Acórdão do Tribunal Constitucional 127/2025, de 3 de Março
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 43/2025, Série I de 2025-03-03
- Data: 2025-03-03
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Sumário
Texto do documento
Processo 914/23
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - A Provedora de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea d) da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), a fiscalização abstrata, sucessiva, e a consequente declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes da alínea b) do artigo 4.º e da segunda parte do artigo 21.º, todas da Lei 45/2012, de 29 de agosto, que aprovou o regime jurídico de acesso e exercício da profissão de examinador de condução e o reconhecimento das entidades formadoras.
Delineou o seu requerimento com os seguintes fundamentos:
«[...]
I
1.º O princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, tem sido interpretado pelo Tribunal Constitucional em jurisprudência sedimentada e abundante, que remonta, praticamente, ao início da sua fundação. Em inúmeros arestos tem o Tribunal dito por que motivo não pode, na nossa ordem jurídica, o legislador ordinário determinar que uma condenação penal tenha por efeito automático a perda de direitos civis, profissionais ou políticos de quem quer que seja condenado, entendendo-se por efeito automático aquele que opera op legis, por mera força da lei, com dispensa de qualquer ponderação de caso concreto a fazer pela autoridade estadual competente. O corpus jurisprudencial já existente é, quanto a este tema, inequívoco. Se se tolerasse a persistência, na nossa ordem jurídica, destes «efeitos» das penas, determinantes da perda de direitos e previsos pelo legislador para valerem por exclusiva vontade sua, tolerar-se-ia também que não fossem cumpridos os princípios constitucionais nos quais se funda, em Estado de direito, toda a política criminal. Entre esses princípios contam-se «o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade do direito penal; e o princípio da igualdade» (Acórdão 16/84), por intermédio dos quais - e nas palavras de jurisprudência mais recente - visa a Constituição «retirar das penas qualquer lastro estigmatizante, que impeça a ressocialização do condenado», bem como «assegurar a estrita necessidade da punição, proibindo efeitos mecânicos da condenação (sem ponderação) que pudessem revelar-se desnecessários face ao caso concreto.» (Acórdão 722/2022).
2.º Ao determinar, na alínea b) do seu artigo 4.º, que não pode ser examinador de condução quem tenha sido condenado, por sentença transitada em julgado, por crime praticado no exercício da profissão de examinador, está a Lei 45/2012, de 29 de agosto, a impor que a uma certa condenação penal se associe como efeito automático a perda de um certo direito profissional. Na verdade, e de acordo com a letra do preceito, a perda desse mesmo direito [o de se ser examinador de condução] dá-se por mera força da lei, visto que o artigo 4.º entende que não tem idoneidade para exercer a profissão quem quer que seja condenado nos termos aí previstos, sem qualquer necessidade de um ulterior juízo que em cada caso averigue da necessidade, ou da justa medida, do efeito legalmente cominado. Isto mesmo é corroborado pelo disposto na segunda parte do artigo 21.º da mesma lei, no qual se determina que seja cancelada a credencial de examinador por mero efeito da condenação, por sentença transitada em julgado, «por crime praticado no exercício da profissão de examinador». Pretende o legislador que o cancelamento da credencial se dê por exclusiva vontade sua, automaticamente, sem nenhuma averiguação do caso concreto e das suas circunstâncias, uma vez que em caso algum se prevê a intervenção da entidade estadual que fora competente, in casu, para a emissão da certidão que agora se cancela. De acordo, ainda, com a letra destes dois preceitos, a proibição do exercício da profissão e o cancelamento da respectiva credencial, para além de valeram op legis, são definitivos. Nenhuma disposição prevê que estas medidas sejam de aplicação limitada no tempo.
3.º É certo que, confrontando o teor destas disposições legais com o teor do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, uma certa dissonância se torna clara. O que a Constituição exige é que nenhuma pena envolva como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais e políticos. Todavia, as disposições legais que vimos mencionando preceituam coisa diferente. O que elas impõem é que a perda do direito a exercer a profissão, com o cancelamento da respectiva credencial, seja consequência automática de condenação por crime praticado no exercício da profissão de examinador. A diferença é tudo menos despicienda ou irrelevante, tendo já o Tribunal acentuado, por diversas vezes, o alcance que lhe deve ser conferido. Como se disse no Acórdão 722/2022, “[a]o proibir o legislador de associar certos efeitos a certa pena - que nada diz sobre o concreto crime praticado, o seu agente ou as suas circunstâncias - impede-se a imposição de um labéu sobre o condenado (...) que constitua tão-somente uma punição suplementar, desligada de qualquer consideração da necessidade de restrição de certo direito com vista a um qualquer interesse público (...) Nestes casos, a falta de conexão entre a condenação criminal e o interesse público que importa salvaguardar conduz inelutavelmente à conclusão de que se trataria da perda de um direito pela simples razão de se ter sido punido, sem qualquer juízo de adequação entre o crime praticado e os interesses a salvaguardar (...) Já a concatenação de certo efeito a certo crime, sendo prima facie vedada pelas mesmas razões, pode, no entanto, ser formulada pelo legislador de forma de tal modo «consistente» e «convincente» que não ponha fatalmente em causa a necessidade do efeito legalmente determinado (...) É por isso que o Tribunal Constitucional vem admitindo que, nos casos em que haja uma ligação «consistente e convincente» entre o efeito necessário e o crime praticado, possa o legislador estabelecer efeitos jurídicos automáticos”.
4.º A atividade de examinador de condução é regulada pela lei de forma a salvaguardar as razões de interesse público e as necessidades de segurança rodoviária que nela vão implicadas; e essas razões e necessidades são de tal magnitude que obrigam a que se estabeleçam desde logo certas condições para o acesso à profissão, para além daquelas que delimitam o modo do seu exercício. E o que faz, em transposição parcial de diretivas comunitárias, a Lei 45/2012. Assim, a lei dispõe sobre as qualificações e os requisitos que são necessários para que se seja examinador de condução; fixa os respetivos deveres, incompatibilidades e impedimentos; prevê em que termos se organiza o «curso de formação inicial» que culmina com o «exame de acesso à profissão»; e identifica qual a entidade pública competente para, no final desse exame - e caso ele seja exitoso credenciar o interessado como «examinador de condução». Sem a reunião de todos estes pressupostos o exercício da profissão não é legalmente possível. E neste contexto que importa compreender a opção feita pelo legislador na alínea b) artigo 4.º da lei. Ao fixar-se aí que a impossibilidade de exercício da profissão seria o efeito automático da condenação [por crime praticado no exercício da profissão], o que se entendeu foi que, atento o relevo público de que a mesma se reveste, uma tal condenação seria por si só sinal inequívoco, «consistente e convincente», de inidoneidade individual para o seu exercício.
5.º Sucede, porém que, a expressão crime praticado no exercício da profissão de examinador tem um sentido de tal forma amplo que nela se podem integrar tipos muito diversos de crimes. A lei não identificou tais tipos, nem tão pouco restringiu os seus efeitos à prática de crimes dolosos. Assim, a perda de direito a exercer a profissão tanto pode decorrer, automaticamente, da prática de um crime grave quanto da prática de um crime de menor gravidade; da prática de um crime doloso quanto da prática de um crime negligente; da prática de um crime cujo tipo vise a proteção de bens jurídicos próximos daquele que justifica a proibição do exercício da profissão quanto de outros, em relação aos quais tal proximidade se não verifique. Ora, perante tal amplitude, é difícil sustentar-se que seja «consistente» e «convincente» a ligação estabelecida pelo legislador entre a condenação pela prática do crime e o interesse público relevante a prosseguir, com a associação a tal condenação de uma automática privação de direitos. A escolha neste domínio feita resultou de uma abstrata ponderação que concluiu o seguinte: quem quer que tenha sido condenado pela prática de crime no exercício da profissão de examinador de condução não mais revela capacidade para observar os deveres que impendem sobre a atividade, como o de cumprir as disposições legais e regulamentares aplicáveis aos exames; o de usar da isenção na avaliação dos candidatos às provas de exame; o de comunicar à autoridades competentes as irregularidades ocorrida; o de usar de urbanidade nas suas relações com os candidatos a condutor (artigo 3.º da Lei 45/2012). Mas precisamente o que está em causa é a questão de saber se uma tal ponderação abstrata se conforma com as exigências que decorrem do disposto no artigo 30.º n.º 4 da Constituição. A diversidade dos tipos de crimes que cabem na ampla formulação legal; a diversidade de situações da vida que nessa formulação se podem subsumir; a impossibilidade de, perante tais situações, poder ajuizar-se das particularidades dos casos concretos e do merecimento que neles venha a ter a consequência gravosa da perda do direito a exercer a profissão; o facto de tal perda ser, além de aplicação automática, definitiva, visto que nenhum limite temporal à sua vigência se prevê - tudo isto leva a crer que, in casu, não estaremos perante situação análoga a outras, em que o Tribunal entendeu que, por haver uma ligação «consistente e convincente» entre o efeito necessário e o crime praticado, podia o legislador estabelecer efeitos jurídicos automáticos decorrentes da condenação penal.
6.º Caso assim se não entenda, pede-se ainda que o Tribunal pondere a natureza restritiva que as normas impugnadas têm face a duas liberdades fundamentais: a liberdade de escolha da profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, e o direito ao trabalho, na sua vertente negativa, como direito a ganhar a vida por intermédio do emprego que se escolheu e obteve (artigo 58.º, n.º 1). De acordo com jurisprudência sedimentada do Tribunal, dúvidas não restarão: as normas agora em análise estabelecem restrições ao exercício de direitos que têm a natureza de direitos, liberdades e garantias. Assim sendo, e nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, tais restrições só serão lícitas se se limitarem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. De toda a argumentação que vimos de desenvolver decorre, no entanto, que este limite de proporcionalidade (nas restrições aos direitos) é, in casu, largamente ultrapassado. Nem a salvaguarda do interesse público na segurança rodoviária exige, como medida necessária, que o examinador de condução seja definitivamente arredado do exercício da sua profissão pelo efeito automático da condenação penal, nem tão pouco se demonstra que haja algum equilíbrio ou equivalência entre a intensidade da restrição à liberdade que por intermédio desse afastamento se introduz na ordem jurídica e o ganho de bem comum que com essa restrição se obtém.
II
Assim, e pelos fundamentos expostos, pede-se que o Tribunal declare com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas constantes da alínea b) do artigo 4.º e da segunda parte do artigo 21.º da Lei 45/2012, de 29 de agosto, com fundamento em violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição e, subsidiariamente, das disposições conjugadas dos seus artigos 47.º, n.º 1, 58.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2.
[...]».
2 - A Assembleia da República foi notificada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 54.º, 55.º, n.º 3, e 56.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), na pessoa do respetivo Presidente, em representação do órgão autor das normas.
Na sequência de tal notificação, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos e remeteu uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios da Lei 45/2012, de 29 de agosto, elaborada pela Comissão de Economia, Obras Públicas, Planeamento e Habitação da Assembleia da República.
3 - Discutido, em Plenário, o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal Constitucional, cumpre decidir em conformidade.
II - Fundamentação
4 - A norma do artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da CRP, confere ao Provedor de Justiça legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral.
O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva foi subscrito pela Provedora de Justiça, estando, por conseguinte, verificada a legitimidade processual da requerente.
5 - A requerente alega que as normas em causa, ao determinarem que não pode ser examinador de condução quem tenha sido condenado, por sentença transitada em julgado, por crime praticado no exercício da profissão de examinador, e o cancelamento da respetiva credencial ao examinador pelo mesmo motivo, violam o princípio da proibição dos efeitos automáticos das penas, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição. Subsidiariamente, alega que as referidas normas estabelecem restrições ao exercício da liberdade fundamental de escolha de profissão, prevista no artigo 47.º, n.º 1, da CRP, e ao direito ao trabalho na sua vertente negativa, previsto no artigo 58.º, n.º 1, da CRP, em termos incompatíveis com as exigências de proporcionalidade decorrentes do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
6 - As normas que integram o objeto do pedido estão consagradas no artigo 4.º, alínea b), e no artigo 21.º, in fine, ambos da Lei 45/2012, de 29 de agosto, que aprovou o regime jurídico de acesso e exercício da profissão de examinador de condução e o reconhecimento das entidades formadoras (doravante Lei 45/2012), cuja redação se transcreve:
«[...]
Artigo 4.º
Idoneidade
Não pode ser examinador de condução quem:
a) [...];
b) Tenha sido condenado, por sentença transitada em julgado, por crime praticado no exercício da profissão de examinador.
[...]
Artigo 21.º
Cancelamento
A credencial de examinador de condução é cancelada ao examinador que seja interdito para a atividade da realização de exames de condução ou condenado por crime praticado no exercício da profissão de examinador, por sentença transitada em julgado.
[...]».
6.1 - Resulta do artigo 1.º, da Lei 45/2012, que o regime jurídico de acesso e exercício da profissão de examinador de condução e de certificação das respetivas entidades formadoras assenta na transposição parcial para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e da Comissão, de 20 de dezembro, na redação que lhe foi dada pelas Diretivas n.os 2009/113/CE, da Comissão, de 25 de agosto, e 2011/94/UE, da Comissão, de 28 de novembro (relativa à carta de condução), em conformidade com o disposto (i) no Decreto-Lei 92/2010, de 26 de junho, que estabelece os princípios e as regras necessários para simplificar o livre acesso e exercício das atividades de serviços e que, por seu turno, transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro (relativa aos serviços no mercado interno) e (ii) na Lei 9/2009, de 4 de março, que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva n.º 2005/36/CE, do Parlamento e do Conselho, de 7 de setembro (relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais).
Concretamente, a Lei 45/2012 prevê quem pode exercer a profissão de examinador (capítulo II), as condições de acesso à profissão (capítulo III), o respetivo processo de certificação (capítulo IV), quais as entidades competentes para formar examinadores (capítulo V) e o correspondente regime sancionatório (capítulo VI).
Um dos objetivos principais da lei em análise, no que respeita aos examinadores, tal como resulta da exposição de motivos da iniciativa legislativa que esteve na sua origem (cf. Proposta de Lei 62/XII, disponível no site da Assembleia da República), é o de «promover a melhoria da qualificação dos examinadores de condução estabelecendo, para o efeito, requisitos e conteúdos formativos mais exigentes, quer para o acesso, quer para o exercício desta atividade, dotando, deste modo, estes profissionais de competências reforçadas para o exercício mais rigoroso da profissão.». Para o que, «[foram] estabelecidas regras e limitações imprescindíveis ao exercício desta atividade, designadamente no que respeita à idoneidade e ao estabelecimento de incompatibilidades, de modo a garantir a máxima transparência na atuação destes profissionais. Estipula-se, concretamente, que não pode exercer a profissão de examinador de condução quem tenha sido condenado, por sentença transitada em julgado, por crimes praticados no exercício da profissão de examinador [...]».
O mencionado objetivo surge compaginado com o que se reflete, especificamente, no artigo 7.º, alíneas a) a e), do n.º 1, da Lei 45/2012, que dispõe que um examinador de condução deve apresentar o seguinte leque de competências: «[c]onhecimentos e aptidões em matéria de condução e avaliação»; «[c]ompetências em matéria de avaliação»; «[c]apacidade para conduzir com destreza e rigor os veículos para os quais está habilitado a realizar exames de condução»; «[c]onhecimentos sobre as características técnicas e físicas dos veículos»; e «[c]onhecimentos sobre ecocondução» [alínea e)]; e que estas competências podem vir a ser adquiridas no curso de formação inicial (artigo 7.º, n.º 2), cuja frequência com aproveitamento é condição necessária para aceder à profissão.
É nesta sequência que o artigo 9.º estabelece os requisitos de acesso à formação inicial, prevendo-se, na alínea d), a «[i]doneidade, nos termos do artigo 4.º;»; no artigo 11.º, a referência ao exame de acesso à profissão e, em caso de aprovação nas provas, no artigo 19.º, a concessão da credencial de examinador pela entidade estadual competente para a sua emissão que, nos termos do mesmo preceito, é o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I. P.).
A credencial de examinador de condução tem, então, nos termos do mesmo artigo 19.º, a validade de cinco anos (n.º 3 do referido artigo), findos os quais o examinador pode requerer a sua revalidação, sendo-lhe exigida, nomeadamente, a apresentação do certificado do registo criminal ou autorização de consulta do respetivo registo [n.º 5, alínea e) do referido artigo].
Para o que aqui releva, decorre deste mesmo regime que a «condenação, por sentença transitada em julgado, por crime praticado no exercício da profissão de examinador» é (i) uma condição negativa do acesso ao curso de formação inicial [artigo 9.º, n.º 1, alínea d) e artigo 4.º, alínea b)] e (ii) uma condição negativa da manutenção da credencial de examinador de condução (artigo 21.º).
Feito este breve enquadramento, cumpre, pois, conhecer do pedido principal deduzido nos presentes autos de fiscalização abstrata sucessiva.
7 - Da violação da proibição contida no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
A Constituição estatui, no n.º 4 do seu artigo 30.º, que «[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.».
O Tribunal Constitucional foi, em vários momentos, chamado a pronunciar-se sobre a conformidade entre a aludida proibição constitucional, prevista no artigo 30.º, n.º 4, e determinadas normas infraconstitucionais.
Tenhamos presentes os marcos dessa evolução jurisprudencial com reflexos no objeto do presente recurso:
7.1 - Sobre os interesses que a proibição em apreço visa tutelar, tem sido apontado pela jurisprudência constitucional (cf. Acórdão 354/2021) que «[a] proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas repousa no princípio estruturante de que a dignidade pessoal e os direitos fundamentais não honram a excelência cívica de algumas pessoas, antes radicam na humanidade de que todas participam igualmente. Numa democracia constitucional, ao contrário de um regime aristocrático, timocrático ou oligárquico, a dignidade é um atributo da pessoa enquanto tal, não do cidadão exemplar ou da personalidade ilustre. Sendo a humanidade condição suficiente para o reconhecimento da igual dignidade de todos, impõe-se a proibição categórica de que os direitos de uma pessoa sejam suprimidos, suspensos ou restringidos com base num juízo sobre o demérito cívico ou o caráter deformado do titular.».
No mesmo sentido, lê-se no Acórdão 376/2018 que «[...] [o] n.º 4 do artigo 30.º da CRP proíbe o Estado de restringir a liberdade ou atingir os interesses dos cidadãos por conta de certo tipo de razões, relacionadas com as qualidades pessoais dos condenados. Essas razões - que se reconduzem ao juízo de que os delinquentes têm uma dignidade diminuída - não podem ser admitidas como razões válidas para o Estado limitar quaisquer direitos. Qualquer medida restritiva de direitos cujo fundamento precípuo seja esse é liminarmente interditada pela Constituição.».
Do exposto decorre, com o reforço dado pela doutrina, que o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição impede que «[...] à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecanicamente, independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra “pena” daquela natureza» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 504).
Esta garantia encontra-se, aliás, em estreita consonância com a sujeição das penas ao princípio da necessidade, avalizando a sua conformidade com o subprincípio da proibição do excesso, «no sentido de que qualquer ‘efeito (acessório) da pena’ pressupõe, por um lado, uma certa gravidade do facto praticado e, por outro, uma fundada conexão entre o efeito (o direito que deve ser declarado perdido) que se quer determinar e o facto criminoso praticado. Nestes termos, seria inconstitucional uma lei que, p. ex., privasse do direito de voto quem fosse condenado por um qualquer crime» (Damião da Cunha, “Anotação ao artigo 30.º”, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, 2.ª Edição revista, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017, pp. 498-499).
Tais conclusões têm sido uniformes, constantes e reiteradamente adotadas por este Tribunal Constitucional, como resulta da análise da vasta jurisprudência a propósito. Vejam-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.os 16/84, 310/85, 75/86, 94/86, 284/89, 748/93, 522/95, 327/99, 202/2000, 262/2003, 36/2008, 25/2011, 311/2012, 748/2014, 106/2016, 331/2016, 376/2018, 348/2022, 722/2022 e 927/2023.
Destaca-se, neste conspecto, o Acórdão 722/22 - ao qual voltaremos infra - do qual resulta clarificada a relação entre os vetores supra expostos:
«[...]
Com tal proibição, a Constituição visa retirar das penas qualquer lastro estigmatizante, que impeça a ressocialização do condenado; e, por outro lado, assegurar a estrita necessidade da punição, proibindo efeitos mecânicos da condenação (sem ponderação) que pudessem revelar-se desnecessários em face do caso concreto (Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 19).
Os dois propósitos estão incindivelmente ligados, porquanto o caráter infamante decorre justamente dessa desconsideração do caso: «é por ter sido condenado que o delinquente perdeu estes ou aqueles direitos, não por, in casu, tal medida se ter mostrado necessária para acautelar o interesse público, num qualquer domínio particular, e deixando, de resto, o seu estatuto pessoal incólume» (Francisco Borges, “Efeitos automáticos das penas: uma reflexão”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade, no prelo).
[...]».
Assim, e conforme decorre deste excerto, a inexistência de um juízo de necessidade subjacente a uma norma limitadora de direitos civis, profissionais ou políticos, abre a porta à natureza puramente infame da medida.
7.2 - Da perda de direitos resultante da aplicação de uma pena e da perda de direitos resultante da prática de um crime.
Relembrando, agora, o que, aqui, já deixámos exposto, resulta dos artigos 4.º, alínea b) e 21.º, in fine, ambos da Lei 45/2012, a impossibilidade de exercício da profissão de examinador de condução por quem haja sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime no exercício dessa mesma profissão.
Desde logo, importa notar que a perda de direitos proibida pela letra do artigo 30.º, n.º 4, da CRP é a que resulta da aplicação de uma pena, o que, como bem assinalou a requerente, poderia levar à conclusão de que não estariam preenchidas as condições respeitantes àquela proibição, pois que o presente processo tem como objeto normas em que a perda de direitos resulta da prática de um crime. No entanto, a evolução jurisprudencial deste Tribunal Constitucional conduz-nos a uma outra resposta, pois que é hoje pacífico o entendimento de que existem razões igualmente ponderosas para estender o âmbito protetivo da proibição constante do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição aos casos em que a perda de direitos é configurada como uma consequência automática da condenação pela prática de um crime, e não apenas como um estrito resultado necessário da aplicação de uma pena.
Inicialmente, a extensão do âmbito de aplicação à prática de crimes encontrou justificação em razões de ordem histórico-sistemática, conforme se explicitou no Acórdão 284/89:
«[...]
Primeiro que tudo, cabe notar que, aquando da revisão constitucional de 1982 que deu ao n.º 4 do artigo 30.º a sua actual redacção vigorava ainda o Código Penal de 1886 e que, no capítulo II do título II, do livro I deste compêndio normativo, subordinado à epígrafe ‘Dos efeitos das penas’ se contemplavam tanto os efeitos resultantes da condenação em certas penas como os efeitos advenientes da condenação por certos crimes (cf., em especial, os artigos 76.º, 77.º e 78.º).
[...]
Existia, pois, nessa altura, no nosso direito positivo, um conceito lato de efeito das penas (cf., nesse sentido, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, 1961, vol. II, p. 181, que, a tal propósito, escrevia então: ‘Indiferentemente se pode assim denominá-lo efeitos das penas ou efeitos da condenação penal’).
[...]
Neste contexto, esse sentido lato de ‘efeitos das penas’ é que será efectivamente o do n.º 4 do artigo 30.º da CRP, e isto por duas ordens de razões. Por um lado, é de presumir, e salvo prova em contrário, que o legislador constituinte, ao menos em princípio, acolhe sempre os conceitos jurídicos pré-existentes; e, por outro lado, e considerando a ratio legis do novo n.º 4 do artigo 30.º, rectius, a motivação humanística que está na base do programa da norma, se não vê que aí se tenha querido distinguir entra as duas situações normativas para limitar apenas a uma delas a proibição.
Na verdade, e pelo que se refere a este último aspeto, com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzisse automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos, e pretendeu-se que assim fosse, porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo em todo inafastáveis de uma lei fundamental como a CRP, que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana (cf., em particular, o artigo 1.º) [...]»
Assim se podendo concluir que, apesar de o enunciado normativo do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição estar construído como resultado necessário da aplicação de uma pena, razões ponderosas existem para que daqui também se extraia uma norma de idêntica natureza e que se alastra à conexão entre a prática de certos crimes e um efeito jurídico automático.
[...]».
Pese embora a correção do raciocínio supra exposto, cedo o Tribunal Constitucional sentiu a necessidade de afastar a ideia, que do mesmo poderia decorrer, de que a perda de direitos como efeito automático da condenação numa determinada pena exige o mesmo grau de tutela que a perda de direitos como efeito automático da prática de determinados crimes.
Para o efeito, a jurisprudência deste Tribunal Constitucional passou a aplicar uma ressalva a esta extensão da proibição constante do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, como se assinala no Acórdão 722/2022 (3.ª secção) e, mais recentemente, no Acórdão 927/2023 (2.ª secção):
«[...]
[A]ceitando a mobilização do parâmetro constitucional à ligação entre crimes e efeitos automáticos, a intensidade da proibição não é idêntica.
Ao proibir o legislador de associar certos efeitos a certa pena - que nada diz sobre o concreto crime praticado, o seu agente ou as circunstâncias - impede-se a imposição de um labéu sobre o condenado (que acresça ao efeito de desqualificação social da pena) e que constitua tão-somente uma punição suplementar, desligada de qualquer consideração da necessidade de restrição de certo direito com vista a um qualquer interesse público.
Com efeito, ao ligar o efeito à pena e à sua gravidade, ignoram-se cabalmente as condições particulares do crime e as circunstâncias pessoais do delinquente. Razão pela qual este Tribunal vem decidindo pela inconstitucionalidade da sua previsão, mesmo quando a perda de direitos profissionais, civis ou políticos legalmente determinada se materialize na proibição ou imposição da prática de certo ato administrativo ou judicial (cf. Acórdãos n.os 238/92, 249/92, 371/92, 372/92 e 373/92, quanto a norma que determinava a perda de capacidade eleitoral de cidadãos condenados em prisão por crime doloso ou condenados por crime doloso infamante; Acórdão 154/2004, quanto a norma que impedia o exercício da profissão de motorista de táxi por quem tivesse sido condenado numa pena de prisão efetiva igual ou superior a três anos; Acórdão 239/2008, quanto a norma que impedia o acesso a carreira profissional por quem fosse condenado por crime doloso ou qualquer punição durante o serviço militar; Acórdão 25/2011, quanto a normas que subordinavam a licença de guarda-noturno à inexistência de condenação por crime doloso). Nestes casos, a falta de conexão entre a condenação criminal e o interesse público que importa salvaguardar conduz inelutavelmente à conclusão de que se trataria da privação de um direito pela simples razão de ter sido punido, sem qualquer juízo de adequação entre o crime praticado e os interesses a salvaguardar.
Já a concatenação de certo efeito a certo crime, sendo prima facie vedada pelas mesmas razões, pode, no entanto, ser formulada pelo legislador de forma de tal modo «consistente e convincente» que não ponha fatalmente em causa a necessidade do efeito legalmente determinado. Revestindo antes a natureza de efeito jurídico de que o sistema não pode prescindir e, em consequência, dissipando o caráter infamante que a Constituição impede. Com efeito, a condenação por determinado crime constitui «uma informação que, em abstracto, já se pode ligar às finalidades que justificariam uma perda de direitos civis, políticos ou profissionais» (cf. Francisco Borges, ibidem). No fundo, sendo certo que um juízo do legislador, desligado da ponderação do caso concreto, poderá conduzir a uma restrição excessiva do direito - daí resultando uma punição adicional, apenas pelo facto de ter sido punido -, não é de excluir que a afetação do direito do condenado apresente uma relação de tal modo evidente com a condenação por certo crime que se não ponha em causa a necessidade de restrição: caso se demonstre que a ligação no plano abstrato entre o crime e o efeito é absolutamente «consistente e convincente», não pode concluir-se pela sua desadequação à tutela do interesse público a satisfazer. E, nesse sentido, se não encontrando no efeito automático do crime qualquer ressonância sancionatória suplementar estigmatizante.
É por isso que o Tribunal Constitucional vem admitindo que, nos casos em que haja uma ligação «consistente e convincente» entre o efeito necessário e o crime praticado, possa o legislador estabelecer efeitos jurídicos automáticos. Foi o caso da norma que determinava a perda do estatuto de objetor de consciência ao serviço militar pela condenação por certos crimes violentos dolosos: concluiu-se no Acórdão 363/91 que, com tal condenação, «fica comprovada, de forma insofismável, a ausência ou não subsistência da convicção manifestada de ilegitimidade do uso de meios violentos de qualquer natureza contra o seu semelhante», razão pela qual a ligação do efeito automático a certo crime consistia na «demonstração ou comprovação da falta de um pressuposto essencial do estatuto obtido pelo condenado que afeta a subsistência do mesmo», sem qualquer ressonância sancionatória.
Aliás, no Acórdão 249/1992, julgando a inconstitucionalidade da perda de capacidade eleitoral por efeito automático de uma pena, o Tribunal não deixou de considerar que o efeito automático pudesse ser constitucionalmente lícito se ligado a certo crime com concatenação evidente à medida pretendida: «Tais finalidades só poderiam ser almejadas quando, por hipótese, se associasse a incapacidade eleitoral a crimes contra a realização do Estado de direito como a “Falsidade na inscrição de eleitor” e a “Falsificação de cartão de eleitor”, previstos nos artigos 370.º e 371.º, respetivamente, do Código Penal. Só assim se justificaria, eventualmente, a restrição do direito de sufrágio, consagrado no n.º 2 do artigo 49.º, pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Inversamente, se a ligação entre o efeito e o crime for somente razoável - mas já não perfeitamente consistente e convincente -, proíbe a Constituição a ligação automática (Acórdão 304/2003, quanto à destituição automática de órgãos partidários por condenados em crimes de responsabilidade no exercício de funções ou de participação em associações armadas, racistas ou que perfilhem ideologia fascista).
Em qualquer caso, e mesmo que se entendesse que a previsão de um efeito automático pela prática de certo crime se encontra fora do domínio de aplicação do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, certo é que a Constituição não é indiferente à restrição de direitos fundamentais em consequência da condenação de determinado crime: a sua conformidade constitucional sempre dependeria dos pressupostos constitucionais da restrição dos direitos afetados. O que, aliás, o Tribunal Constitucional tem dito expressamente, apreciando a bondade constitucional de tais efeitos automáticos à luz da proporcionalidade da restrição automática do direito em causa - sobretudo quando a condenação criminal constitua um pressuposto negativo que impede a aquisição ou manutenção de certo direito (cf. Acórdãos n.os 176/2000, 202/2000, 311/2012, 106/2016; 331/2016 e 376/2018).» (cf. ponto 11.2.).
[...]»
Resulta, pois, da mencionada ressalva que, ao contrário do que acontece quando o legislador associa uma restrição de direitos à aplicação de uma pena, se essa restrição resultar da prática de determinado crime a extensão da proibição do n.º 4 do artigo 30.º pode ser afastada. Assim será, se de tal restrição transparecerem as razões ponderadas pelo legislador, que impeçam que daí se extraia um lastro estigmatizante para o condenado.
7.3 - Da automaticidade da perda de direitos civis, profissionais ou políticos proibida pelo n.º 4 do artigo 30.º da CRP.
A automaticidade no desencadeamento de efeitos compressores de direitos civis, profissionais ou políticos poderá ser entendida, prima facie, como a ausência de ponderação judicial. Como bem se compreende, a ponderação judicial prévia permite que sejam levadas em conta condições particulares de cada caso, sopesando eventuais consequências, mais ou menos gravosas, que, para aquele sujeito, teria a perda do direito civil, profissional ou político e cada um dos interesses possivelmente salvaguardados com a mesma.
Para tal entendimento, a automaticidade proibida constitucionalmente corresponde à produção de efeitos restritivos ope legis, sendo a perda de direitos uma consequência da aplicação direta de uma pena, sem qualquer ponderação no caso concreto (vide, Acórdão 154/2004, item 10.), ou, considerando o que se disse supra (cf. 7.2.), da prática de um determinado crime.
Porém, a jurisprudência deste tribunal tem-se encaminhado no sentido de sufragar uma outra resposta encontrada por parte da doutrina. Para este entendimento, casos há em que as condições de aplicação da norma evidenciam o resultado de uma ponderação orientada pelos princípios jurídicos em jogo.
Neste pressuposto, não se poderá falar de automaticidade - com o sentido que a teleologia da norma proibitiva lhe confere - se a previsão legal refletir o já referido juízo de necessidade.
É precisamente por se entender que a estatuição da perda de direitos associada a uma pena falha o limite da automaticidade - por carecer de elementos ponderativos constitucionalmente orientados - que são dados tratamentos diferentes entre esta situação e a que resulta de uma perda de direitos associada à prática de um crime. Porém, certo é também, que nem todos os juízos ponderação, cristalizados que estejam em enunciados normativos formulados a priori, se revelarão aptos a justificar o afastamento da proibição constante do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
Nesta medida, conforme detalharemos infra, cumprirá avaliar a relação entre o tipo criminal selecionado pelo legislador e a perda de direitos contemplada na estatuição, no sentido de aferir se estão salvaguardados os interesses tutelados pela proibição, e assim se evitar a pura ressonância sancionatória e o resultado estigmatizante.
7.4 - Da perda de direitos profissionais no âmbito da proibição do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
Fazendo aqui apelo ao caso em apreço, decorre do pedido da requerente, no que diz respeito aos dois direitos fundamentais alegadamente restringidos - a liberdade de escolha da profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, e o direito ao trabalho, na sua vertente negativa, como direito a ganhar a vida por intermédio do emprego que se escolheu e obteve (artigo 58.º, n.º 1) - ser central a liberdade de escolha e de exercício de profissão.
Compreende-se que assim seja pois que, e sem prejuízo da jurisprudência deste tribunal que adiante será mencionada (item 8., infra), o direito fundamental ao trabalho, na sua vertente negativa, é constitucionalmente configurado como uma decorrência - ou consequência - do direito fundamental à livre escolha e exercício de profissão.
Dito de outro modo: a partir do momento em que se conclua que o direito fundamental consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, está a ser restringido, é evidente que essa restrição também se alastrará ao direito ao trabalho na dimensão negativa de ganhar a vida por intermédio do emprego que escolheu, emprego esse que, consequentemente, não mais poderá exercer.
Daí que consideremos ser de sindicar as normas impugnadas, desde logo, à luz do direito fundamental à livre escolha e exercício de profissão, previsto no artigo 47.º, n.º 1, da CRP.
A Constituição estabelece, no seu artigo 47.º, n.º 1, que todos têm o direito de «[e]scolher livremente a profissão ou o género de trabalho que pretendam executar, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade.».
Percorrendo o acervo jurisprudencial acerca deste direito fundamental, verifica-se que a liberdade de escolha de profissão implica, por um lado, que o seu titular não possa ser forçado a escolher uma profissão e, por outro lado, com superior relevo para o presente pedido, que o seu titular não possa ser impedido de escolher livremente uma determinada profissão (a este propósito, e a título de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.os 474/89, 187/2001, 563/2003, 154/2004, 3/2011, 362/2011, 88/2012, 89/2012, 96/2013, 509/2015 e 376/2018).
É certo que o enunciado normativo do referido artigo 47.º, n.º 1, apenas se refere à escolha da profissão. No entanto, a jurisprudência deste tribunal desde cedo clarificou que tal direito fundamental abrange não apenas a liberdade que a cada um assiste de selecionar a profissão pretendida, como ainda a liberdade de exercer a profissão selecionada, sem outros constrangimentos para além daqueles que decorrem da Constituição (novamente a título de exemplo, e apenas por referência aos mais recentes, os Acórdãos n.os 94/2015, 129/2020, 145/2021, 212/2023 e 710/2023).
Isto significa, portanto, que a segunda dimensão que decorre deste direito fundamental, também se traduz na circunstância de o seu titular não poder ser impedido de exercer livremente uma determinada profissão.
A doutrina vai, aliás, exatamente no mesmo sentido; de facto, «[a] liberdade de trabalho é, qualificadamente, liberdade de profissão, entendida esta como ocupação de vida através da qual se realiza a personalidade e se granjeiam meios de subsistência [...]. Nesta perspetiva, ela revela-se tanto liberdade de escolha quanto liberdade de exercício», pois que «a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere à questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira. Deste modo, o artigo 47.º, n.º 1, ‘não pode pretender regular somente a escolha da profissão, mas também o seu exercício. Se considerarmos [...] a unidade da liberdade profissional, também o exercício da profissão há de ficar garantido contra intromissões administrativas [...]’ (Rogério Ehrhardt Soares, A Ordem dos Advogados - págs. 228 e 2229 [...]”» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, op. cit., p. 701).
Por seu turno, «[a] liberdade de escolha de profissão [...] significa duas coisas: (a) não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão; (b) não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., p. 653, itálicos nossos).
7.5 - Em suma: a proibição que decorre do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, com a já referida extensão teleológica do seu âmbito protetivo entre certo efeito e certo crime, pode ser enunciado nos seguintes termos:
i) é proibido determinar, por lei, a perda de direitos civis, profissionais e políticos de condenados, como consequência direta da condenação em determinada pena; e
ii) é proibido determinar, por lei, a perda de direitos civis, profissionais e políticos de condenados, como consequência direta da condenação pela prática de determinado crime, exceto nos casos em que a norma restritiva contém elementos ponderativos passíveis de garantir o cumprimento do princípio da necessidade, afastando uma pura ressonância sancionatória com resultados estigmatizantes para o condenado.
A jurisprudência deste tribunal tem admitido, neste último conspecto, que a perda de direitos determinada ope legis como consequência da prática de determinados crimes pode ser formulada pelo legislador de forma de tal modo consistente e convincente, que da necessidade dos referidos efeitos, de perda de direitos, se permite afastar a ressonância estigmatizante e sancionatória da norma; nestes casos, a afetação ope legis do direito do condenado não é condição suficiente para se concluir pela inconstitucionalidade da norma que assim a estabelece, determinante será que se reconheça ou identifique uma conexão (consistente e convincente) entre o tipo criminal e cada um dos interesses possivelmente salvaguardados como consequência da perda de direitos, evitando uma ressonância sancionatória suplementar e estigmatizante, ou seja, que resulte demonstrada a inexistência de tal ressonância.
Aqui chegados, resta saber se as normas sindicadas passam, ou não, nos crivos acabados de enunciar.
8 - Da perda de direitos profissionais decorrente dos artigos 4.º, n.º 1, alínea b), e 21.º, da Lei 45/2012.
Centrando-nos, agora, nas consequências jurídicas da «condenação, por sentença transitada em julgado, por crime praticado no exercício da profissão de examinador», importa distinguir as duas situações que, no caso, podem configurar a perda de direitos profissionais, para os efeitos do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, a saber:
(i) a proibição de participar no curso de formação inicial [artigo 9.º, n.º 1, alínea d) e artigo 4.º, alínea b), da Lei 45/2012], que resulta na proibição de aceder à profissão de examinador de condução; e
(ii) o cancelamento da credencial de examinador de condução (artigo 21.º, da Lei 45/2012), que resulta na perda da liberdade de continuar a exercer esta profissão.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional, no já citado Acórdão 132/2018, teve oportunidade de apreciar uma situação jurídica semelhante à prevista no ponto (ii) que antecede, o qual teve como objeto, precisamente, a revogação do título profissional ao instrutor que tivesse sido condenado por sentença transitada em julgado por crime praticado no exercício da profissão, tal como se encontrava previsto no artigo 50.º, n.º 1, alínea b), da Lei 14/2014, de 18 de março. Neste caso, referiu-se estar «em causa a ablação de direitos que anteriormente existiam na esfera jurídica do Recorrido - que previamente lhe tinham sido adjudicados ou reconhecidos - e não apenas uma limitação do leque de direitos a que poderia aceder» na linha, aliás, de um entendimento que tem sido pacífico, na jurisprudência deste tribunal, de que consubstanciam “perda de direitos profissionais”, para os efeitos do n.º 4 do artigo 30.º, as situações em que alguém já se encontra a exercer determinada profissão, vindo esse exercício a ser preterido ope legis.
Por sua vez, já no Acórdão 165/1986, em que se apreciou a norma prevista no artigo 37.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, segundo a qual «[a] condenação de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente por crime de ultraje à bandeira nacional, deserção, falsidade, infidelidade ao serviço, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança produz a demissão, qualquer que seja a pena imposta» foi invocado o direito fundamental «ao próprio emprego, legitimamente obtido».
Assim como, no Acórdão 25/2011, foram apreciadas as normas dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de um crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício da atividade profissional de guarda-noturno, de cuja fundamentação consta, com particular acuidade para o caso em apreço, que:
«[...]
A proibição de perda automática de “direitos profissionais” constante do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange também, além do mais, os direitos de escolha e exercício de profissão, assegurados pelo artigo 47.º da Constituição.
Neste sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos Acórdãos n.º 154/2004 e 239/2008 (no mesmo sentido v. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 505).
No Acórdão 154/2004 (que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma que estabelecia as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi), estava em causa uma norma que impedia quem tivesse sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, de exercer a actividade de motorista de táxi, e concluiu-se que essa norma tinha como efeito «a perda das liberdades de escolher e de exercer esta profissão de motorista de táxi», ou seja, a perda de um direito profissional, proibida pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
E no Acórdão 239/08, o Tribunal também declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que não permitia que uma pessoa condenada pela prática de qualquer crime doloso se candidate a agente da Polícia Marítima, com fundamento em que constituía «uma interdição ao exercício do direito constitucional de acesso a uma determinada profissão (artigo 47.º, n.º 1, da C.R.P.), como consequência da existência de uma condenação penal anterior, sem qualquer ponderação da adequação e da necessidade de aplicação de tal medida de interdição, o que contraria a proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da C.R.P.».
No caso em apreço, estamos igualmente perante uma interdição de exercício de uma actividade profissional, a de guarda-nocturno. De facto, a condenação pela prática de um qualquer crime doloso não tem apenas por efeito a “revogação” da licença atribuída, mas também a “impossibilidade” legal (por falta dos requisitos necessários) de se candidatar a nova licença (impossibilidade que subsiste por tempo indeterminado, uma vez que as normas não estipulam qualquer prazo para a eventual irrelevância de condenações passadas).
Conclui-se, assim, que as normas em causa implicam a perda da liberdade de escolher e de exercer a actividade de guarda-nocturno (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição), ou seja, a perda de um “direito profissional”, abrangido pela proibição do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
[...]».
Por comparação com os exemplos apresentados supra, não oferece dúvidas que a consequência jurídica prevista no artigo 21.º, da Lei 45/2012 constitui uma perda de direitos profissionais, para efeitos da aplicação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição; bem assim, a situação prevista no artigo 4.º, n.º 1 alínea b) do mesmo diploma, enquanto limite ao acesso à profissão de examinador de condução, ambos consubstanciados na liberdade de escolher e de exercer a atividade de examinador de condução (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição).
9 - Da automaticidade da perda de direitos profissionais nos artigos 4.º, n.º 1, alínea b), e 21.º, da Lei 45/2012
É pertinente tecer algumas considerações preliminares sobre o caráter temporário ou definitivo da medida.
Conforme resulta dos artigos 9.º, n.º 1, alínea d), e 19.º, n.º 5, alínea e), do diploma legal em análise, aquele que se queira candidatar ao exercício da profissão de examinador de condução tem de ser idóneo, situação que, por força do n.º 2 do primeiro artigo, é de «verificação permanente no exercício da profissão de examinador», como, e em consonância, qualquer pedido de revalidação da credencial tem de vir acompanhado de «[c]ertificado do registo criminal ou autorização de consulta no respetivo registo».
Perante o que, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I. P.) - enquanto entidade que, nos termos do artigo 19.º da Lei 45/2012, de 29 de agosto, tem a competência de atribuição das credenciais de examinador de condução - em face de alguém que tenha sido condenado por crime praticado no exercício da profissão de examinador, não só tem de cancelar imediatamente a credencial ao examinador condenado, como poderá não permitir que o mesmo volte a exercer a profissão.
Embora a Lei 45/2012 não o refira expressamente, e o teor literal das normas sindicadas permitam uma interpretação diversa, é nosso entendimento que estes preceitos terão de ser conjugados com o regime que resulta da Lei 37/2015, de 5 de maio (Lei da identificação criminal), designadamente, dos seus artigos 10.º a 13.º, nos quais se preveem salvaguardas da situação profissional dos condenados [não transcrição da condenação para efeitos laborais (artigo 10.º, n.º 5 e artigo 13.º), cancelamento definitivo (artigo 11.º), e cancelamento provisório do registo criminal (artigo 12.º)], as quais têm em consideração o tipo de crime praticado.
No entanto, a convocação de tais preceitos não infirma a existência de um efeito automático, podendo apenas admitir-se que não seja definitivo, pelo que entendemos que se encontra preenchido o pressuposto em apreço, como melhor explicitaremos de seguida.
9.1 - A verificação da automaticidade na aplicação de efeitos restritivos sobre os direitos profissionais em apreço, estando o seu desencadeamento associado à prática de determinados crimes, depende, como vimos, da presença de elementos ponderativos constitucionalmente orientados nos termos supra descritos (cf. itens 7.2. e 7.3. supra).
Sucede que, a fórmula seguida pelo legislador no caso em apreço, delimitando a previsão das normas a um crime praticado no exercício da profissão de examinador de condução, é, pela sua vagueza, e consequente indeterminabilidade, inapta a estabelecer, em abstrato, uma conexão relevante com a restrição dos direitos profissionais em causa, ao associar a proibição de - voltar ou continuar a - exercer a profissão de examinador de condução à condenação pela prática de um qualquer tipo de crime praticado no exercício desta profissão.
A título de exemplo, basta enunciar alguns dos critérios passíveis de serem usados na concretização da expressão crime praticado no exercício da profissão, a saber: (i) um critério funcional, (ii) um critério temporal, (iii) um critério subjetivo, entre outros. E, concretizando estas hipóteses, a formulação selecionada pelo legislador permite a aplicação das respetivas normas a quaisquer crimes praticados exclusivamente no decurso da prática da atividade de examinador de condução, ou perante alguns crimes praticados no âmbito do horário definido para a respeitava prática, ainda que a mesma não estivesse a ser exercida, ou ainda outros crimes praticados pelo examinador sob esse estatuto, ainda que fora do horário e da prática da atividade.
Estamos, pois, perante normas que não contêm um limiar mínimo de concretização e, por conseguinte, de objetividade, criando incertezas sobre o(s) fim(ns) que visa atingir ou salvaguardar, perante o tão indeterminado espectro de crimes abrangíveis pela expressão “crime praticado no exercício da profissão de examinador de condução“.
Este pressuposto é de tal forma incerto que não permite a formulação de um juízo sobre a conexão entre o tipo de crime (pois que não está identificado) e o efeito restritivo, o que impede, inexoravelmente, que as normas sindicadas estejam a salvo da proibição constante do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, por não ser possível identificar quaisquer elementos ponderativos nas normas em apreço, passíveis de afastar uma ressonância sancionatória suplementar estigmatizante (cf. Acórdãos n.os 748/2014 e 722/2022).
É desta circunstância, a qual se traduz na disfuncionalidade plasmada nos preceitos em causa e nas normas que dos mesmos se extraem, que aporta uma insustentável incerteza quanto ao âmbito da restrição que destas resulta.
9.2 - Sendo diversos (e sobretudo incertos) os tipos criminais abrangidos, também o são os interesses potencialmente tutelados pelas normas e, como vimos dizendo, são o(s) tipo(s) criminal(ais) selecionado(s) pelo legislador que informam os destinatários sobre os interesses tutelados pela medida restritiva.
Ao invés, não sendo possível estabelecer uma relação entre as condições de aplicação e as consequências jurídicas, desde logo porque não se encontram claramente identificados quais os crimes que conduzem à necessidade de restrição de direitos profissionais, fica irremediavelmente comprometido, por impossibilidade lógica, qualquer juízo sobre os elementos ponderativos das normas sob apreciação.
A tal conclusão não obsta que, como foi já oportunamente referido (cf. item 6.1. supra), a Lei 45/2012 estabeleça um conjunto de condições relativas ao exercício da profissão de examinador de condução e que as normas sindicadas estejam diretamente relacionadas com um dos principais requisitos e condições constante da Lei 45/2012, a saber, o da idoneidade do examinador de condução e que, por força do seu enquadramento sistemático feito supra (item 6.1.), se possa reconhecer a possibilidade de nomear alguns interesses potencialmente protegidos pelas normas sindicadas.
Todavia não é possível delimitá-los firmemente e, principalmente, não é possível delimitá-los em conexão com determinado(s) crime(s), uma vez que, como se disse, a expressão usada pelo legislador não permite saber quais são os tipos criminais de entre todos os que podem ser praticados no exercício da profissão de examinador de condução (ou pelo menos a sua natureza), que possam justificar o desencadeamento da perda dos direitos profissionais.
Se a delimitação legal apontasse, exclusivamente, para crimes rodoviários, poder-se-ia concluir que estava exclusivamente em causa o interesse público da segurança rodoviária e da prevenção do risco para a sociedade decorrente da condução, na via pública, de um veículo motorizado. A condução de veículos automóveis, por si só, pode fazer perigar um conjunto de direitos e interesses constitucionalmente tutelados - designadamente a vida, a integridade física, e o património de terceiros -, sendo que este risco é real. Neste universo potencial de crimes, e sem preocupação de esgotar o leque de todos eles, temos crimes tão díspares como, por exemplo, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas; o crime de atentando contra a segurança de transporte rodoviário ou o crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
No entanto, há ainda uma multiplicidade de crimes de outra natureza, igualmente passíveis de integrar a expressão crimes praticados no exercício da profissão de examinador de condução, que podem oferecer razões ponderosas para limitar o exercício da atividade de examinador de condução, como são exemplo os crimes sexuais ou os crimes económicos associados à pequena corrupção, mas também, por exemplo, o crime de falsificação de documentos, in casu, o de falsificação de chapas de matrícula de veículos, de cartas de condução, a viciação de motores e o crime de burla relativa a seguros.
Em suma, a incerteza sobre o quadro de interesses que se pretender tutelar com as normas sob apreciação, consequência da ausência de um exame ponderativo plasmado nas normas em apreço, representam uma inultrapassável objeção à realização do juízo que permite afirmar a ausência da automaticidade dos efeitos restritivos proibida pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
10 - Ora, perante tal incerteza, e a consequente impossibilidade de formulação de qualquer tipo de juízo acerca da conexão entre o universo possível de crimes que podem ser praticados no exercício da profissão de examinador de condução e o interesse que se pretende prosseguir com a restrição de direitos profissionais do condenado, está verificado o não cumprimento do que se entende ser um dever do legislador nesta matéria, e que está ao seu alcance, o que se comprova pela delimitação operada em situações semelhantes, tal como se verificou nos arestos supracitados.
Relembrando, a propósito e a título de mero exemplo, a situação conhecida no Acórdão 422/2001, que se debruçou sobre a conformidade constitucional da norma constante do artigo 21.º, n.º 5, da Lei 173/99, de 21 de setembro, que determinava a caducidade da carta de caçador sempre que os respetivos titulares fossem condenados por crime de caça, o Tribunal Constitucional justificou o juízo de não inconstitucionalidade aduzindo cristalinamente o seguinte:
«[...]
A prática de um crime de caça, independentemente da sua gravidade para efeitos da determinação da respetiva pena, ilide, por si só, a presunção de que se mantêm as condições de passagem da carta, ou seja, de que o agente detém os conhecimentos, a aptidão e a adequação comportamental necessárias ao exercício da caça.
[...]».
Mutatis mutandis, também in casu, deveria e poderia o legislador ter optado por uma formulação mais precisa na previsão das normas sindicadas.
11 - Em face do que, e por todos os fundamentos expostos, imperioso se torna concluir pela procedência do pedido principal deduzido pela requerente, em virtude de, no caso, se estar perante a perda de um direito profissional como efeito necessário da condenação pela prática de um qualquer tipo de crime no exercício da profissão de examinador de condução, o que colide com a proibição resultante do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
Concluindo-se pela inconstitucionalidade das normas sindicadas, nos termos acabados de expor, fica, naturalmente, prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário deduzido pela requerente.
III - Decisão
Em face do exposto, declara-se a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes da alínea b) do artigo 4.º e da segunda parte do artigo 21.º, ambas da Lei 45/2012, de 29 de agosto, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro António José de Ascensão Ramos, que não assina por não estar presente. Dora Lucas Neto
Lisboa, 11 de fevereiro de 2025. - Dora Lucas Neto - Afonso Patrão - João Carlos Loureiro - Joana Fernandes Costa - Carlos Medeiros de Carvalho - José Teles Pereira - Gonçalo Almeida Ribeiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Mariana Canotilho - Rui Guerra da Fonseca (com declaração) - Maria Benedita Urbano - José João Abrantes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho o acórdão, mas considero que se verifica uma restrição inconstitucional à liberdade fundamental de escolha de profissão e, portanto, uma violação autónoma do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa, que assim deveria ter sido erigido como parâmetro decisório, o que não constituiu opção da maioria, muito embora a fundamentação explore tal possibilidade (em especial, no ponto 7.4). Os direitos civis, profissionais e políticos a que o artigo 30.º, n.º 4 da Constituição se refere e pretende proteger não são necessariamente direitos fundamentais; mas quando sejam fundamentais os direitos negativamente afetados por certa norma que contrarie o disposto naquele artigo 30.º, n.º 4, haverá também uma violação autónoma do parâmetro constitucional que direta e imediatamente os garanta. Sendo tal conclusão o resultado de um percurso metodológico essencialmente comum quanto à violação dos dois parâmetros, considero que o julgamento de inconstitucionalidade deveria incluir o artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa entre os parâmetros da decisão. Rui Guerra da Fonseca.
118752646
Anexos
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Ligações deste documento
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1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
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1991-09-03 - Acórdão 363/91 - Tribunal Constitucional
NAO SE PRONUNCIA PELA INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS DA ALÍNEA B) DO NUMERO 1 DO ARTIGO 14, DO NUMERO 2 DO MESMO ARTIGO, DO NUMERO 2 DO ARTIGO 33 E DO ARTIGO 37 DO DECRETO 335/V DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA ALÍNEA A) DO NUMERO 1 DO ARTIGO 14, NA PARTE EM QUE ABRANGE CRIMES COMETIDOS POR NEGLIGÊNCIA, E AINDA CRIMES COMETIDOS COM DOLO CUJOS COMPORTAMENTOS CRIMINOSOS NAO TRADUZAM OU NAO PRESSUPONHAM UMA INTENÇÃO CONTRARIA A CONVICCAO DE CONSCIENCIA ANTERIORMENTE MAN (...)
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1999-09-21 - Lei 173/99 - Assembleia da República
Estabele a Lei de Bases Gerais da Caça.
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2003-07-19 - Acórdão 304/2003 - Tribunal Constitucional
Pronuncia-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 18º, n.º 1, alínea c), e do artigo 32º, n.º 1, do decreto da Assembleia da República n.º 50/IX, que aprova a Lei dos Partidos Políticos. (Processo nº 381/2003).
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2004-04-17 - Acórdão 154/2004 - Tribunal Constitucional
Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto ( Estabelece as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de taxi).(Proc. nº 254/2000)
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2009-03-04 - Lei 9/2009 - Assembleia da República
Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/36/CE (EUR-Lex), do Parlamento e do Conselho, de 7 de Setembro, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais, e a Directiva n.º 2006/100/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 20 de Novembro, que adapta determinadas directivas no domínio da livre circulação de pessoas, em virtude da adesão da Bulgária e da Roménia.
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2010-07-26 - Decreto-Lei 92/2010 - Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento
Estabelece os princípios e as regras necessárias para simplificar o livre acesso e exercício das actividades de serviços com contrapartida económica, e transpõe para a ordem jurídica interna o disposto na Directiva n.º 2006/123/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro. Publica em anexo uma "Lista exemplificativa de actividades de serviços".
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2012-08-29 - Lei 45/2012 - Assembleia da República
Aprova o regime jurídico de acesso e exercício da profissão de examinador de condução e o reconhecimento das entidades formadoras.
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2014-03-18 - Lei 14/2014 - Assembleia da República
Aprova o regime jurídico do ensino da condução, regulando o acesso e o exercício da atividade de exploração de escolas de condução e das profissões de instrutor de condução e de diretor de escola de condução e a certificação das respetivas entidades formadoras.
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2015-05-05 - Lei 37/2015 - Assembleia da República
Estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados membros, e revoga a Lei n.º 57/98, de 18 de agosto
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