Aos 22 de julho de dois mil e vinte e cinco, achando-se presentes o Juiz Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Juízes Conselheiros João Carlos Loureiro, Joana Fernandes Costa, Carlos Medeiros Carvalho, José Teles Pereira, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Rui Guerra da Fonseca, Maria Benedita Urbano, Dora Lucas Neto, António José da Ascensão Ramos, e Afonso Patrão, foram trazidos à conferência, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, os presentes autos.
Após debate e votação, foi, pelo Ex.mo Conselheiro VicePresidente, por delegação do Ex.mo Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, ditado o seguinte:
I. Relatório 1-Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria de contas de campanhas eleitorais, vindos da ENTIDADE DAS CONTAS E FINANCIAMENTOS POLÍTICOS (doravante designada apenas por
ECFP
»), em que são recorrentes o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) e GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA, foi interposto recurso da decisão daquela Entidade, datada de 20 de março de 2024, relativa às contas apresentadas pelo mencionado partido, referentes à campanha para a eleição dos deputados à Assembleia da República, realizada a 6 de outubro de 2019, que sancionou os recorrentes no plano contraordenacional.
2-Por decisão de 30 de março de 2021, tomada no processo PA 31/OMISSÃO/19/2020 (doravante designado apenas por
PA
»), a ECFP julgou prestadas, com irregularidades, as contas da campanha apresentadas pelo Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM), relativas àquela eleição, da qual GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA foi mandatário financeiro [artigo 27.º, n.º 4, da Lei 19/2003, de 20 de junho (Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, referida adiante pela sigla
LFP
») e artigo 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, referida adiante pela sigla
LEC
»)]. Mais determinou, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da LEC, extração de certidão para apuramento da eventual responsabilidade contraordenacional daquele Partido e do seu mandatário financeiro.
3-Na sequência dessa decisão, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou processo contraordenacional contra o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) e contra GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA, pela prática das irregularidades ali verificadas. Os arguidos foram notificados do processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44.º, n.os 1 e 2, da LEC, e no artigo 50.º do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações, referido adiante pela sigla
RGCO
»), não tendo apresentado defesa.
4-Por decisão de 20 de março de 2024, a ECFP aplicou:
a) Ao arguido Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM), a sanção de coima no valor de 25 (vinte e cinco) vezes o Indexante dos Apoio Social (IAS) para 2020, o que perfaz o montante de € 10.970,25 (dez mil novecentos e setenta euros e vinte e cinco cêntimos), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP;
b) Ao arguido GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA, a sanção de coima no valor de 8 (oito) vezes o Indexante dos Apoio Social (IAS) para 2020, o que perfaz o montante de € 3.510,48 (três mil quinhentos e dez euros e quarenta e oito cêntimos), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP.
5-O arguido Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (doravante designada apenas por
LTC
»), tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:
[...] A-Não se contesta que, efetivamente, não foram cumpridas as obrigações que recaem sobre o PPM no que diz respeito à entrega das contas de campanha referentes à eleição dos deputados à Assembleia da República, realizadas em 6 de outubro de 2019.
B-Considerando as dificuldades económicas do PPM, a existência histórica do Partido, a inexistência de benefício económico retirado, os pressupostos de prevenção geral e especial que aqui se convocam, e os motivos que levaram ao incumprimento daquelas obrigações-designadamente, dificuldades logísticas de coordenação interna-, entende-se que a redução da coima para o montante mínimo fixado, atenuando-se igualmente esse montante mínimo, nos termos das disposições aplicáveis que resultam do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro, permitirá cumprir as finalidades do presente processo, garantindo, ao mesmo tempo, que a Arguida assimila para o futuro as suas obrigações em matéria de entrega de contas de campanhas eleitorais.
C-Não se entendendo estarem cumpridos os pressupostos para a atenuação especial da coima, considera-se, atentas as alegações remetidas, que deverá a coima aplicada ao PPM ser reduzida para o montante mínimo fixado-15 vezes o valor do IAS para o ano de 2020.
Nestes termos, e nos mais de Direito que v/ Exa. Doutamente suprirá, requer-se que o presente recurso seja admitido como procedente por provado e, em consequência:
a) Seja a coima aplicada ao Partido Popular Monárquico reduzida ao montante mínimo fixado nos termos legais, atenuando-se igualmente o mesmo montante;
b) Caso assim não se entenda, seja a coima aplicada ao Partido Popular Monárquico reduzida para o montante mínimo fixado-15 vezes o valor do IAS para o ano de 2020
».
6-O arguido GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA recorreu daquela decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da LTC, tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:
[...] A-Não se contesta que, efetivamente, não foram cumpridas as obrigações que recaem sobre o mandatário financeiro no que diz respeito à entrega das contas de campanha referentes à eleição dos deputados à Assembleia da República, realizadas em 6 de outubro de 2019.
B-Considerando as dificuldades económicas do mandatário financeiro, a inexistência de benefício económico retirado, os pressupostos de prevenção geral e especial que aqui se convocam, os motivos que levaram ao incumprimento daquelas obrigações-designadamente, dificuldades logísticas de coordenação interna-, e o facto de o arguido ter agido sem consciência da ilicitude do facto, entende-se que a redução da coima para o montante mínimo fixado, atenuando-se igualmente esse montante mínimo, nos termos das disposições aplicáveis que resultam do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro, permitirá cumprir as finalidades do presente processo, garantindo, ao mesmo tempo, que o Arguido assimila para o futuro as suas obrigações em matéria de entrega de contas de campanhas eleitorais.
C-Não se entendendo estarem cumpridos os pressupostos para a atenuação especial da coima, considera-se, atentas as alegações remetidas, que deverá a coima aplicada ao arguido ser reduzida para o montante mínimo fixado-5 vezes o valor do IAS para o ano de 2020.
Nestes termos, e nos mais de Direito que v/ Exa. Doutamente suprirá, requer-se que o presente recurso seja admitido como procedente por provado e, em consequência:
a) Seja a coima aplicada ao Arguido reduzida ao montante mínimo fixado nos termos legais, atenuando-se igualmente o mesmo montante;
b) Caso assim não se entenda, seja a coima aplicada ao Arguido reduzida para o montante mínimo fixado-5 vezes o valor do IAS para o ano de 2020
».
7-Por deliberação de 4 de julho de 2024, tomada ao abrigo do artigo 46.º, n.º 5, da LEC, a ECFP sustentou a decisão recorrida e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional.
8-Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, datado de 24 de julho de 2024, convidando os recorrentes a aperfeiçoar as alegações de recurso, de modo a que delas constassem conclusões sob forma articulada, assim como a juntar aos autos procuração forense com conteúdo e forma adequados ao juízo. Sanadas as irregularidades, foi proferido despacho, em 5 de setembro de 2024, nos termos do qual se admitiram liminarmente os recursos. O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 1, da LTC, no sentido de ser negado provimento aos recursos. Notificados, os arguidos nada disseram.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação A. Considerações gerais 9-A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a LFP e a LEC, introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.
Considerando que, à data da entrada em vigor desta lei-20 de abril de 2018 (artigo 10.º)-, não havia ainda procedimento contraordenacional instaurado, pois o prazo para prestação das contas estava ainda em curso, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da referida Lei Orgânica, por se tratar de processo novo.
A respeito do novo regime legal, quer quanto à competência de fiscalização, quer quanto ao regime processual, foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), para o qual se remete, salientando-se aqui que a alteração mais significativa diz respeito à competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como aplicar as respetivas coimas que, até abril de 2018, pertencia ao Tribunal Constitucional e passou agora a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP). Assim, nos termos do novo regime legal, cabe ao Plenário do Tribunal Constitucional apreciar, em recurso de plena jurisdição, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigo 9.º, alínea e), da LTC).
No referido Acórdão 421/2020 esclareceu-se ainda, relativamente à competência do Tribunal em matéria de regularidade e legalidade das contas, que a apreciação deverá obedecer a critérios de legalidade, centrados na ordem de valores que o regime de financiamento dos partidos pretende tutelar, não se resumindo a uma aplicação mecânica de critérios de natureza estritamente financeira e contabilística (v., entre outros, os Acórdãos n.os 979/1996 e 563/2006).
B. Questões a decidir 10-Em face do teor das alegações, as questões a decidir a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, datada de 20 de março de 2024, são as seguintes:
a) Subsunção dos factos dados como provados ao tipo de ilícito imputado;
b) Medida concreta das coimas.
C. Apreciação dos recursos 11-Mérito da decisão sancionatória 11.1-Matéria de facto 11.1.1-Factos provados Com relevo para a decisão, provou-se que:
1-O Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) é um partido político português constituído em 17 de fevereiro de 1975, cuja atividade se encontra registada junto do Tribunal Constitucional.
2-O Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) apresentou a sua candidatura à eleição dos deputados à Assembleia da República, realizada em 6 de outubro de 2019.
3-Em 30 de setembro de 2019, o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) identificou GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA como seu mandatário financeiro para as contas de campanha relativas à eleição mencionada em 2..
4-O prazo para a entrega das contas do Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) referente à campanha para a eleição referida em 2. terminou em 12 de agosto de 2020.
5-O Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) não apresentou as contas de campanha relativas à eleição mencionada em 2..
6-Por notificação de 13 de novembro de 2020, a ECFP convidou o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) e o seu mandatário financeiro a demonstrar a ocorrência de circunstâncias que permitissem excluir a relevância do incumprimento da obrigação legal de apresentação de contas de campanha e a suprir a omissão verificada, nada tendo os mesmos dito ou requerido.
7-Em 30 de março de 2021, a ECFP deliberou que o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) e o seu mandatário financeiro, GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA, estavam sujeitos à obrigação legal de apresentação de contas, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da LEC, a que não deram cumprimento.
8-Ao não entregar as contas de campanha respeitantes à eleição mencionada em 2., os Arguidos representaram como possível que faltavam ao cumprimento da obrigação legal de apresentação das contas, conformando-se com essa possibilidade.
9-Os Arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
10-O Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) não recebeu subvenção pública para a campanha eleitoral relativa à eleição referida em 2.
11-Nas contas anuais de 2022, o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) registou:
a) No balanço:
um total do ativo de € 19.610,03, um total dos fundos patrimoniais de € 5.945,55 e um total do passivo de € 25.555,58.
b) Na demonstração de resultados por natureza do ano:
rendimentos de € 22.731,09 e gastos de € 22.581,36.
11.1.2-Factos não provados
Com relevância para a decisão, não há factos não provados.
11.1.3-Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto resulta da análise conjugada da prova documental junta aos presentes autos, das regras da experiência e de inferências lógicas. Note-se, no mais, que os recorrentes não impugnaram os elementos de facto em que repousa a imputação da infração contraordenacional em causa.
Para a prova da factualidade elencada no ponto 1. dos factos provados foi considerado o teor de publicação constante do sítio público da Internet do Tribunal Constitucional, http:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/partidos.html, da qual a mesma se extrai.
A prova da matéria factual indicada no ponto 2. dos factos provados adveio do teor do Mapa oficial dos resultados do referido ato eleitoral, publicado no Diário da República n.º 203, 1.ª série, de 22 de outubro de 2019, de cuja análise a mesma se extrai.
A prova dos factos identificados no ponto 3. resulta de fls. 14 e 22 do PA.
A prova da factualidade indicada no ponto 4. dos factos provados resulta de fls. 54 a 57 do PA, dos quais consta o ofício da Assembleia da República que indica a data do último pagamento da subvenção pública (27 de janeiro de 2020), resultando, em conjugação com o artigo 27.º, n.º 1, da LFP, que o prazo de entrega das contas terminaria em 12 de agosto de 2020.
A prova da matéria factual enunciada no ponto 5. Dos factos provados advém da análise do PA e respetivos Anexos, do qual resulta a omissão de apresentação de contas. De notar que se explicitou o presente facto no elenco de factualidade provada, resultando, todavia, por via indireta, da decisão sancionatória recorrida, considerando a natureza omissiva da infração contraordenacional em que se fundou o procedimento contraordenacional.
A prova dos factos constantes do ponto 6. e 7. dos factos provados adveio do teor de fls. 6 a 8 e de 16 a 18 do PA, respetivamente, tendo-se deles eliminado os elementos redundantes ou cuja presença não comportava uma valoração no plano da matéria de facto.
A prova da factualidade enunciada em 8. extrai-se da matéria objetiva dada como provada, de acordo com as regras de experiência comum e inferência lógicas. Tratando-se de estados mentais do agente, a prova dos factos que os consubstanciam pode ser alcançada, na ausência de confissão, através da interpretação exterior de factos internos, o que se realiza por meio de inferências, assentes em presunções judiciais apoiadas nas regras da experiência comum ou em abduções baseadas em factos apurados através de prova direta.
Note-se que o conteúdo de vontade inerente ao dolo do tipo é, no presente caso, especialmente manifesto, já que os arguidos foram advertidos pela ECFP desde, pelo menos, 2 de outubro de 2019 (fls. 19 do PA), sobre a obrigação legal de apresentação das contas de campanha, tendolhes sido concedido, em 9 de outubro de 2020 (fls. 59 do PA) e em 13 de novembro de 2020 (v. p. 6. dos factos provados), oportunidade adicional para proceder à sua apresentação (fls. 59 do PA), nada tendo feito para suprir a omissão. Não obstante a atuação dos arguidos poder ter ido além da representação da mera possibilidade da ilicitude e conformação com a mesmaos elementos do dolo eventual −, atendendo aos limites impostos pela proibição da reformatio in pejus, estabelecida pelo artigo 72.º-A, n.º 1, do RGCO, não se justifica considerar uma modalidade de imputação subjetiva mais grave, nomeadamente o dolo necessário.
Quanto à consciência da ilicitude, constante do ponto 9. dos factos provados, refere-se na decisão recorrida que os arguidos sabiam que as condutas praticadas eram proibidas e sancionáveis como contraordenação, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
O recorrente GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA faz incluir nas razões que fundamentariam a redução do montante da coima aplicada a sua putativa falta de consciência da ilicitude (v. ponto 9 das alegações e ponto B. das conclusões), nada dizendo, todavia, quanto a factos e a prova que a permita sustentar. Trata-se, enfim, de uma alegação vaga e infundada, nada se encontrando no alegado que revele mínima aptidão para sustentar a exclusão da culpa. Vêm, no mais, indicadas na motivação da decisão da matéria de facto, as razões pelas quais os arguidos sabiam que a sua omissão era proibida e sancionável como contraordenação, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, também aqui a prova se fazendo por via indireta, repousando em regras da experiência comum e em processos inferenciais, designadamente de natureza abdutiva.
Recorde-se ainda que, conforme decorre do artigo 9.º do RGCO, a falta de consciência da ilicitude do factoque é, como se sabe, um problema de valoração do facto, que não se confunde com o erro de conhecimentonão exclui o dolo, apenas podendo afastar a culpa, quando o erro não for censurável ao agente. A exigibilidade da observância dos deveres é um critério essencial para determinar a censurabilidade da falta de consciência da ilicitude dos arguidos, já que não está em causa, neste domínio, a atribuição de um juízo de culpa ética equivalente ao do direito penal, antes a eventual indiferença relativamente aos valores tutelados pelas normas de dever previstas na LFP e na LEC. É precisamente pela qualidade de participantes em ato eleitorais que se impunha aos arguidos uma exigibilidade reforçada enquanto destinatários especiais das normas de dever impostas em matéria de contas, sendo certo que, como o Tribunal Constitucional tem desde sempre afirmado (v. Acórdãos n.os 77/2011 e 86/2012), estando em causa a observância de regras específicas relativas ao financiamento e apresentação de contas dos partidos políticos, os partidos e os seus responsáveis financeiros não podem, em consciência, deixar de conhecer as normas aplicáveis. Na ausência de motivos justificativosque, neste caso, não foram apresentados −, não pode senão concluir-se que a prova da consciência da ilicitude resulta da matéria objetiva dada como provada, de acordo com as regras da experiência comum e de inferências lógicas.
A prova do facto constante em 10. dos factos provados adveio do teor de fls. 55 e 56 do PA.
A prova da factualidade mencionada em 11. dos factos provados extrai-se do balanço e da demonstração dos resultados por naturezas referente às contas anuais de 2022 e que se encontram publicitadas no site da ECFP em https:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/file/6.PPM2022.
11.2-Matéria de direito
11.2.1-Considerações gerais
Nos termos do artigo 28.º, n.º 1, da LFP,
os infratores das regras respeitantes ao financiamento dos Partidos e das campanhas eleitorais previstas nos capítulos II e III ficam sujeitos às sanções previstas nos números e artigos seguintes
», sendo que os n.os 2 a 4 do artigo 28.º impõem penas e os artigos 29.º a 32.º impõem coimas, restringindo-se a competência do Tribunal Constitucional à aplicação destas, nos termos previstos no artigo 33.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Como se salientou no recente Acórdão 509/2023, decorre do cotejo entre as normas dos artigos 30.º a 32.º da LFPos especialmente relevantes em matéria de contas de campanha eleitoral-e o regime jurídico traçado no seu capítulo III, que existe uma dicotomia fundamental no universo das infrações passíveis de sanção contraordenacional no âmbito das campanhas eleitorais. Temos, por um lado, infrações materiais, estas relativas ao financiamento das campanhas eleitorais propriamente dito, que se traduzem na obtenção de receitas para a campanha eleitoral por formas não consentidas pela lei, designadamente receitas não enquadráveis no artigo 16.º do mesmo diploma, ou na realização de despesas sem justificação legal, mormente por não dizerem respeito à campanha eleitoral ou que excedam os limites previstos no artigo 20.º Temos, por outro lado, infrações formais, que dizem respeito à inobservância do dever de prestação de contas e, no âmbito destas, do dever de tratar contabilisticamente as despesas e receitas da campanha de acordo com as diretrizes do artigo 12.º da LFP, aplicável ex vi do artigo 15.º do mesmo diploma, de tal forma que essa representação contabilística viabilize a sindicância material das receitas percebidas e das despesas realizadas.
Atendendo ao conteúdo dos tipos contraordenacionais dos artigos 30.º a 32.º da LFP, são passíveis de sancionamento com coima em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais as seguintes condutas (v. o Acórdão 98/2016, § 6.2.):
a) O recebimento, por parte dos partidos políticos, de receitas para a campanha eleitoral através de formas não consentidas pela LFPartigo 30.º, n.º 1, ab initio;
b) A violação, por parte dos partidos políticos, dos limites máximos de despesas de campanha eleitoral fixados no artigo 20.º da LFPartigo 30.º, n.º 1, in fine;
c) A inobservância, por parte de pessoas singulares, pessoas coletivas e respetivos administradores, das regras de financiamento de campanha eleitoral previstas no artigo 16.º da LFPartigo 30.º, n.os 2 a 4;
d) A ausência ou insuficiência de discriminação ou comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitoresartigo 31.º da LFP;
e) A inobservância do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral, nos termos previstos no artigo 27.º da LFP, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitoresartigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP.
O juízo sobre as condutas que, nos termos dos artigos 30.º e 31.º da LFP, podem integrar o conteúdo das infrações contraordenacionais nucleares em matérias de contas de campanha eleitoral está dependente da observância do dever de prestar aquelas contas, sancionado nos termos do artigo 32.º da LFP. Não é possível, com efeito, submeter os partidos políticos e as demais entidades participantes num ato eletivo ao completo controlo público de conformidade legal sem um objeto sobre o qual possa recair esse escrutínio. Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da LFP, ‹‹[o]s mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não prestem contas eleitorais nos termos do artigo 27.º são punidos com coima mínima no valor de 5 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 80 vezes o valor do IAS››, estabelecendo o n.º 2 deste artigo que ‹‹[o]s partidos políticos que cometam a infração prevista no número anterior são punidos com coima mínima no valor de 15 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS››.
11.2.2-Imputação aos recorrentes
11.2.2.1-Da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP
Através da decisão recorrida, a ECFP sancionou os arguidos pela prática da contraordenação prevista no artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP, com fundamento na inobservância do dever de prestação de contas de campanha eleitoral, previsto no artigo 27.º daquele diploma.
Nos termos do disposto no artigo 27.º, n.º 1, da LFP, ‹‹[n]o prazo máximo de 90 dias, no caso das eleições autárquicas, e de 60 dias, nos demais casos, após o pagamento integral da subvenção pública, cada candidatura presta à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos as contas discriminadas da sua campanha eleitoral, nos termos da presente lei››. Por sua vez, resulta do artigo 35.º, n.º 1, da LEC, ‹‹[c]ada candidatura presta à Entidade as contas discriminadas da sua campanha eleitoral, no prazo previsto no n.º 1 do artigo 27.º da Lei 19/2003, de 20 de junho›. Estabelece-se, ainda, no artigo 39.º, n.º 1, da LEC que, ‹‹[n]o caso de omissão de apresentação de contas, a Entidade verifica a ocorrência de qualquer circunstância que permita excluir, quanto às candidaturas em questão, a relevância do incumprimento da referida obrigação legal››, prevendo-se no n.º 2 daquele artigo que ‹‹[a] Entidade decide, quanto a cada candidatura, se estava ou não sujeita à obrigação legal de apresentação de contas, aplicando as sanções previstas na lei››.
Ora, verificando-se que o Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) não apresentou contas de campanha relativas à eleição dos deputados à Assembleia da República, realizada em 6 de outubro de 2019 (v. ponto 5 dos factos provados), estando aquela candidatura sujeita à obrigação legal de apresentação de contas (v. ponto 7 dos factos provados), a omissão de entrega das contas de campanha eleitoral no prazo legalmente previsto consubstancia a inobservância do dever previsto no artigo 27.º, n.º 1, da LFP, que se reconduz ao tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 32.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
11.2.2.2-O preenchimento do elemento subjetivo do tipo baseia-se nos pontos 8. e 9. dos factos provados, dos quais resulta que os arguidos agiram com dolo eventual.
11.2.2.3-O arguido GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA foi o mandatário financeiro do Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) e o responsável pela apresentação das contas de campanha em causa (v. o ponto 3. dos factos provados e artigos 18.º, n.º 2, da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro, e 21.º, n.º 1, da LFP), pelo que lhe é pessoalmente imputável a infração nos termos previstos no n.º 1 do artigo 32.º da LFP.
11.3-Consequências jurídicas
Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da LFP os mandatários financeiros que não prestem contas eleitorais nos termos do artigo 27.º são punidos com coima mínima no valor de 5 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 80 vezes o valor do IAS, sendo que, nos termos do n.º 2 daquele artigo, os partidos políticos que cometam aquela infração são punidos com coima mínima no valor de 15 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS. Considerando que o valor do IAS para o ano de 2020 foi fixado em € 438,81 pela Portaria 27/2020, de 31 de janeiro, a moldura abstrata situa-se, no caso do mandatário financeiro, entre os valores de € 2.194,05 e € 35.104,80 e, no caso do partido político, entre os valores de € 6.582,15 e de € 87.762,00.
A decisão recorrida fixou a coima a aplicar ao arguido GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA, na sua qualidade de mandatário financeiro, em 8 (oito) IAS de 2020, o que perfaz o montante de € 3.510,48 (três mil, quinhentos e dez euros e quarenta e oito cêntimos), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.º 1, da LFP; e ao arguido Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) em 25 (vinte e cinco) IAS de 2020, perfazendo o montante de € 10.970,25 (dez mil novecentos e setenta euros e vinte e cinco cêntimos). Para tal, ponderou a gravidade da conduta e a culpa dos arguidos, assim como o elevado tempo de existência do partido.
Os recorrentes pretendem que haja lugar à atenuação especial da punição ou, para o caso de assim não se entender, à aplicação do montante das coimas no mínimo legal.
Sustenta o PPM, para este efeito, que devem ser consideradas ‹‹[a]s dificuldades económicas do PPM, a existência histórica do Partido, a inexistência de benefício económico retirado, os pressupostos de prevenção geral e especial que aqui se convocam, e os motivos que levaram ao incumprimento daquelas obrigações-designadamente, dificuldades logísticas de coordenação interna›› (v. B. das conclusões) e o arguido GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA que se deve atender às ‹‹[d]ificuldades económicas do mandatário financeiro, a inexistência de benefício económico retirado, os pressupostos de prevenção geral e especial que aqui se convocam, os motivos que levaram ao incumprimento daquelas obrigações-designadamente, dificuldades logísticas de coordenação interna, e o facto de o arguido ter agido sem consciência da ilicitude do facto›› (v. B. das conclusões).
As razões apresentadasque, no mais, não vêm sustentadas por elementos probatórios nenhunsnão servem para fundamentar a atenuação especial da punição, não justificando sequer a redução do montante concreto das coimas aplicadas.
A atenuação especial da punição a que se referem os recorrentes encontra-se prevista no artigo 18.º, n.º 3, do RGCO, aplicando-se, por força do artigo 32.º deste diploma, o regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º, n.os 1 a 3, do Decreto Lei 48/95, de 15 de março (Código Penal), nos termos do qual se estabelece, no n.º 1 deste artigo, que ‹‹[o] tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena››, circunstâncias exemplificadas no elenco que consta do n.º 2.
Só que não há, perante os factos apurados, o que justifique a diminuição (por forma acentuada) da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Pelo contrário, ponderada a gravidade da infração praticadada omissão de apresentação de contas resulta a impossibilidade de se exercer qualquer controlo sobre a conformidade legal da atividade realizada pelo PPM, prevenindo-se o cumprimento das finalidades subjacentes a todos os deveres previstos na LFP, em particular os que impõem a adstrição a um formas de financiamento permitidas-e a culpa mediana dos arguidos, não só se rejeitam os pressupostos de uma atenuação especial da punição, como se considera generosa a sanção concretamente aplicada.
É que, para além de estar em causa um partido político que, pelo seu tempo de existência, beneficia de experiência acumulada em matéria de controlo das contas e do financiamentos de campanhas eleitorais, as alegadas ‹‹dificuldades logísticas e de organização interna›› são pouco compatíveis com a realidade de organização interna de um partido político com lastro alargado de experiência em matéria de contas, não se admitindo, em qualquer caso, que perante a natureza da infração contraordenacional cometida, cuja verificação se impõe por si mesma, pudessem aquelas putativas dificuldades impedir a entrega das contas. A aplicação da sanção de coima no mínimo legal, significaria, em um tal caso, atribuir benefício a quem, de forma consciente e voluntária, não se submete a escrutínio público. Cabe, pois, em respeito pelo artigo 72.º-A, n.º 1, do RGCO, que proíbe a reformatio in pejus, manter a sanção aplicada.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se:
(a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo Partido POPULAR MONÁRQUICO (PPM) da decisão da ECFP, de 20 de março de 2024 e, em consequência, confirmar a sua condenação pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP, em coima correspondente a 25 (vinte e cinco) vezes o IAS para 2020, o que perfaz o montante de €10.970,25 (dez mil novecentos e setenta euros e vinte e cinco cêntimos).
(b) Julgar improcedente o recurso interposto por GONÇALO MARIA PACHECO DA CÂMARA PEREIRA da decisão da ECFP, de 20 de março de 2024 e, em consequência, confirmar a sua condenação pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.º 1, da LFP, em coima correspondente a 8 (oito) vezes o IAS para 2020, o que perfaz o montante de € 3.510,48 (três mil quinhentos e dez euros e quarenta e oito cêntimos), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 22 de julho de 2025.-Gonçalo Almeida RibeiroJoão Carlos LoureiroJoana Fernandes CostaCarlos Medeiros de CarvalhoJosé Teles PereiraMariana Canotilho-Rui Guerra da FonsecaMaria Benedita UrbanoDora Lucas NetoAntónio José da Ascensão RamosAfonso Patrão-José João Abrantes.
319546398