tutela do Ministro da Justiça, intervindo no processo em execução de uma das suas atribuições, de cooperação com o tribunal, realizando perícia de medicina legal.

A autonomia e independência do INML coloca-o numa posição de equidistância entre a defesa e a acusação, tomando desnecessário qualquer controlo ou fiscalização dos intervenientes processuais sobre a realização da perícia, como forma de assegurar os direitos de defesa.

A pretexto de assegurar todos os direitos de defesa, não se pode chegar ao ponto de pôr em causa a independência técnico-científica de uma instituição como INML, que o legislador entendeu ser merecedor da dignidade consagrada no respectivo Estatuto, permitindo a assistência de consultores técnicos (cujo direito de indicação, nos casos em que é possível, não pertence apenas à defesa, mas também ao Ministério Público, aos assistentes e às partes civis - artigo 155.º, n.º 1, do CPP) quando a sua intervenção não se apresenta capaz de contribuir para melhorar a qualidade técnico-científica da perícia e iria ter efeitos negativos nos níveis de eficiência destes serviços (no preâmbulo do Decreto-Lei 96/2001, de 26 de Março, o legislador manifesta a vontade de alcançar melhores níveis de eficácia).

Com efeito, estando os peritos obrigados a fundamentar as suas respostas e conclusões (artigo 157.º, n.º 1, do CPP), a possibilidade de serem ouvidos e prestarem os esclarecimentos complementares (artigos 158.º e 350.º do CPP), é suficiente para assegurar em relação à prova pericial todos os direitos de defesa dos arguidos, já que através daqueles esclarecimentos poderão os intervenientes processuais conhecer o percurso seguido na recolha dos elementos que fundamentam as conclusões do relatório, contraditando-o e, dessa forma, contribuindo para o aperfeiçoamento do relatório pericial, com reflexos positivos nesse meio de prova.

Em conclusão, a inadmissibilidade de indicação de consultor técnico pela defesa, para assistir a perícia realizada na fase de julgamento, por delegação do INML, não ofende o princípio do contraditório, nem os direitos de defesa.

III - Decisão. - Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida."

2.2 - A questão suscitada no presente recurso reporta-se aos poderes conferidos ao arguido recorrente no domínio da prova pericial em processo penal. Na verdade, tal como invoca o recorrente, a norma impugnada - n.º 1 do artigo 3.º da Lei 45/2004, de 19 de Agosto -, foi estendida à perícia ordenada ao abrigo dos n.os 2 e 3 do artigo 131.º do Código de Processo Penal, por força da aplicação, ao caso presente, do disposto no artigo 159.º do mesmo Código. Não incumbe ao Tribunal Constitucional aferir da correcta interpretação e aplicação da lei ordinária na decisão recorrida, mas tão somente verificar se a norma impugnada - tal como foi aplicada naquela decisão - ofende a Constituição.

É, por isso, útil começar por sintetizar o quadro legal que disciplina esta matéria.

O Código de Processo Penal (artigos 151.º a 163.º) determina que quando a apreciação ou a percepção dos factos exigir especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, terá lugar a prova pericial, a ordenar oficiosamente, ou a requerimento, pela autoridade judiciária, a quem também cabe escolher o estabelecimento ou a pessoa "com reconhecida competência na matéria em causa" que, mediante prévio compromisso, há-de proceder ao exame, elaborar o relatório com as respostas às questões formuladas e apresentar as conclusões "devidamente fundamentadas".

A autoridade judiciária pode assistir à realização da perícia, podendo também permitir a presença do arguido e do assistente.

Além disto, o Código de 1987 adoptou uma inovação: autorizou os intervenientes processuais a designar um consultor técnico que, sem prestar qualquer compromisso ou juramento, exerceria, por conta de quem o nomeia, uma fiscalização privada da perícia (Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., p. 804). Fê-lo através da seguinte disposição que, aliás, ainda hoje se mantém em vigor:

"Artigo 155.º

Consultores técnicos

1 - Ordenada a perícia, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis podem designar para assistir à realização da mesma, se isso ainda for possível, um consultor técnico da sua confiança.

2 - O consultor técnico pode propor a efectivação de determinadas diligências e formular observações e objecções, que ficam a constar do auto.

3 - Se o consultor técnico for designado após a realização da perícia, pode, salvo no caso previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, tomar conhecimento do relatório.

4 - A designação de consultor técnico e o desempenho da sua função não podem atrasar a realização da perícia e o andamento normal do processo."

Estas regras também se aplicavam às perícias médico-legais (artigo 159.º) deferidas quer aos institutos de medicina legal, quer aos gabinetes médico-legais, quer aos médicos especialistas ou de "reconhecida competência", contratados ou não.

O regime radicava numa organização médico-legal cujas linhas mestras remontavam ao Decreto com força de lei 5023 de 29 de Novembro de 1918, que criara os institutos de medicina legal, na tutela do Ministério da Justiça, completado por um sistema de peritos médicos de lista, a funcionar na generalidade das comarcas, instituído pelo Decreto-Lei 42 216, de 15 de Abril de 1959. O funcionamento deste sistema ressentia-se da "deficiente preparação" de um número elevado de médicos a desempenhar estas funções, conforme reconheceu o legislador quando alterou este regime, através do Decreto-Lei 387-C/87, de 29 de Dezembro.

Por força deste último diploma, pretendeu-se resolver o problema da formação científica e profissional especializada nesta área, que estaria ainda "muito longe" de atingir os níveis desejados, "necessários à qualidade e rigor das perícias médicas". Com esse sentido, o diploma reorganizou os institutos de medicina legal, criou os gabinetes médico-legais, a funcionar como "guarda avançada dos institutos de medicina legal", e instituiu unidades médico-legais nos serviços de urgências hospitalares. Finalmente, permitiu que a autoridade judiciária - "em situações que ela própria avaliará" - se socorresse de clínicas médicas e de médicos "de reconhecida competência e honorabilidade", para efeito de realização de perícias médicas. Foi ainda fixado o quadro de competências dos novos serviços de acordo com o regime instituído "pelo novo Código de Processo Penal".

É de reter que, na data em que entrou em vigor o referido artigo 155.º do Código de Processo Penal (1987), o próprio legislador reconhecia que a qualidade da formação especializada nesta área estava longe de atingir o nível necessário "à qualidade e rigor das perícias médicas".

2.3 - A evolução favorável que o sistema médico-legal entretanto registou justifica as alterações introduzidas, posteriormente, pelo Decreto-Lei 11/98, de 24 de Janeiro.

Continuou a atribuir-se aos institutos de medicina legal o encargo de coordenar e dinamizar a actividade pericial dos gabinetes médico-legais. No entanto, e pela primeira vez, foi instituída a regra do deferimento aos gabinetes médico-legais da actividade pericial, em matéria de perícias médico-legais.

Lê-se no preâmbulo do diploma: "numa época histórica em que todas as actividades técnico-científicas exigem acentuada especialização profissional, bem como a utilização de sofisticados meios materiais, e em que as deslocações das pessoas não causam já tanto embaraço como sucedia ainda não há muitos anos, caminha-se mais decididamente no sentido de levar à prática essas estruturas, que funcionarão na dependência directa do instituto da circunscrição médico-legal em que se encontrem localizadas, sob orientação e controlo de um perito coordenador, com a progressiva extinção da figura do perito médico de comarca contratado ad-hoc, salvo a verificação de situações excepcionais". O diploma previa, no entanto, que enquanto não estivesse efectivamente constituída a rede nacional de gabinetes médico-legais, as perícias médico-legais continuariam a ser asseguradas "por médicos contratados".

É por força deste diploma que as perícias médicas passaram a ser deferidas, em regra, aos serviços médico-legais, ao contrário do que até então ocorria.

Outra inovação importante foi a consagração de uma norma semelhante àquela que constitui o objecto do presente recurso; no seu artigo 40.º dispôs "exames e perícias médico-legais":

"Artigo 40.º

Realização de perícias

As perícias médico-legais são ordenadas, nos termos da lei de processo, por despacho da autoridade judiciária competente, não lhes sendo, todavia, aplicável o disposto nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal."

A orgânica dos serviços de medicina legal voltou a ser alterada pelo Decreto-Lei 96/2001, de 26 de Março, diploma que criou o Instituto Nacional de Medicina Legal e aprovou a sua lei orgânica. Aqui, reconhecendo que a medicina legal contribui decisivamente para o correcto funcionamento da administração da justiça, o legislador reuniu num único instituto os serviços médico-legais existentes, por forma a garantir metodologias periciais uniformes em todo o País, embora com expressa salvaguarda da "independência técnico-científica própria de cada perito na apreciação de cada processo".

2.4 - Culminando esta evolução legislativa, a Lei 45/2004, de 19 de Agosto, consagrou um regime específico das perícias médico-legais e forenses, ao estabelecer a regra de que tais perícias devem obrigatoriamente ser deferidas ao Instituto Nacional de Medicina Legal.

Para o que agora interessa, as alterações foram assim justificadas - cf. discussão e votação na generalidade da respectiva proposta de lei de que resultou este último diploma n.º 127/IX/2 (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 99/IX/2, de 24 de Junho de 2004):

"[...]

A definição de novos critérios e regras que devem presidir à actividade pericial surge também da imperiosa necessidade de conformar a medicina legal em Portugal à evolução das condições tecnológicas e científicas, cuja dinâmica moderna, poderá afirmar-se, atinge uma velocidade cada vez maior. Tratando-se de uma área técnico-científica especializada, pressupõe conhecimentos não acessíveis à generalidade dos cidadãos, entidades ou profissionais, pelo que se revela particularmente importante acautelar a imparcialidade da actividade pericial, por um lado, e garantir a qualidade e rigor científicos por outro. Pretende o Governo com a presente proposta assegurar a dignidade e a qualidade das perícias médico-legais e forenses, cometendo ao Instituto Nacional de Medicina Legal atribuições e responsabilidade no domínio da creditação e controlo da realização de perícias médico-legais.

[...]

Atente-se que o Instituto Nacional de Medicina Legal consiste numa instituição com natureza judiciária, encontrando-se os peritos abrangidos pelo segredo de justiça bem como por um especial dever de sigilo profissional. Quanto ao regime de prestação de esclarecimentos complementares posteriores à realização da perícia e comunicação do respectivo relatório, estipula-se a regra que a presença do perito em acto ou diligência processual deverá ser, sempre que existam meios para tal, substituída por inquirição por teleconferência ou outros meios técnicos processualmente previstos, com vista à simplificação e celeridade processuais com diminuição de custos.

[...]

A responsabilidade decorrente da actividade pericial desenvolvida ao abrigo das atribuições legais cometidas aos serviços médico-legais preserva a autonomia técnico-científica dos peritos, mas determina a obrigatoriedade de respeito pelas normas, modelos e metodologias periciais em vigor a nível nacional, assegurando desta forma a harmonização pericial do ponto de vista técnico e procedimental.

[...]

Por outro lado, estabelece-se a regra da obrigatoriedade de as perícias médico-legais serem realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal e as situações em que, excepcionalmente, as perícias poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto de Medicina Legal."

2.5 - Em suma, as sucessivas alterações legislativas visaram acompanhar a evolução tecnológica e científica na área das perícias médicas e, pressupondo que a exigida especialização não era acessível à generalidade da actividade médica, assumiram o objectivo de maximizar a qualidade e rigor científicos do meio de prova, garantindo simultaneamente uma especial protecção da imparcialidade dos peritos.

E é significativo que as perícias médico-legais tenham passado a ser deferidas com exclusividade aos serviços de medicina legal quando estes serviços se encontravam organizados por forma a garantir um elevado padrão de qualidade científica e absoluta imparcialidade da actividade pericial, e que, simultaneamente, o legislador tenha vedado aos intervenientes processuais a possibilidade de nomearem consultores técnicos para acompanhar as perícias médico-legais executadas naqueles serviços.

Com efeito, a Lei 45/2004, de 19 de Agosto, depois de no seu artigo 2.º consagrar a regra de as perícias médico-legais deverem ser obrigatoriamente realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, dispôs:

"Artigo 3.º

Requisição de perícias

1 - As perícias médico-legais solicitadas por autoridade judiciária ou judicial são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo, todavia, aplicáveis às efectuadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal.

2 - Por razões de celeridade processual, a requisição dos exames periciais deve ser acompanhada das informações clínicas disponíveis ou que possam vir a ser obtidas pela entidade requisitante até à data da sua realização."

2.6 - É no n.º 1 desta disposição que se encontra a norma impugnada no presente recurso, que veda a possibilidade de o arguido recorrente nomear um consultor técnico para acompanhar as perícias médicas determinadas pela autoridade judiciária e deferidas ao Instituto Nacional de Medicina Legal.

A sua conformidade constitucional é questionada essencialmente pela invocação de que "o direito a indicar um consultor técnico para acompanhar essa perícia nos termos do artigo 155.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - com as limitações que eventualmente decorram dos actos médicos ou de audição psicológica que tenham lugar - é garantia fundamental da defesa, pois permitir-lhe-á verificar a idoneidade, o rigor e os eventuais problemas que o modo de produção das perícias suscite, em que delicadas questões legis artis se poderão colocar".

Com efeito, embora o aludido artigo 155.º, n.º 1, do Código de Processo Penal permita genericamente ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente, e às partes civis, designar "um consultor técnico da sua confiança" para assistir à realização das perícias ordenadas pela autoridade judiciária, o certo é que o citado n.º 1 do artigo 3.º da Lei 45/2004, tal como anteriormente o fazia o artigo 40.º do Decreto-Lei 11/98, veda essa possibilidade no caso de a autoridade judiciária solicitar a perícia médico-legal ao Instituto Nacional de Medicina Legal.

Importa, assim, determinar se a norma viola a Constituição.

2.7 - Deve esclarecer-se desde logo que, como diz o Ministério Público na sua alegação, não pode inferir-se directamente da Constituição a existência de um direito dos participantes processuais a acompanharem os exames médico-legais, realizados no âmbito do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, por si ou através dos consultores técnicos que os coadjuvem nas matérias técnico-científicas envolvidas na prova pericial.

Ocorre, porém, perguntar se a Constituição consente ao legislador liberdade para moldar um regime específico quanto àquelas perícias que devem ocorrer no Instituto Nacional de Medicinal Legal, regime que é mais restritivo quanto ao direito de acompanhar a diligência que é conferido aos intervenientes processuais e, portanto, também ao arguido.

Mas a análise da evolução legislativa que esta matéria sofreu revela que não tem verdadeiro fundamento a alegação do recorrente quanto à não existência de "justificação razoável - técnica, científica ou processual - para essa limitação", omissão que, em seu entender, seria demonstrativa da natureza "desproporcionada e desnecessária" da solução legal.

É, pelo contrário, manifesto que a norma impugnada, ao introduzir uma distinção quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional e gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.

Ora, o Tribunal tem entendido que a proibição constitucional do arbítrio não afasta a possibilidade de a lei permitir distinções, desde que não se apresentem como desrazoáveis ou injustificadas (cf. Acórdão 189/2001, Acórdão do TC n.º 50, a p. 285; Acórdão 31/91, in Diário da República, 2.ª série, de 25 de Junho de 1991), como é manifestamente o presente caso.

2.8 - O recorrente sustenta, porém, que "a limitação que a interpretação normativa em causa consagra ofende o princípio de um processo equitativo".

Não revela o recorrente a razão que permite acusar especificamente a norma de ofender o princípio de um processo equitativo; admite-se, contudo, que a alegação esteja ligada à invocada violação do princípio do contraditório. Com efeito, o recorrente alega que "o direito a indicar um consultor técnico para acompanhar essa perícia nos termos do artigo 155.º, n.º 1, do CPP - com as limitações que eventualmente decorram dos actos médicos ou de audição psicológica que tenham lugar - é garantia fundamental da defesa, pois permitir-lhe-á verificar a idoneidade, o rigor e os eventuais problemas que o modo de produção das perícias suscite". E, prossegue, a mera sindicância a posteriori do resultado das perícias "não garante" o exercício cabal e pleno do exercício do contraditório, o qual há-de compreender, por um lado, a possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, serem apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes, que os peritos acolherão ou não; por outro lado, a possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, ser fiscalizada, através de consultor técnico, a idoneidade da metodologia adoptada. Conclui, assim, que o direito a nomear um consultor técnico é "uma decorrência do princípio do contraditório, que, neste segmento, se traduz na possibilidade de efectivo controlo das provas produzidas, verificando se o seu processo de produção é idóneo e adequado para o fim em causa, o que, em sede de julgamento, tem consagração constitucional, nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição".

Fica, porém, desde logo totalmente por demonstrar que a sindicância a posteriori do resultado das perícias não garante o exercício cabal e pleno do princípio do contraditório, assim como fica por explicar a razão pela qual o exercício do contraditório há-de necessariamente compreender a possibilidade de serem apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes, "que os peritos acolherão ou não"; ou a possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, ser "fiscalizada", através de consultor técnico, a "idoneidade da metodologia adoptada".

São - como se verá - afirmações infundamentadas.

2.9 - Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155.º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa", no seu sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados.

O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes - artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, objectivo que representa uma das finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial - não contraditória - essencialmente disciplinado pelos artigos 152.º, n.º 1, e 154.º, n.º 1, do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária.

2.10 - Esclarecida a verdadeira natureza da actuação dos participantes processuais neste âmbito, é mais fácil compreender que o direito do arguido de acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa exigência do princípio do contraditório. Com efeito, o princípio do contraditório, na sua caracterização mais rigorosa, corresponde a uma concepção próxima do direito de audiência e da oportunidade processual de influenciar, através da sua audição pelo Tribunal, o resultado do processo. Ora, o exercício deste contraditório para os intervenientes processuais - e, portanto, também para o arguido -, resulta aqui do direito que a lei lhes confere de pedir esclarecimentos aos peritos, e até de requerer ao tribunal que determine a realização de nova perícia, ou a renovação da anterior.

Note-se que a lei exige que os peritos apresentem um relatório no qual mencionem e descrevam as suas respostas e conclusões "devidamente fundamentadas". É assim claro que, através dos pedidos de esclarecimento, o arguido pode verificar o método utilizado na recolha da prova e controlar as conclusões que dela os peritos retiraram; assim como lhe permite discutir o valor probatório que há-de ser atribuído, no julgamento, às conclusões encontradas, como aliás, sucede em relação à generalidade dos meios de prova.

É certo que não pode nomear um consultor técnico para acompanhar a perícia médico-legal, no caso de esta se realizar no Instituto Nacional de Medicina Legal, diversamente do que sucede nos casos disciplinados pelo aludido artigo 155.º do Código de Processo Penal. Todavia, as garantias acrescidas de qualidade técnica que são conferidas, somadas aos poderes que a lei garante ao arguido e que acabaram de se descrever, permitem concluir que este regime respeita as exigências do princípio do contraditório aplicado às provas.

É, aliás, assim, que o Tribunal tem caracterizado o princípio do contraditório.

O Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio do contraditório imposto, quanto à audiência de julgamento em processo penal, pelo n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, exige que ao arguido seja garantido o poder de discutir, contestar, ou debater o valor probatório de qualquer prova utilizada na audiência. Diz-se no Acórdão 372/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 13 de Novembro de 2000:

"Acerca do conteúdo essencial do princípio do contraditório escreveu-se logo no parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 17.º vol., pp. 14 e segs.) e, mais tarde, em vários acórdãos deste Tribunal (cf., designadamente os Acórdãos n.os 434/87 e 172/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º vol., pp. 502 e 503, 22.º vol., pp. 350 e 351, respectivamente) que ele está, 'em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar'.

Já sobre a extensão processual do princípio do contraditório dispõe o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição que a ele está subordinada a audiência de julgamento, bem como os actos instrutórios que a lei determinar.

A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório. A este propósito, escreveu-se no Acórdão 434/87 (já citado): 'Na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa, o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal há-de ser a due process of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público'. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114.º, p. 365, o princípio do contraditório se traduz 'ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido'."

Não pode, pois, aceitar-se a acusação de que a norma em apreço viola o princípio do contraditório, nos termos em que o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição o consagra.

2.11 - Invoca, finalmente, o recorrente, a bem da sua tese, que "a diligência em causa - a realização de novas perícias a alguns assistentes - é crucial para a defesa, podendo mesmo ser decisiva para o resultado final do julgamento, o que decorre de os autos não revelarem outra prova que não seja a das declarações desses jovens" e que "essa relevância é ainda substancialmente acrescida em função das deficiências manifestas e graves que se verificam no processo de realização das anteriores perícias, como está reconhecido na decisão instrutória e decorre do parecer do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, bem como dos pareceres médicos entretanto juntos aos autos".

O recorrente utilizou este argumento perante o tribunal comum e repete-o aqui.

É, no entanto, óbvio que esta matéria é irrelevante no âmbito do presente recurso, disciplinado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e com carácter normativo: nele não podem intervir considerações atinentes quer directamente à decisão recorrida, quer indissociavelmente ligadas ao caso concreto. A apreciação do Tribunal incide obrigatoriamente sobre uma norma, isto é, uma regra jurídica aplicada na decisão recorrida, despida das particularidades do caso, e dotada de força normativa geral e abstracta.

2.12 - Cumpre, enfim, concluir pela total improcedência da alegação do recorrente. Na verdade, negar a possibilidade ao arguido recorrente de nomear, nesta fase, um consultor técnico, não ofende as garantias previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição, ou qualquer outra norma constitucional.

3 - Em face do exposto, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007. - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Maria Helena Brito - Rui Manuel Moura Ramos - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1562502.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1959-04-15 - Decreto-Lei 42216 - Ministério da Justiça - Direcção-Geral da Justiça

    Estabelece o sistema de perícias-médico-forenses, definindo a intervenção dos institutos de medicina legal no processo e determinando as formas de recrutamento e selecção dos peritos médicos.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-29 - Decreto-Lei 387-C/87 - Ministério da Justiça

    Reorganiza os Institutos Médico-Legais.

  • Tem documento Em vigor 1998-01-24 - Decreto-Lei 11/98 - Ministério da Justiça

    Estabelece o regime jurídico da organização médico-legal e o âmbito material e territorial de actuação dos serviços médico-legais. Publica, em anexo, os mapas nºs 1 e 2 que fixam, respectivamente, a área das circunscrições médico-legais, por círculos judiciais e a área dos institutos de medicina legal e dos gabinetes médico-legais por comarcas.

  • Tem documento Em vigor 2001-03-26 - Decreto-Lei 96/2001 - Ministério da Justiça

    Aprova a Lei Orgânica do Instituto Nacional de Medicina Legal.

  • Tem documento Em vigor 2004-08-19 - Lei 45/2004 - Assembleia da República

    Estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses.

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