Lei 33/95
de 18 de Agosto
Autoriza o Governo a rever o Código de Processo Civil
A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 164.º, alínea e), 168.º, alínea q), e 169.º, n.º 3, da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º Fica o Governo autorizado a rever o Código de Processo Civil, o Código Civil e as leis de organização judiciária, nos termos e com o âmbito resultantes da presente lei.
Art. 2.º As alterações a introduzir na execução desta autorização visam concretizar, no processo civil, o direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, consagrando que tal direito envolve a obtenção, em prazo razoável, de uma decisão de mérito e afirmando como princípios estruturantes do processo civil o princípio do contraditório, designadamente na medida em que pressupõe que, em momento prévio à decisão, tenha sempre lugar a audição das partes sobre as questões de direito ou de facto suscitadas, e o princípio da igualdade das partes.
Art. 3.º Na lei de processo será consagrada a legitimidade para a tutela de interesses difusos nas acções que visem a defesa da saúde pública, do ambiente e qualidade de vida, do ordenamento do território e do património cultural, conferindo-a ao Ministério Público, às associações de defesa dos interesses em causa e aos cidadãos.
Art. 4.º No quadro dos princípios enunciados nos artigos anteriores, as alterações a introduzir na lei de processo, em matérias conexas com a competência dos tribunais e do Ministério Público, deverão contemplar:
a) A adequação plena à Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais das normas de competência interna em razão da hierarquia, da matéria e da estrutura, procedendo, designadamente, à revogação dos artigos 63.º e 64.º do Código de Processo Civil e adaptando a competência para as questões reconvencionais à articulação entre tribunais de comarca e de círculo;
b) A articulação da competência para o cumprimento de cartas precatórias com a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, esclarecendo, designadamente, os casos em que a competência é do tribunal de círculo ou do tribunal de comarca, bem como as hipóteses em que tal competência pertence a tribunais de competência especializada;
c) A regulação da competência internacional dos tribunais, aproximando e adequando tal matéria ao previsto na Convenção de Bruxelas e reformulando o regime dos pactos privativos e atributivos de jurisdição, bem como as condições de validade da eleição do foro;
d) A ampliação dos casos de competência territorial determinada em função da situação dos bens, por forma a abranger as acções referentes a direitos pessoais de gozo sobre imóveis, e a adequação de tal competência à eliminação das acções de arbitramento como categoria de processo especial, subsistindo apenas a divisão de coisa comum;
e) A ampliação da competência territorial determinada em função do lugar do cumprimento das obrigações aos casos de resolução por incumprimento, consagrando-se a possibilidade de escolha do credor entre os tribunais do local do cumprimento ou do domicílio do réu;
f) A clarificação do regime da competência territorial no caso de inventário por óbito dos cônjuges, quando vigore o regime de separação de bens, e a regulação expressa da atribuição de competência no caso de cumulação de inventários;
g) A adequação das normas sobre competência territorial para o processo de falência ao diploma que institui o processo especial de recuperação de empresas e de falência;
h) A integração da lacuna relativa à determinação da competência territorial no caso de cumulação de pedidos para que sejam competentes tribunais diversos, estabelecendo, como regra, o critério da escolha do autor, salvo nos casos de dependência dos pedidos ou de incompetência territorial de conhecimento oficioso para algum desses pedidos;
i) A clarificação do âmbito da competência dos tribunais judiciais no que respeita ao decretamento do embargo de obra nova realizada por entidades públicas, articulando-a com o estabelecido na Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;
j) A adequação das disposições da lei processual civil à competência conferida ao Ministério Público pela respectiva Lei Orgânica para representar em juízo, do lado activo, os incapazes, propondo acções adequadas à defesa dos seus interesses, e a definição dos efeitos processuais da oposição a tal intervenção principal, quando deduzida pelo representante legal do incapaz;
l) A ampliação dos casos de impedimento do juiz às situações em que é parte na causa qualquer pessoa que com ele conviva em economia comum, adequando em conformidade o regime relativo às acções em que é parte o juiz ou seus familiares.
Art. 5.º As alterações a introduzir no regime da citação, no quadro dos princípios enunciados nos artigos 1.º a 3.º, contemplarão:
a) O alargamento às pessoas singulares da possibilidade de citação por via postal, sem prejuízo das garantias do citado;
b) A previsão da possibilidade de a citação ser realizada pelo mandatário judicial ou por pessoa por ele indicada, regulando-se o respectivo regime.
Art. 6.º As alterações à lei processual deverão consagrar o dever de cooperação para a descoberta da verdade, a par da necessidade de uma adequada ponderação, em termos de proporcionalidade, eticamente fundada, entre o direito à reserva da intimidade da vida privada e a obtenção da verdade material e os direitos e interesses da contraparte, dentro do seguinte quadro:
a) Previsão, como regime geral, da legitimidade da recusa quando o cumprimento de tal dever de cooperação possa importar violação da integridade física ou moral das pessoas, intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações ou violação do sigilo profissional e de outros deveres de sigilo previstos na lei;
b) No caso de invocação de sigilo profissional, remissão, com as adaptações impostas pela natureza civil dos interesses em causa, para o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado;
c) Em situações de mera confidencialidade de dados que se encontrem na disponibilidade de serviços administrativos e que se refiram à identificação, à residência, à profissão e à identificação da entidade empregadora, ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes, atribuição ao juiz da causa da faculdade de, em despacho fundamentado e com vista, designadamente, à realização da citação ou à efectivação da penhora, determinar a prestação de informações ao tribunal, quando as considere essenciais ao regular andamento do processo ou à justa composição do litígio;
d) Relativamente ao exercício da faculdade prevista na alínea anterior, restrição da utilização dos elementos obtidos à medida indispensável para a realização dos fins que determinaram a sua requisição, excluindo a sua divulgação injustificada e a possibilidade de constituírem objecto de ficheiros de informações nominativas;
e) Admissão como causa de recusa legítima a depor como testemunha da existência de segredo profissional ou de outro legalmente tutelado, desde que o depoimento se reporte a factos abrangidos pelo dever de sigilo, remetendo-se, no que respeita a eventual quebra do segredo, para as disposições gerais sobre o direito probatório;
f) Regulação da matéria da publicidade, consulta e acesso ao processo, articulando o interesse do requerente com a tutela de eventuais direitos à reserva e intimidade das partes ou de terceiros.
Art. 7.º No que se refere ao regime dos recursos, as alterações a introduzir situar-se-ão dentro do seguinte quadro:
a) Ampliação dos poderes do relator no que se refere ao julgamento dos recursos, conferindo-se-lhe competência para proferir despachos interlocutórios e sobre incidentes suscitados e para julgar sumariamente o objecto do recurso quando a questão a decidir for simples, designadamente por ter já sido apreciada, de modo uniforme e reiterado, pela jurisprudência, ou quando o recurso for manifestamente infundado, sem prejuízo de a parte vencida reclamar para a conferência;
b) Instituição da possibilidade de recurso per saltum da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça quando o valor da causa e da sucumbência for superior à alçada da Relação, circunscrevendo-se o objecto do recurso à decisão de questões de direito se algumas das partes requererem a subida directa do recurso àquele Supremo Tribunal;
c) Restrição, relativamente ao regime de agravo em 2.ª instância, do recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça às decisões da Relação que hajam confirmado as proferidas em 1.ª instância quando o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito;
d) Relativamente ao que dispõe a alínea anterior, salvaguardar o regime de recurso das decisões referentes ao valor da causa e daquelas a que se referem o n.º 2 do artigo 678.º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 734.º do Código de Processo Civil, bem como das decisões a que se refere o artigo 621.º, quando declararem a inexistência de uma excepção peremptória;
e) Ampliação da competência das secções cíveis reunidas para, no âmbito de um julgamento ampliado da revista, proceder à uniformização da jurisprudência, oficiosamente ou a requerimento das partes, revogando, para tanto, a alínea b) do artigo 26.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, eliminando o recurso para o tribunal pleno e revogando, concomitantemente, o artigo 2.º do Código Civil.
Art. 8.º Relativamente à acção executiva, fica o Governo autorizado a:
a) Rever o regime da penhorabilidade e impenhorabilidade dos bens, articulando-o com a lei substantiva, distinguindo as hipóteses de penhorabilidade absoluta, relativa, parcial e subsidiária e suprindo as lacunas referentes à penhora de depósitos bancários, estabelecendo o dever de comunicação ao tribunal do saldo da conta e regulando os termos da respectiva indisponibilidade pelo executado, e à penhora do estabelecimento comercial;
b) Alterar o Código Civil, eliminando a moratória forçada prevista no n.º 1 do artigo 1696.º e adequando a lei de processo a tal alteração;
c) Ampliar o formalismo da execução sumaríssima a todas as execuções fundadas em decisão judicial condenatória, dispensando-se a citação do executado previamente à realização da penhora.
Art. 9.º - 1 - Fica o Governo autorizado a expurgar do Código de Processo Civil preceitos avulsos que estabeleçam, desnecessariamente ou em colisão com a lei penal vigente, a tipificação como crimes de determinados comportamentos das partes ou de quaisquer intervenientes processuais.
2 - No âmbito previsto no número anterior, compreende-se na presente autorização:
a) A revogação dos segmentos dos artigos 243.º, n.º 2, 850.º, n.º 2, 1399.º, n.º 3, 1491.º, n.º 2, 1493.º, n.º 2, 1496.º, n.º 2, 1499.º, n.º 2, e 1501.º, n.º 2, do Código de Processo Civil na parte em que cominam sanções de natureza criminal;
b) A regulação da matéria de falta de restituição do processo pelo mandatário a quem foi confiado, reduzindo para cinco dias o prazo para entrega voluntária e prevendo que, findo tal prazo, o Ministério Público accionará o procedimento pelo crime de desobediência;
c) A adequação da tipificação como desobediência já estabelecida no n.º 4 do artigo 235.º à nova regulamentação da citação com hora certa;
d) A tipificação como crime de desobediência qualificada de todos os comportamentos que infrinjam a providência cautelar judicialmente decretada, eliminando, consequentemente, a referência à responsabilidade criminal do dono da obra que consta do n.º 2 do artigo 420.º;
e) A atribuição ao juiz, nos casos de impossibilidade ou de grave dificuldade de comparência no tribunal, da faculdade de autorizar que o depoimento da testemunha seja prestado por escrito, datado e assinado pelo seu autor, devendo dele constar relação discriminada dos factos a que assistiu ou que verificou pessoalmente e das razões de ciência invocadas e devendo ainda o depoente declarar expressamente que o escrito se destina a ser apresentado em juízo e que está consciente de que a falsidade das declarações dele constantes o fará incorrer em sanções penais;
f) A tipificação como crime de falso testemunho da conduta de quem, nos termos da alínea anterior, prestar depoimento falso.
Art. 10.º A presente autorização legislativa caduca no prazo de 120 dias.
Aprovada em 21 de Junho de 1995.
O Presidente da Assembleia da República, António Moreira Barbosa de Melo.
Promulgada em 28 de Julho de 1995.
Publique-se.
O Presidente da República, MÁRIO SOARES.
Referendada em 1 de Agosto de 1995.
Pelo Primeiro-Ministro, Manuel Dias Loureiro, Ministro da Administração Interna.