Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - Ilídio Alfredo dos Santos recorre para este Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa, impugnando a conformidade constitucional da norma constante do artigo 40.º do Código de Processo Penal, quando aplicada no sentido "de que a circunstância de a juíza presidente do colectivo intervir em julgamento, depois de ter procedido ao primeiro interrogatório do arguido e lhe ter decretado prisão preventiva, bem como a circunstância de a juíza-adjunta do mesmo colectivo intervir no julgamento, quando, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e, já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção, não violam as garantias de defesa do arguido", regra que, em seu entender, está em desconformidade com os n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
Admitido o recurso, concluiu o recorrente a sua alegação nos seguintes termos:
"I - A Mma. Juíza presidente do tribunal colectivo, ao presidir ao primeiro interrogatório judicial e decidir a prisão preventiva, como medida coactiva a aplicar ao caso, conheceu dos factos indiciários que o arguido vinha denunciado. Analisou-os e valorou-os.
II - Da mesma forma a Mma. Juíza-Adjunta deste tribunal colectivo reexaminou os pressupostos de facto e de direito que foi necessário tomar em conta, valorou-os e decidiu pela manutenção da medida coactiva mais gravosa: prisão preventiva.
III - Posteriormente, a mesma Mma. Juíza decidiu do requerimento de alteração da medida de coacção apresentado pelo arguido, quando já estava formulada a acusação, quando existiam no processo todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria dos crimes imputados ao arguido. Tomou em conta os factos trazidos pelo arguido no seu requerimento e articulou-os com os factos existentes no processo: 'Todavia dos autos resulta, outrossim [...]' (sic) e noutra parte, o mesmo despacho remete para 'os depoimentos de fls. 4 e 5 dos autos, de Eulália Silva e Maria Benedita Silva [...]' (sic).
IV - As Mmas. Juízas não se limitaram a praticar, no processo, actos de mero expediente. Ao invés, tomaram conhecimento de elementos fulcrais dos autos e praticaram actos materiais no processo.
V - Sobre ambas as Mmas. Juízas recaem fortes suspeições de independência (imparcialidade) quando é sabido que ambas já formularam juízos de valor sobre a factologia nuclear do processo.
VI - A intervenção do juiz que, em sede de inquérito ou instrução, não se traduza na realização de meros actos de expediente e implique uma tomada de decisão, com valoração dos indícios recolhidos, designadamente aplicando prisão preventiva ao arguido, fica impedido de participar no julgamento e, se o fizer, verifica-se uma nulidade insanável determinante da anulação do julgamento.
VII - Com o n.º 5 do artigo 32.º da CRP, o que se pretende é que o arguido a ser submetido a julgamento, tenha um julgamento independente e imparcial.
VIII - Para decretar qualquer medida de coacção, o julgador tem de fazer uma avaliação/valoração dos actos de investigação já realizados e dos indícios já recolhidos para optar e determinar qual a gravidade da medida a decretar. Nessa medida, formula um juízo ainda que provisório, que perdurará na sua mente e que tornará mais difícil, ainda que involuntariamente, estar disponível (mente aberta) para uma inversão dos elementos que a prova efectuada em julgamento permita coligir e para efectuar o bom controlo dos fundamentos da ideia de condenar (ainda que involuntariamente).
IX - No espírito dos julgadores perdurará, ainda que por acto involuntário seu, um contacto anteriormente travado com a realidade que vai julgar; ainda que não por acto voluntário do julgador, o arguido (defesa) fica à partida em situação de inferioridade/desigualdade face à acusação, logo no início do julgamento (por isso, o arguido suscitou desde logo o incidente de impedimento).
X - O reexame da medida deve legitimar o impedimento da intervenção do juiz no processo - reanalisar ou reavaliar, reiteradamente, os indícios antes do julgamento mais não é do que criar, em relação a esses factos e valoração respectiva, uma memória, ainda que involuntária, mas que se vai traduzir em desigualdade de armas na audiência de discussão e julgamento.
XI - Tomando por base os actos praticados pela Mma. Juíza-Adjunta pode, seguramente, dizer-se que ela fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a esses aspectos do processo que, objectivamente, e sem prejuízo da independência interior que for capaz de preservar, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.
XII - O julgamento independente e imparcial é, também, uma dimensão do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
XIII - O preceito ínsito no artigo 40.º do CPP, ao permitir o entendimento (restritivo) de que apenas o juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está impedido de participar no julgamento é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.os 5 e 1, da Constituição da República e ainda a de que a sua aplicação, apenas com esse âmbito, é de recusar, por inconstitucional.
XIV - Disposições violadas - artigos 40.º, 41.º, 119.º e 122.º do Código de Processo Penal, 32.º, n.os 1 e 5, da CRP e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser apreciada e declarada com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.º, do CPP, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que decretou a prisão preventiva, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que manteve, e posteriormente indeferiu, a alteração dessa mesma medida coactiva de prisão preventiva e na parte em que permite a intervenção no julgamento de um tribunal colectivo composto pelo juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial, decretou a prisão preventiva (juiz presidente desse mesmo colectivo) e, simultaneamente, pela juíza que lhe manteve e posteriormente indeferiu essa mesma medida coactiva de prisão preventiva, tudo com as consequências legais."
O representante do Ministério Público apresentou alegação em que concluiu:
"Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1 - A norma do artigo 40.º do Código de Processo Penal não é inconstitucional quando interpretada no sentido de permitir a intervenção no julgamento de juiz que na fase inicial do inquérito procedeu ao interrogatório judicial do arguido detido, tendo-lhe aplicado a medida de coacção de prisão preventiva.
2 - Já o é, porém, por violar as garantias de defesa do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, na interpretação em que permite a intervenção de juiz que na fase de inquérito, em momento imediatamente antecedente ao da formulação de acusação, manteve a medida de prisão preventiva, tendo posteriormente, a requerimento do arguido, tomado idêntica posição, analisando os autos e os indícios recolhidos, em data próxima da do início do julgamento.
3 - Termos em que deverá o presente recurso proceder parcialmente."
2 - Cumpre decidir:
2.1 - É impugnada a norma que se contém no artigo 40.º do Código de Processo Penal, resultante da alteração introduzia pelo artigo 134.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção resultante da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, com a seguinte redacção:
"Artigo 40.º
Impedimento por participação em processo
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativo a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido."
O tribunal recorrido retirou do preceito e aplicou na decisão uma norma segundo a qual podem simultaneamente intervir no tribunal colectivo que procedeu ao julgamento o juiz que, durante o inquérito, aplicou ao arguido a prisão preventiva, e ainda um outro juiz que, durante o inquérito, e depois da acusação, manteve a medida. É, no essencial, esta a norma impugnada, contida no 40.º do Código de Processo Penal e aplicada no sentido "de que a circunstância de a juíza presidente do colectivo intervir em julgamento, depois de ter procedido ao primeiro interrogatório do arguido e lhe ter decretado prisão preventiva, bem como a circunstância de a juíza-adjunta do mesmo colectivo intervir no julgamento, quando, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção não violam as garantias de defesa do arguido".
2.2 - A Relação de Lisboa decidiu a questão que lhe foi suscitada da seguinte forma:
"As questões suscitadas pelo recorrente são duas:
a) A da constitucionalidade do artigo 40.º do Código de Processo Penal;
b) A nulidade do julgamento.
Segundo o recorrente o artigo 40.º do Código de Processo Penal, ao permitir o entendimento de que apenas o juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está impedido de participar no julgamento, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.os 5 e 1 da Constituição.
No caso, como vimos, a Exma. Juíza Presidente procedeu ao primeiro interrogatório judicial do arguido e no seu final decidiu aplicar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva. Não teve outra intervenção antes da fase de julgamento.
A Exma. Juíza-Adjunta procedeu, ainda em fase de inquérito, a um reexame dos pressupostos da prisão preventiva, nos termos do artigo 213.º do Código de Processo Penal, mantendo-a; depois apreciou requerimento apresentado pelo arguido, visando a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, que indeferiu, mantendo-o em prisão preventiva.
Do exposto se conclui que nem a Exma. Juíza Presidente do colectivo nem a Exma. Juíza-Adjunta aplicaram e posteriormente mantiveram prisão preventiva do arguido em fase de inquérito ou em instrução. Com efeito a Exma. Juíza Presidente aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, em inquérito, não mais sendo chamada a pronunciar-se nos autos sobre tal medida coactiva, e a Exma. Juíza-Adjunta manteve a prisão preventiva em inquérito, depois de ter reapreciado os seus pressupostos e pronunciou-se, já após o encerramento do inquérito, sobre requerimento apresentado pelo arguido visando a sua revogação, requerimento que indeferiu, pelo que não aplicou sequer a medida de prisão preventiva. Não se mostra, assim, violado o artigo 40.º do Código de Processo Penal, ou dito de outro modo, não se verificam os requisitos exigidos nesse dispositivo legal para declarar impedida qualquer das Exma.s Juízas que constituem o tribunal colectivo que procede ao julgamento. Bem andou pois, pelo menos de um ponto de vista estritamente processual penal, a decisão recorrida ao indeferir os deduzidos impedimentos por participação em processo.
O arguido reconhece esta realidade, mas não se conforma, pois, no seu modo de ver, a 'intervenção do juiz que, em fase de inquérito ou instrução, não se traduza na realização de meros actos de expediente e implique uma tomada de decisão, com valoração dos indícios recolhidos, designadamente aplicando prisão preventiva ao arguido, deve desencadear impedimento de participar no julgamento'. É este entendimento restritivo que quer ver seguido, sustentando que de outro modo se viola o artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição. Segundo o recorrente como as Exma.s Juízas 'não se limitaram a praticar, no processo, actos de mero expediente, antes tomaram conhecimento de elementos fulcrais dos autos e praticaram actos materiais no processo, sobre ambas recaem fortes suspeitas de independência (imparcialidade) quando é sabido que ambas formularam juízos de valor sobre a factologia nuclear do processo. Os juízos, ainda que provisórios, que formularam perdurarão na sua mente, ficando o arguido à partida em situação de inferioridade/desigualdade face à acusação, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento. Ora, o julgamento independente e imparcial é, também, uma dimensão do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição'".
Importa, assim, decidir se a concreta aplicação do artigo 40.º do Código de Processo Penal ofende a Constituição ou o artigo 6.º, n.º 1, da CEDH.
Dispõe o artigo 32.º da Constituição:
"1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
[...]
5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório - artigo 6.º da CEDH, "Direito a julgamento justo":
'Artigo 6.º
Direito a julgamento justo
1 - Na determinação dos seus direitos e obrigações civis ou de qualquer acusação criminal contra si, qualquer pessoa tem direito a um julgamento e audiência pública dentro de um prazo razoável por um tribunal independente e imparcial estabelecido por lei [...]'
A fórmula da primeira parte do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição não traduz uma norma meramente programática. O preceito deve ser interpretado - o artigo 16.º da Constituição a tanto obriga - à luz do denominado processo equitativo, na designação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos ou do due process of law, na fórmula da jurisprudência norte-americana, envolvendo como aspectos fundamentais a consideração do arguido, como sujeito processual a quem devem ser assegurados todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento.
No que ao n.º 5 respeita, cumpre dizer, no essencial, que a estrutura acusatória do processo significa o reconhecimento do arguido como sujeito processual a quem é garantida efectiva liberdade de actuação para exercer a sua defesa face à acusação que fixa o objecto do processo e é deduzida por entidade independente do tribunal que decide a causa.
Cabendo no caso, já que não se trata de crimes particulares, a acusação ao Ministério Público, artigo 283.º do Código de Processo Penal, sujeito processual distinto do tribunal, artigos 10.º e seguintes e 48.º e seguintes do Código de Processo Penal, não vislumbramos a violação do princípio do contraditório: a acusação que fixa o objecto do processo foi deduzida por entidade autónoma e totalmente independente do tribunal. Há uma separação absoluta entre a entidade que acusou e a que julga. As Exma.s juízas não carrearam para os autos elementos de prova susceptíveis de serem utilizados pela acusação, nem sequer dissentiram da medida de coacção - para mais grave - requerida pelo Ministério Público. A intervenção das Exma.s Juízas ocorreu numa veste garantística dos direitos do arguido.
A questão suscitada pelo recorrente parece-nos que se situa com mais propriedade no âmbito da imparcialidade.
Dispõe o artigo 40.º do Código de Processo Penal que 'nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido'.
Já vimos que a actuação concreta das Exma.s Juízas não chega a preencher a previsão do artigo 40.º do Código de Processo Penal, ficando aquém daquilo que o legislador estabeleceu como limite a partir do qual, fundada e objectivamente, há impedimento legalmente tipificado. Por outro lado, o recorrente não lança mão do instituto da recusa do artigo 43.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sabido que pode constituir fundamento de recusa a intervenção do juiz em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º quando correr o risco de ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Nem alega violação da dimensão subjectiva do dever de imparcialidade, v. g. qualquer afirmação produzida pelas Exma.s Juízas susceptível de ser interpretada como pré-juízo desfavorável em violação do dever de neutralidade. Não resulta dos autos que as Exma.s Juízas fizeram, v. g., uso indevido dos elementos a que tiveram acesso nas suas intervenções anteriores à fase de julgamento no processo, v.g. que a Exma. Juíza Presidente se tenha prevalecido contra o legalmente estabelecido das declarações que ouviu ao arguido no primeiro interrogatório.
O recorrente tem todo o cuidado em situar a questão que suscita a nível objectivo, no entendimento que faz dos dispositivos constitucionais. Se esse foi o caminho escolhido pelo arguido podemos concluir que não vislumbrou fundamento subjectivo para suspeitar da sua imparcialidade. De outro modo o arguido teria deitado mão do incidente de recusa.
É conhecida a história legislativa do artigo 40.º do Código de Processo Penal. A redacção inicial foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, na parte em que permitia a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/98, in Diário da República, 1.ª série-A, de 20 de Março de 1998. Logo de seguida, a Lei 59/98, de 25 de Agosto, introduziu na versão originária a alternativa final - ou em que tiver aplicado e posteriormente mantido prisão preventiva do arguido. Por sua vez, a Lei 3/99, de 13 de Janeiro, aditou a expressão no inquérito ou na instrução, visando assim, como esclarece Maia Gonçalves, clarificar o que já antes se afigurava óbvio, pois que o juiz do julgamento não toma posição sobre prova indiciária. Solução contrária conduziria ao absurdo de o juiz do julgamento ter de mudar pelo menos trimestralmente por via da aplicação do artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A alteração legislativa teve em vista sanar o vício de inconstitucionalidade declarado pelo Tribunal Constitucional tendo o legislador ponderado na solução legislativa os pronunciamentos da jurisprudência constitucional seguindo o caminho aberto pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Acontece que da génese legislativa do actual preceito, fez o recorrente tábua rasa, batendo na tecla já reparada pelo legislador, como se ela ainda estivesse gasta.
A questão aqui posta - saber se viola o artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, a interpretação do artigo 40.º do Código de Processo Penal, que permita a intervenção no julgamento da juíza que, na fase inicial do inquérito, procedeu ao interrogatório inicial do arguido e decretou a prisão preventiva desse arguido; saber se viola o artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, a interpretação do artigo 40.º do Código de Processo Penal que permita a intervenção no julgamento de outra juíza que em cumprimento do disposto no artigo 213.º do Código de Processo Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção - não é nova mas recorrente e simétrica àquela que foi colocada e respondida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 338/99 e 297/2003.
Como se acentua no Acórdão 135/88, do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 945 e segs. a independência dos juízes é, antes do mais, uma responsabilidade que terá a 'dimensão' ou a 'densidade' da fortaleza de ânimo do carácter e da personalidade moral de cada juiz. Esta é a vertente subjectiva da imparcialidade, o que se presume segundo o entendimento do TEDH, até que algo indicie o contrário. Isto não invalida a necessidade de existir um quadro legal que 'promova' e facilite aquela 'independência vocacional', garantindo a imparcialidade do julgador e assegurando a confiança geral, a confiança do público naquela imparcialidade. Neste último sentido fala-se de imparcialidade objectiva. Nesta perspectiva o que se impõe indagar é se o juiz em virtude de considerações de carácter orgânico ou funcional não apresenta qualquer pré-juízo ou preconceito em relação à matéria a decidir.
A jurisprudência do TEDH sobre o artigo 6.º, n.º 1, da CEDH reflecte a exigência de um juiz imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva, mas também numa visão objectiva. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2003, deve ser ponderado e avaliado o tipo concreto de intervenção do julgador na fase do inquérito, relevando a sua dimensão (garantística, ou não) e a fase em que ela ocorre. Daí que não releve toda e qualquer intervenção no inquérito. Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 935/96, a solução de estender o impedimento do artigo 40.º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal, como no caso presente pretende o recorrente, apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da lei fundamental. Exemplificando: ordenar o contraditório para a admissão de assistente, proferir despacho a admitir o ofendido a intervir como assistente, será que contaminam a imparcialidade do juiz que os profere de modo a impedir a sua intervenção no julgamento?
Dos sucessivos pronunciamentos do Tribunal Constitucional sobre esta questão há uma linha de raciocínio que se mantém, deles se retirando com interesse para o caso que, é do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do momento em que, dentro dessa fase, ela ocorreu (o mesmo acto pode ser valorado de modo diverso consoante o desenvolvimento da investigação), que há-de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz enquanto julgador.
Refere o Acórdão 297/2003 que, na vigência da versão originária do artigo 40.º do Código de Processo Penal, também o Acórdão 338/99 (inédito), se debruçou sobre questão idêntica à que nos ocupa nos autos, estando em causa uma interpretação da norma constante daquele preceito legal em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes decretou a prisão preventiva. Esse acórdão salienta, desde logo, a diferença substancial entre esse caso e o que determinara a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 40.º do Código de Processo Penal, no Acórdão 186/98 neste último estava em causa uma dupla intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso do Acórdão 339/99, uma intervenção isolada - evidenciando que tal acórdão expressamente alerta 'para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógica argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida' e 'de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva', mas 'ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva'.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que 'não é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição', Acórdão 338/99 - acompanhando o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2003 diremos que o acervo jurisprudencial do Tribunal Constitucional sobre a matéria permite identificar uma orientação clara e firme (em especial, a partir do Acórdão 935/96, se não já do Acórdão 114/95) sobre os imperativos constitucionais em matéria de impedimentos do julgador, decorrentes do princípio do acusatório, em processo penal, assente em critérios que mantêm plena validade e, por isso, devem, também aqui, ser aplicados.
Questiona o recorrente a dimensão normativa do artigo 40.º do CPP que no despacho impugnado indeferiu a verificação de impedimento por intervenção anterior no processo - a Exma. Juíza Presidente decretou a prisão preventiva após primeiro interrogatório; a Exma. Juíza-Adjunta, em cumprimento do disposto no artigo 213.º do Código de Processo Penal, procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação indeferiu um pedido de alteração - importando saber se tal viola as garantias de independência, imparcialidade e objectividade do julgador, asseguradas pelo princípio constitucional que impõe a estrutura acusatória no processo criminal. Como vimos a resposta que o Tribunal Constitucional tem vindo a dar a situações similares é negativa, foi negativa nos Acórdãos n.os 297/2003 e 338/99.
Negativa tem sido também a resposta do TEDH. O TEDH tem procurado estabelecer que não é qualquer acto ou decisão tomada em momento anterior ao do julgamento por parte do juiz de julgamento que tem a virtualidade para fazer surgir uma legítima desconfiança na sua imparcialidade no acto de julgar. Tem entendido este Tribunal que o envolvimento em decisões pré-julgamento não justifica só por si o receio quanto à imparcialidade. As respostas positivas do TEDH, declarando que há violação do artigo 6.º, n.º 1, aconteceram em casos excepcionais: no caso Piersach, o presidente do tribunal criminal belga que julgou o arguido tinha a certa altura sido promotor público e membro do departamento que tinha investigado o caso do requerente e iniciado a acção judicial contra ele. Nos casos De Haan e Castilio Algar porque os juízes nestes casos estavam não meramente a tratar de procedimentos em diferentes fases, mas eram efectivamente solicitados a rever as suas próprias decisões.
A este propósito cumpre lembrar que o TEDH no caso Saraiva de Carvalho c. Portugal entendeu não estar em causa o princípio da imparcialidade, nem no sentido objectivo nem subjectivo, quando o mesmo juiz produz o despacho de pronúncia e integra o julgamento - como acontecia nas querelas no Código de Processo Penal de 1929 a que se reporta o caso - pois o juiz não praticou acto de instrução. Se isso era formalmente assim, o certo é que na vigência do anterior Código de Processo Penal era a pronúncia que delimitava o objecto do processo, tendo o juiz amplos poderes, podendo inclusive pronunciar por crime mais grave que o constante da acusação.
Negativa também será a nossa resposta no caso:
Quanto à única intervenção da Exma. Juíza Presidente em inquérito - ouviu o arguido em primeiro interrogatório, decretando a sua prisão preventiva - é patente que ocorreu numa fase embrionária do processo, sendo um pré-juízo, a roçar quase o preconceito, sustentar que logo aí a Exma. Juíza formulou uma convicção segura sobre a culpabilidade do arguido. Perdoe-se-nos a franqueza tal entendimento demonstra fundamentalmente um desconhecimento das finalidades do processo penal, do que é o inquérito e o julgamento, dos pressupostos de aplicação de medida de coacção e da decisão final, da apreciação crítica da prova e dos deveres acrescidos de fundamentação, como adiante iremos realçar. A sua intervenção teve um condão garantístico, apreciou indícios tendo em vista a aplicação de medida de coacção. Trata-se, no entanto, de uma avaliação perfunctória e que, ao ser realizada numa fase inicial do inquérito - consideravelmente afastada do momento do julgamento - e sem repetições, é insusceptível de afectar a imparcialidade do julgador, como se decidiu no citado Acórdão 338/99, e não mais teve contacto com o inquérito que decorreu sob a direcção do Ministério Público.
A Exma. Juíza-Adjunta limitou-se a verificar se os pressupostos que determinaram a prisão preventiva se tinham alterado ou se mantinham e depois apreciou, indeferindo requerimento do arguido, para alteração da medida de coacção. Não deixa de ser curioso - simplesmente curioso - que o primeiro desses despachos, proferido em 13 de Dezembro de 2005, mereceu do arguido a seguinte consideração: não revela especial esforço na ponderação da alteração da medida aplicada, limitando-se displicentemente a juntar uma adição de frases feitas e estereotipadas, cf. fl. 76 - se assim foi, parece-nos que o recorrente, em vez de se preocupar com a contaminação das julgadoras derivada do contacto com o inquérito, devia antes, perante esse fugaz e displicente contacto - são as suas palavras - ter reagido contra esses despachos em sede de inquérito. Como o não fez, parece-nos que em julgamento, se a coerência é aquilo que julgamos, só pode ter motivos de contentamento pois a Exma. Juíza-Adjunta não terá um conhecimento aprofundado do inquérito.
Como facilmente se intui a questão é diversa, até porque o inquérito, todo o inquérito está acessível às Exma.s Juízas. O que as Exma.s Juízas fizeram e decidiram em inquérito é diverso do que vão ter que decidir em julgamento, não tendo o menor ponto de contacto. Recorrendo aos dizeres do Acórdão 297/2003, do Tribunal Constitucional, as intervenções processuais das julgadoras na fase de inquérito não as converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência, intensidade ou relevância, as conduzem a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a culpabilidade do arguido que firam a sua objectividade e isenção.
Aqui é que bate o ponto. Os mais distraídos ainda não se deram conta que a intervenção do juiz de instrução criminal no inquérito obedece hoje a paradigma diverso do consagrado no Código de Processo Penal de 1929 - acompanhamos, assim, a posição de F. Dias que reconduz esta questão, quando não está em causa o respeito do contraditório, ao instituto da recusa e da escusa. A sua crítica ao entendimento do Tribunal Constitucional parece-nos correcta. Refere ele reportando-se à revisão de 1998 que a AR tendo aceite a alteração do artigo 43.º simultaneamente alterou o texto do artigo 40.º, no sentido de considerar o juiz impedido de intervir 'no julgamento de um processo [...] em que tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido'.
E continua 'isto significa, a meus olhos, uma pobre tentativa impossível - de todos contentar: com a redacção do artigo 43.º reafirma-se a boa doutrina de considerar a intervenção anterior do juiz relativa a actos isolados no quadro das recusas e escusas, não nos impedimentos; com a nova redacção do artigo 10.º pretende salvar-se, em todo o caso, a jurisprudência (errada, em meu parecer, como salientei) do Tribunal Constitucional em matéria de efeito da intervenção judicial na prisão preventiva. O quadro daqui resultante é teleologicamente contraditório e racionalmente insustentável. E tanto mais o é quanto, suponho, ficará definitivamente por se compreender porque fique impedido o juiz que aplique e mantenha a prisão preventiva do arguido, mas já não o que só a aplique (mas não a mantenha, inclusivamente porque o incidente não chega a ser suscitado) ou o que só a mantenha (mas não a tenha aplicado ...); como definitivamente ficará por compreender, atento o fundamento político-criminal subjacente, porque haja o impedimento de valer relativamente à prisão preventiva mas não já, por exemplo, à obrigação de permanência na habitação. O que tudo só mostra uma vez mais, em meu juízo, como em matéria de legislação penal nunca é de bom conselho e rendimento tersiversar sobre proposições político-criminais básicas em favor de compromissos que nem respeitam as finalidades do processo penal, nem as exigências da sua concordância prática [...] a prática pelo juiz de instrução de actos isolados não deve constituir causa de impedimento, mas tão-só, como previa a lei anterior e a proposta de revisão tornou claro, motivo de eventual suspeição. E isto porque só a decisão que o juiz de instrução tome afinal - a de pronunciar ou não pronunciar o arguido - contende directa e necessariamente com o objecto do processo, por isso que também a pronúncia serve para limitar e fixar os poderes de cognição do tribunal de julgamento. Só um mecanismo como o da suspeição [...] responde satisfatoriamente - por que depende de uma avaliação das circunstâncias concretas da intervenção do juiz de instrução num momento anterior ao julgamento - à razão de ser da não intervenção daquele no julgamento: a garantia da imparcialidade e da objectividade da decisão final, a garantia, afinal, que está mesmo no cerne da acusação.
Por mais que me esforce, continua a não conseguir divisar que direitos, liberdades e garantias do arguido serão de outro modo mais justamente defendidos, face à tensão em que estes têm de existir e à composição em que têm de entrar com as necessidades de realização do ius puniendi estadual e com as exigências da sua eficiência e efectividade num processo justo e equitativo. Em vão continuo a perguntar-me que sentido garantístico para as liberdades do arguido pode ter que um juiz de instrução que aplique e mantenha na fase de inquérito uma prisão preventiva requerida pelo Ministério Público [...] fique automaticamente impedido de participar no futuro julgamento. Como continuo a pensar que afirmar que o juiz fica deste modo [...] preso a pré-juízos constitui um prejuízo tão grande, pelo menos, como pretender que o juiz do julgamento ficará agarrado ao pré-juízo que lhe advém do facto de já outro juiz, o de instrução, ter pronunciado o arguido.
No fundo - e aqui julgo eu divisar o essencial e o mais preocupante -, uma solução que veja em toda e qualquer intervenção do juiz de instrução causa de impedimento mal encobrirá a atribuição àquele de um papel que o Código, na formulação de 1987, intencionalmente decidiu não lhe conferir: um papel que vai muito para além do que lhe é fixado no artigo 17.º e se mostra mesmo, a diversos títulos, com ele incompatível. Uma solução, esta, dizendo-o franca e abertamente, que deixaria a descoberto um outro modelo de juiz de instrução, através do qual se lograria dar razão ao velho e gasto requisitório da submissão hierárquica e funcional, no processo, do Ministério Público ao juiz de instrução; e que constituiria uma via ínvia [...] de subverter o modelo e a estrutura basicamente acusatórias do processo penal português.'
Finalmente dizer que qualquer intervenção do juiz em sede de inquérito, que não se traduza em actos de mero expediente contraria e põe em causa a imparcialidade do juiz é amalgamar realidades distintas, quão distintas são as finalidades do inquérito e do julgamento e finalisticamente diversas as intervenções que ocorrem numa e noutra fase. São diversos os papéis do juiz de instrução criminal e do juiz do julgamento E ter olhos e teimar em não querer ver que hoje existe um reforço das garantias do arguido contra uma possível contaminação do juiz do julgamento, em consequência de intervenções pontuais em inquérito, realidade nem sempre ponderada ou simplesmente esquecida, mesmo nas decisões do Tribunal Constitucional, como realça F. Dias. É que hoje não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, artigo 354.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. As declarações que o arguido presta em primeiro interrogatório não são um meio de prova. A produção da prova, que deva servir para fundar a convicção do julgador, tem de ser realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova. Por outro lado, o juiz tem de motivar a sua convicção não valendo hoje a sua íntima convicção, pelo que o arguido está a coberto das puras subjectividades dos julgadores. O artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, exigindo ainda a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal. Não basta mostrar os meios de prova através do seu elenco é preciso demonstrar por que razão se chegou a determinado resultado. E nessa tarefa importa ter presente que o paradigma da íntima convicção, relativamente ao qual com propriedade se podia dizer - não escutando [o juiz] senão os ditames da consciência - que a culpa estava na cabeça do juiz, está felizmente ultrapassado, sendo incompatível com o figurino que a nossa Constituição desenhou ao processo penal. Hoje vigora o sistema da livre apreciação da prova, artigo 127.º do Código de Processo Penal, que pressupõe e exige uma indicação dos meios de prova e um complementar exame crítico, de modo a que permita avaliar o porquê da decisão e o processo lógico mental que possibilitou a decisão da matéria de facto. A motivação da decisão do tribunal não é nem pode ser mais um acto de fé, um puro exercício de íntima convicção. A convicção tem de ser uma demonstração feita com absoluto respeito pelas regras e princípios legais pertinentes em sede de prova, de acordo com as regras da experiência e da lógica. Em conclusão na motivação tem o juiz de explicar por que considerou provados uns factos e não provados outros, em termos claros e precisos, enfim de prestar as devidas contas.
Neste contexto e com esta exigência o perigo de contaminação é reduzido. E não se vislumbra no caso concreto.
Em conclusão: não viola o artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, a interpretação do artigo 40.º do Código de Processo Penal, que permita a intervenção no julgamento da juíza que, na fase inicial do inquérito, procedeu ao interrogatório inicial do arguido e decretou a prisão preventiva desse arguido, nem a interpretação do mesmo artigo 40.º que permita a intervenção no julgamento de outra juíza que em cumprimento do disposto no artigo 213.º do Código de Processo Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção, nem se verifica nulidade insanável."
2.3 - A questão que nos ocupa tem sido estudada a propósito do dever de imparcialidade que, por força do princípio retirado do artigo 32.º da Constituição, marca especialmente a actividade dos tribunais criminais.
A verdade, porém, é que a imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no artigo 32.º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2.º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se uma exigência de não suspeição subjectiva do juiz; a actividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.
Todavia, do citado artigo 32.º retira-se, para além disto, uma exigência de imparcialidade objectiva do tribunal, decorrente da estrutura acusatória do processo penal, circunstância que impede que o juiz do julgamento esteja envolvido na actividade instrutória, quer carreando para os autos elementos de prova susceptíveis de serem utilizados pela acusação, quer envolvendo-se em actos que possam significar dirigir a investigação. Esta exigência de imparcialidade objectiva do juiz justifica-se do ponto de vista das garantias da defesa, é certo, mas igualmente pela necessidade de proporcionar ao juiz as condições de isenção requeridas pelo exercício das suas funções. Assim se explica que seja confiado ao próprio juiz o dever de se declarar impedido, a par de se permitir aos restantes sujeitos processuais a iniciativa de suscitar no processo o reconhecimento do impedimento do juiz (artigo 41.º do Código de Processo Penal).
É no domínio desta exigência que se coloca a questão suscitada pelo recorrente, que acusa a Relação de Lisboa de ter aplicado uma norma inconstitucional, retirada do 40.º do Código de Processo Penal, segundo a qual podem simultaneamente intervir no tribunal colectivo que procedeu ao julgamento uma juíza que, durante o inquérito, aplicou ao arguido a prisão preventiva e, ainda, uma outra juíza que durante o inquérito, e depois da acusação, manteve a medida, norma essa que ofenderia o artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição.
2.4 - O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, conforme amplamente refere a Relação de Lisboa na decisão em causa.
Começou por entender (Acórdão 186/98, in Diário da República, 1.ª série-A, de 20 de Março de 1998) que o artigo 40.º do Código de Processo Penal, na sua anterior versão, na parte em que permitia a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, era inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República.
Para justificar o juízo de inconstitucionalidade, o citado Acórdão 186/98, recorrendo fundamentalmente ao texto de um dos três acórdãos invocados como fundamento para o pedido de generalização então apreciado, o Acórdão 935/96 (Diário da República, 2.ª série, de 11 de Dezembro de 1996), considerou que "ao consagrar o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório -, o que, pois, a lei fundamental pretende assegurar é que a entidade que julga (o juiz) não tenha funções de investigação e acusação: esta última tarefa há-de ser levada a efeito por uma outra entidade (em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do feito penal, há-de o juiz mover-se dentro dos limites postos pela acusação". Salientou-se que, como se sabe, o que está em causa é a garantia de um "julgamento independente e imparcial", e que essa independência e imparcialidade há-de ser traduzida em regras que também a tornem acessível à comunidade em geral, como forma de garantir a confiança social na administração da justiça.
Assim sendo, e considerando ainda que o impedimento previsto no artigo 40.º, na parte relevante, se destinava a evitar que, no julgamento, o juiz pudesse ser influenciado pelo conhecimento anteriormente adquirido sobre os factos em causa no processo, entendeu-se não respeitar os princípios constitucionais acima indicados uma norma que permitisse a participação, no julgamento, de um juiz que interviera na fase do inquérito de forma particularmente intensa. Considerou-se como tal a intervenção que se traduziu em decretar a prisão preventiva, findo o interrogatório judicial do arguido e, em, já na fase final do inquérito, "já bem perto da data da acusação, confirm[ar]a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão", decidiu-se, "a norma do artigo 40.º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no princípio do acusatório, constante do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição" (transcrição feita pelo Acórdão 186/98 do Acórdão 935/96).
No Acórdão 29/99 (Diário da República, 2.ª série, de 12 de Março de 1999), julgou-se não inconstitucional "a norma do artigo 40.º do Código de Processo Penal, na versão dada pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, quando interpretada no sentido de não prescrever sempre o impedimento de intervenção no julgamento do juiz que determinou, anteriormente, a manutenção da prisão preventiva aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213.º do mesmo Código".
Estava então em causa a manutenção da prisão preventiva decretada por outro juiz "no segundo reexame trimestral, após a dedução da acusação na fase final do inquérito", que se entendeu que "não conduz, por si só, a essa intensa convicção de que o crime foi praticado nem exige, constitucionalmente, pelo seu grau, a criação de obstáculos formais a que, por essa via, se produzam pré-juízos relativamente à culpabilidade do arguido".
No Acórdão 338/99 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), julgou-se não inconstitucional a norma, contida na mesma versão do artigo 40.º, "quando interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão preventiva, não tendo tido ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso do inquérito".
O Acórdão 423/2000 (Diário da República, 2.ª série, de 20 de Novembro de 2000), tomando já como referência a redacção dada ao artigo 40.º pelo Decreto-Lei 58/95, de 25 de Agosto, julgou não inconstitucional a norma dele constante "quando interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, determinou a respectiva libertação, mediante a adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, medidas de coacção que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e marcou o dia para o julgamento".
Frisando que nos anteriores acórdãos se tinha entendido "repetidamente" que "um juízo de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento do juiz que participou numa fase anterior, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência, intensidade ou relevância - sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência", observou-se que "a simples decisão pela manutenção do quadro existente em termos de medidas de coacção, no momento do recebimento da acusação, não é suficiente para, por si só ou em conjugação com a intervenção anterior, conduzir à formulação de uma dúvida séria, razoável, objectiva sobre as condições de isenção e imparcialidade do juiz ou a gerar uma desconfiança geral da comunidade sobre essa mesma isenção e imparcialidade, termos em que não se verifica a alegada violação inconstitucionalidade".
Mais recentemente, no Acórdão 297/2003 (Diário da República, 2.ª série, de 3 de Outubro de 2003), o Tribunal manteve o entendimento de julgar não inconstitucional a norma do mencionado artigo 40.º do Código de Processo Penal interpretada no sentido de permitir a intervenção em julgamento do juiz que, no início do inquérito, interrogou os arguidos que lhe são apresentados detidos e decretou prisão preventiva desses arguidos, autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária. Neste acórdão, sublinhando que as duas intervenções do juiz - interrogatório do arguido e autorização da busca tiveram uma função predominantemente garantística que visaram assegurar a tutela dos direitos fundamentais dos arguidos, o Tribunal ponderou:
"Em suma, as intervenções processuais do julgador na fase de inquérito nem o converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência, intensidade ou relevância, o conduzem a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a culpabilidade dos arguidos que firam a sua objectividade e isenção.
O artigo 40.º do Código de Processo Penal, na interpretação que levou o acórdão recorrido à recusa da sua aplicação, e em contrário do aí decidido, não ofende, pois, o artigo 32.º, n.os 1 e 5 da Constituição."
2.5 - Pode, portanto, concluir-se que o Tribunal Constitucional tem mantido o entendimento de que a prática de actos isolados durante o inquérito não constitui, em princípio, causa de quebra objectiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.
O recorrente baseia a acusação de inconstitucionalidade da norma em circunstâncias objectivas que nada têm a ver com a pessoa das juízas envolvidas, e nunca suscitou o incidente previsto no artigo 43.º do Código de Processo Penal, que permite recusar a intervenção de um juiz quando houver desconfiança quanto à sua imparcialidade. É, em seu entender, o exercício da actividade de juiz na fase anterior do processo que determina o impedimento, na medida em que a juíza presidente procedeu ao primeiro interrogatório do arguido, decretando prisão preventiva, e uma juíza-adjunta, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção.
Sustenta, portanto, que a prática de determinados actos gera, automaticamente, o impedimento.
Mas esse não é, como se viu, o entendimento que o Tribunal tem perfilhado.
Uma das juízas procedeu ao primeiro interrogatório do arguido que lhe foi apresentado detido. Na sequência dessa diligência, e mediante prévia promoção do representante do Ministério Público no Tribunal de Mirandela no mesmo sentido, determinou a prisão preventiva do arguido. Não voltou a ter intervenção no inquérito. Não pode, nos termos já expostos, julgar-se quebrada a sua imparcialidade.
A segunda juíza procedeu à reapreciação oficiosa da prisão preventiva aplicada ao arguido (13 de Dezembro de 2005) concluindo "que se mantêm inalterados os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de coacção", razão pela qual determinou "que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva". Em 13 de Janeiro de 2006 o arguido apresentou um requerimento a solicitar a revisão da medida de prisão preventiva. A juíza apreciou o requerimento e indeferiu-o. Ora, estas intervenções não indiciam que a juíza se tivesse envolvido na actividade instrutória, carreando para os autos elementos de prova susceptíveis de serem utilizados pela acusação, ou envolvendo-se em actos que possam significar dirigir a investigação; ao invés, tiveram uma função predominantemente garantística, visando assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido e não podem ter-se como geradores da quebra do dever de imparcialidade que impende sobre o julgador.
Mas o caso em análise apresenta, ainda, um lado curioso e original: é que são duas as juízas que, integrando o colectivo que procedeu ao julgamento do recorrente, praticaram actos jurisdicionais durante o inquérito. Ora, se isoladamente consideradas, nenhuma das juízas se pode considerar impedida de participar no julgamento, que dizer de um tribunal colectivo em que ambas participam, e que, portanto, dois dos seus três elementos praticaram os ditos actos?
A resposta não poderá deixar de ser negativa: os impedimentos não se somam, porque obviamente atingem um determinado juiz e é isoladamente em relação a cada juiz, a cada elemento do tribunal colectivo, que deve aferir-se da existência das circunstâncias impeditivas de participação no julgamento.
Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
3 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 40.º do Código de Processo Penal, na versão resultante da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, enquanto interpretada no sentido de permitir a intervenção simultânea, no julgamento, de juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a sua prisão preventiva e de juiz que, no decorrer do inquérito, manteve a prisão preventiva e, posteriormente à acusação, indeferiu o pedido da sua revogação.
Consequentemente, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida quanto à questão de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007 - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Maria Helena Brito - Rui Manuel Moura Ramos - Artur Maurício.