Acordam, no Tribunal Constitucional:
1 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público veio requerer, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que o Tribunal Constitucional declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei 31664, de 22 de Novembro de 1941, já julgado materialmente inconstitucional nos Acórdãos n.os 29/84 (processo 35/83), 75/84 (processo 26/83) e 45/85 (processo 34/83).
Instruiu o requerimento com a cópia dos três arestos referidos.
Ouvido o Sr. Primeiro-Ministro para, querendo, se pronunciar sobre o pedido no prazo de 30 dias (artigo 54.º da Lei 28/82), juntou ao autos um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros sobre o qual despachara, em 9 de Maio de 1985: «Concordo.» Nesse parecer - n.º 19/85, de 30 de Abril - extraem-se as seguintes conclusões:
A - O artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, texto de 1976, consagra diversas garantias de defesa, em processo criminal, entre as quais, com relevância para o caso em apreço, se incluem a presunção de inocência até trânsito em julgado da sentença condenatória, o direito à assistência de defensor em todos os actos do processo e o direito a ser julgado por juiz diferente do que tiver procedido à instrução e acusação, ficando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório.
B - Consequentemente, o § 2.º do artigo 186.º do Contencioso Aduaneiro, ao equiparar o pedido de liquidação da responsabilidade à contusão dos factos referidos no auto de notícia ou na participação, possibilitando à autoridade instrutora o julgamento e condenação do infractor com base em tal confissão, é materialmente inconstitucional, por violação dos n.os 1 a 5 do artigo 32.º da Constituição da República.
C - Todavia, considerando que o artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro foi revogado pelo artigo 45.º do Decreto-Lei 187/83, de 13 de Maio, dando satisfação aos imperativos constitucionais referidos na conclusão A, deixou de aplicar-se o § 2.º do citado normativo, pelo que não haverá interesse jurídico atendível na emissão de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, desta norma.
D - Admitindo, porém, que o Tribunal Constitucional considere, não obstante, a existência de processos pendentes em relação aos quais haja, porventura, algum interesse jurídico - real ou aparente - atendível, o § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro deve ser declarado inconstitucional, de harmonia com o artigo 282.º da Constituição da República.
2 - A primeira questão que tem de ser apreciada é a que vem suscitada sob a epígrafe da falta do interesse processual da fiscalização abstracta sucessiva de inconstitucionalidade do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro.
O problema foi posto nestes termos:
No que respeita ao pedido de liquidação da sua responsabilidade, sabemos que o artigo 45.º do Decreto-Lei 187/83 substituiu o artigo 168.º do Decreto-Lei 31664.
A nosso ver esta última norma encontra-se revogada, pelo que não haverá lugar à aplicação do princípio aí inserto, de que «o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no auto de notícia ou na participação».
Nem mesmo interessará saber se as novas normas (do artigo 45.º do Decreto-Lei 187/83) são de natureza processual ou substantiva, se são mais ou menos favoráveis ao infractor, uma vez que, na hipótese pouco provável de ter de julgar-se um delito fiscal aduaneiro cometido antes da entrada em vigor desta norma, somente se aplicará o artigo 168.º na parte em que for mais favorável ao arguido, v. g., na graduação da multa, e for compatível com a Constituição da República.
E à maneira de conclusão:
Assim, em caso algum, em relação a processos pendentes, segundo nos parece, se aplicará a regra do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro.
Consequentemente, não descortinamos qual seja o interesse jurídico atendível da declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade material do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro.
3 - O artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro tem a seguinte redacção:
Art. 168.º Quando a autoridade instrutora seja auditor fiscal ou director de alfândega e, nos demais casos, quando à infracção não corresponder pena de prisão, suspensão ou demissão, pode o arguido requerer, em qualquer estado do processo, a liquidação da sua responsabilidade e, nesse caso, a autoridade instrutora procederá ao julgamento e liquidação, graduando a multa.
§ 1.º Havendo no processo mais de um arguido, pode qualquer deles requerer a liquidação da sua responsabilidade, cessando assim o procedimento judicial contra ele, salvo quanto a responsabilidade solidária, se a ela houver lugar.
§ 2.º O pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no auto de notícia ou na participação.
§ 3.º Conformando-se ambas as partes com a sentença e não sendo caso de recurso obrigatório nem havendo pena de prisão a cumprir, ficará findo o processo logo que sejam pagos a multa, os selos do processo, o imposto de justiça e os direitos ou impostos.
§ 4.º Não se conformando, poderá qualquer das partes, seja qual for o valor da causa, interpor recurso.
Com o propósito de reestruturar a orgânica dos tribunais fiscais aduaneiros, em ordem à sua total integração em princípios constitucionais, foi publicado, em 8 de Julho de 1978, o Decreto-Lei 173-A/78.
Dispõe o seu artigo 12.º:
Art. 12.º - 1 - O pedido de pagamento voluntário ou de liquidação suspende o andamento normal do processo.
2 - O infractor pode efectuar o pagamento voluntário imediatamente, perante o autuante ou participante, ou perante o juiz auditor, nos dez dias seguintes à apresentação do auto de notícia ou participação.
3 - Quando o pagamento voluntário não tenha sido efectuado perante o juiz auditor, a este cabe apreciar a sua regularidade e decidir do destino das mercadorias e demais bens que estejam apreendidos ou do ulterior destino do processo.
4 - O pedido de liquidação, que pode ser logo formulado perante qualquer das entidades referidas no artigo 10.º ou perante o juiz auditor, determina que se profira sentença relativamente ao infractor a que respeita, depois de apurada a eventual responsabilidade civil, seguindo o processo quanto aos restantes arguidos.
Posteriormente, o artigo 45.º do Decreto-Lei 187/83, de 13 de Maio, estatuiu:
ARTIGO 45.º
(Oblação voluntária da multa)
1 - Nas infracções previstas no presente diploma a que corresponda unicamente pena de multa pode o responsável ser admitido a pagar uma quantia correspondente a metade do máximo da pena cominada do tipo legal, além das custas devidas pelo processo.2 - Com o requerimento para a oblação deve o interessado depositar a soma correspondente, calculada pelo mínimo da taxa diária da multa, bem como a importância dos direitos e demais imposições que forem devidos.
3 - O requerimento para oblação voluntária deve ser apresentado até ao início da audiência de julgamento.
4 - É da exclusiva competência do juiz a decisão do pedido de oblação voluntário, com prévia audição do Ministério Público.
5 - Se o juiz entender que não é admissível a oblação, atendendo à gravidade do facto, ao grau da culpa, à situação económica e à personalidade do infractor, assim o declarará por despacho, insusceptível de recurso, e ordenará o prosseguimento do processo.
6 - Pode ainda o juiz suspender o processo pelo tempo estritamente necessário à recolha de elementos que considere úteis para fundamentar a sua decisão.
7 - Se o juiz considerar admissível a oblação, mas entender que a taxa diária da multa, a fixar em função da situação económica e financeira do infractor e dos seus encargos pessoais, deve ser superior à depositada, assim o declarará em despacho fundamentado, indicando a taxa que considera adequada e ordenando logo a notificação do requerente.
8 - Se o requerente, no prazo de cinco dias a contar da notificação, que lhe será feita com essa advertência, declarar não se conformar com a taxa indicada pelo juiz, prosseguirá o processo.
9 - Se o requerente nada declarar, o juiz proferirá despacho a admitir a oblação voluntária da multa, ordenando logo a notificação daquele para efectuar o pagamento no prazo de dez dias, salvo a possibilidade da sua efectivação em prestações nos termos gerais.
10 - Se a importância da multa não for paga no prazo assinalado ou, quando consentido o pagamento em prestações, o requerente não efectuar qualquer destas, prosseguirá o processo, sem que o mesmo requerente tenha direito à restituição de qualquer prestação entretanto paga.
Compaginados os textos transcritos, só uma conclusão é lícita: o comando inserto no § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro está integralmente arredado do ordenamento jurídico português vigente. (Aliás, a conclusão não contém qualquer novidade, dado que a ela já se chegara no Acórdão 75/84 - cf. fls. 14 e 14 v.º destes autos.) É desta proposição, demonstrada, que o Sr. Primeiro-Ministro parte para levantar a questão prévia do não conhecimento do pedido.
Assinale-se que a mesma questão já foi levantada em sede de fiscalização concreta. Mas sem êxito, fundamentalmente porque o facto em causa imputado ao agente fora praticado e a decisão da 1.ª instância fora proferida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 173-A/78 - na mesma fl. 14 v.º dos autos.
Havemos de convir, porém, em que o problema, no domínio da fiscalização abstracta, reflecte matizes diferentes. É que, enquanto naquela se pede ao Tribunal que pronuncie a última palavra sobre a questão da constitucionalidade de uma norma cuja aplicação foi recusada com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que foi aplicada quando a sua inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo, valendo a decisão do Tribunal Constitucional apenas para o caso concreto em apreço, a decisão em sede de fiscalização abstracta tem força obrigatória geral.
Prosseguindo o raciocínio interrompido, pergunta-se: que interesse juridicamente relevante existe em obter a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de uma norma revogada? Temos para nós que esse interesse (condição da acção) existe.
Não se duvida de que pelo mecanismo da revogação cessa a vigência da norma revogada. Daí poder afirmar-se que, em princípio, aquele interesse desapareceu. Mas não se pode esquecer que a norma revogada conserva uma «sobrevivência especial», que se traduz na sua aplicação a um determinado quadro fáctico que se tenha preenchido durante a vigência dela.
No caso sobre que agora nos debruçamos, ter o facto imputado ao agente sido praticado e a decisão de mérito que o apreciou sido proferida antes da revogação integral do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro (adjectivámos a revogação porque o Tribunal Constitucional já julgou que um segmento da norma não fora revogado pelas disposições do Decreto-Lei 173-A/78, vindo a sê-lo, somente, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 187/83 - cf., ainda, fls. 14 e 14 v.º dos autos).
Ora o parecer da Auditoria Jurídica a que fizemos referência admite, expressamente, a possibilidade de existirem ainda pendentes casos análogos aos julgados pelos Acórdãos n.os 29/84, 75/84 e 45/84. Então, se é razoavelmente previsível a pendência de processos que preencham o condicionalismo que levou o Tribunal Constitucional a julgar improcedente a questão prévia do não conhecimento dos recursos para fiscalização concreta da constitucionalidade do § 2.º do artigo 268.º do Contencioso Aduaneiro, o interesse existe. Basta pensar na diferença, de natureza substantiva, dos efeitos que produz a declaração do Tribunal nos termos do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição e dos que resultam das decisões proferidas nos recursos interpostos ao abrigo do artigo 280.º do mesmo diploma.
Pelo exposto, a questão prévia do não conhecimento do pedido improcede.
4 - No Acórdão 29/84, de 21 de Março, o Tribunal Constitucional decidiu:
...
b) Julga-se inconstitucional o § 2.º do citado artigo 168.º [do Contencioso Aduaneiro] por, conjugado com o corpo do mesmo artigo, violar os n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição;
No Acórdão 75/84, de 11 de Julho, decidiu:
[...], declara-se materialmente inconstitucional a norma do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei 31664, de 22 de Novembro de 1941, por violação, designadamente, dos n.os 1, 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição [...] No Acórdão 45/85, de 13 de Março, decidiu:
[...] julga-se inconstitucional a norma do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei 31 664, de 22 de Novembro de 1941, por violação dos n.os 1 a 5 do artigo 32.º da Constituição [...] Nos termos do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa:
O Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos.
Parece seguro que a exigência formulada na norma que acaba de ser transcrita está satisfeita.
Na verdade, nos três casos concretos referidos, o Tribunal julgou inconstitucional o § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro. É certo que do Acórdão 29/84 consta mais: «[...] por, conjugado com o corpo do mesmo artigo, violar [...]» Mas não oferece dúvida que o significado «decisivo para a vida jurídica e para as resoluções dos tribunais» ou, na terminologia de Andrade, «o verdaderio sentido e alcance» dos três arestos é idêntico, tendo os Acórdãos n.os 75/84 e 45/84 omitido a locução contida no mais antigo, porventura, por mera economia de palavras ou por se ter considerado que a conexão necessária entre o parágrafo e o corpo do seu artigo impõe, numa técnica legislativa depurada, que tem de se presumir, e em boa hermenêutica, o entendimento explicitado na conclusão do Acórdão 29/84.
Que o «sentido verdadeiro» é o mesmo, prova-o o facto de os acórdãos posteriores remeterem ambos, expressamente, para o aresto de 21 de Março de 1984, seguindo, no essencial, a sua linha de raciocínio e para ele devolvendo «para um maior desenvolvimento» dos fundamentos.
Neste domínio resta considerar que nos atemos apenas à violação dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição apontados nos três acórdãos invocados pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, deixando de lado o n.º 2 do artigo 32.º, a que só se alude no Acórdão de 11 de Julho de 1984.
Verificada a concorrência do pressuposto da declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma em causa, é tempo de entrar na apreciação do mérito do pedido.
5 - Sem minimizarmos o peso das dúvidas manifestadas e a posição contrária expressa num voto de vencido (Acórdão 29/84), perfilhamos as decisões transcritas, todas extensamente fundamentadas, e que, aliás, já se orientaram no sentido da jurisprudência anterior da Comissão Constitucional (cf. o Acórdão 434, de 19 de Janeiro de 1982, no processo 9/81, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983).
De resto, também a autoridade notificada para responder é categórica: o § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro é materialmente inconstitucional.
Nada de inovador ocorre acrescentar. De facto, o «cego automatismo» do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, conjugado com o corpo do artigo, ao estatuir que o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no auto de notícia ou na participação, sabido que é a autoridade instrutora que procede ao julgamento e liquidação, graduando a multa, atenta, de forma flagrante, contra a estrutura acusatória acolhida na Constituição e o princípio do contraditório a que a audiência de julgamento está sujeita (1.ª e 2.ª partes do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição). Tal como é transparente que não assegura ao arguido o direito de produzir a sua defesa, pronunciar-se sobre o enquadramento jurídico dos factos admitidos, a sua gravidade, os motivos da conduta e a medida da pena ajustada, garantias de defesa estas que são asseguradas constitucionalmente (n.º 1 do mesmo artigo 32.º).
6 - Pelo exposto, acordam, nos termos do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, em declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do § 2.º do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei 31664 de 22 de Novembro de 1941, por, conjugado com o corpo do mesmo artigo, violar os n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
Lisboa, 27 de Maio de 1986. - António Luís Correia da Costa Mesquita - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Vital Moreira - José Manuel Cardoso da Costa - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Diniz - Martins da Fonseca - Raul Mateus - Mário de Brito (vencido pelas razões constantes da declaração de voto que fiz no Acórdão 29/84) - Armando M. Marques Guedes.