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Acórdão 52/2007, de 6 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, segundo a qual aquele que tem a guarda de facto de uma criança não tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal do menor

Texto do documento

Acórdão 52/2007

Processo 134/2005

Acordam no Tribunal Constitucional:

No Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas foi, em 13 de Julho de 2004, proferida sentença em acção de regulação do exercício do poder paternal instaurada pelo Ministério Público, na qual - na parte que interessa agora considerar -, depois de dar por assente que a menor Esmeralda Porto, nascida em 12 de Fevereiro de 2002, tinha sido entregue pela mãe, em 28 de Maio do mesmo ano, ao casal constituído por Luís Manuel Matos Gomes e Maria Adelina Cantador Lagarto "para que seja adoptada plenamente pelos mesmos, integrando-se na sua família", e que estes desde então têm tratado da menor, de tal forma que a segurança social requerera em Março de 2004, naquele Tribunal, a confiança judicial da menor com vista à sua adopção pelo referido casal, decidiu o seguinte:

"Nestes termos, o Tribunal decide regular o exercício do poder paternal relativamente à menor Esmeralda Porto:

1) A menor Esmeralda Porto fica confiada à guarda e cuidados do pai [Baltazar Santos Nunes], que exercerá o poder paternal;

2) A menor beneficiará de acompanhamento efectivo e periódico de natureza psicológica/pedopsiquiatra, com a frequência indicada pelos médicos/técnicos designados, encarregando-se a equipa de Tomar do IRS de providenciar, urgentemente, pelo início e desenrolar do acompanhamento;

3) Num primeiro período de seis meses a contar da data da decisão, a progenitora [Aidida Porto Rui] poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos domingos, quinzenalmente, no período entre as 10 e as 19 horas;

4) Decorridos seis meses, a mãe poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos fins-de-semana, quinzenalmente, desde as 10 horas de sábado até às 19 horas de domingo;

5) No dia de aniversário da menor esta tomará uma refeição principal com cada um dos progenitores;

6) Relativamente ao Natal, a menor passará a noite de 24 para 25 na companhia de um progenitor e o dia 25 com o outro, o mesmo sucedendo com a noite e dia de Ano Novo, alternadamente;

7) A título de alimentos para a menor, a mãe contribuirá com a quantia de Euro 100 mensais, a entregar à mãe [pai?] por intermédio de cheque, transferência bancária, ou vale postal, até ao dia 8 de cada mês;

8) O pai da menor receberá os abonos de família e todos os demais subsídios a que a menor tenha direito;

9) Em Janeiro de cada ano, o montante referido no n.º 7) será actualizado em função do índice de aumento de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística."

Notificados da decisão, os aludidos Luís Manuel Matos Gomes e Maria Adelina Cantador Lagarto dela pretenderam recorrer para a Relação de Coimbra, através de requerimento apresentado em 16 de Julho de 2004.

A pretensão foi negada ainda no Tribunal de Torres Novas por despacho do seguinte teor:

"Os recorrentes Luís Manuel Matos Gomes e mulher não são titulares da relação material controvertida que versa sobre o exercício do poder paternal relativo à menor Esmeralda Porto.

Por conseguinte, não têm legitimidade para impugnarem a decisão que regulou o exercício do poder paternal.

Por tal motivo, indefiro o recurso interposto pelos mesmos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do CPC.

Custas no incidente pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

Notifique."

Inconformados, os interessados reclamaram para o presidente da Relação de Coimbra, nos seguintes termos:

"O recurso de apelação interposto sufraga-se nos artigos 680.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 4.º, alínea i), da Lei 147/99, de 1 de Setembro, ex vi do artigo 147.º-A da Organização Tutelar de Menores.

Resulta das disposições legais referidas o "direito de participação" de quem tem a guarda de facto do menor e a legitimidade para recorrer das "pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão [...] ainda que não sejam partes na causa".

Assim, não pode deixar de entender-se que o "direito de participação" inclui o direito de recurso de quem tem a guarda de facto da menor, num processo de regulação do poder paternal que decide retirar-lhes a criança e entregá-la ao pai biológico, que a mesma nem conhece.

Aliás, a legitimidade para recorrer é garantida expressamente pelos artigos 123.º, n.º 2, 104.º, n.º 1, e 105.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo "a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem".

Ora, a sentença a quo de que se pretende apelar considerou provados os seguintes factos:

"28 - A menor vive actualmente com Luís Manuel Matos Gomes e Maria Adelina Cantador Lagarto [...]

30 - [...] a entrega da criança, o que aconteceu em 28 de Maio de 2002 [...]

35 - Em Março de 2004 a segurança social requereu neste Tribunal a confiança judicial da menor, com vista a futura adopção, ao casal composto por Luís Comes e Maria Adelina Lagarto."

E, expressamente, refere:

"A menor encontra-se, de facto, à guarda de terceiras pessoas" (p. 11).

"Em termos económicos é o referido casal que oferece melhores condições à menor, não se questionando também que o mesmo possua um enorme afecto por esta, tratando-a como se sua filha fosse" (p. 16).

"Atenta a circunstância de a mesma ter estado desde os 3 meses a viver com o casal a quem foi entregue" (p. 17).

"[R]elativamente à pendência do processo de confiança judicial com vista a futura adopção [...] os presentes autos demonstraram também, indirectamente, a inexistência dos pressupostos de adoptabilidade."

Dúvidas não restam, pois, que os recorrentes vêm exercendo a guarda de facto sobre a menor, entendida como a relação que se estabelece entre a criança e a pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente (e exclusivamente) as funções essenciais (e as demais) próprias de quem tem responsabilidades parentais [artigo 5.º, alínea b), da Lei 147/99, de 1 de Setembro], desde que a menor tinha 3 meses de idade, e que a sentença em causa os prejudica directa e efectivamente.

Porém, o Mmo. Juiz a quo "indeferiu" o recurso interposto pelos recorrentes, alegando a sua ilegitimidade, com base nos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e condenou-os em custas no valor de 2 UC.

É pois patente que o recurso não foi admitido uma vez que, certamente por lapso, o Tribunal a quo não atendeu ao disposto no artigo 147.º-A da Organização Tutelar de Menores, que manda aplicar os princípios previstos na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, entre os quais se encontra o da participação de quem tiver a guarda de facto do menor, que inclui o direito de recurso.

Este normativo legal sobrepõe-se ao estatuído no Código de Processo Civil, pois lex specialis derrogat lex generalis.

Aliás, a não admissão do recurso com fundamento nos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é uma interpretação que implica a inconstitucionalidade destas normas, por violação dos artigos 20.º, 13.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa, concernentes ao direito de acesso aos tribunais e ao princípio da igualdade e ao dever de protecção da criança.

Na realidade, está em causa impedir o direito de intervenção processual de quem tem a guarda de facto do menor, negando de forma injustificada a possibilidade de actuação ou expressão dos interesses que se pretenderam prosseguir com a introdução do artigo 147.º-A da Organização Tutelar de Menores, pela Lei 133/99, de 28 de Agosto.

Acresce que o artigo 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil prevê o indeferimento do requerimento de interposição do recurso, mas não define as situações elencadas, não sendo fundamento bastante para motivar o indeferimento.

E, o artigo 680.º do Código de Processo Civil, que estabelece a regra geral sobre "quem pode recorrer", alarga a legitimidade para o recurso a terceiros que sejam directa e efectivamente prejudicados pela decisão, através do n.º 2. Note-se que, a título de exemplo, Lebre de Freitas indica "podem figurar-se os casos de terceiros destinatários de uma decisão judicial que ordene a entrega de documentos em seu poder" (Código de Processo Civil Anotado, vol. 3, p. 22).

Logo, terceiros com legitimidade para recorrer hão-de ser também os destinatários de uma decisão judicial que ordena a entrega de uma menor sobre quem tem a guarda de facto.

Então, a decisão sub judice é contra legem, tanto por violar o n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, quanto por ignorar o artigo 147.º-A da Organização Tutelar de Menores.

Resulta portanto que os recorrentes têm legitimidade para interpor o recurso de apelação.

Em face do exposto, forçoso é concluir que o recurso interposto terá de ser admitido.

Concluindo:

Tendo o Mmo. Juiz a quo proferido despacho que indeferiu o requerimento de interposição do recurso de apelação interposto da sentença proferida nos autos, com fundamento em ilegitimidade dos recorrentes, é manifesto que ocorre aqui lapso por não atender às normas dos artigos 680.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 4.º, alínea i), da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo aplicável ex vi do artigo 147.º-A da Organização Tutelar de Menores e erro de interpretação e aplicação dos artigos 680.º, n.º 1, e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Digne-se V. Ex.ª admitir a presente reclamação e não a ter por impertinente ou dilatória e, em consequência, julgá-la procedente e ordenar o recebimento do recurso interposto."

Todavia, a reclamação foi indeferida por despacho do presidente da Relação de Coimbra, com o seguinte teor:

"No 2.º Juízo da Comarca de Torres Novas, a Digna Procuradora-Adjunta intentou acção de regulação do exercício do poder paternal da menor Esmeralda Porto contra seus pais Baltazar Santos Nunes e Aidida Porto Rui.

Proferida a sentença que regulou o referido poder paternal, surgiram Luís Manuel Matos Gomes e mulher, Maria Adelina Cantador Lagarto, pretendendo interpor recurso daquela sentença, recurso que não foi recebido com o fundamento de aqueles cidadãos não serem titulares da relação controvertida e, portanto, não terem legitimidade para o efeito.

Daí a presente reclamação dos mesmos cidadãos, pretendendo obter o recebimento do recurso, alegando que a menor se encontra, de facto, à sua guarda, como se vê da sentença, o que lhes confere legitimidade para o recurso nos termos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável por força do artigo 147.º-A da OTM. De qualquer forma, consideram-se directa e efectivamente prejudicados pela decisão, pelo que, mesmo não sendo partes na causa entendem ter legitimidade para recorrer ao abrigo do disposto no artigo 680.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

O despacho foi sustentado.

Cumpre decidir:

Começando pelo segundo argumento invocado pelos reclamantes, há desde já que salientar que a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar "directa e efectivamente" terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante.

Logo, não tem manifestamente aplicação o invocado artigo 680.º, n.º 2.

Como é claramente improcedente a invocação do disposto no artigo 147.º-A da OTM.

É certo que a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo reconhece às pessoas que têm à sua guarda os menores o direito de certa intervenção nos respectivos processos.

Só que, o artigo 147.º-A ao dispor que "são aplicáveis aos processos tutelares cíveis os princípios orientadores das intervenções previstas na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, com as devidas adaptações", não está a regular a intervenção das partes ou terceiros no processo, mas a intervenção do próprio Tribunal.

Na verdade, o preceito não está a fazer mais que a mandar aplicar, com as necessárias adaptações, no âmbito da OTM, os "princípios orientadores de intervenção" do Tribunal consagrados no artigo 4.º da Lei de Protecção, como se vê claramente da própria epígrafe deste preceito, e não mais do que isso, cuja alínea i) o Tribunal cumpriu ao ouvir os reclamantes na audiência.

Claudica, assim, a pretensão dos reclamantes de obter o recebimento do recurso.

Se eles entenderem que a menor está em perigo, poderão acautelar os seus interesses, seus, naturalmente, da menor, e não dos próprios reclamantes, através de algum dos procedimentos previstos naquela Lei, enquanto ela estiver à sua guarda.

Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que regulou o poder paternal.

Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela, constitucional do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.

Nestes termos, indefiro a reclamação.

Custas pelos reclamantes, em que se inclui o custo das certidões a fls. 12 e seguinte (já contada) e a fls. 46 e seguintes (a contar)."

Sempre inconformados, os reclamantes pretenderam recorrer deste despacho para o Tribunal Constitucional, apresentando nos autos o seguinte requerimento:

"Luís Manuel Matos Gomes e sua mulher, Maria Adelina Cantador Lagarto, tendo sido notificados da decisão de 5 de Setembro de 2004, que lhes nega a legitimidade para impugnar a sentença proferida no processo 1149/03.3TBTNV-B, 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, dela pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

Com este recurso visa-se a apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 680.º e 687.º do Código de Processo Civil, tal como interpretados e aplicados na decisão em causa.

Em cumprimento do disposto no artigo 75.º, n.º 2, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, consignam que se consideram violados os artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa, concernentes ao princípio da igualdade, ao direito de acesso aos tribunais e ao dever de protecção da criança, conforme suscitado na reclamação dirigida ao venerando presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.

Não pode deixar de referir-se desde já, a propósito do afirmado na decisão sub judice "nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível e nem sequer tentou, antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes", que os reclamantes tiveram intervenção nos autos.

Nomeadamente, no início do processo, juntaram procuração passada a advogado e, posteriormente, em 20 de Janeiro de 2004 foi junto substabelecimento pela mandatária.

Em 26 de Fevereiro de 2004 foi a advogada notificada da data designada para a audiência de discussão e julgamento. E, tendo estado presente em 7 de Maio de 2004, foi impedida pelo Mmo. Juiz de 1.ª instância de intervir.

Finalmente, em 13 de Julho de 2004, foram os requerentes notificados da sentença.

Digne-se pois V. Ex.ª considerar interposto o recurso e ordenar os ulteriores termos do processo."

Também esta pretensão não foi atendida. Com efeito, o presidente da Relação de Coimbra, autor do despacho recorrido, decidiu:

"Luís Manuel Matos Gomes e mulher, Maria Adelina Cantador Lagarto, pretendem, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, recorrer para o Tribunal Constitucional da minha decisão de 15 de Setembro, pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade dos artigos 680.º e 687.º do Código de Processo Civil nos termos em que foram aplicados naquela decisão.

Ora, nessa mesma decisão escrevi:

"Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes."

Procurando rebater esta afirmação, dizem estes que no início do processo juntaram procuração a advogado e, depois, substabelecimento, tendo a advogada sido notificada para o julgamento e a sentença; tendo estado presente nesse julgamento, foi impedida de nele intervir pelo Sr. Juiz.

Ora, a junção da procuração e notificações são absolutamente inócuas. Não conferem nem retiram direitos.

Relevante é o facto de os reclamantes terem sido impedidos de intervir no julgamento, sem que a isso tivessem reagido. Dessa forma, tornou-se definitiva, porque transitou, a decisão que lhes negou legitimidade para intervir no processo.

Assim sendo, por falta de legitimidade já declarada definitivamente e por manifesta improcedência, em obediência ao disposto no artigo 76.º, n.º 2, da citada Lei 28/82, não recebo o recurso.

Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC."

Reclamaram então os mesmos interessados para o Tribunal Constitucional, que, por Acórdão de 19 de Janeiro de 2005 decidiu:

"Em causa está, pois, saber se o recurso que os recorrentes pretendem interpor para o Tribunal Constitucional deve ou não ser recebido. Não foi recebido no Tribunal recorrido, recorde-se, por ter sido recusada aos recorrentes legitimidade para este efeito, para além de se haver julgado manifestamente improcedente o recurso interposto.

O recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como o presente, exige, entre outros, a verificação dos requisitos que constam do artigo 72.º da mesma LTC; pode recorrer quem tenha essa faculdade face à lei processual no domínio da qual foi proferida a decisão recorrida. Na verdade, aos recorrentes foi negada a faculdade de impugnarem, perante um tribunal superior, a sentença que decidiu a matéria em causa, visto que lhes não foi reconhecida, face a uma determinada interpretação dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, legitimidade processual bastante. Isto é, o Tribunal comum entendeu que uma determinada norma, constante dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, proíbe aos recorrentes a faculdade de recorrer da sentença proferida. Acontece que os recorrentes acusam de inconstitucional precisamente essa norma. Então, se forem impedidos de impugnar perante o Tribunal Constitucional a decisão que, aplicando a norma que acusam de inconstitucional, lhes retira a faculdade de intervir no processo, fechar-se-ia um círculo que de forma absoluta os impediria não só de intervir no processo - impugnando a decisão jurisdicional tomada -, como ainda de contestar a conformidade constitucional da norma por força da qual lhes é recusada aquela possibilidade. O que, como é bom de ver, é inadmissível.

Na verdade, destinando-se o recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a sindicar decisões que "apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo", deve ter-se por assente que - observados os restantes requisitos deste tipo de recurso - pode usar este mecanismo todo aquele que é vencido quanto à questão de inconstitucionalidade na decisão recorrida, incluindo o interessado a quem foi, por via daquela decisão, negado o direito de intervir na lide.

No domínio da legitimidade para recorrer exige-se ainda que o recurso só possa ser interposto por quem haja suscitado a questão da inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Pretende-se, através deste requisito, que a questão haja sido oportunamente colocada ao tribunal recorrido por forma que este a deva conhecer e, ainda, que a suscitação da questão tenha sido feita pela parte ou interveniente processual que se apresenta a recorrer. Os reclamantes visam questionar a norma, retirada dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo a qual aquele que exerce a guarda de facto sobre uma criança não tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do poder paternal do menor.

Esta questão foi suscitada pelos recorrentes na reclamação que apresentaram ao presidente da Relação de Coimbra, quando invocaram que uma tal interpretação normativa determinava a violação dos artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição, e foi conhecida e decidida no despacho de que pretendem recorrer.

Há ainda que reconhecer que a norma questionada foi efectivamente aplicada, como sua ratio decidendi, na decisão recorrida.

Estão assim verificados os requisitos formais que condicionam a admissibilidade do recurso.

Resta dizer que, ao contrário do que se afirma no despacho reclamado, não poderá adiantar-se um julgamento de manifesta improcedência da suscitada questão de inconstitucionalidade, pelo menos, como diz o Ministério Público, "numa análise puramente liminar e perfunctória", como é aquela que, neste momento processual, deve ocorrer.

Assim, decide-se deferir a reclamação, determinando o recebimento do recurso interposto pelos reclamantes."

O recurso foi então admitido, com subida imediata e efeito suspensivo, por despacho do presidente da Relação de Coimbra.

No Tribunal Constitucional todos os interessados apresentaram alegações.

Os recorrentes concluíram a sua alegação dizendo:

"1 - O presente recurso é interposto do douto despacho do Exmo. Sr. Juiz Desembargador presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Setembro de 2004, que decidiu a reclamação apresentada pelos ora recorrentes, ao abrigo dos artigos 680.º e 687.º do Código de Processo Civil, negando-lhes legitimidade para recorrer.

2 - Desta decisão não cabe recurso ordinário, conforme disposto no artigo 689.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumprindo-se assim o pressuposto do artigo 70.º, n.os 2 e 3, da Lei 28/82, que torna admissível o recurso para este venerando Tribunal Constitucional.

3 - O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma lei.

4 - As normas cuja constitucionalidade se pretende que o venerando Tribunal Constitucional aprecie são as dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na interpretação restritiva que lhes foi dada pela decisão recorrida, mantendo o sentido atribuído pela reclamada decisão da 1.ª instância.

5 - Esta interpretação restritiva nega legitimidade para recorrer da sentença que regula o exercício do poder paternal a quem detém a guarda de facto da menor, desde que esta tinha 3 meses de idade, e com quem a menor estabeleceu relação de filiação, como é o caso dos recorrentes.

6 - As normas ou princípios constitucionais considerados violados foram o princípio da igualdade, o direito de acesso à justiça e a uma tutela judicial efectiva e o dever de protecção da infância, consagrados nos artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.

7 - A peça processual em que os recorrentes oportunamente suscitaram a questão da inconstitucionalidade foi a da já referida reclamação, apresentada ao abrigo do artigo 688.º do Código de Processo Civil.

8 - A questão processual suscitada está na sede da legitimidade, existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada inconstitucional, como se sustenta.

9 - O n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, interpretado em conformidade com os preceitos constitucionais, confere legitimidade a quem detenha a guarda de facto da menor para recorrer de decisões que regulem o exercício do poder paternal sobre a mesma.

10 - O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva dos artigos 680.º e 687.º do Código de Processo Civil, denegando legitimidade para recorrer a quem não é parte no processo.

11 - O artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa assegura "a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos". Daí que seja inconstitucional a interpretação restritiva que nega o direito de recurso aos recorrentes quanto a uma decisão que directa e gravemente os afecta, impossibilitando-os de assegurar os direitos da menor de quem têm a guarda de facto a um desenvolvimento físico, moral e psíquico harmonioso, num ambiente familiar afectivo, educativo e responsável sem descontinuidades graves, e a acautelar o interesse da menor quanto à manutenção do convívio familiar (filial) que estabeleceu com os recorrentes.

12 - Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que tal interpretação restritiva é inconstitucional, por violação do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, tendo os recorrentes a guarda de facto da menor, e exercendo na prática todos os poderes-deveres característicos do poder paternal, deve ser-lhes reconhecida a faculdade de recorrerem contenciosamente de todas e quaisquer decisões judiciais que afectem a menor, com vista ao seu desenvolvimento integral e à protecção contra o abandono.

13 - A interpretação em crise viola também o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que sem qualquer motivo ponderável nega o direito de recurso a quem de facto exerce o poder paternal e detém a guarda de facto da menor.

14 - Aos recorrentes que detêm a guarda de facto da menor e a representam há-de ser reconhecido o direito de recurso de uma sentença que faz prevalecer os direitos dos progenitores sobre os direitos da criança, em violação da Convenção dos Direitos da Criança que vigora no direito português desde a sua ratificação em 21 de Outubro de 1990.

15 - Com base no exposto, os recorrentes recorreram da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas que atribuiu o poder paternal ao progenitor/requerido.

16 - O Tribunal pronunciou-se e depois o Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão da 1.ª instância, no sentido da ilegitimidade dos recorrentes, com base no argumento de estes não serem partes no processo, defendendo a tese de que os artigos 680.º e 687.º do Código de Processo Civil circunscrevem a quem seja parte no processo a legitimidade para recorrer.

17 - Tal interpretação restritiva é violadora dos artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa, conforme supradesenvolvido.

18 - O recurso não é manifestamente infundado, uma vez que se pretendem assegurar os direitos da menor que está à guarda de facto dos recorrentes, impedindo que lhe sejam causados danos graves e irreversíveis.

19 - Em face do exposto, deve ser declarado por este venerando Tribunal Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo a estas normas torna-as inconstitucionais, só deixando de o ser se interpretadas com o sentido de os recorrentes, na situação jurídica de detentores da guarda de facto da menor, com confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém e estando pendente o processo de confiança judicial da menor aos recorrentes, instaurado por aquele órgão da segurança social, têm legitimidade para recorrer da decisão que atribui o exercício do poder paternal a terceiro.

Termos em que devem as normas constantes dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro), interpretadas no sentido de denegar legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma criança, no âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de terem manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, ser julgadas inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, 13.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa. E, consequentemente, ordenar-se a reformulação da decisão a quo, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade."

Por seu lado, a recorrida Aidida Porto Rui concluiu:

"A) Vêm os recorrentes peticionar que o venerando Tribunal Constitucional se pronuncie pela inconstitucionalidade da interpretação restritiva dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil feita no sentido em que denegam legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma criança, no âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de terem manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, viola assim os artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa.

B) Com o devido respeito, entendemos não assistir razão à pretensão dos recorrentes.

C) Nos termos do artigo 680.º, n.º 1, do Código de Processo Civil o direito de recorrer é atribuído apenas e em princípio a quem for parte principal na causa, e a título excepcional é reconhecido também às pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.

D) Ora, conforme foi expendido pelo Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, os aqui recorrentes não são parte na causa, não foram afectados pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentaram antes dessa decisão qualquer intervenção nos autos ou suscitaram qualquer questão em que tivessem sido vencidos.

E) Efectivamente os aqui recorrentes não foram parte na causa.

F) Acresce que o n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil apenas prevê a hipótese de poderem recorrer da decisão as pessoas que não sejam parte na causa mas que foram directa e efectivamente prejudicadas pela decisão.

G) O referido prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, isto é, tem de ser real e jurídico.

H) Em nosso entendimento os recorrentes não poderão considerar-se prejudicados pela decisão.

I) Na douta sentença foram dados como provados factos que interessam para a decisão do presente recurso, designadamente:

Que em Março de 2004 a segurança social requereu no Tribunal a confiança judicial da menor com vista a futura adopção ao casal composto por Luís Gomes e Maria Adelina Lagarto; e

Que tal processo se encontra suspenso a aguardar a decisão a proferir nos autos de regulação do poder paternal.

J) Acresce que, consta também da douta sentença, ambos os progenitores desejam assumir o exercício do poder paternal.

L) E que a factualidade provada não permite concluir pela existência de qualquer causa justificativa de inibição ou limitação ao exercício do poder paternal relativamente aos progenitores.

M) Efectivamente, só excepcionalmente e perante situações sérias devidamente comprovadas é que o Tribunal não deve entregar a menor aos pais mas a terceira pessoa.

N) Tendo em conta a factualidade assente na douta sentença e que conduziu a que a menor ficasse confiada à guarda do pai, e, com o devido respeito, não vislumbramos que possa considerar-se que os aqui recorrentes têm legitimidade para interpor recurso no âmbito de um processo de regulação de poder paternal, por alegadamente exercerem a guarda de facto sobre uma criança.

P) Entendem os recorrentes que os referidos normativos, na interpretação feita, são inconstitucionais, dado serem detentores da guarda de facto da menor com confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Santarém, estando pendente o processo de confiança judicial da menor aos recorrentes.

O) Acontece que, tendo sido proferida decisão nos autos de regulação do poder paternal e proferido despacho a ordenar a entrega da menor ao pai,

P) Não detêm os recorrentes nenhum especial poder de guarda sobre a menor, nem se vislumbra que o mesmo lhes possa ser reconhecido.

Q) Ora, os recorrentes não podem considerar-se como directa ou efectivamente prejudicados pela sentença que regulou o poder paternal, desde logo porque não são titulares, por não lhes ter sido conferido qualquer direito efectivo no que concerne ao exercício do poder paternal relativamente à menor.

R) Por todo o exposto deve manter-se na íntegra o douto despacho recorrido.

S) O qual não violou qualquer normativo legal.

Com o que e mui douto suprimento de VV. Exmas. se fará justiça!"

O recorrido Baltazar Santos Nunes diz, a concluir:

"A - Não está ferida de inconstitucionalidade a decisão que interpreta os artigos 680.º, n.º 2, e 687.º, n.º 3, do CPC no sentido e interpretação dadas de negar legitimidade para recorrer da sentença que regulou o exercício do poder paternal a quem detém consigo a menor, e vem exercendo funções próprias dos pais contra a vontade destes e à margem de qualquer decisão administrativa ou judicial que lhes a haja confiado.

B - Tal sentença, acautelando o superior interesse da menor, não prejudica qualquer interesse jurídico legalmente protegido dos recorrentes, nem viola os artigos 20.º, n.º 1, 13.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que,

Deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida."

Finalmente, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou alegação em que conclui:

"1.º É inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, conjugado com o princípio da protecção da infância, afirmado pelo artigo 69.º da Constituição, a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, que denega legitimidade para recorrer aos detentores da "guarda de facto" de certa menor, exercida a solicitação e com o expresso consentimento da mãe biológica, relativamente à decisão que, no âmbito da acção de regulação do poder paternal entre os progenitores biológicos, decidiu sem que fosse admitida qualquer intervenção dos primeiros - atribuir o poder paternal ao pai biológico, implicando o decidido a abrupta e radical separação do núcleo familiar em que, praticamente desde o nascimento, a menor se integrara.

2.º Na verdade, tal interpretação num caso em que foi determinada a suspensão da instância, por prejudicialidade, do processo da confiança judicial, com vista à adopção pelos detentores da referida "guarda de facto" da menor - priva em absoluto estes de qualquer oportunidade para expressarem no processo a sua valoração de qual seja a melhor forma de alcançar o interesse da criança e, por essa via, influenciar a decisão que - tendo como matriz essencial o superior interesse da criança - irá regular o destino desta, determinando em que núcleo familiar se terá de integrar.

3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."

2 - Importa decidir.

2.1 - Deve começar-se por precisar o âmbito do presente recurso.

No requerimento de interposição do recurso sustentam os recorrentes que visam obter a apreciação da conformidade constitucional dos artigos 680.º e 687.º, n.º 3, do Código de Processo Civil enquanto negam legitimidade para recorrer, no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal, a quem tem a guarda de facto de uma criança, norma que seria violadora dos princípios da igualdade, do direito de acesso aos tribunais e do dever de protecção da criança, constantes dos artigos 13.º, 20.º e 69.º da Constituição da República.

A competência do Tribunal Constitucional cifra-se na verificação da conformidade constitucional das normas efectivamente aplicadas nas decisões dos outros tribunais, não lhe cabendo averiguar se tais decisões interpretaram correctamente as normas impugnadas.

Em causa está o despacho do presidente da Relação de Coimbra que, indeferindo a reclamação formulada pelos recorrentes contra o despacho de não admissão de recurso que pretendiam interpor da sentença do Tribunal de Torres Novas, confirmou esse despacho, essencialmente com a seguinte fundamentação:

"[A] decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar "directa e efectivamente" terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante. Logo, não tem manifestamente aplicação o invocado artigo 680.º, n.º 2. [...]

Se eles [recorrentes] entenderem que a menor está em perigo poderão acautelar os seus interesses, seus, naturalmente, da menor e não dos próprios reclamantes, através de algum dos procedimentos previstos naquela lei, enquanto ela estiver à sua guarda.

Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que regulou o poder paternal.

Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou, antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes."

O despacho indeferiu, assim, a reclamação formulada pelos recorrentes e manteve a decisão tomada pelo Tribunal de Torres Novas de não os admitir a recorrer da sentença que culminou o processo de regulação de poder paternal.

É, no entanto, manifesto que a Relação indeferiu a pretensão dos recorrentes com base no n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, no entendimento de que a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar directa e efectivamente terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na causa são os da menor.

Haverá, por isso, que reduzir o âmbito do recurso à norma contida no n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, preceito que, subordinado à epígrafe "Quem pode recorrer", tem a seguinte redacção:

"1 - Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.

2 - Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias."

2.2 - O questionado despacho do presidente da Relação de Coimbra, que confirmou o despacho de não admissão de recurso proferido no Tribunal de Torres Novas, foi proferido no âmbito de uma acção de regulação do exercício do poder paternal.

Tais processos, fundamentalmente regulados pela OTM no âmbito dos processos tutelares cíveis (título II da lei respectiva) são, desde a versão originária da mesma, expressamente qualificados como processos de jurisdição voluntária (artigo 150.º). Isto implica, desde logo, que se apliquem as regras constantes dos artigos 1409.º e seguintes do Código de Processo Civil, regras que ampliam o poder de cognição do tribunal em matéria de facto e no domínio da prova (artigo 1409.º, n.º 2), atribuem ao juiz o poder de julgar segundo critérios de conveniência e oportunidade (artigo 1410.º) e permitem alterar as medidas decretadas quando as circunstâncias o justifiquem, sem que a força de caso julgado própria das decisões judiciais o impeça (artigo 1411.º, n.º 1, sempre do Código de Processo Civil).

Essas regras, diferentes em aspectos fundamentais das que vigoram para a jurisdição contenciosa, explicam-se por visarem disciplinar processos em que a lei confere ao tribunal o poder de prosseguir da maneira mais adequada (discricionariamente, neste sentido) um determinado interesse, como se de uma actividade materialmente administrativa (e só orgânica ou formalmente jurisdicional) se tratasse.

Como explicam A. Varela, J. M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, 1985):

"Entre os processos especiais previstos na legislação vigente, contam-se os processos de jurisdição voluntária (artigos 1409.º e seguintes).

Nos processos de jurisdição contenciosa, que constituem a regra, há um conflito de interesses entre as partes (credor e devedor; proprietário e possuidor; locador e locatário, etc.) que ao tribunal incumbe dirimir, de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo. Nos processos de jurisdição voluntária há um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes.

[...] Nos processos de jurisdição voluntária [...] a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de negócios - negócios que a lei coloca sob a fiscalização do Estado através do poder judicial."

O tribunal é, assim, colocado perante a necessidade de adoptar as medidas mais adequadas à prossecução do interesse que lhe cabe acautelar; neste sentido, não se espera que adopte a posição exigida no comum dos processos, valorando de igual forma os interesses de que as partes são portadoras.

Na verdade, por muito que exista controvérsia no âmbito da jurisdição voluntária, acima do interesse de cada um dos envolvidos nessa controvérsia está aquele que justifica a inclusão do processo no âmbito da jurisdição voluntária. Como diz Castro Mendes (Direito Processual Civil, AAFDL, 1980, p. 79):

"II - A jurisdição voluntária resulta do facto de um ou mais interesses particulares se poderem encontrar em situações anómalas que, sem serem de litígio, justificam que a prossecução dos mesmos interesses seja condicionada pela intervenção de uma entidade, ela em si desinteressada. Para fazer as vezes de tal entidade, recorre a ordem jurídica aos tribunais.

Assim, a distinção entre jurisdição contenciosa e voluntária assenta neste ponto: a jurisdição contenciosa tem por fim a justa composição de litígios; a graciosa tem por fim a regulamentação de situações anómalas de interesses mas que não são litígios.

III - Antigamente, era muito comum a distinção entre os dois tipos de jurisdição ser feita da seguinte forma: a contenciosa desenrolar-se-ia entre pessoas que não estão de acordo, inter nolentes ou inter invitos; a graciosa, entre pessoas que estão de acordo, inter volentes. Assim, o artigo 1.º, § 1.º, do mais antigo Código de Processo Civil, de 1876, define: "O processo é contencioso quando mantém os direitos que são contestados; gracioso quando regula os actos jurídicos sem contestação de parte."

Ora, não é a verificação ou não verificação de controvérsia (conflito de opiniões), nem sequer a sua possibilidade ou impossibilidade, que caracteriza os dois tipos de jurisdição e processo. Pode não haver controvérsia em processo contencioso, se o réu não contestar ou até confessar logo o pedido; pode nem a poder haver, em certos casos excepcionais (artigo 3.º, n.º 2, e, por exemplo, artigo 394.º); pelo contrário, pode haver controvérsia em processo gracioso. Assim, por exemplo, se o marido quiser pedir ao tribunal suprimento do consentimento da mulher para vender um bem imóvel (artigos 1682.º-A, n.º 1, e 1684.º, n.º 3, do Código Civil), intenta um processo de jurisdição voluntária (artigos 1425.º e seguintes) que a mulher pode contestar (artigo 1425.º, n.os 1 e 2); e a possibilidade de contestação verifica-se em muitos outros processos deste tipo.

Nas providências relativas aos filhos, pode haver falta de acordo ou controvérsia; o juiz resolve "de harmonia com os interesses do menor" (artigo 180.º da Organização Tutelar de Menores) e só dele.

A distinção resulta não da existência ou não existência de controvérsia mas da existência ou não existência de litígio. Os processos de jurisdição voluntária - e isso os caracteriza - não têm por objecto uma situação anómala de interesses, diferente de um litígio."

No caso da regulação do exercício do poder paternal, é, naturalmente, o interesse do menor afectado que deve ser prosseguido pelo tribunal; o interesse de qualquer outra pessoa afectada (seja de qualquer dos pais, seja de outra pessoa relacionada com a controvérsia) é sempre colocado em segundo plano.

Só que o interesse prosseguido com o processo de regulação do poder paternal não pode, naturalmente, ser utilizado para definir quem tem legitimidade processual, seja para intervir num processo tutelar cível como este, seja para recorrer da decisão que nele venha a ser proferida, quer tenha, quer não tenha, sido parte em 1.ª instância.

2.3 - Observada a questão pelo prisma deste interesse de natureza processual, importará então - saber se é conforme à Constituição a regra extraída do n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, segundo a qual aquele que exerce a guarda de facto de uma criança não tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal do menor.

Ora, no julgamento desta questão, é inevitável fazer apelo ao parâmetro constitucional que garante a tutela jurisdicional efectiva, constante do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, o qual assegura "a todos" o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

O Tribunal Constitucional tem interpretado esta garantia no sentido da proibição de regimes adjectivos que em absoluto retirem a uma das partes o seu direito de defesa. Conforme se diz no Acórdão 440/94, in Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1994:

"Ora, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. [Constituição da República Portuguesa Anotada], pp. 163 e 164, no âmbito normativo daquele preceito constitucional deve integrar-se ainda "a proibição da 'indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses".

Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o Acórdão 86/88, Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo "entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder 'deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras' (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit., p. 364)"."

O despacho recorrido interpretou o n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil no sentido de que, não sendo o interesse dos recorrentes que está em causa no processo de regulação do poder paternal, mas o da menor que lhes foi entregue pela mãe, não se pode considerar que sejam "directa e efectivamente" prejudicados pela decisão de regulação do poder paternal entre os pais biológicos.

Ora, não obstante a particular feição que a causa em concreto tomou, a decisão proferida tem como objectivo a entrega da menor ao pai, retirando-a aos recorrentes, sem que, aliás, se lhes tenha conferido qualquer direito de convívio com a menor, ainda que condicional e hipotético. Ora, impedir, nesta hipótese, o direito de intervenção processual dos recorrentes que pretendem ter essa intervenção significaria negar de forma absoluta a possibilidade de estes expressarem o seu interesse, defendendo-o no processo em igualdade de circunstâncias dos outros intervenientes processuais. Acresce que, como salienta o Ministério Público nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, foi suspensa a instância no processo de confiança judicial da menor, iniciado com vista à adopção da criança pelos ora recorrentes, por se considerar que o processo de regulação do poder paternal era prejudicial.

Ficaria, portanto, violado de forma inaceitável, do ponto de vista constitucional, o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, se, nestas circunstâncias, lhes não for permitido intervir no processo para impugnar a decisão que ordenou a entrega da menor ao pai, retirando-a aos recorrentes.

Tanto é o suficiente para poder já concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada.

3 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 680.º do Código de Processo Civil, segundo a qual aquele que tem a guarda de facto de uma criança não tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal do menor;

b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2007. - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Maria Helena Brito - Rui Moura Ramos - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1550752.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1996-09-25 - Decreto-Lei 180/96 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil, altera o Decreto-Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro que o reviu e republicou e rectifica algumas inexactidões na republicação do Código em anexo ao citado diploma.

  • Tem documento Em vigor 1999-08-28 - Lei 133/99 - Assembleia da República

    Altera (quinta alteração) o Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, em matéria de processos tutelares cíveis.

  • Tem documento Em vigor 1999-09-01 - Lei 147/99 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de protecção de crianças e jovens em perigo.

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