Acórdão 870/96
Processo 327/96
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, como representante do Ministério Público, veio requerer «ao abrigo dos artigos 282.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso».
Para fundamentar o seu pedido, o requerente invoca que «tal norma foi explicitamente julgada inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 2, conjugado com o artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, através dos Acórdãos n.os 488/95, de 27 de Setembro, 556/95, de 17 de Outubro, e 611/95, de 8 de Novembro», tendo juntado fotocópia desses acórdãos.
2 - Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º da citada Lei 28/82, o Primeiro-Ministro não apresentou resposta.
Cumpre, pois, decidir.
3 - O artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, o actual OTM, dispõe como se segue:
«A intervenção de mandatário judicial só é admitida para efeitos de recurso.»
Esta norma veio, com efeito, e tal como se alega no requerimento inicial, a ser julgada inconstitucional nos acórdãos deste Tribunal Constitucional aí identificados, e cujas fotocópias se juntam com o pedido, por violação do artigo 20.º, n.º 2, conjugado com o artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso.
Efectivamente, no Acórdão 488/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 267, de 18 de Novembro de 1995, escreveu-se:
«A actual OTM, aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, nasceu da necessidade de adaptar a orgânica dos tribunais de menores ao novo esquema de alterações introduzidas à organização dos tribunais judiciais pela Lei 28/77, de 6 de Dezembro.
Esta lei repartiu pelos tribunais de menores e os de família a competência que vinha sendo tradicionalmente atribuída aos primeiros.
Daí a necessidade de um novo diploma, onde se opere uma profunda remodelação do sistema.
Como refere David Borges de Pinho (Da Protecção Judiciária dos Menores e do Estado, p. 15):
'[C]om o Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro (actual OTM), pretendeu-se sublinhar o carácter protector e educativo que se deseja vingar na jurisdição tutelar, e daí que, consequentemente, já não se fale em medidas de prevenção criminal. Assim, o acento tónico de tal jurisdição tutelar recai hoje nos aspectos proteccionistas, assistencial e educativo das medidas a aplicar pelos tribunais, muito embora não se possa olvidar que, protegendo-se judicialmente os menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através de tais medidas, estar-se-á, consequentemente, a efectivar todo um trabalho de prevenção criminal que, naturalmente e logicamente, não deixará de advir de uma aplicação atempada, correcta e ajustada de tais medidas.'
Tendo o processo tutelar por fim a aplicação de medidas tutelares de protecção, assistência e educação a menores, é um processo de tramitação simples e resumida, que visa encontrar a medida mais adequada a essa finalidade. Assim:
No processo não há acusação - nem as promoções de curador nem o seu parecer final constituem acusação, nos termos em que esta é entendida em processo criminal comum;
Não se admitem nele assistentes - apenas se permitindo a intervenção de mandatário judicial na fase de recurso - artigos 40.º e 41.º;
Inexiste audiência de discussão e julgamento - em sistema de contraditório, como sucede no processo criminal comum.
'Tudo é simples e de execução sumária neste processo' (cf. Manuel de Oliveira Leal-Henriques, Organização Tutelar de Menores, p. 22).
[...] Norteado pela regulação de um interesse primordial, que é o do interesse do menor, o processo tutelar é um processo em que a natureza da intervenção do juiz implica também o exercício de uma actividade que postula o contacto imediato do juiz com os interessados, que apela por vezes à sua capacidade imaginativa (cf. Manuel de Oliveira Leal-Henriques, ob. cit., p. 108) e que visa, antes de mais, como já se referiu, a protecção, a assistência e educação do menor no processo tutelar.
Como diz Borges de Pinho na passagem atrás transcrita, embora na OTM já não se fale em medidas de prevenção criminal, protegendo-se judicialmente os menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através das medidas tutelares, está-se a efectuar um trabalho de prevenção criminal que terá de advir de, entre o mais, uma aplicação atempada de tais medidas.
Ora, a aplicação atempada dessas medidas pressupõe que tudo seja simples e de execução sumária, sob pena de o efeito útil de tais medidas se perder.
São medidas cuja aplicação se destina rapidamente a evitar que o menor entre (se não se encontrar já) em situação de risco: de abandono, de maus tratos, de vadiagem, de agente ou potencial agente de crime, etc. Medidas que, pela imediata necessidade de as aplicar e eventual menos boa adequação ao caso, podem ser revistas a todo o momento.
[...] Pergunta-se então: é o fim que tem em vista o processo tutelar (a aplicação de medidas de protecção, assistência e educação), o modo como se desenvolve (simplicidade motivada pela urgência, em regra, das medidas), a inexistência de 'partes' (como sujeitos de interesses contrastantes) e o facto de o menor não estar desprotegido na defesa dos seus interesses (ao curador cabe zelar pelos mesmos) que fazem com que não se justifique a intervenção de mandatário judicial naquela fase?
Ou antes, não será desproporcionada ou desadequada a medida legal restritiva do artigo 41.º da intervenção do mandatário judicial só 'para efeitos de recurso'?
É aqui que se tem de ponderar e resolver se se mostra ou não violado o princípio do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, na vertente da 'intervenção de mandatário judicial', em processo tutelar (o direito ao patrocínio judiciário reconhecido no n.º 2 daquele artigo 20.º), quando conjugado com o artigo 18.º, n.os 2 e 3.
Ora a restrição ao patrocínio judiciário - elemento integrador daquele direito - revela-se, à luz do artigo 18.º, n.os 2 e 3, da lei fundamental, desproporcionada e desadequada, pois excluindo-se a defesa dos interesses do menor e dos direitos que na matéria cabem aos pais por um mandatário judicial, ainda que ela não se mostre absolutamente necessária, atinge-se o núcleo essencial do referido direito (direito à nomeação no processo de um 'intermediário técnico', 'entendido como a representação em juízo das partes ou sujeitos processuais por profissionais do foro, no que se reporta à condução técnico-jurídica do processo').
Na verdade, o juiz pode, no decurso do processo, adoptar medidas que restringem fortemente a liberdade dos menores e os poderes que cabem a seus pais.
Assim, há-de entender-se que os interesses do menor e os correspondentes direitos dos pais podem não ficar suficientemente protegidos com a intervenção do Ministério Público e até com a intervenção do próprio juiz, a quem é conferido o poder de julgar como o árbitro, não se podendo considerar salvaguardado esse 'núcleo essencial', e nem a celeridade exigida por tal tipo de processos, visando acudir a um menor em risco ou em vias de o estar, justifica a dispensa de mandatário judicial.
Aliás, do texto constitucional, a propósito da filiação e do poder paternal, extrai-se um complexo de direitos e deveres que espelham aquele poder e o superior interesse dos filhos. Assim:
Os 'pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos' (n.º 5 do artigo 36.º);
Os 'filhos não podem ser separados dos pais' (n.º 6 do artigo 36.º);
Ao Estado incumbe cooperar 'com os pais na educação dos filhos' [artigo 67.º, alínea c)];
Os 'pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insusbstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação' (n.º 1 do artigo 68.º).
Caracterizando-se o poder paternal, minuciosamente regulado nos artigos 1877.º e seguintes do Código Civil, 'não como um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas como um conjunto de poderes-deveres, como uma situação jurídica complexa em que avultam poderes funcionais, que devem ser exercidos altruisticamente, no interesse do filho, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu harmonioso e integral desenvolvimento físico intelectual e moral' (na linguagem do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 8/91, de 16 de Janeiro de 1992, in Boletim, n.º 418, pp. 285 e segs., com análise detalhada do instituto do poder paternal), com tal caracterização compadece-se a defesa plena dos interesses do menor e, bem assim, a dos correlativos direitos dos pais no processo tutelar por um mandatário judicial, sendo desproporcionado e desadequado excluir ou restringir essa defesa.»
Por seu turno, o Acórdão 556/95 aderiu àqueles fundamentos do Acórdão 488/95, aditando ainda o seguinte:
«2 - Adite-se às considerações constantes do transcrito acórdão, e o título de concretização exemplificativa, que no processo tutelar é possível a imposição de medidas, ainda que cautelares, que fortemente vão restringir o próprio poder paternal, mesmo nos casos em que a situação do menor justificativa da adopção de tais medidas não tem como causa, quer remota, quer imediata, um comportamento activo ou passivo por banda daqueles a quem é confiada a representação do menor.
Isso, só por si, justifica que os interesses, direitos e deveres destes últimos se devam perspectivar como impondo o devido acautelamento da respectiva intervenção o processo tutelar, até porque, seguramente, não será difícil cogitar a ocorrência daquilo que, como se lê na alegação apresentada pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, são 'apreciações divergentes sobre a melhor forma de realizar o interesse do menor'.
Ora, uma tal intervenção, como forma de acesso aos próprios tribunais, não pode deixar de supor 'logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares' (palavras do Acórdão 444/91, publicado na 2.ª série do Diário da República, de 2 de Abril de 1991), o que implicará que esse direito fundamental - o acesso aos tribunais - venha a integrar o direito ao patrocínio judiciário, como aliás tem sido, sem discrepância, reconhecido.
3 - Não se vislumbram razões que militem no sentido de a restrição decorrente da norma em apreço se postar como adequada, necessária ou proporcionada em face dos objectivos de celeridade do processo tutelar ou da circunstância de ali não haver um arguido ou não impender sobre o menor uma acusação, ou não se visar senão a protecção do mesmo.
Quanto ao primeiro aspecto, ele só se poderia colocar perante uma óptica segundo a qual a intervenção de mandatário judicial ou uma qualquer outra forma de patrocínio judiciário contribuem para diminuir a celeridade processual, o que certamente é algo de indefensável.
Tocantemente ao segundo, e como se disse já, muito embora as características do processo tutelar o distingam de outras formas de composição de litígios, sendo norteado por objectivos diferentes, isso não significa que haja diferentes apreciações do que seja mais favorável para o menor, sendo até que a intervenção dos progenitores, devidamente patrocinados, pode dar importantes contributos para permitir ao juiz uma visão mais adequada e concretizada sobre a situação sujeita à sua apreciação e da medida aconselhável ao caso, pesando devidamente os interesses daqueles progenitores e as soluções por eles aventadas, na decorrência dos direitos que, constitucional e legalmente, lhes cabem.»
4 - Estando, pois, preenchidos os requisitos constitucionais e legais que permitem requerer a este Tribunal Constitucional, à luz dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade de uma norma, com força obrigatória geral, verifica-se que, nas três decisões apontadas, a norma do artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores veio a ser julgada inconstitucional, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso (cf. também o Acórdão 504/96, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 153, de 4 de Julho de 1996).
Ora, nada há que acrescentar ao que se escreveu nos acórdãos citados, que acolhem uma orientação jurisprudencial que vem sendo firmemente mantida por este Tribunal Constitucional, pelo que continua a entender-se que a norma em apreço, e na dimensão assinalada, é inconstitucional.
5 - Termos em que, decidindo, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 20.º, n.º 2, conjugado com o artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, da norma do artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso.
Lisboa, 4 de Julho de 1996. - Guilherme da Fonseca - Maria da Assunção Esteves - Bravo Serra - Maria Fernanda Palma - Armindo Ribeiro Mendes - José de Sousa e Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - Alberto Tavares da Costa - Fernando Alves Correia - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.