Assento 6/99
Processo 45675. - Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.º 2, e seguintes do Código de Processo Penal, do acórdão certificado de fl. 6 a fl. 8, com os fundamentos seguintes:
1) No acórdão recorrido considerou-se que o artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei 123/96, de 14 de Abril, ao revogar o penúltimo parágrafo do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Estrada, abrange a punição da condução não habilitada de motociclos;
2) No Acórdão da Relação do Porto de 22 de Abril de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência, XVII, 2.º, p. 255, decidiu-se que a revogação operada pelo referido artigo 12.º, n.º 1, não despenaliza a condução de motociclos sem carta, continuando ela a ser punida pelo artigo 46.º, n.º 1, do Código da Estrada;
3) Há, assim, oposição de julgados transitados e proferidos no domínio da mesma legislação.
O recurso foi admitido, atenta a legitimidade da recorrente e os fundamentos alegados.
Oportunamente, por Acórdão de 17 de Março de 1994 julgou-se existente a mencionada contradição entre os acórdãos referidos.
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, notificando-se o arguido e o Ministério Público neste Supremo Tribunal.
O primeiro ofereceu o mérito dos autos e o segundo, através do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, emitiu parecer muito douto concluindo que «o conflito de jurisprudência existente entre os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra e do Porto de 31 de Março (processo 16/93) e de 22 de Abril de 1992 (processo 212) deve ser resolvido por acórdão, com o valor atribuído pelo artigo 445.º do Código de Processo Penal, para o qual se propõe a seguinte redacção:
'A punição pela condução não habilitada de motociclos continua a ser, até à plena entrada em vigor do regime criado pelo Decreto-Lei 117/90, de 5 de Abril, a prevista no penúltimo parágrafo do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Estrada.'»
No recurso em apreço é manifesto que, como resulta do acórdão citado que recaiu sobre a questão preliminar, se verifica a oposição mencionada no artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porquanto no acórdão recorrido se decidiu que o artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei 123/90, de 14 de Abril, ao revogar o penúltimo parágrafo do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Estrada, abrange a punição da condução não habilitada de motociclos.
E no acórdão fundamento entendeu-se que a punição pela condução não habilitada de motociclo continua a ser, até à plena entrada em vigor do regime criado pelo Decreto-Lei 117/90, de 5 de Abril, a prevista no penúltimo parágrafo do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Estrada.
Daqui se infere que a mesma questão de direito sobre que assentaram as soluções dadas pelos dois acórdãos determinaram «soluções opostas», sendo certo que os ditos acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e tendo ambos transitado em julgado.
A questão controvertida, como salienta no seu judicioso parecer o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto deste Supremo Tribunal de Justiça, consiste em saber se era punível e, em caso afirmativo, qual a sanção da condução de motociclos por indivíduos não habilitados, posteriormente à revogação do penúltimo parágrafo do artigo 46.º do Código da Estrada, pelo n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei 123/90, de 14 de Abril, e até à entrada em pleno vigor do Decreto-Lei 117/90.
Para a decisão importa considerar o disposto no artigo 46.º do Código da Estrada, os artigos 1.º a 12.º do Decreto-Lei 123/90, de 14 de Abril, os artigos 46.º e 57.º do Decreto-Lei 117/90, de 5 de Abril, bem como o artigo 58.º deste último diploma.
O Decreto-Lei 268/91, de 6 de Agosto, alterou os artigos 46.º e 47.º do Código da Estrada, mas, nas matérias relativas à habilitação legal para conduzir, não pretendendo modificar, salvo quanto aos tractores agrícolas, a punição da condução.
Portanto, o que está em causa é a interpretação do artigo 12.º, n.º 1, referido, que revogou uma «norma sancionatória», o que significa que uma eventual restrição do seu campo de aplicação pode implicar a extensão das situações incriminadas e daí, como salienta o Ministério Público no seu parecer, eventualmente, conduzir, como resultado, a uma interpretação extensiva.
Neste ponto convém lembrar os quatro métodos tradicionais de interpretação, nomeadamente:
O gramatical - que se limita à averiguação do sentido da lei no seu significado linguístico;
O sistemático - que atenta à situação que o preceito a interpretar ocupa no contexto sistemático;
O histórico - que decorre do contexto histórico geral em que a lei surgiu;
O teológico - que releva os bens jurídicos que o legislador pretende proteger, bem como os valores ético-sociais que determinaram a criação do preceito legal.
Entre nós, alguns dos mais destacados penalistas como Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Cavaleiro de Ferreira, citados por Simas Santos, «difundiram o recurso a todos os meios de interpretação (gramatical, sistemático, histórico e teológico)»; valorizaram sobretudo este último: a interpretação decorrente do conhecimento do bem jurídico protegido, da captação material do sentido das leis.
E, citando Ferrara, como ele concluíram que a interpretação extensiva mais não é que a «reintegração do fundamento legislativo» e que se deve aplicar a todas as normas, mesmo às de carácter formal ou excepcional.
Assentes estes princípios, importa considerar o sentido e alcance, face aos antecedentes do n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei 123/90.
Com efeito, a propósito da sinistralidade rodoviária e da necessidade de a diminuir, o Conselho de Ministros tomou a Resolução 2/89, a 5 de Janeiro.
Então, aí expressar, além do mais, o seguinte:
«4 - As acções de conduta à sinistralidade nas estradas envolvem, necessariamente, áreas tão importantes como a legislação, a informação e divulgação gerais, a fiscalização e sancionamento das infracções, a informação estatística, a formação, habilitação e reciclagem dos condutores, a homologação, controlo e características dos veículos, a composição, construção e questão das infra-estruturas e do trânsito, o sistema de rápido auxílio a tratamento dos acidentados.»
Daí resolveu:
«6 - Promover a concretização das seguintes medidas:
...
b) Agravamento sensível das penalidades, adaptando-as às circunstâncias, tendo em atenção especial as que têm por objecto as manobras perigosas, e contemplando a imobilização dos veículos;
...
f) Melhoramento da formação dos condutores de veículos de duas rodas.»
Foi na sequência dessa resolução que foi pedida e concedida autorização legislativa pela Lei 31/89, de 23 de Agosto, tendo sido, nos termos do artigo 1.º desta última lei, «concedida ao Governo autorização para legislar em matéria de segurança rodoviária» e «no uso da autorização legislativa concedida nos termos daquele artigo 1.º pode o Governo:
Definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis, motociclos, ciclomotores e velocípedes, nas vias públicas, por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito;»
visando aquela autorização legislativa sancionar a condução de quaisquer veículos na via pública ou equiparada por quem se não encontrar devidamente habilitado para o efeito.
De tudo isto resulta que a citada resolução teve, assim, em consideração os elevados índices de sinistralidade rodoviária e a adopção de meios prudentes para reforçar a segurança, quer preventivamente, quer pela via do agravamento das punições.
E foi no uso desta autorização legislativa que o Conselho de Ministros em 15 de Fevereiro de 1990 aprovou o Decreto-Lei 117/90, que estabeleceu o novo regime jurídico aplicável aos motociclos, ciclomotores e velocípedes, e o Decreto-Lei 123/90, que estabeleceu diversas medidas sancionatórias no âmbito da circulação automóvel.
Ora, estes dois diplomas legais prevêem e punem a condução sem carta das categorias dos veículos a que respeitam:
O primeiro, no artigo 46.º, quanto a motociclos, ciclomotores e velocípedes;
O segundo, no artigo 2.º, quanto a automóveis ligeiros e pesados.
Estes dois diplomas contêm normas revogatórias.
Assim, o artigo 55.º do Decreto-Lei 117/90 dispõe que se mantêm em vigor as disposições do Código da Estrada e demais legislação complementar que não contrariem o que nele se dispõe, e o artigo 12.º do Decreto-Lei 123/90 revoga expressamente o artigo 46.º, n.º 1, penúltimo parágrafo, do Código da Estrada, e ambos se adequam com a directiva do Conselho de 29 de Julho de 1991, respeitante à carta de condução.
Nestes termos, temos de concluir pela necessidade de interpretar restritivamente o n.º 1 do artigo 12.º do Decreto-Lei 123/90.
O Ministério Público no seu parecer alerta, porém, para o seguinte:
«Estando em causa a interpretação de um preceito que revoga uma norma sancionatória, a restrição do seu campo de aplicação acaba por implicar a extensão das situações incriminadas e assim reafirmar uma interpretação extensiva, sendo que estamos colocados no domínio penal.»
Como escreveu Simas Santos, in Código Penal de 1982, I, pp. 46-47, no dizer de S. Marques da Silva («Algumas notas sobre a consagração dos princípios da legalidade e da jurisdicionalidade da Constituição da República Portuguesa», in Estudos sobre a Constituição, vol. II, p. 261) e Sousa Brito (A Constituição e o Código Penal, Breves Reflexões, p. 19), do artigo 29.º da Constituição da República resulta a proibição, não só da analogia, mas também da interpretação extensiva...
Mas o autor do projecto na comissão revisora ponderou que, «diversamente do que acontece no Código de 1886, não se proibiu a interpretação extensiva. A única razão que se tem invocado contra isto é a dificuldade de distinguir a analogia da interpretação extensiva [...]». (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 190, p. 265.)
Mas, voltando ao sentido da autorização legislativa já vimos que esta visava permitir um mais eficaz combate à sinistralidade estradal e a infracções relacionadas, com a condição de veículos automóveis (incluindo os ciclomotores), no sentido de agravar as penalidades e mesmo a natureza do ilícito que passou de contravenção a crime.
Ora, se se acolher outra interpretação que não a que vai proposta, teríamos que, nessa medida, despenalizando a condução de ciclomotor por indivíduo não habilitado, o Governo não tinha respeitado o alcance estabelecido, com clareza, na lei de autorização.
E, porque se trata de matéria de reserva relativa da Assembleia da República, seria tal norma organicamente inconstitucional.
Nesta conformidade, face ao que expendido fica, acorda-se em resolver este conflito de jurisprudência surgido entre os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra e do Porto de 31 de Março, processo 16/93, e de 22 de Abril de 1992, processo 212, com o valor atribuído pelo artigo 445.º do Código de Processo Penal, com a redacção proposta pelo Ministério Público, e que é a seguinte:
«A punição pela condução não habilitada de motociclos continua a ser, até à plena entrada em vigor do regime criado pelo Decreto-Lei 117/90, de 5 de Abril, a prevista no último parágrafo do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Estrada.»
Dada a jurisprudência agora fixada, e ao abrigo do preceituado no n.º 2 do artigo 445.º do Código de Processo Penal, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua reformulação em harmonia com o determinado nestes autos, a efectuar pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com intervenção dos mesmos Exmos. Desembargadores, se possível, uma vez que o reenvio contemplado naquele número não tem a natureza do «reenvio próprio», consignado nos artigos 431.º e 436.º daquele Código.
Sem tributação.
Lisboa, 13 de Maio de 1999. - Álvaro José Guimarães Dias - António Luís de Sequeira Oliveira Guimarães - Dionísio Manuel Dinis Alves - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - José Pereira Dias Girão - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - António Sousa Guedes - António Abranches Martins - Carlindo Rocha da Mota e Costa - Hugo Afonso dos Santos Lopes (vencido, por entender como correcta a jurisprudência expressa no acórdão recorrido) - José Damião Mariano Pereira - Norberto José Araújo de Brito Câmara (votei a decisão) - João Henrique Martins Ramires - Manuel Maria Duarte Soares - Armando Acácio Gomes Leandro - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Luís Flores Ribeiro - Florindo Pires Salpico.