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Acórdão 227/2015, de 9 de Junho

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Sumário

Julga inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura

Texto do documento

Acórdão 227/2015

Processo 269/14

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Setúbal interpôs, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da sentença daquele tribunal que julgou inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas no artigos 334.º do Código do Trabalho (doravante CT) e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), «na parte em que impedem a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, por violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento, contido no artigo 13.º, n.os 1 e 2, da CRP», recusando a sua aplicação (fls. 498).

2 - Também a Ré no processo decidido pelo Tribunal de Trabalho de Setúbal - Family Frost International Tiefkülheimdienst GmbH - interpôs recurso da sentença para o Tribunal Constitucional, desta feita ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e dos artigos 72.º, n.º 1, alínea b), 75.º, e 75.º-A, todos da LTC (fls. 500-501).

3 - Não existindo razões que obstassem ao conhecimento do recurso, o relator mandou notificar para alegações (fls. 508). O que foi feito pelo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal (fls. 511 a 525), por aquela empresa (fls. 531 a 554) e por Ekrem Suad Sadak, vencedor no processo decidido no Tribunal de Trabalho de Setúbal e beneficiário da desaplicação da norma por este considerada inconstitucional (fls. 559 a 591).

4 - Nas suas alegações, o Ministério Público concluiu da seguinte forma:

«O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença de fls. 463 a 491, proferida pelo Tribunal de Trabalho de Setúbal, '[...] ao abrigo do disposto nos artigos 280.º n.º 1, a) e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, artigo 70.º n.º 1, a) da Lei 28/82 de 15/11 e com a legitimidade que lhe é conferida pelo artigo 72.º, n.º 1 a) e n.º 3 da mesma Lei [...]'.

Este recurso tem por objeto a decisão '[...] que julgou inconstitucional a conjugação das normas contidas nos artºs 334.º do Código do Trabalho e artigo 481.º n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais (na parte em que impedem a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo[...]'.

O fundamento declarado é o da '[...] violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento, contido no artigo 13.º n.os 1 e 2 da Constituição [...]'.

A interpretação normativa desaplicada - a resultante da conjugação entre o artigo 334.º do Código do Trabalho e o proémio do n.º 2, do artigo 481.º, do Código das Sociedades Comerciais - cria um distinto regime de garantias creditícias laborais conforme os trabalhadores estabeleçam uma relação com um empregador coligado com uma sociedade sediada em Portugal ou com um empregador coligado com uma sociedade sediada fora de Portugal.

Este tratamento diferenciado é, em primeira linha, penalizador dos trabalhadores que estabeleçam a sua relação laboral com um empregador dominado por uma sociedade não sediada em Portugal, os quais - distintamente dos que estabeleçam relação laboral com empregador dominado por uma sociedade sediada em Portugal - se encontram (na interpretação legal adotada pelo tribunal 'a quo') impossibilitados de responsabilizarem as sociedades dominantes dos seus empregadores pelo pagamento dos créditos emergentes das relações laborais, com estes, estabelecidas.

Isto é, sem que invoque um motivo racional atendível, omisso nos trabalhos preparatórios, o legislador ordinário estabelece uma discriminação intolerável entre trabalhadores postados em situações substantivamente idênticas, desprotegendo, infundadamente, aqueles que, por força de uma circunstância que não controlam e que, eventualmente, podem desconhecer, contratem com um empregador dominado por sociedade sediada fora de Portugal.

Ou seja, a interpretação normativa desaplicada - a resultante da conjugação entre o artigo 334.º do Código do Trabalho e o proémio do n.º 2 do artigo 481.º, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo -, é violadora do princípio da igualdade, plasmado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que, no domínio da responsabilidade por créditos emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou da sua cessação, o legislador ordinário também trata de forma arbitrária as sociedades empregadoras entre si - conforme sejam dominadas por sociedades com sede em Portugal ou no estrangeiro - e, bem assim, as sociedades dominantes - conforme tenham, ou não, sede em Portugal.

Esta diferença de tratamento, que beneficia, flagrante e intoleravelmente, as sociedades dominantes com sede fora de Portugal e prejudica as sociedades dominadas coligadas com estas, não resulta de qualquer fundamento que, racional e proporcionalmente, justifique tal desigualdade regulatória.

Ou seja, também nesta ótica, se nos afigura que a interpretação normativa desaplicada se perspetiva como violadora do princípio da igualdade, plasmado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Em face do exposto, deverá ser julgada materialmente inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas contidas nos artigos 334.º do Código do Trabalho e 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, por violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, negando-se, em consequência, provimento ao presente recurso.

Nos termos do acabado de explanar, deverá o Tribunal Constitucional julgar materialmente inconstitucional a interpretação normativa sob escrutínio, negando provimento ao presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.»

5 - Family FrostInternational Tiefkülheimdienst GmbH, pelo seu lado, nas suas alegações sustentou, em conclusão:

«a) No caso dos autos, o Recorrido veio peticionar o pagamento de alegados créditos laborais decorrentes da cessação do contrato de trabalho que teria celebrado com a FamilyFrost - Gelados e Congelados, Lda., a qual foi declarada insolvente, com a qual a Apelante tinha uma relação de domínio.

b) Para além de contestar a natureza laboral da relação estabelecida entre o Recorrido e a FamilyFrost - Gelados e Congelados, Lda., e dos invocados créditos, a Recorrente defendeu-se invocando a exceção constante do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, já que tem sede na Alemanha.

c) O tribunal a quo recusou a aplicação do preceito resultante da conjugação das normas contidas nos artigos 334.º do CT e 481.º, n.º 2, proémio, do CSC, na parte em que impede a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de domínio ou de grupo, por considerar encontrar-se violado o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, previsto no artigo 12.º do Tratado de Roma, e da igualdade de tratamento, contido nos números 1 e 2 do artigo 1 3.º da CRP.

d) Não pode, no entanto, a Recorrente conformar-se com esta decisão, porquanto, independentemente da bondade ou justiça da norma contida no proémio do n.º 2 do artigo 418.º do Código das Sociedades Comerciais, questão diferente será a da sua compatibilidade com a Constituição da República Portuguesa.

e) Para que uma determinada ato seja considerado inconstitucional, é necessário que se verifique um defeito ou uma deformidade nos pressupostos ou elementos do ato, gerada pela desconformidade deste com um parâmetro constitucional.

f) Para aferir se em determinada situação se encontra violado o princípio da igualdade, haverá que ter em conta a sua dupla vertente, traduzida no brocardo habitualmente utilizado segundo o qual se deve 'tratar de forma igual o que é igual, e de forma diferente o que é diferente'.

g) A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a sua liberdade de conformação legislativa, já que apenas ao legislador caberá, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações que devem funcionar como elementos de referência a tratar de forma igual ou desigual.

h) No caso que para efeitos dos presentes autos releva, não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade, porquanto não estão em causa situações comparáveis que se possam considerar como iguais.

i) Tendo como ponto de partida para esta comparação duas situações em que numa delas um grupo societário tem a sua sociedade-mãe situada em Portugal, e na outra um grupo semelhante tem a sua sociedade-mãe situada fora do território português, não se podem considerar tais situações como iguais, desde logo porque o ordenamento jurídico aplicável a ambas as sociedades-mãe é distinto.

j) O regime regra do direito português é o da limitação da responsabilidade das sociedades comerciais por quotas - por regra só o seu património responde perante terceiros (artigo 197.º, n.º 3, do CSC).

k) O artigo 334.º do CT tem a natureza de norma excecional face a tal princípio geral e só pode ser operacionalizado com a limitação constante do n.º 2 do artigo 481.º do CSC.

l) Tal limitação é um corolário lógico-jurídico do preceituado no artigo 33.º do Código Civil - compete à lei pessoal das pessoas coletivas regular o regime da sua responsabilidade perante terceiros, sendo a lei pessoal a da respetiva sede.

m) Assim, estando a matéria da responsabilidade por dívidas cometida à lei pessoal, não pode o legislador regular a responsabilidade por dívidas de sociedades cuja lei pessoal não seja a lei portuguesa.

n) A ratio legis do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, e que esteve na base da criação deste elemento adicional de conexão espacial, reside no seguinte: estender a aplicação do regime das sociedades coligadas (e, consequentemente, o regime de solidariedade) a sociedades com sede fora de Portugal configura uma invasão inaceitável da respetiva lei pessoal, vedada pelo artigo 33.º do Código Civil.

o) Caso contrário, verificar-se-ia uma aplicação extraterritorial do direito português, que se imporia, injustificadamente, a um ordenamento jurídico totalmente distinto.

p) Por este motivo, falta ao caso em apreço uma condição essencial para que se pudesse verificar uma violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado - a identidade de situações - uma vez que não se pode considerar que uma sociedade- mãe com sede em Portugal se encontre numa situação igual à de uma sociedade-mãe com sede na Alemanha.

q) A razão de ser desta diferenciação criada pelo legislador decorre da natureza das coisas, do facto de às sociedades em comparação serem aplicáveis regimes jurídicos distintos, desigualdade de facto à qual o legislador não pôde ser indiferente.

r) Sintomático da conformidade da regra contida no n.º 2 do artigo 481.º do CSC com a CRP é o facto de o seu proémio se manter inalterado desde a origem deste diploma, em 1986.

s) A maioria da doutrina que se tem pronunciado sobre o tema, não obstante tecer críticas ao regime vigente de uma perspetiva de iurecondendo, não coloca em causa a sua compatibilidade com a Constituição.

t) Também a doutrina juslaboralista conclui no sentido da inaplicabilidade do regime previsto no artigo 334.º do CT relativamente a sociedades com sede fora de Portugal.

u) Conclui, assim, a Recorrente pela compatibilidade do preceito resultante da conjugação das normas contidas nos artigos 334.º do CT e 481.º, n.º 2, proémio, do CSC com a Constituição da República Portuguesa, em concreto com o princípio da igualdade.»

6 - Por último, Ekrem Suad Sadak conclui nas suas alegações:

«a) A matéria em apreciação no presente recurso é, precisamente, a de saber se a exclusão da responsabilidade solidária por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo que tenha sede fora do território nacional (neste caso, noutro Estado-membro) consubstanciaria uma violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento, contido no artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Constituição.

b) No âmbito de um exercício de apreciação de dois casos potencialmente comparáveis, a mera existência de elementos distintivos entre eles não é, por si só, fundamento suficiente para que, de imediato, se afaste qualquer juízo de comparabilidade. Há que demonstrar que estas diferenças se situam no plano daquilo que é essencial no quadro fáctico e jurídico das hipóteses em consideração, de tal forma que a sua verificação, por afetar intrinsecamente o enquadramento factual e/ou a qualificação jurídica da hipótese, exclua a possibilidade da sua comparação.

c) Com exceção da localização da sede da Recorrente, que se situa noutro Estado-membro (Alemanha) que não Portugal, todas as outras referências ou pressupostos factuais ou jurídicos se verificam, apresentando, por isso, uma total identidade de situações. Tanto a natureza da relação contratual, como o tipo de créditos em causa e a posição subjetiva das partes são exatamente as mesmas.

d) A admissibilidade - em abstrato - da tese da Recorrente contrariaria, frontalmente, o sentido da jurisprudência comunitária que se tem vindo a fixar ao longo dos anos, precisamente ao abrigo de questões relacionadas com o princípio da não discriminação e da igualdade no contexto da União.

e) É indiscutível que cabe ao legislador a conformação legislativa e a definição das situações que devem funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Porém, caso tal exercício de conformação viole os limites externos da discricionariedade legislativa, conferindo (como é o caso) um tratamento desigual a situações fundamentalmente idênticas, estar-se-á perante uma violação do princípio da igualdade - na vertente da proibição do arbítrio -, consagrado no artigo 13.º da CRP.

f) O elemento mais relevante desta ponderação centra-se, não ao nível da posição jurídica da Recorrente ou de outras sociedades-mãe com sede fora do território nacional, mas sim ao nível das garantias dos trabalhadores das sociedades por elas detidas em Portugal. O que está em causa é a proteção dos trabalhadores portugueses (ou sujeitos à jurisdição laboral portuguesa) face à discriminação decorrente da interpretação da norma contida no proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, nos moldes definidos pela Recorrente.

g) Nenhuma fundamentação pode justificar que o regime de garantia dos créditos laborais de trabalhadores de entidades patronais Portuguesas varie consoante a nacionalidade ou sede da entidade detentora do capital que nela se encontra investido. Na verdade, admitir a interpretação proposta pela Recorrente resultaria na imposição de uma restrição inadmissível à garantia de créditos laborais dos trabalhadores empregados por entidades patronais cujo capital social fosse detido por uma sociedades em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com sede fora do território nacional (neste caso, noutro Estado-membro).

h) Mais do que a frustração de tais garantias de créditos laborais, entende o Recorrido que o posicionamento adotado pela Recorrente não tem em conta a própria ratio do regime das sociedades coligadas, o qual visa salvaguardar, tanto as sociedades detidas, como os seus sócios (minoritários), como quaisquer credores sociais dos riscos decorrentes da relação de coligação societária.

i) O propósito que subjaz ao regime das sociedades coligadas, tal como resulta do disposto nos arts. 481.º e seguintes do CSC é, primeiramente, o de prevenir e potenciar o afastamento das consequências práticas negativas que poderão resultar do desequilíbrio de interesses porventura existente entre sociedades que estabeleçam, entre si, relações suscetíveis de as qualificar como sociedades coligadas. Visa-se, essencialmente, salvaguardar os interesses das sociedades participadas, dependentes e agrupadas, bem como dos respetivos sócios minoritários e credores. Esta sujeição ao controlo de uma sociedade que participa no capital de outra cria, de uma forma mais ou menos intensa, um risco acrescido de prejuízo para os demais sócios (se os houver), bem como para terceiros (incluindo os próprios trabalhadores), o qual, a concretizar-se, resultará necessariamente de uma vontade imposta pela sociedade dominante.

j) É evidente que esta interpretação cria graves problemas discriminatórios entre grupos nacionais e grupos estrangeiros, conferindo a estes últimos - injustificadamente - um regime mais favorável.

k) As normas materiais espacialmente condicionadas constituem um afloramento da relevância do escopo dos preceitos jurídico-constitucionais no contexto do direito dos conflitos: é a consideração de especiais razões ligadas ao próprio fim material ou ratio das normas aplicandas que explicam que o legislador delimite ocasionalmente o respetivo âmbito de aplicação em sentido diverso daquele que resultaria da atuação do sistema conflitual previsto para as normas materiais da sua categoria. Ora o fim ou função das normas sobre sociedades coligadas parece justamente vedar, antes que legitimar, o estabelecimento de semelhante autolimitação. Com efeito se, como atrás se assinalou, o sentido fundamental das normas sobre sociedades coligadas é o de proteger as sociedades-filhas (participadas, dependentes ou agrupadas), bem assim como os respetivos sócios e credores sociais, em face dos perigos originados pela criação ou manutenção de uma situação de coligação intersocietária, então mal se compreende que seja a própria lei a discriminar a respetiva aplicação consoante a nacionalidade revestida pela sociedade-mãe (participante, dominante ou líder do grupo)»

l) Admitir a interpretação da norma contida no proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC nos moldes em que é proposta pela Recorrente, implica necessariamente, como pressuposto, que o legislador, aquando de tal exercício de conformação, desconsiderou o sentido teleológico da norma. E se assim foi, então melhor se evidenciaria a forma arbitrária e não fundamentada com que o critério da nacionalidade ou local da sede foi sido definido.

m) Cumpre concluir que não se vislumbra qualquer critério objetivo, constitucionalmente relevante, que justifique um tratamento desigual dos trabalhadores de entidades patronais portuguesas, consoante o local onde se encontre a sede da entidade detentora do respetivo capital social. Com efeito, a mera nacionalidade da entidade detentora do capital, enquanto critério diferenciador, não tem suporte material nem resulta de qualquer valor ou princípio constitucionalmente consagrado. A diferenciação de tratamento acima descrita, não tem justificação razoável, pelo que, nesse contexto, se consubstancia, conforme Doutamente sustentado pela sentença do Tribunal a quo, a violação do princípio da igualdade na vertente da proibição do arbítrio,

n) Sendo, consequentemente, a interpretação do proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, no sentido proposto pela Recorrente, desconforme à Constituição.

o) Não estamos perante uma questão de bondade ou justiça da norma contida no proémio do n.º 2 do artigo 481.º do (ver documento original), nem tão pouco é esse o sentido da '[...] maioria da doutrina que se tem pronunciado sobre o tema [...]'.

p) Na verdade, a maioria das opiniões doutrinárias (referenciadas ao longo das alegações antecedentes) aponta precisamente no sentido de que tal tratamento discriminatório constitui uma violação do princípio da igualdade de tratamento e da equilibrada concorrência empresarial, consagrados nos arts. 13.º e 81.º, n.º 1, alínea f), da CRP, bem como do princípio jurídico comunitário da não discriminação em razão da nacionalidade (artigo 18.º do TFUE).

q) Por essa razão, entende o Recorrido que bem decidiu o Douto Tribunal a quo ao recusar a aplicação das normas contidas nos arts. 334.º do CT e 481.º, n.º 2, do CSC, proémio, por considerar que a interpretação normativa resultante dessas normas, na parte em que impede a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, consubstancia uma inaceitável violação do princípio da igualdade de tratamento, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP.

Por outro lado,

r) O princípio do primado do Direito comunitário sobre o Direito interno previsto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP impõe que qualquer norma de Direito interno incompatível com norma de Direito comunitário deva ser desaplicada, prevalecendo o regime desta.

s) Este entendimento tem sido sucessivamente reafirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

t) O art. 18 do (TFUE) estabelece que 'No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.'

Neste contexto, é indiscutível que a limitação da garantia dos créditos do Recorrido, por força do prémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, não pode senão ser qualificada como uma violação dos princípios da não discriminação e da igualdade constantes do artigo 18.º do TFUE.

A noção de liberdade económica, em que se alicerça o direito da União Europeia, depende da aplicação de princípios como o da não discriminação e da igualdade, bem como da consagração de liberdades como a de livre circulação das pessoas e capitais (no quadro de uma união económica e monetária).

Se, como vimos, estas ideias se encontram enraizadas no conceito da União, transpostas necessariamente para o quadro legal (e constitucional) em que a União Europeia se funda, então a negação da responsabilidade solidária da Recorrente, com fundamento na sua não residência em Portugal, é também a negação dos próprios princípios constitucionais da União. Uma realidade não pode subsistir sem a outra, sob pena de se gerar um desequilíbrio grave que tem como consequência um tratamento desigual entre cidadãos de diferentes Estados-membros, baseado, exclusivamente - e sem qualquer justificação - no critério da respetiva residência.

u) O princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, constante do artigo 18.º do TFUE, é imediata e automaticamente aplicável em todos os Estados-membros, na medida em que os mesmos se encontram vinculados ao cumprimento do Direito Comunitário.

Independentemente da lei pessoal que, por qualquer motivo, fosse aplicável a uma entidade jurídica que ocupasse uma posição semelhante à da Recorrente, a proibição de discriminação em razão da nacionalidade, constante do referido artigo, ser-lhe-ia sempre aplicável.

v) No contexto do direito comunitário, a discriminação implica um efetivo tratamento distinto por um Estado-membro de uma operação ou situação intracomunitária (transnacional), por comparação com uma situação interna (nacional) que partilhe com aquela uma identidade quanto aos seus aspetos essenciais.

w) A jurisprudência uniforme do TJUE ponta no sentido de que 'a discriminação consiste na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou na aplicação da mesma regra a situações diferentes'

x) Entende o Recorrido, à luz da mencionada jurisprudência bem como da doutrina já amplamente citada, que admitir a exclusão da responsabilidade da Recorrente (sociedade comercial com sede noutro Estado-membro) pelos créditos laborais do Recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 334.º do CT e tendo por base a (suposta) autolimitação espacial constante do proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, consubstancia uma violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade (na vertente da igualdade dos agentes económicos privados).

y) Representa igualmente a frustração das incumbências do Estado em matéria de concorrência empresarial, a quem cabe 'Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas [...]' donde decorre, nos moldes descritos em sede de alegações, a violação do princípio jurídico-constitucional da equilibrada concorrência empresarial [artigo 81.º, n.º 1, alínea f), da CRP].

z) Face ao carácter derivado do primado do direito comunitário e à necessária prevalência destas normas face às normas de direito interno, nos termos e com os fundamentos que acima se ofereceram, que, salvo melhor opinião, bem decidirão V. Exas. caso declarem a inconstitucionalidade, por violação do n.º 4 do artigo 8.º da CRP, da norma constante do proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, ex vi do artigo 334.º do CT, na interpretação que exclua a responsabilidade solidária por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo que tenha sede noutro Estado-membro, na medida em que tal interpretação é violadora do princípio de não discriminação constante do artigo 18.º do TFUE.»

II. Fundamentação

7 - Começaremos por transcrever as disposições legais em causa, sublinhando os troços relevantes:

Artigo 481.º CSC

Âmbito de aplicação deste Título [refere-se ao TÍTULO VI]

1 - O presente título aplica-se a relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por ações.

2 - O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte:

a) A proibição estabelecida no artigo 487.º aplica-se à aquisição de participações de sociedades com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, sejam consideradas dominantes;

b) Os deveres de publicação e declaração de participações por sociedades com sede em Portugal abrangem as participações delas em sociedades com sede no estrangeiro e destas naquelas;

c) A sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º;

d) A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal.

Artigo 334.º CT

Responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo

Por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.

8 - Recordemos agora a situação das sociedades envolvidas.

A sociedade comercial Family Frost - Gelados e Congelados, Lda., tinha um capital social de (euro)254 000,00, do qual (euro)253 899,97 pertenciam à sociedade eismannholdinggmbh, sociedade comercial de direito alemão, e os restantes (euro)100, 03 à sociedade, também de direito alemão, Family FrostInternational Tiefkülheimdienst gmbh.

Em 19 de Março de 2012, o Tribunal do Comércio de Lisboa decretou a insolvência da primeira daquelas sociedades. Na origem da questão de constitucionalidade colocada está a circunstância de, em face desta insolvência, Ekrem Suad Sadak, que havia trabalhado para a sociedade insolvente, ter proposto no Tribunal de Trabalho de Setúbal uma ação contra a sociedade Family Frost International Tiefkülheimdienst gmbh, com o objetivo de fazer valer contra esta créditos alegadamente emergentes da relação laboral ou da sua rutura.

Não obstante a ré, defendendo-se por exceção, ter sustentado, além do mais, a sua ilegitimidade passiva relativamente aos créditos reclamados, o tribunal, rejeitando a exceção e a aplicação, em que ela se apoiava, da interpretação conjugada das normas contidas no artigos 334.º do CT e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do CSC - que teve por inconstitucional -, julgou a ação parcialmente procedente e condenou a ré ao pagamento dos créditos reclamados, acrescidos de juros de mora.

9 - Dúvidas não existindo quanto ao preenchimento da previsão do preceito do artigo 481.º, n.º 1, do CSC - suscetível de cobrir situações muito distintas, que a doutrina comercialista usualmente designa por grupos de sociedades ou sociedades coligadas e que não relevam no caso -, o problema reside na combinação da remissão feita na parte final do artigo 334.º do CT com a limitação constante do proémio do n.º 2 do artigo 481.º do CSC: O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal [...].

O artigo 3.º, n.º 1, do CSC, é a regra de conflitos nuclear em matéria de sociedades comerciais, estipulando que «as sociedades têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal efetiva da sua administração». Coerentemente, o artigo 481.º, n.º 2, do mesmo código estabelece que o regime previsto no Título VI do CSC (salvo os casos excecionais aí indicados) apenas é aplicável a sociedades com sede em Portugal.

Parece, assim, resultar desta norma que, ocorrendo a circunstância de a sociedade dominante ter a sua sede no estrangeiro, não lhe serão aplicáveis as normas previstas no Título VI do CSC. A doutrina comercialista critica esta consequência, ponderando envolver uma ofensa, designadamente mas não só, ao princípio da igualdade. Acresce, diz, que uma tal diferenciação de regimes constituiria um incentivo à fuga de investimento para o estrangeiro.

10 - Da interpretação normativa desaplicada - resultante, como se disse, da conjugação do artigo 334.º do CT com o proémio do n.º 2 do artigo 481.º, do CSC - emerge uma dualidade de regime de garantias dos créditos laborais, consoante a sociedade dominante da entidade patronal portuguesa tenha sede em Portugal ou noutro país.

Por força desta dualidade, os trabalhadores ao serviço de sociedades coligadas dominadas por uma sociedade com sede fora do nosso país não podem efetivar contra esta a responsabilidade relativa a créditos emergentes das relações laborais estabelecidas com a sua entidade patronal.

Foi esta consequência, resultante da interpretação normativa controvertida, que o Tribunal de Trabalho de Setúbal recusou, por suposta inconstitucionalidade material, consubstanciada na violação do princípio da igualdade. É, pois, ela que nos cumpre apreciar.

11 - E começaremos pela ponderação da razão de ser da diferença de tratamento.

Em primeiro lugar, nos termos do n.º 3 do artigo 197.º do CSC, a responsabilidade das sociedades comerciais por quotas perante terceiros está, em princípio, limitada ao património social próprio - no caso, ao património da sociedade portuguesa devedora dos créditos laborais.

Em segundo lugar, constitui exceção a esta limitação precisamente o artigo 334.º do CT, na medida em que alarga essa responsabilidade, no que respeita a créditos laborais, entre outras, à sociedade dominante.

Em terceiro lugar, e de acordo com o disposto no artigo 33.º do Código Civil, compete à lei pessoal das pessoas coletivas regular o regime da sua responsabilidade perante terceiros. Sendo a lei pessoal a da respetiva sede e tendo a sociedade dominante sede na Alemanha, não lhe seria aplicável a lei portuguesa.

Consequentemente, a razão da diferença de tratamento conferida, em matéria de créditos laborais, ao trabalhador de uma sociedade portuguesa dominada por uma sociedade estrangeira, consoante esta última tenha a sua sede dentro ou fora do território nacional resultaria, simplesmente, da diferença do direito aplicável, decorrente do respetivo estatuto pessoal. Não se estaria, pois, perante duas situações iguais, pelo que o tratamento divergente em nada ofenderia o princípio da igualdade, já que teria um fundamento perfeitamente legítimo.

12 - Este raciocínio, aparentemente linear, enfrenta, porém, objeção de monta.

Na verdade, o que está em causa não é saber se a diferenciação do regime de garantia dos créditos laborais entre trabalhadores de duas sociedades, uma portuguesa e outra estrangeira, é legítima, porque fundada na diversa lei pessoal. Se a questão fosse esta, então a resposta seria necessariamente afirmativa (pelo menos, se a sociedade estrangeira fosse extracomunitária).

É que a comparação a fazer incide sobre duas sociedades portuguesas e sobre trabalho prestado em Portugal. O que está em causa é determinar se o diferente estatuto pessoal da sociedade dominante - portuguesa ou estrangeira - constitui fundamento bastante para justificar um regime distinto de garantia dos créditos laborais a efetivar perante a sociedade dominada, em termos de os créditos dos trabalhadores ao serviço desta beneficiarem de menor proteção, no caso de a sociedade dominante ter sede fora do nosso país.

Por outras palavras: a diferença entre as duas sociedades dominantes, assente no respetivo estatuto pessoal, é suficiente para justificar o tratamento desigual, em Portugal, dos trabalhadores de sociedades de direito português por ela dominadas?

Continuando a assentar o raciocínio na comparação hipotética entre duas sociedades dominadas portuguesas e duas dominantes, uma com sede em Portugal e outra no estrangeiro, não parecem existir dúvidas de que a comparação produz resultados inteiramente idênticos sobre todos os pontos de vista, menos a localização da sede.

Podem as duas sociedades dedicar-se à mesma atividade, exatamente no mesmo local; ter sócios portugueses e/ou estrangeiros; contratar trabalhadores portugueses e/ou estrangeiros; produzir para o mercado português e/ou para exportação, etc. Enfim, tudo pode ser igual. Não obstante, os trabalhadores de ambas não beneficiariam da mesma garantia dos seus créditos laborais, apenas porque a sede da sociedade que controlava uma das sociedades dominadas - por «azar», a «sua» entidade patronal - se encontrava fora de Portugal. E, note-se, os trabalhadores em causa até poderiam ignorar esta diferença, uma vez que trabalhavam para duas sociedades portuguesas, ambas com sede em Portugal.

13 - O que se acaba de dizer justifica que haja de se levar mais longe este olhar sobre o princípio da igualdade, um dos princípios constitucionais de mais difícil aplicação. Como observa Maria da Glória F. P. Dias Garcia, «a igualdade é um conceito, por um lado, simples, e, por outro essencialmente relativo, e, em consequência deste último facto, uma realidade que pertence ao mundo das coisas pensadas» (Estudos sobre o Princípio da Igualdade, Coimbra, 2005, p. 469.

Na verdade, de uma certa forma, tudo é igual e tudo é diferente. Os seres humanos, não obstante a Declaração dos Direitos o Homem e do Cidadão os haver proclamado iguais em direitos, são todos distintos uns dos outros, não havendo dois verdadeiramente iguais. Todavia, o direito, em homenagem à sua dignidade própria, criou e estruturou um quadro lógico que assenta na ideia básica de que, em função de determinados fatores, variáveis no tempo e no espaço, eles devem ser considerados iguais ou podem (ou devem) ser tidos por diferentes.

É isso que explica que as leis fundamentais se preocupem em estabelecer critérios de diferenciação que consideram absolutamente inadmissíveis enquanto tais: a raça, o género, a religião, as ideias políticas, serão os mais comuns, como se pode comprovar da leitura do artigo 13.º da CRP. Mas não fazem mais do que exemplificar desigualdades, particularmente intoleráveis, mas reconduzíveis, de todo o modo, ao princípio de que aquilo que é igual deve ser igualmente tratado (e que é diferente, desigualmente tratado).

Mas se não são só estes os únicos critérios de diferenciação inadmissíveis, não é menos certo que nem todos os critérios de diferenciação são inadmissíveis.

O princípio a ter em conta nesta matéria é o de que onde «houver um tratamento desigual impõe-se uma justificação material da desigualdade [...] o tratamento desigual deve pautar-se por critérios de justiça, exigindo-se, desta forma, uma correspondência entre a solução desigualitária e o parâmetro de justiça que lhe empresta fundamento material» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007, pp. 340-341).

Esta ideia reencontra-se em Maria da Glória F. P. Dias Garcia, quando escreve «a qualificação de uma situação como igual a outra inclui, necessariamente, a razão pela qual ela deve ser tratada de certo modo» (op. cit., p. 52). Por outras palavras: «o princípio da igualdade não impõe a completa identidade; antes procura obstar a injustificadas diferenças de tratamento. O objectivo é impedir o tratamento desigual assente em diferença que se considera não poder ou dever fundar tal desigualdade de tratamento» (João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p.175). Pensando especificamente na função legislativa: «O princípio [da igualdade] não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento 'razoável, racional e objectivamente fundadas' [...]» (José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).

14 - A formulação de Vieira de Andrade foi acompanhada pelo Tribunal Constitucional designadamente no Acórdão 409/99:

«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional.»

Mais tarde, no Acórdão 522/06, transcreve-se, citando Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, pp. 370-371), uma formulação do Tribunal Constitucional da Alemanha que esteve seguramente na origem daquela outra (nacional):

«o carácter arbitrário de uma diferenciação legal decorre da circunstância de '[..]não ser possível encontrar [...] um motivo razoável, que surja da própria natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível[...]'. Daí que 'não exista razão suficiente para a permissão de uma diferenciação [legal] se todos os motivos passíveis de ser tomados em conta tiverem de ser considerados insuficientes. É justamente o que sucede, quando não se logra atingir uma fundamentação justificativa da diferenciação [...]'. A máxima de igualdade implica, assim, um ónus de argumentação justificativa para tratamentos desiguais.»

Reconhece-se, pois, como evidência, que existem diferenciações constitucionalmente conformes e diferenciações constitucionalmente inaceitáveis. Há agora que progredir na distinção entre umas e outras.

15 - No Acórdão 269/2008 passou-se em revista a jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao princípio da igualdade. Transcrevemos um excerto particularmente significativo, no que respeita ao aprofundamento da ideia de «diferenciação inaceitável»:

«Como sempre se tem dito - e como foi repetido, em síntese expressiva de todo o acervo jurisprudencial anterior, pelo Acórdão 232/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - enquanto vínculo específico do poder legislativo (pois só essa sua 'qualidade' agora nos interessa), o princípio da igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas 'vertentes' ou 'dimensões': uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que se trata - tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação - é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude - em elenco não fechado - o n.º 2 do artigo 13.º É que a Constituição entende que tais características, pela sua natureza, não poderão ser à partida fundamento idóneo das diferenças de tratamento legislativamente instituídas.»

Ficamos agora seguros de que nos encontramos perante um problema de proibição do arbítrio - e não perante uma eventual descriminação. Por outras palavras: estaremos perante uma ofensa ao princípio da proibição do arbítrio se e na medida em que se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante.

Há então que avançar no sentido da densificação do conceito de proibição do arbítrio, continuando a recorrer à jurisprudência e à doutrina constitucionais.

16 - Começará por dizer-se que «a proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão dos poderes públicos», não eliminando a liberdade de conformação do legislador, que não fica reduzido ao estatuto de executor mecânico do imperativo constitucional (Gomes Canotilho e Vital Moreira, idem, p. 339 no mesmo sentido, cf. também e entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/14).

Mas tal espaço de conformação não é infinito: Jorge Miranda e Rui Medeiros acrescentam que «não surpreende, neste contexto, o reconhecimento generalizado de que a liberdade de conformação do legislador no âmbito da concretização do princípio da igualdade deve estar sujeita a limites materiais efetivos» (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, 2010, p. 225).

Estes limites efetivos, contudo, não resultam da hipotética imposição de uma escolha racional. O legislador não tem de escolher a «melhor solução», nem sequer uma «boa solução», podendo (embora não deva) optar por soluções irracionais ou incongruentes. O que esta irracionalidade ou incongruência não pode é implicar «diversidades de tratamento não fundadas em motivos razoáveis.» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 546/2011).

É que, constituindo o princípio da igualdade uma «norma de controlo», não pode desconsiderar-se que «em sede de controlo da constitucionalidade, não cabe aos respetivos órgãos emitir propriamente um juízo 'positivo' sobre a solução legal: ou seja, um juízo em que o órgão de controlo comece por ponderar a situação como se fora o legislador (e como que 'substituindo-se' a este) para depois aferir da racionalidade da solução legislativa pela sua própria ideia do que seria, no caso, a solução 'razoável', 'justa' ou 'ideal'. Os órgãos de controlo da constitucionalidade não podem ir tão longe: o que lhes cabe é tão-somente um juízo 'negativo' que afaste aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de credenciar-se racionalmente» (Parecer 26/82 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 20.º Volume, 1984, pp. 223/224). Nesta linha, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/90 resumiu: «a 'teoria da proibição do arbítrio' não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo jurisdicional.»

Acrescente-se que, «embora o juízo de igualdade seja um juízo relativo, a comparação não está confinada ao confronto entre disposições normativas, devendo igualmente atender-se, tendo em conta uma perspetiva sistémica, ao modo como a solução normativa sindicada se integra no sistema jurídico como um todo» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 226).

Por último, «a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensa do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, da falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 270/09).

17 - De tudo quanto ficou dito sobre a proibição do arbítrio, podemos extrair quatro conclusões essenciais:

1.º O legislador pode, seguramente, estabelecer diferenciações: todavia, essa liberdade de diferenciar é uma liberdade condicional, sujeita a limitações;

2.º Assim, uma diferenciação promovida pelo legislador sem um fundamento racional e material suficiente é arbitrária;

3.º A comparação indispensável para comprovar a existência de respeito ou desrespeito pelo princípio da igualdade deve ser sistemicamente contextualizada;

4.º O Tribunal Constitucional, no exercício do controlo do respeito pelo princípio da igualdade na dimensão da proibição do arbítrio, deve limitar-se a um juízo de censura das diferenciações injustificadas.

Temos agora matéria-prima teórica suficiente para regressar ao caso que no ocupa.

18 - E, precisamente, o ponto decisivo para a ponderação da constitucionalidade no caso que nos ocupa está, como se disse, em apurar se existe fundamento material bastante para que um trabalhador, em Portugal, ao serviço uma sociedade comercial pertencente a um grupo e dominada por uma sociedade estrangeira com sede noutro país possa ter, no plano da garantia dos créditos emergentes da relação laboral, um tratamento menos favorável do que um outro trabalhador em Portugal ao serviço uma sociedade comercial pertencente a um grupo e dominada por uma sociedade estrangeira com sede no nosso país.

Dito por outras palavras: a diferença de localização geográfica da sede da sociedade dominante - sita em Portugal ou noutro país - é fundamento material suficiente para determinar e legitimar um distinto nível de proteção dos créditos do trabalhador emergentes da relação laboral ou da sua rutura?

Antes de ponderar a resposta a esta questão, há que afastar um argumento que poderia ser utilizado para contestar hipotética conclusão no sentido da qualificação da situação como ofensiva do princípio da igualdade.

Uma tal conclusão não implica, de nenhum modo, assumir a aplicação da lei portuguesa a sociedades de direito alemão, numa espécie de extraterritorialidade. Claro que a hipótese de a lei portuguesa ser aplicável somente se coloca na medida em que existe um poderoso elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa: a sociedade dominante alemã instalou-se livre e voluntariamente em Portugal para aqui desenvolver a sua atividade, para o que criou uma sociedade portuguesa, de que detinha mais de 99 % do capital social. Não se trata de uma qualquer sociedade alemã, operando no seu ou em outro país, a que a lei portuguesa, por interposto capricho de jurista nacional insensato, pretendesse submeter, para espanto seu, a uma lei estrangeira e estranha.

Ou seja: o juízo sobre a legitimidade ou ilegitimidade da diferenciação resulta da ponderação crítica da sua razão de ser.

19 - Vejamos então.

O tratamento diferenciado duas sociedades comerciais, uma com sede em Portugal, outra fora do país, nada tem de arbitrário. A diferenciação assenta na lei pessoal, determinada de acordo com a norma de conflitos portuguesa, o artigo 33.º do Código Civil, resultando da existência de distintas ordens jurídicas.

Esta norma legitimaria, de alguma forma, o resultado da aplicação combinada dos artigos 334.º do CT - «Por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais» e 482.º, n.º 2, do CSC - «O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal.» Esse resultado seria a exclusão da responsabilidade da sociedade dominante com sede fora de Portugal.

Estando em causa o princípio da igualdade, indispensável é esclarecer o que é que estamos a comparar, em ordem a apurar qual é a diferenciação e, depois, proceder à ponderação desta.

Para evitar equívocos, convém deixar claro que:

a) Não temos que comparar sociedades, mas trabalhadores;

b) Não temos que comparar trabalhadores alemães e trabalhadores portugueses;

c) Não temos que comparar trabalhadores na Alemanha e trabalhadores em Portugal;

d) Nem temos sequer que comparar trabalhadores ao serviço de empresas alemãs e trabalhadores ao serviço de empresas portuguesas.

Na verdade, o que temos de comparar é a situação jurídico-laboral, no plano dos créditos emergentes desta, de dois (a) trabalhadores portugueses, (b) ao serviço de empresas portuguesas, (c) trabalhando ambos em Portugal. O único fator de diferenciação é a circunstância de as empresas para que trabalham integrarem grupos económicos, tendo um deles a sociedade dominante sediada em Portugal e o outro a sociedade dominante sediada na Alemanha.

É este fator de diferenciação que cumpre apreciar.

20 - Permitimo-nos, neste ponto, transcrever de novo um pequeno passo das alegações do magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal:

«Isto é, sem que invoque um motivo racional atendível, omisso nos trabalhos preparatórios, o legislador ordinário estabelece uma discriminação intolerável entre trabalhadores postados em situações substantivamente idênticas, desprotegendo, infundadamente, aqueles que, por força de uma circunstância que não controlam e que, eventualmente, podem desconhecer, contratem com um empregador dominado por sociedade sediada fora de Portugal.»

No entender do Tribunal, este é o ponto fundamental: a diferenciação assim construída, fundada em situação cuja lógica escapa aos trabalhadores (note-se que a sociedade dominante até pode mudar o local da sua sede - por razões fiscais, por exemplo -, sem que os trabalhadores portugueses, em Portugal, da sociedade dominada portuguesa disso sejam, ou tenham de ser, informados) e que podem mesmo ignorar - em absoluto ou, pelo menos, quanto às suas implicações - pode ser considerada «razoável, racional e objetivamente fundada»?

Entendemos que não. E, note-se que não estamos a considerar a solução legislativa má ou até a pior possível. O que dizemos é que ela implica - e não poderia implicar - uma diferença de tratamento para a qual se não encontram motivos razoáveis e racionais.

E se houvesse de colocar num dos pratos da balança da justiça o respeito absoluto pela regra de que uma sociedade se rege pelo direito aplicável no local da sua sede e no outro prato o princípio da igualdade, especificamente em matéria de garantias dos créditos fundados em trabalho subordinado prestado em Portugal, não haveria dúvidas de que este último deveria prevalecer. Até porque este, ao contrário daquele outro, se apoia numa norma constitucional.

A distinção operada pelo legislador, na medida em que diferenciou sem fundamento material bastante, não pode deixar de ser considerada contrária à CRP.

Nestas condições, impõe-se sufragar a posição adotada na decisão recorrida, julgando inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas no artigos 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais «na parte em que impedem a responsabilidade solidária de sociedades com sede fora do território nacional, por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, de empregadores com as quais se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, por violação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento, contido no artigo 13.º, n.os 1 e 2, da CRP».

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, da CRP; e, em consequência,

b) Negar provimento ao recurso.

Sem custas.

Lisboa, 28 de abril de 2015. - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração em anexo) - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de Voto

Vencida quanto ao juízo de inconstitucionalidade.

1 - O princípio da igualdade serve para sindicar diferenças de tratamento criadas pelo legislador ao regular situações que recaiam no âmbito de aplicação da lei nacional. Pressuposto de validade de uma norma é, logicamente, a aplicabilidade da mesma.

Se, por força de uma regra de conflito, a lei portuguesa não fosse sequer aplicável, então não se estaria, em rigor, perante uma desigualdade de tratamento criada pelo legislador para a qual se poderia questionar a existência ou não de fundamento material bastante, mas perante algo diferente. Nessa hipótese, estar-se-ia perante uma situação A, à qual a lei portuguesa seria aplicável e perante uma situação B, à qual, por força de uma regra de conflitos, a lei portuguesa pura e simplesmente não se aplicaria. Não sendo a lei portuguesa aplicável a ambas as situações, não faria qualquer sentido equacionar como problema jurídico a violação do princípio da igualdade.

2 - O tribunal a quo não questionou a aplicabilidade da lei portuguesa à situação dos autos, designadamente a aplicabilidade da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 334.º do Código do Trabalho e 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais.

Foi por ter assumido a aplicabilidade dessa norma à situação dos autos que a decisão recorrida decidiu recusar a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade.

Ao Tribunal Constitucional não cabe, obviamente, discutir a correção ou não da interpretação do direito infraconstitucional efetuada pela decisão recorrida, designadamente no que respeita à aplicabilidade da lei portuguesa, mas tão-somente apreciar a conformidade da mesma face à Constituição.

Ora, qualquer que tenha sido a razão que tenha levado o legislador a autolimitar o âmbito de aplicação do artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais e por muitas críticas que essa opção legislativa possa merecer por parte da doutrina (José A. Engrácia Antunes, «O âmbito de aplicação do sistema das sociedades coligadas», in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Vol. II., Almedina, Coimbra, 2002, págs. 95-116, págs. 106 e segs.), não creio que a mesma seja passível de censura jurídico-constitucional.

O juízo relativo à violação do princípio da igualdade, na sua dimensão mínima de proibição do arbítrio, pela sua própria natureza, tem que assentar em critérios de evidência que não são compatíveis com ponderações a fazer pelo Tribunal Constitucional.

E, a meu ver, neste caso, o Tribunal, para proceder ao juízo de inconstitucionalidade, fundou-se essencialmente num julgamento de ponderação, uma vez que colocou «num dos pratos da balança da justiça o respeito absoluto pela regra de uma sociedade que se rege pelo direito aplicável no local da sua sede» e, no outro, «o princípio da igualdade, especificamente em matéria de créditos fundados no trabalho subordinado prestado em Portugal» concluindo, a final, pela «prevalência do princípio da igualdade» sobre essa outra «regra», relativa «ao direito aplicável».

No entanto, a densidade do escrutínio de que o Tribunal dispõe quando está em causa a censura de escolhas legislativas fundada apenas em violação do n.º 1 do artigo 13.º da CRP não me parece compatível - por razões que, creio, resultam bem claras da jurisprudência sedimentada do Tribunal relativamente ao que deva entender-se por proibição do arbítrio legislativo - com o recurso cumulativo a técnicas de ponderação. A ausência de racionalidade de uma qualquer distinção de regimes que seja estabelecida pelo legislador não se pondera. Verifica-se; e deixa de verificar-se a partir do momento em que, a fundar a diferença, se encontra um qualquer motivo que seja intersubjetivamente inteligível. E isto qualquer que seja o «peso» valorativo próprio que o Tribunal (que não sanciona o mérito das escolhas legislativas) reconheça ou deixe de reconhecer a esse mesmo motivo. - Maria Lúcia Amaral.

Declaração de Voto

Vencida.

O presente acórdão parte do seguinte pressuposto: a aplicação do regime de responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, previsto no artigo 334.º do Código do Trabalho, apenas a sociedades com sede em Portugal (nos termos do n.º 2 do artigo 481.º do Código das sociedades Comerciais, doravante CSC) importa um tratamento menos favorável dos trabalhadores de empresas dominadas por (ou em relação de grupo com) sociedades sediadas no estrangeiro que, desta forma, não gozam do mesmo nível de proteção dos créditos laborais dos trabalhadores de empresas dominadas por (ou em relação de grupo com) sociedades sediadas em Portugal.

Um tal pressuposto ficou, todavia, por demonstrar. Apesar de o acórdão indicar que «o que temos de comparar é a situação jurídico-laboral, no plano dos créditos emergentes desta, de dois (a) trabalhadores portugueses, (b) ao serviço de empresas portuguesas, (c) trabalhando ambos em Portugal», o que acaba, afinal, por fazer é tão-só questionar o regime decorrente da norma de conflitos aplicável, concluindo que «A distinção operada pelo legislador, na medida em que diferenciou sem fundamento material bastante, não pode deixar de ser considerada contrária à CRP».

Acontece que a diferença detetável na análise do caso resulta da incidência de diferentes regimes de garantias dos créditos laborais, consoante a sociedade dominante da entidade patronal tenha sede em Portugal ou noutro país. O que está em causa é, portanto, o regime de responsabilidade aplicável a uma pessoa coletiva com sede fora do território nacional - neste caso, uma sociedade comercial estrangeira integrada no mesmo grupo societário a que pertence a sociedade portuguesa que é a entidade patronal.

Ora, resulta do artigo 3.º, n.º 1, do CSC e do artigo 33.º, n.º 1 e 2, do Código Civil, a regra de que é aplicável às pessoas coletivas «a lei pessoal do Estado onde se encontre situada a sede principal e efetiva da administração da sociedade», competindo à lei pessoal especialmente regular a responsabilidade da pessoa coletiva. Estas normas não integram, porém, o pedido, não tendo sido desaplicadas nem objeto do juízo de inconstitucionalidade, pelo que mantêm a sua vocação de aplicabilidade ao caso. Assim sendo, a lei que regula a responsabilidade da empresa em causa é (e continuará a ser) a lei alemã e não a portuguesa.

Num contexto em que está em causa a definição, pela norma de conflitos, do regime de responsabilidade das pessoas coletivas aplicável ao caso, não compreendo como pode afirmar-se a verificação de violação do princípio da igualdade. O âmbito do princípio da igualdade incide sobre as diferenças de tratamento criadas pelo legislador ao regular situações no exercício do seu poder soberano. Se, por força das regras de conflito aplicáveis, não é a lei portuguesa que regula a matéria então, a verificar-se alguma desigualdade no regime de responsabilidade entre sociedades que se regem por leis diferentes, ela não decorrerá da lei portuguesa, ou sequer da lei estrangeira aplicável ao caso, antes da simples incidência de regimes jurídicos distintos. As duas situações - as relativas à empresa portuguesa e à empresa alemã - regem-se por leis diferentes, integrando regimes legais de responsabilidade distintos. A diferença é uma decorrência da aplicação da norma de conflitos, não dos regimes em si.

Esta é, pois, a razão da diferença e que logra fundamento legítimo à luz da Constituição: as situações são reguladas por ordens jurídicas soberanas diferentes. - Maria de Fátima Mata-Mouros.

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Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/880019.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-17 - Acórdão 232/2003 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do segmento normativo que contém o critério respeitante aos candidatos que tenham acedido ao ensino superior integrados no contingente da Região Autónoma dos Açores, constante da parte final da alínea a) do n.º 7 do artigo 25.º do Regulamento do Concurso do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário.(Pocesso nº 306/2003)

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2021-07-06 - Acórdão do Tribunal Constitucional 272/2021 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rut (...)

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