Acórdão 330/99
Processo 352/99
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
1 - O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores, nos termos do n.º 2 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 57.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer, em processo de fiscalização preventiva, a apreciação da constitucionalidade de todas as normas do Decreto da Assembleia Legislativa Regional n.º 15/99, sobre extracção de areia no mar dos Açores, decreto recebido no respectivo Gabinete, no dia 5 de Maio de 1999, «para efeitos de assinatura como decreto legislativo regional, nos termos do artigo 233.º, n.º 2, da Constituição» (requerimento entrado neste Tribunal Constitucional na data de 13 de Maio de 1999).
Fundamenta o pedido nas seguintes razões, assim sintetizadas:
a) Em primeiro lugar, sucede que «o decreto em questão invade a competência legislativa reservada da Assembleia da República, em particular a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, desrespeitando, por consequência, um dos limites negativos do poder legislativo regional, consagrado no n.º 4 do artigo 112.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, isto é, o limite das matérias reservadas aos órgãos de soberania», porquanto «a Assembleia Legislativa Regional dos Açores regulou matéria referente ao 'regime dos bens do domínio público', a qual, pertencendo à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, somente pode ser disciplinada por lei desta ou por decreto-lei autorizado» (segue-se a referência à jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto ao entendimento de que «se encontram reservadas aos órgão de soberania, 'todas as matérias que reclamem a intervenção do legislador nacional'»);
b) «No caso, porém, não é sequer necessário recorrer à referida 'noção extensiva de matérias reservadas aos órgãos de soberania'. Na verdade, afigura-se evidente que a normação contida no projecto de Decreto Legislativo Regional 15/99 consubstancia 'regime dos bens do domínio público', tendo a Assembleia Legislativa Regional actuado numa matéria em que o alcance da reserva de competência da Assembleia da República se situa no 'nível mais exigente, em que toda a regulamentação legislativa da matéria é reservada'. Por outras palavras, a reserva vale para toda a intervenção legislativa no âmbito da definição e do regime dos bens do domínio público. A interpretação conjugada da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º e da parte final do n.º 2 do artigo 84.º revela mesmo que a lei definidora dos bens do domínio público deve, conjuntamente com o regime daquele, estabelecer as respectivas 'condições de utilização'. Além disso, está ainda compreendido na reserva não apenas o domínio público do Estado mas também o de outras entidades públicas susceptíveis de serem titulares de bens dominiais públicos, como as Regiões Autónomas e as autarquias locais (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 670 e 677)» (cita-se a seguir, e «a propósito de um problema semelhante ao aqui versado», o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/90, in Acórdãos, vol. 17.º, 1990, pp. 29 e segs.);
c) Por outro lado, e à luz do artigo 84.º da Constituição, «não há lugar a dúvidas sobre a natureza dominial do mar territorial, bem como do respectivo leito, onde, naturalmente, se depositam as areias que se pretende extrair ao abrigo do decreto da Assembleia Legislativa Regional n.º 15/99», não se tratando «sequer de domínio público da Região Autónoma dos Açores, mas antes de domínio público do Estado»;
d) «É certo que, nos termos do n.º 2 do artigo 84.º se prescreve que a lei deve delimitar o domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, e que o n.º 2 do artigo 1.º e o n.º 1 do artigo 112.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores estatuem, respectivamente, que a Região abrange 'o mar circundante e seus fundos, definidos como águas territoriais e zona económica exclusiva' e que o domínio público da Região compreende 'os bens do domínio público situados no arquipélago pertencentes ao Estado'. Todavia, bem cedo se sentiu a necessidade de interpretar restritivamente as disposições de idêntico conteúdo que precederam, sobretudo, a segunda das disposições estatutárias citadas. É que, embora a Constituição consagre uma concepção descentralizada do domínio público, há certos limites que é fundamental respeitar» (segue-se referência ao parecer da Comissão Constitucional n.º 26/80, in Pareceres, 13.º vol., p. 185, ao ensinamento da doutrina e ao parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 10/82, in Pareceres, vol. III, 1997, p. 576);
e) «Saliente-se, por fim, que o reconhecimento à Região, nos termos da alínea s) do n.º 1 do artigo 227.º, de poderes de participação na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos, bem como, nos termos do artigo 83.º do Estatuto, no que respeita à lei do mar, à utilização da zona económica exclusiva, à plataforma continental e à poluição do mar, reflecte bem a natureza eminentemente estadual ou nacional das matérias em questão.»;
f) «Em suma, o mar territorial, com o seu leito e subsolo correspondente, constitui, sem sombra de dúvida, domínio público necessário do Estado, sobre o qual este exerce poderes soberanos, pelo que o Decreto 15/99 da Assembleia Legislativa Regional fere o princípio da unidade do Estado, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, bem como o princípio consagrado no artigo 225.º, n.º 3, segundo o qual a autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado.»;
g) «Pode, apesar de tudo, argumentar-se que, apesar das expressões 'mar dos Açores' e 'mar territorial da Região Autónoma dos Açores', o projecto de decreto legislativo regional 15/99 não pretende pôr em causa a titularidade estadual do domínio público marítimo, mas apenas regular o seu aproveitamento económico. Mas, ainda que se aceite tal ideia, é bem verdade que não poderá ser a Região Autónoma a arrogar-se o direito de dispor sobre os recursos existentes no domínio público do Estado, independentemente do seu valor económico, devendo ser os órgãos de soberania a estabelecer quais os poderes que as autoridades regionais podem exercer sobre esse mesmo domínio público.É que, como se refere no citado parecer da Procuradoria tirado no processo 10/82, 'os direitos de fruição, administração ou polícia daquele domínio marítimo pertencem ao Estado soberano, que os deve exercer no interesse nacional'. Cabe, portanto, ao Estado definir quais as competências que as Regiões Autónomas podem exercer sobre esse domínio público, como sucede, aliás, relativamente ao sector das pescas (Decreto-Lei 52/85, de 1 de Março)»;
h) «Por último, a matéria da exploração dos recursos do mar territorial sobre que versa o decreto da Assembleia Legislativa Regional não é reveladora de interesse específico, pelo que não se encontra preenchido o parâmetro positivo da competência legislativa regional previsto no n.º 4 do artigo 112.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, ambos da Constituição.
Com efeito, é significativo que a matéria em causa não conste da nova enumeração constitucional das matérias de interesse específico contida no artigo 228.º, nem tão-pouco do extenso elenco constante do artigo 33.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. Nem se invoque a referência que a alínea f) do artigo 228.º faz aos recursos minerais, pois seguramente que o legislador de revisão constitucional não teve a intenção de aí incluir os recursos minerais existentes no domínio público do Estado. É certo que as enumerações mencionadas têm carácter meramente exemplificativo, mas idêntica conclusão se retira também do confronto entre a matéria relativa à exploração dos recursos do domínio público marítimo e os critérios jurisprudenciais e doutrinais de densificação do conceito de interesse específico regional» (segue-se a referência ao «já vasto conjunto de decisões proferidas pela Comissão Constitucional e pelo Tribunal Constitucional em matéria de poderes legislativos regionais» e ao ensinamento da doutrina, assumindo «particular relevância a posição defendida por Jorge Miranda»);
i) «É verdade que, tal como menciona o preâmbulo do decreto 15/99, não custaria reconhecer a existência de especificidades regionais devido à escassez ou à dificuldade de obtenção de areias em quantidade e qualidade suficientes para satisfazer as necessidades da economia regional. Mas o interesse específico não pode ser investigado em abstracto, mas antes em concreto, caso a caso, mediante a análise da disciplina jurídica estabelecida pelo poder legislativo regional. Ora, assim sendo, não parece possível admitir que possam considerar-se como reveladoras de interesse específico disposições normativas regionais que versam sobre os recursos existentes no mar territorial ou em que a Região Autónoma assume competência para proceder ao licenciamento da exploração dos recursos do domínio público do Estado. Efectivamente, legislar sobre o aproveitamento económico de bens do domínio público estadual não pode, por definição, ser revelador de interesse específico regional.»
E concluiu deste modo o pedido:
«Requer-se, nestes termos, a apreciação preventiva e a pronúncia pela inconstitucionalidade de todas as normas constantes do Decreto da Assembleia Legislativa Regional n.º 15/99, sobre a extracção de areia no mar dos Açores, por violação, por um lado, do artigo 6.º, n.º 1, e do artigo 225.º, n.º 3, e, por outro lado, do artigo 112.º, n.º 4, e do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), conjugados com os artigos 84.º e 165.º, n.º 1, alínea v), todos da Constituição.»
Com o requerimento foi junto o citado decreto legislativo regional, remetido, «para fins de assinatura», pelo Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores e entrado no Gabinete do requerente na data de 5 de Maio de 1999.
2 - Notificado o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, nada disse.
3 - Cumpre decidir.
O citado Decreto Legislativo Regional 15/99, aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, na Horta, em 21 de Abril de 1999, usando a epígrafe «Regime da extracção de areia no mar dos Açores», contém 13 artigos, dos quais, e no que pode aqui interessar, se transcrevem os seguintes:
«Artigo 1.º
Objecto
O presente diploma estabelece o regime jurídico de licenciamento de extracção de areia, por dragagem de sucção, no mar territorial da Região Autónoma dos Açores, atendendo à sua relevância económica, social e ambiental.
Artigo 2.º
Âmbito
É permitida a extracção de areia no mar territorial da Região Autónoma dos Açores, quando o local de extracção se situar na zona das 12 milhas a contar da linha da máxima de baixa-mar e desde que:
a) Seja salvaguardado o equilíbrio ecológico em termos de impactes negativos sobre o meio físico e natural marinho, nomeadamente a nível dos ecossistemas aquático e marginal;
b) Seja acautelada a erosão da costa e a manutenção das praias;
c) Sejam realizados estudos de impacte ambiental que determinem os termos em que a extracção de areia poderá ser realizada e as consequências ecológicas da mesma;
d) Não se efectue a extracção aquém da faixa costeira situada entre a linha de baixa-mar de águas vivas equinociais e o limite da margem das águas do mar, de acordo com a definição constante do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro, salvo se motivos imperiosos o determinarem e desde que devidamente justificados e autorizados por despacho do Secretário Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente.
Artigo 3.º
Autorização
1 - A extracção de areia, no âmbito do presente diploma, dependente da autorização da Secretaria Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, concedida através de licença emitida pela Direcção Regional do Ambiente.
2 - A licença referida no número anterior é precedida de parecer da Comissão de Acompanhamento da Extracção de Areias e submetida a homologação do Secretário Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente.
3 - Deverá ser publicado extracto da licença no Jornal Oficial, 2.ª série.
Artigo 4.º
Pedido de licenciamento
1 - O pedido de licenciamento deverá ser instruído com os seguintes elementos:
a) Nome, estado civil, residência, actividade profissional, número de contribuinte e registo comercial;
b) Finalidade da pretensão;
c) Localização e área pretendidas para realização da dragagem em escala adequada;
d) Local de depósito da areia para venda ao público;
e) Prazo pretendido para extracção;
f) Volume pretendido de areia a dragar;
g) Meios técnicos a utilizar na dragagem;
h) Ilha ou ilhas abrangidas pelo fornecimento.
Artigo 5.º
Requisitos gerais
O pedido para extracção de areia só pode ser autorizado desde que o requerente reúna, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Provar que dispõe de meios técnicos adequados à dragagem de areia;
b) Possuir capacidade técnica e financeira que permita garantir o abastecimento de areia, nos termos em que foi requerido, e a manutenção de depósitos de areia, pelo próprio;
c) Garantir o normal abastecimento do mercado, nos termos em que foi requerido;
d) Prova de que não é devedor à Fazenda Nacional;
e) Prova de que tem a sua situação regularizada perante o Centro de Prestações Pecuniárias.
Artigo 8.º
Preço de venda
1 - O preço de venda ao adquirente da areia extraída, bem como as respectivas condições de variabilidade, é, obrigatoriamente, fixado por despacho do Secretário Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, sob proposta da Direcção Regional do Ambiente, ouvida a Comissão de Acompanhamento de Extracção de Areia, ponderando os seguintes factores:
a) Taxa destinada à junta autónoma do porto comercial onde se efectuar a descarga, até ao limite de 20% do preço de venda máximo por metro cúbico, desde que descarregado em porto comercial;
b) Taxa destinada à autoridade marítima com funções de controlo, até ao limite de 20% do preço de venda máximo por metro cúbico, desde que não descarregados em porto comercial;
c) A cobrança de taxas será efectuada pela junta autónoma do porto ou pela autoridade marítima da zona a que respeita a licença.
2 - O montante de 50% da taxa referida na alínea a) do número anterior será obrigatoriamente afecto pelas Juntas Autónomas dos Portos de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada a estudos topo-hidrográficos, geofísicos e de impacte ambiental, em termos a definir por portaria do Secretário Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente.
3 - Do montante referido na alínea b) do n.º 1 serão afectos 50% para a autoridade marítima respectiva e 50% para a junta autónoma da área a que disser respeito, para os efeitos previstos no número anterior.
4 - O volume de areia proveniente das dragagens será obrigatoriamente medido à saída do porto.
5 - O controlo das quantidades de areia extraída, não descarregada em porto comercial, será efectuado pela autoridade marítima com jurisdição no local.
Artigo 9.º
Comissão de Acompanhamento da Extracção de Areia
É criada a Comissão de Acompanhamento da Extracção de Areia (CAEA), com as seguintes atribuições:
a) Emitir pareceres sempre que solicitados pela Direcção Regional do Ambiente;
b) Propor medidas necessárias para assegurar um regular abastecimento de areia no mercado;
c) Acompanhar a fixação dos preços da areia e propor, quando for caso disso, a sua alteração ao Secretário Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente;
d) Acompanhar a regular manutenção dos stocks de areia;
e) Acompanhar a avaliação das alterações batimétricas dos fundos sujeitos a processos de extracção;
f) Propor a execução de estudos tidos por necessários ao desempenho das funções que lhe estão atribuídas, nomeadamente estudos topo-hidrográficos e geofísicos de impacte ambiental;
g) Propor medidas legislativas, ou outras de ordem diversa, tidas como convenientes;
h) Elaborar actas das reuniões ordinárias e extraordinárias e relatórios relativos a todas as medidas propostas.»
São estas normas e as demais não transcritas (o artigo 6.º regula o título da licença, o artigo 7.º exige a prestação de caução para ela ser emitida, o artigo 10.º prevê a constituição e funcionamento da CAEA e os últimos três artigos são normas transitórias, revogatórias e de entrada em vigor do diploma) que constituem o objecto do pedido do requerente - desde já realçando-se que elas versam «o regime de licenciamento de extracção de areia, por dragagem de sucção, no mar territorial, da Região Autónoma dos Açores» - e foram elas editadas pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, «nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição e da alínea c) do n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores» e na base das seguintes considerações colhidas do preâmbulo do respectivo decreto:
«A extracção de areia, na Região Autónoma dos Açores, constitui uma preocupação de ordem técnica e ecológica para além dos contornos, também relevantes, de ordem económica e social.
Do ponto de vista ecológico não tem sido acautelada a defesa do litoral nem avaliados os impactes sobre o meio físico e natural marinhos, em consequência da extracção de areia, nem se conhecem os efeitos que a médio e longo prazos se poderão reflectir na orla costeira, em virtude das alterações batimétricas dos fundos dos mares.
Por outro lado, o ordenamento jurídico nacional apenas prevê regulamentação sobre a extracção de areias que se situe na faixa costeira, situada entre a linha de baixa-mar de águas vivas equinociais e o limite da margem das águas do mar, de acordo com a definição constante do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro.
Nos termos do referido normativo, a extracção de areias só é permitida por motivos de ordem técnica, nomeadamente para manter o equilíbrio das praias e combater o assoreamento das zonas portuárias e vias navegáveis.
A extracção de areias que é mais frequente e casuisticamente licenciada reporta-se a áreas que se localizam no mar territorial, isto é, na zona das 12 milhas marítimas.
Tendo em consideração todos estes factores e ainda o desenvolvimento verificado na construção civil na Região Autónoma dos Açores, com a consequente necessidade de se disponibilizar no mercado maiores quantidades de materiais inertes.»
4 - Vindo o decreto sub judicio editado, como já se referiu, ao abrigo dos poderes legislativos regionais reconhecidos pela Constituição, impõe-se, prima facie, que se comece pela análise dos limites constitucionais do poder legislativo das Regiões Autónomas condensado na referida alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da lei fundamental.
Este ponto foi tratado, mais recentemente, no Acórdão 711/97, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 20, de 24 de Janeiro de 1998, onde se lê, com utilidade para o caso, o seguinte:
«Não obstante as modificações introduzidas no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição (as quais, como se viu, devem ser lidas em conjugação com os novos artigos 112.º, n.os 4 e 5, e 228.º), em comparação com o anterior artigo 229.º, n.º 1, há um limite que permance inalterado, que é o de as Regiões Autónomas não poderem legislar sobre matérias que estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (limite negativo).
[...] A Constituição, ao indicar os limites dos poderes legislativos das Regiões Autónomas, não fornece uma definição das matérias 'reservadas à competência própria dos órgãos de soberania' [artigo 227.º, n.º 1, alínea a)] ou das matérias 'reservadas à Assembleia da República ou ao Governo' (artigo 112.º, n.º 4). Uma tal definição encontra-se, no entanto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, a qual continua válida em face do texto da Constituição emergente da revião constitucional de 1997.
Segundo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, e, como tais, vedadas ao poder legislativo regional, são, desde logo, as que integram a competência legislativa própria da Assembleia da República, enumeradas nos artigos 161.º, 164.º (reserva absoluta) e 165.º (reserva relativa) da Constituição, bem como a que é da exclusiva competência legislativa do Governo, ou seja, a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento (artigo 198.º, n.º 2).»
Apurado, assim, na linha do entendimento essencial do citado Acórdão 711/97, que, por força do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 112.º, n.º 4, da Constituição, não podem as assembleias legislativas regionais aprovar decretos legislativos regionais que versem sobre matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, começar-se-á pela análise da questão de saber se as matérias disciplinadas no decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores n.º 15/99 são matérias reservadas à Assembleia da República ou ao Governo e, se se chegar a uma resposta positiva, ficar-se-á por aqui.
É que - como se entendeu no citado Acórdão 711/97 -, «se o Tribunal Constitucional concluísse que a matéria versada no decreto aqui sub judicio é uma matéria reservada à competência própria dos órgãos de soberania, tornar-se-ia desnecessário averiguar se tal matéria é de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores».
Como tem sublinhado o Tribunal Constitucional, «onde esteja uma matéria reservada à 'competência própria dos órgãos de soberania', não há interesse específico para as Regiões que legitime o poder legislativo das Regiões Autónomas (cf. os Acórdãos n.os 160/86 e 37/87, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Agosto de 1986, e 1.ª série, de 17 de Março de 1987, respectivamente, e, bem assim, os já citados Acórdãos n.os 212/92, 431/94 e 496/97)».
5 - Ora, em primeira linha, importa considerar que, com o citado decreto, como ficou já realçado, pretende-se disciplinar «o regime de licenciamento de extracção de areia, por dragagem de sucção, no mar territorial, da Região Autónoma dos Açores» (sublinhado nosso).
E, por outro lado, importa ainda considerar que, com o dito regime de licenciamento, visa-se regular as condições de utilização das areias, vindo a permitir-se a extracção por via de uma autorização das autoridades regionais, a conceder por licença, respeitados que sejam certos elementos e requisitos.
Posto isto, a questão que logo se coloca é a de saber se aquela areia de leito do mar, na «zona das 12 milhas a contar da linha máxima de baixa-mar» (corpo do artigo 2.º), integra o domínio público marítimo, designadamente, se é bem dominial do Estado, ou, pelo menos, se a extracção dessa areia constitui utilização de um bem do domínio público: o leito do mar.
6 - O artigo 84.º, n.º 1, alínea a), da Constituição diz que pertencem ao domínio público as «águas territoriais, com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos», cabendo à lei (n.º 2) definir os bens que integram o domínio público do Estado, das Regiões Autónoma e das autarquias locais, «bem como o seu regime, condições de utilização e limites».
Também o artigo 5.º, n.º 1, remete para a lei a definição da extensão e do limite das águas territoriais (para Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 73, aquelas águas «abrangem nomeadamente o mar territorial, ou seja, o mar adjacente à costa [...] sobre o qual o Estado goza de determinados direitos de soberania»).
Ora, as areias do mar integram os leitos das águas territoriais e os fundos marinhos, que são bens do domínio público, cabendo naquela dita lei a sua definição, o seu regime, condições de utilização e limites (no âmbito normativo daquelas águas incluem-se o mar territorial e as águas arquipelágicas - Açores e Madeira).
À luz do regime do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro, e do seu artigo 2.º, que se reporta ao domínio público hídrico do continente e ilhas adjacentes, mas não regula o regime das águas públicas que o integram, cingindo-se apenas ao dos terrenos públicos conexos com aquelas águas, isto é, os leitos, as margens e as zonas adjacentes, pode fixar-se o significado do termo leito como sendo «o terreno na dupla vertente da superfície e subsolo que as águas, sejam ou não correntes, cubram sem influência de cheias extraordinárias, inundações ou tempestades» (cf. o artigo 1387.º, n.º 2, do Código Civil).
No artigo 5.º desse Decreto-Lei 468/71 consideram-se «do domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis» [cf. o artigo 4.º, alínea a), do Decreto-Lei 477/80, de 15 de Outubro: as «águas territoriais com os seus leitos»; no Decreto-Lei 52/85, de 1 de Março, alude-se a direitos de soberania ou direitos soberanos do Estado Português com referência às areias marítimas, que abrangem o mar territorial].
Bens dominiais naturais que pertencem, pois, ao «domínio público necessário» do Estado, preenchido pelos bens que não podem pertencer senão ao Estado soberano - Estado unitário, à luz do artigo 6.º da Constituição - «e o seu estatuto jurídico não pode ser outro senão o da dominialidade» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 412; cf. o Acórdão 280/90, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 1, de 2 de Janeiro de 1991, traçando considerações sobre as águas territoriais e as águas do mar).
Acrescentam ainda aqueles autores:
«Compete à lei a determinação do sujeito titular dos bens do domínio público, embora pareça natural que certos bens não podem deixar de integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo).» (Loc. cit., p. 413.)
7 - Concluindo-se, desta forma, que os leitos das águas territoriais, incluindo o mar circundante e seus fundos, da Região Autónoma dos Açores são bens do domínio público e do domínio público marítimo do Estado Português, não altera esta conclusão o disposto nos preceitos do Estatuto Político-Administrativo dos Açores (hoje publicado em anexo à Lei 61/98, de 27 de Agosto, que o alterou) que regem sobre os bens da Região, designadamente o artigo 112.º (anterior artigo 104.º), conjugado com o n.º 2 do artigo 1.º, sobre a delimitação da Região e dispondo sobre o domínio público regional, e o que dele é exceptuado, pois sempre resulta do que já ficou dito que não é constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região. É a posição acolhida por Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, no Estatuto Anotado, «principia», 1997, p. 251, onde escrevem: «O exemplo de direito comparado é sugestivo. Em Itália, o artigo 32.º do Estatuto da Sicília colocou também já o problema análogo da determinação da titularidade estadual ou regional das águas marítimas sicilianas. A Corte Constituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excepcionado no teor literal do referido preceito do âmbito do domínio da Sicíclia, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional. É idêntica a posição defendida pela doutrina mais autorizada (v. Vezio Crisafulli - Livio Paladin, Comentario breve alla Constituzione, Pádua, 1990, p. 726). Em Espanha, o n.º 2 do artigo 132.º da Constituição de 1978 resolveu expressamente a questão ao considerar que 'são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental'.
Entre nós, o próprio n.º 1 do artigo 104.º, ao estabelecer que os bens do domínio público do Estado que integram o domínio público da Região são os que estão «situados no arquipélago», conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto, segundo o qual o arquipélago dos Açores é composto por um conjunto de ilhas e ilhéus, o que, literalmente, não abrange o mar circundante, parece apontar no sentido de que o domínio público da Região se estende apenas ao que se encontra emerso nas ilhas e ilhéus. O argumento foi utilizado por Álvaro Monjardino (v. Sobre o Antigo Património ... , cit., p. 37): '[...] em termos de domínio público só o que se encontrar nas ilhas dos Açores e seus ilhéus pertence, salvas as excepções indicadas, à Região Autónoma. Os Açores, assim, não têm domínio público marítimo. Têm domínio público, mas só em terra firme: e, quanto ao hídrico, apenas do que se localizar dentro ou sobre essa terra firme'».
«Os direitos de fruição, administração e polícia do domínio público marítimo pertencem ao Estado soberano, que os deve exercer no contexto do interesse nacional» - é a conclusão 1.ª do parecer 92/88 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Pareceres, vol. III, pp. 573 e segs.
Lê-se nesse parecer que, entre as matérias que a doutrina vem apontando como claramente nacionais, «ocupa lugar de destaque o domínio público marítimo» e que do n.º 2 do artigo 1.º do citado Estatuto «não pode concluir-se que se pretendeu transferir fosse o que fosse da soberania do Estado para o âmbito da Região Autónoma».
«Antes, do texto fundamental - acrescenta-se ainda - se pode detectar a preocupação de reservar a favor do Estado matérias que se relacionam com o domínio público marítimo.
Pensa-se, nomeadamente na alínea o) do artigo 229.º [hoje alínea s) do n.º 1 do artigo 227.º], que estabelece:
'As Regiões Autónomas são pessoas colectivas de direito público e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
[...]
o) Participar na definição de política respeitante às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos.'
[...]»
Acresce que o citado artigo 112.º reporta-se aos «bens do domínio público situado no arquipélago pertencentes ao Estado» e o arquipélago dos Açores, como bem decorre do n.º 1 do artigo 1.º, é composto por ilhas e «seus ilhéus», ou seja, pelo espaço territorial - solo e subsolo - e aéreo em que essas ilhas e ilhéus se situam (bens «situados na área territorial da Região», na expressão de Eduardo Paz Ferreira, «Domínio público e privado da Região», in A Autonomia como Fenómeno Cultural e Político, Angra do Heroísmo, 1987, p. 76).
8 - Já se disse que, de acordo com o disposto no artigo 84.º, n.º 2, da Constituição, e para além do elenco de bens constantes do n.º 1, cabe à lei definir os bens que integram o domínio público, «bem como o seu regime, condições de utilização e limites».
Ora, essa lei inclui-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição - Definição e regime dos bens do domínio público] e, por isso, só ela ou o Governo, devidamente autorizado, podem exercer poderes legislativos relativamente àquelas matérias respeitantes ao domínio público, aqui o domínio público marítimo, abrangendo-se necessariamente nesse regime as «condições de utilização e limites» referenciados no n.º 2 do artigo 84.º
Na verdade, as razões que levam a integrar a matéria atinente à definição e ao regime dos bens do domínio público na reserva de competência legislativa parlamentar - designadamente, a necessidade de preservar a integridade desses bens e o respeito pela sua afectação a finalidades de indiscutível interesse nacional - valem inteiramente para a determinação das respectivas condições de utilização, que assim são parte integrante do regime daqueles bens.
A reserva da Assembleia da República abrange, por isso, tudo quanto diga respeito ao regime do domínio público do Estado, sendo que nessa abrangência - repete-se - se inclui a definição das condições de utilização dos bens do domínio público (a sujeição a um uso geral, a um uso particular, a um uso especial ou a um uso excepcional, neste caso, o regime de licença ou de concessão).
9 - Consequentemente, e dispondo, em geral, as normas em causa, editadas pelo órgão legislativo regional, com a invocação da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, sobre as condições de utilização das areias do mar territorial dos Açores, permitindo-se a sua extracção, «por dragagem de sucção», na «zona das 12 milhas a contar da linha da máxima de baixa-mar», está a ferir-se a reserva legislativa da Assembleia da República.
Pois que não se respeita «um limite que permanece inalterado, que é o de as Regiões Autónomas não poderem legislar sobre matérias que estejam reservadas à competência própria dos órgãos se soberania (limite negativo)», sendo que tais matérias «são, desde logo, as que integram a competência legislativa própria da Assembleia da República, enunciadas nos artigos 161.º, 164.º (reserva absoluta) e 165.º (reserva relativa) da Constituição [...]», para usar a linguagem do citado Acórdão 711/97, limite esse que decorre da parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 4 do artigo 112.º [v. Carlos Blanco de Morais, As Competências Legislativas das Regiões Autónomas (separata da Revista da Ordem dos Advogados), pp. 20 a 23].
No Acórdão 280/90, em hipótese similar, respeitante ao património cultural submarino, entendeu-se que só «à Assembleia, ou ao Governo devidamente autorizado, competia, pois, legislar na matéria» (cf. ainda o parecer 92/88 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Pareceres, vol. III, pp. 573 e segs.).
Lê-se nesse acórdão:
«Quanto ao decreto regulamentar, limita-se, fundamentalmente, a regulamentar os contratos de concessão para a pesquisa de espólios com interesse histórico, arqueológico e artístico 'existentes nas águas jurisdicionais da Região'.
Já vimos, porém, que essas águas integram o domínio público do Estado: domínio público natural, como lhe chama o Prof. Marcello Caetano, [...].
Ora, dispor sobre a propriedade dos objectos que se encontrem em bens do domínio público do Estado - nos quais se incluem essas águas -, assim como permitir a celebração de contratos de concessão para pesquisa de objectos nas mesmas águas, faz parte do 'regime dos bens do domínio público' da competência da Assembleia da República, nos termos da citada alínea x) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
Só à Assembleia da República, ou ao Governo devidamente autorizado, competia, pois, legislar na matéria.»
Sendo isto assim, nem se procure uma qualquer dificuldade de compatibilização deste discurso com o artigo 228.º da Constituição, aditado com a revisão de 1997, em que se exemplificam as «matérias de interesse específico das Regiões Autónomas», sendo uma delas a dos recursos hídricos e minerais [alínea f)], pois tem de entender-se que o dito limite negativo prevalece sobre a autonomia legislativa regional em tais domínios (cf. Carlos Blanco de Morais, loc. cit., pp. 22 e 23).
10 - Por tudo o que acaba de se dizer, está fora de dúvidas que não interessa indagar se a matéria sobre que versa o decreto em causa é ou não «reveladora de interesse específico» para a Região, à luz dos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º da Constituição.
Pois que, tal como se entendeu no citado Acórdão 711/97, e já se transcreveu, se o Tribunal Constitucional concluir, como acabou de concluir, que a matéria versada no decreto sub judicio é uma matéria reservada à competência própria dos órgãos de soberania, torna-se «desnecessário averiguar se tal matéria é de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores».
11 - Termos em que, decidindo, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade, por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), conjugado com os artigos 84.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, de todas as normas do Decreto Legislativo Regional 15/99, sobre «Regime da Extracção de Areia no Mar dos Açores», aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores em 21 de Abril de 1999.
Lisboa, 2 de Junho de 1999. - Guilherme da Fonseca (relator) - Vítor Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - Paulo Mota Pinta - Alberto Tavares da Costa - Maria Fernanda Palma - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Messias Bento - Bravo Serra (com a declaração de voto idêntica à da Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, para a qual, com a devida vénia, remeto) - Maria dos Prazeres Beleza (com declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa (com reservas quanto a que todas as «condições de utilização» dos bens do domínio público incluam a reserva parlamentar - o que de resto, e no caso, sempre será irrelevante, desde logo porque se está perante bem de domínio público do «Estado»).
Declaração de voto
Votei a decisão de inconstitucionalidade orgânica do Decreto 15/99 da Assembleia Legislativa Regional dos Açores mas com fundamentação diversa da que fez vencimento. Em meu entender, a inconstitucionalidade não resulta de o diploma versar matéria incluída no âmbito da reserva (relativa) de competência legislativa da Assembleia da República, mas de faltar o interesse específico da Região, exigido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.
Em síntese, esta conclusão resulta da interpretação conjugada do disposto na alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º, no n.º 2 do artigo 84.º, no n.º 1 do artigo 112.º e na alínea f) do artigo 228.º da Constituição.
Da leitura conjunta da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º e da alínea f) do artigo 228.º retiro que nem todo o regime relativo ao domínio público está abrangido na reserva de lei da Assembleia da República.
Assim, da conjugação do n.º 2 do artigo 84.º com a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º não pode decorrer que a lei referida naquele n.º 2 seja necessariamente lei da Assembleia da República. Segundo o n.º 1 do artigo 112.º, são actos legislativos, também, os decretos-leis do Governo e os decretos legislativos regionais.
Na sequência da enumeração (directa e por remissão) dos bens do domínio público constante do n.º 1, o n.º 2 do artigo 84.º remete para lei, além da distinção entre os que pertencem ao domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, a regulamentação do «seu regime, condições de utilização e limites».
Conjugando-se este n.º 2, simultaneamente, com a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º e com a alínea f) do artigo 228.º, concluo que é reserva de lei da Assembleia da República, apenas, a definição do regime no que a dominialidade tem de essencial; quanto ao mais, nomeadamente quanto à regulamentação das condições de utilização dos bens, como é o caso, pode constar, quer de decreto-lei do Governo [aprovado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º], quer de decreto legislativo regional, desde que, nesta última hipótese, respeite a matérias de «interesse específico para as regiões» [alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º].
Penso, porém, que o decreto 15/99 não versa matéria de interesse específico da Região Autónoma dos Açores, não obstante enquadrar-se o seu conteúdo na alínea f) do artigo 228.º (recursos hídricos e minerais). É que só poderia considerar-se do interesse específico da Região se respeitasse a bens do domínio público regional respectivo.
Ora, o leito do mar territorial integra-se, sem dúvida, no domínio público do Estado. Apesar de, aparentemente, o n.º 1 do artigo 112.º do Estatuto da Região Autónoma dos Açores apontar em sentido diferente, o n.º 2 impõe essa conclusão. Outra não seria, aliás, conforme com a Constituição, como se refere no acórdão.
É, pois, organicamente inconstitucional o decreto 15/99 da Assembleia Legislativa Regional dos Açores, sobre extracção de areia do mar dos Açores, por violação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º conjugada com a alínea f) do artigo 228.º e com o n.º 2 do artigo 84.º, todos da Constituição, por não versar sobre matéria de interesse específico da Região. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.