Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - O magistrado do Ministério Público junto do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães interpôs recurso para este Tribunal da sentença proferida por aquele tribunal, em ação especial de despejo, que considerou inconstitucional e consequentemente desaplicou os preceitos dos artigos 26.º, n.º 4, alínea a), e 28.º da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhes foi dada pela Lei 31/2012, de 14 de agosto.
Entendeu o tribunal que aqueles preceitos, interpretados no sentido de abrangerem os casos em que tenha decorrido integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26,º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do Regime do Arrendamento Urbano (doravante, "RAU"), o tempo de permanência do arrendatário, ofendem «os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança».
Em causa estava um litígio entre João Samuel Martins Fernandes e Bartolomeu Francisco da Silva Ribeiro e esposa, Maria da Conceição da Silva Ribeiro, tendo por objeto um imóvel de propriedade do primeiro, arrendado aos segundos.
Pretendia o proprietário, alegando sê-lo há mais de três anos, não possuir outro prédio para habitação no concelho em causa ou noutro limítrofe e necessitar do imóvel arrendado para sua habitação própria, denunciar aquele contrato de arrendamento, conforme comunicação feita aos inquilinos por carta registada com aviso de receção datada de 27 de novembro de 2012.
Os arrendatários deduziram oposição, invocando a inconstitucionalidade do procedimento especial de despejo aprovado pela Lei 31/2012, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva plasmado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante "CRP"), acrescentando que à data da publicação daquele diploma legal se havia já consolidado na sua esfera jurídica o direito de oposição à denúncia do arrendamento por parte do senhorio previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, uma vez que tinham já decorrido trinta anos desde a celebração do contrato.
Sustentaram ainda os arrendatários que as normas dos artigos 26.º, n.º 4, alínea a), e 28.º da Lei 6/2006, com redação que lhes foi dada pela Lei 31/2012, se interpretadas no sentido de abrangerem os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário indispensável para, segundo essa lei, impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio, são inconstitucionais, por violação do artigo 2.º da CRP.
2 - Da decisão recorrida, favorável aos arrendatários, respigam-se os passos mais significativos (fls. 376 e 378):
«[...] É que, como bem notam os réus na sua oposição, à data da entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14 de Agosto - que ocorreu em 14 de Novembro de 2012 - já o réu Bartolomeu Francisco da Silva Ribeiro se mantinha no arrendado, e na qualidade de arrendatário, há mais de 30 anos. Como resulta dos factos provados, a vigência do arredamento iniciou-se em 1 de Fevereiro de 1982; Logo, a 1 de Fevereiro de 2012 completaram-se três décadas sobre a data em que o contrato de arrendamento teve o seu início. Donde, a admitir-se sem limitações a aplicação retroativa das alterações introduzidas por aquela Lei, na parte em que eliminou a permanência no arrendado há 30 ou mais anos como fundamento de oposição à denúncia por parte do senhorio, estaria a permitir-se a eliminação de um direito subjetivo que se havia já consolidado na esfera jurídica do réu.
Ou seja: mantendo-se o réu no arrendado, nessa qualidade, há mais de 30 anos no momento em que entrou em vigor a alteração introduzida no artigo 26, n.º 4, alínea a) da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, a permitir-se sem restrições a aplicação na nova lei e, assim, autorizar o despejo dos réus, estar-se-ia a destruir a legítima expectativa do inquilino em não poder já ser despejado, emergente da sua permanência no prédio arrendado há mais de trinta anos.»
[...]
Ora, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, que integram o princípio do Estado de Direito Democrático contido no artigo 2 da Constituição da República Portuguesa, impõem limites que o legislador ordinário tem de respeitar, considerando-se ofendida a proteção da confiança sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida. Essa proteção da confiança ou segurança jurídica resultaria intoleravelmente diminuída caso se admitisse que, por força da referida alteração legislativa operada pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, os aqui réus vissem retroativamente eliminado um direito de cuja titularidade estavam já certos, qual seja o de se poderem opor à denúncia do arrendamento por parte do senhorio pelo facto de permanecerem no arrendado há 30 ou mais anos.»
3 - É o seguinte o teor do recurso interposto pelo representante do Ministério Público junto do tribunal recorrido para este Tribunal (fl. 390):
«O Magistrado do Ministério Público junto deste juízo, vem, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.os 1, alínea a) e 3.º, da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.º 1 alínea a) e 75.º-A, todos da Lei 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 143/85, de 26/11, 85/89, de 7/9, 88/95, de 1/9 e 13-A/98, de 26/2, Interpor Recurso da douta sentença de fl.s 366 a 379, proferida no âmbito dos autos de Ação Especial de Despejo que João Manuel Martins Fernandes move aos réus Bartolomeu Francisco Silva Ribeiro e Maria da Conceição Silva Ribeiro, que recusou a aplicação do artigo 26.º, n.º 4 alínea a) e 28.º da Lei 6/2006, de 27/2, na redação introduzida pela Lei 31/012, de 14/8, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, no sentido de abrangerem os casos em que decorra integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26.º, n.º 4 da Lei 6/2006 e do artigo 107.º, n.º 1 al, b) da RAU, o tempo de permanência do arrendatário, segundo este ultimo normativo, para impedir o exercício do direito de denuncia pelo senhorio.»
4 - Nas alegações produzidas neste Tribunal o magistrado do Ministério Público concluiu (fl. 535):
«Por todo o exposto, crê-se que este Tribunal Constitucional deverá, agora:
a) Negar provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público;
b) Confirmar, nessa medida, a sentença de 25 de Novembro de 2013, da instância recorrida, o 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães;
c) Julgar materialmente inconstitucionais as normas constantes do artigo 26.º, n.º 4, alínea a) e 28.º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação dada pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, que integram o princípio do Estado de Direito Democrático contido no artigo 2.º da Constituição, quando interpretadas no sentido de abrangerem os casos em que tenha integralmente decorrido, no domínio da versão originária do citado artigo 26.º, n.º 4 da Lei 6/2006 e do artigo 107.º, n.º 1, alínea b) do RAU, o tempo de permanência do arrendatário, segundo este último normativo, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.»
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5 - No caso sub judice encontramo-nos perante um contrato de arrendamento celebrado no ano de 1982, antes portanto do início da vigência do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/1990, de 15 de outubro (diploma que entrou em vigor a 18 de novembro desse ano). O regime aplicável é aquele que resulta do disposto no artigo 28.º da Lei 6/2006, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (doravante, "NRAU"), normativo que manda aplicar, com as devidas adaptações, o regime previsto no artigo 26.º desse mesmo diploma legal. Ou seja, na parte que aqui releva, a regulamentação do contrato em causa passou a estar submetida aos preceitos do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei 6/2006 e, mais recentemente, com as alterações a ambos esses diplomas resultantes da já referida Lei 31/2012.
Com efeito, o artigo 26.º do NRAU, na redação deste último diploma (cf. o respetivo artigo 4.º), passou a dispor o seguinte:
«1 - Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovada pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.
[...]
4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
a) Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU.»
Ao limitar a remissão à alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º, o legislador parece ter pretendido impedir os inquilinos de continuar a prevalecer-se do disposto na alínea b) do artigo 107.º do (antigo) RAU, que dispunha:
«[...]
b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência deste.»
6 - Dito por outras palavras: da alteração introduzida pela Lei 31/2012 extrai-se, a contrario, que passou a ser desconsiderada a circunstância de o arrendatário permanecer no local arrendado continuamente por período superior a trinta anos.
Aquela alteração foi entendida pelo autor da decisão recorrida no sentido de ser igualmente aplicável também aos casos em que já tivesse decorrido integralmente, no domínio da versão originária do citado artigo 26.º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, o tempo de permanência do arrendatário no local arrendado.
Assente neste pressuposto interpretativo, a censura constitucional da decisão do tribunal a quo recaiu sobre os preceitos dos artigos 26.º, n.º 4, alínea a), e 28.º da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhes foi dada pela Lei 31/2012, de 14 de agosto.
Bem vistas as coisas, este entendimento, compreensível embora, carece de uma clarificação. Aquilo que verdadeiramente está em causa, no plano do juízo de constitucionalidade, é o efeito jurídico da alteração legislativa consubstanciada na limitação da remissão contida na alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, deixando de fora a alínea b) deste mesmo preceito.
Dispondo esta que a circunstância de o arrendatário se manter «no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência deste» legitimaria a sua oposição à extinção do contrato de arrendamento, concluiu-se na decisão recorrida que deixava de o poder fazer - ainda que, como se disse, o tempo de permanência no local arrendado tivesse decorrido integralmente no âmbito temporal da versão originária do citado artigo 26.º, n.º 4, e da alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU.
O que está em causa é, verdadeiramente, a retroatividade da alteração legislativa, sendo sobre ela que há de recair o juízo de desconformidade ou não desconformidade constitucional. Na verdade, desacautelando os interesses dos arrendatários de longa duração, tornou imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do arrendamento, aquela circunstância, debilitando insuportavelmente a situação jurídica dos arrendatários, mesmo que o prazo de trinta anos já tivesse transcorrido por completo à data da entrada em vigor da Lei 31/2012 e os arrendatários tivessem, por tal motivo, adquirido o direito à permanência no local arrendado com base na lei então em vigor.
7 - Situação similar à que nos ocupa foi objeto de decisão deste Tribunal a propósito das disposições contidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, na sua versão originária, e do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), da Lei 55/79, de 15 de novembro - lei que exigia um período de permanência de apenas vinte anos no imóvel arrendado para que o inquilino pudesse opor-se à denúncia. A jurisprudência que então se firmou mantém total atualidade e a identidade de razões justifica a sua aplicação ao caso aqui em apreço.
Com efeito, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 259/98, 270/99 e 682/99 julgaram, todos eles, inconstitucional a norma da alínea b) do artigo 107.º do RAU, quando interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga [a dita Lei 55/79], o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.
Citando o último destes arestos (que se refere aos anteriores):
«sublinhou-se nesses arestos que, não podendo já o senhorio, no momento da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano, exercer o direito de denúncia do arrendamento, achava-se criada uma situação que, para o arrendatário, representava "uma mais-valia de proteção da sua permanência no local arrendado": o direito de aí permanecer tinha passado a ancorar-se "no postulado da segurança jurídica que deriva do principio do Estado de Direito". Por isso, não se descobrindo fundamento capaz de justificar a eliminação desse direito, é o mesmo violado, de forma intolerável, pela referida norma, quando interpretada nos termos indicados. Ou seja: tal norma viola o direito que, com o decurso do tempo, os arrendatários tinham adquirido a permanecer no arrendado sem o risco de denúncia do contrato - e, com isso, viola aquele mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito: impõe-se, de facto - como se pôs em evidência no Acórdão 330/90 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Março de 1991) - que este organize "a proteção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida.»
Também não se descortinam razões para contrariar esta jurisprudência, que foi, de resto, reafirmada pelo Acórdão 201/2007:
«Assume aqui o maior relevo a doutrina adotada pelo Tribunal no Acórdão 270/99 que, tal como o Acórdão 682/99, acolheu o que anteriormente já se afirmara no Acórdão 259/98, julgando "inconstitucional - por violação do artigo 2.º da Constituição - a norma constante do artigo 107.º, n.º 1, alínea b)" dessa versão originária do Regime do Arrendamento Urbano, que alargara de 20 para 30 anos o prazo que permitia ao arrendatário opor-se ao exercício do direito de denúncia, "interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio.»
8 - Perante o exposto, nele avultando a jurisprudência constante deste Tribunal, há que confirmar a decisão recorrida - ainda que com uma precisão da interpretação normativa -, julgando inconstitucional a alteração introduzida pela Lei 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, consubstanciada na limitação da remissão contida na alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º do NRAU para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, assim desrespeitando o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP.
III - Decisão
Tudo visto e considerado, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a alteração introduzida pela Lei 31/2012, de 14 de agosto, no artigo 26.º, n.º 4, alínea a), da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, ao ofender o direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a trinta anos integralmente transcorrido à data da entrada em vigor daquela lei, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2.º da CRP.
b) E, em conformidade, confirmar a sentença recorrida.
Lisboa, 2 de junho de 2015. - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro.
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