Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 15/2024, de 13 de Dezembro
- Corpo emitente: Supremo Tribunal de Justiça
- Fonte: Diário da República n.º 242/2024, Série I de 2024-12-13
- Data: 2024-12-13
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Sumário
Texto do documento
Proc. n.º 1281/20.9JALRA-B.S1-A
(Recurso de fixação de Jurisprudência)
Acordam, em conferência, no Pleno das secções criminais:
I. Relatório
1 - AA, condenado nos autos, veio, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 437.º, n.º 1, e 438.º, n.º 1, ambos do C.P.P., interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão deste Tribunal, de 29 de março de 2023, transitado em julgado a 20.07.2023.
Invoca, como acórdão fundamento, o igualmente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 13.12.2018, no Proc. 87/18.0YFLSB, transitado em julgado, em 13.12.2018., acessível em DGSI.
2 - O acórdão recorrido indeferiu petição de habeas corpus, por entender que, em virtude da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ao prazo do art.º 215.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, acresciam seis meses nos termos do n.º 5 do mesmo normativo e que, em consequência, o prazo máximo da medida de obrigação de permanência na habitação não havia sido ultrapassado.
3 - O acórdão fundamento deferiu petição de habeas corpus, com o entendimento que a extensão do prazo da prisão preventiva por mais seis meses, nos termos do art.º 215.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, em razão da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não se aplicava ao caso, por considerar que o alargamento de seis meses a que se refere o n.º 5 do artigo 215.º do CPP tem como referência expressa “os prazos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3 pelo que, quer a letra quer o espírito da lei afastam essa interpretação”.
4 - Recebido o recurso no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 3.ª secção criminal, por acórdão de 08.11.2023, julgou verificados todos os requisitos formais e substanciais, aqui incluída a oposição de julgados, e determinou o seu prosseguimento, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPP.
5 - Notificados os interessados, nos termos do n.º 1 do artigo 442.º do CPP, vieram apresentar alegações.
6 - O recorrente defendeu, em síntese: (transcrição)
“O prazo da medida de coação privativa da liberdade (prisão preventiva ou prisão domiciliária rectius obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, não pode, em caso algum, ultrapassar metade da pena aplicada.
20 - Isto significa que se metade da pena for superior à soma dos acrescentos previsto no n.º 5 então a medida de coação estende-se até atingir esse limite de metade da pena aplicada.
21 - O limite de metade da pena, consignado no n.º 6 do artigo 215.º do CPP, funciona também em sentido inverso, ou seja, sendo inferior ao que resultar da aplicação dos acrescentos referidos no n.º 5 estes reduzem-se aos exatos limites podendo até nem ser aplicados.
22 - Deixamos as citações doutrinais e jurisprudenciais para o acórdão, pois, cremos que o fará com o brilhantismo e riqueza que costumam fazer brotar.
23 - Deve, pois, ser fixada a seguinte jurisprudência:
24 - Por força do disposto no artigo 215.º n.º 6 do CPP, a medida de coação de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, caduca logo que o seu decurso atingir metade da pena aplicada e confirmada, não lhe sendo aplicável os acréscimos previstos no n.º 5 do mesmo artigo.
Mini CONCLUSÕES
a) O inciso plasmado no artigo 215.º n.º 6 do CPP representa um limite máximo à duração da medida de coação privativa da liberdade (prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica), não podendo ser ultrapassado.
b) Uma vez atingido o limite de metade da pena aplicada e confirmada, caduca a medida de coação privativa da liberdade seja a prisão preventiva seja de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, não se aplicando os acrescentos previstos no n.º 5 do mesmo artigo.
Nestes termos e nos melhores de Direito, e com o muito douto suprimento dos egrégios juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, deve, em nome do Povo Português (ordenamentos jurídicos existem em que é obrigatório o intróito do acto decisório relembrar que assim é ou devia ser), ser fixada jurisprudência no sentido de que
Por força do disposto no artigo 215.º n.º 6 do CPP, a medida de coação de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, caduca logo que o seu decurso atingir metade da pena aplicada e confirmada, não lhe sendo aplicável os acréscimos previstos no n.º 5 do mesmo artigo”.
7 - O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em alegações, defendeu, igualmente em síntese: (transcrição)
“A norma que estipula o acréscimo em seis meses dos prazos de prisão preventiva por força da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional existe, assim, desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal.
O Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar no sentido da constitucionalidade desse alargamento do prazo da prisão preventiva nos seguintes termos [acórdão 2/2008, relatado pelo conselheiro CARLOS FERNANDES CADILHA, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos]:
«[...] o acréscimo do prazo de prisão preventiva por efeito de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem como objectivo contrariar a dilação que decorre do simples facto de ter sido interposto um recurso desse tipo, visto que essa é uma consequência que se encontra desligada de qualquer outra específica vicissitude processual, e, designadamente, do eventual efeito suspensivo dos termos do processo.
Se se tratar de um recurso de constitucionalidade que incida sobre a decisão condenatória proferida, em sede de recurso, pelo tribunal da relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, naturalmente que esse recurso vai impedir que a condenação transite em julgado, determinando um protelamento da resolução do processo. Mas o recurso interposto de qualquer decisão interlocutória, como seja a decisão instrutória ou a decisão sobre um incidente processual, mesmo que deva subir em separado e não produza efeito suspensivo do processo (artigos 406.º e 408.º do CPP), implica sempre um retardamento processual que resulta da tramitação e expedição do recurso, da necessária prolação do despacho de admissão do recurso e da fixação do respectivo efeito e regime de subida, e que obriga, subindo o recurso em separado, a que o juiz averigue se o mesmo se mostra instruído com todos os elementos necessários à boa decisão da causa, determinando, se for caso disso, a extracção e junção de certidão das pertinentes peças processuais (artigo 414.º do CPP). Nestes termos, o recurso desencadeia sempre uma actividade processual autónoma que perturba o andamento do processo e que, em maior ou menor medida, poderá retardar a prolação da decisão final.
Mas, para além de tudo isso, o aditamento do prazo de seis meses ao limite máximo aplicável de prisão preventiva, sempre que seja introduzido em juízo um recurso de constitucionalidade, destina-se a permitir que esse recurso seja decidido no Tribunal Constitucional e que, em consequência, os tribunais de instância possam reformar, em conformidade com o juízo de constitucionalidade que tenha sido adoptado, a decisão recorrida.
Esse é o prazo que o legislador considerou, em abstracto, como sendo suficiente para a apreciação, pelo tribunal competente, da questão de constitucionalidade suscitada e para a eventual subsequente reformulação do processado ou prolação de uma nova decisão, independentemente do circunstancialismo concreto que seja aplicável ao caso. Trata-se de um prazo que é considerado normalmente adequado para solucionar todas as questões que são supervenientemente colocadas por via do recurso de constitucionalidade, independentemente das consequências práticas que ele tenha produzido no desenvolvimento do processo. Sendo, por isso, também, indiferente, do ponto de vista da finalidade da lei, que o recurso tenha ou não determinado a suspensão dos termos do processo ou um efectivo atraso na sua prossecução.
Nestes termos, o acréscimo do prazo de prisão preventiva previsto no n.º 5 do artigo 215.º do CPP mostra-se justificado, segundo a razão de ser da lei, não apenas pelo eventual protelamento do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também pela possível demora produzida na emissão de uma decisão em primeira instância. Ou seja, a prorrogação do prazo de prisão preventiva é legitimada pelo potencial efeito dilatório do recurso de constitucionalidade, quer porque com a interposição desse recurso se evitou que o processo chegasse ao seu termo com o trânsito em julgado da decisão condenatória, quer porque esse recurso se poderá repercutir de algum modo no julgamento da causa.
É, por outro lado, irrelevante que se não encontre já pendente o recurso para o Tribunal Constitucional quando opera a dilação ao prazo máximo de prisão preventiva aplicável por força das disposições conjugadas da alínea c) do n.º 1 e dos n.os 2 e 3 do artigo 215.º Justamente porque o aumento do prazo se destina a suprir o efeito negativo que a interposição do recurso poderá vir a gerar relativamente a qualquer das fases do processo, segundo o momento processual em que o recurso seja interposto, e deverá reflectir-se necessariamente no cômputo global do prazo de prisão preventiva.
Reconhecendo-se ao legislador, como se deixou vincado, uma certa margem de conformação quanto à fixação dos prazos de prisão preventiva, por efeito do disposto no artigo 28.º, n.º 4, da Constituição, não parece que o acréscimo de seis meses ao limite máximo da prisão preventiva por via da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tal como prevê o n.º 5 do artigo 215.º do CPP, represente uma restrição desproporcionada ou excessiva em relação aos fins que se pretendem obter. Isso porque - como se anotou -, essa prorrogação do prazo é aplicável por uma única vez, ainda que o interessado - como é o caso - tenha interposto mais do que um recurso de constitucionalidade. E também porque se traduz num acréscimo temporal que se mostra ser ajustado às possíveis incidências processuais que poderão resultar da interposição de um recurso desse tipo.»
A Lei 48/2007, de 29 de agosto, reduziu os prazos máximos da prisão preventiva e introduziu os atuais n.os 6, 7 e 8.
Disse, então, o legislador que «[o]s prazos de prisão preventiva são reduzidos em termos equilibrados, para acentuar o carácter excepcional desta medida sem prejudicar os seus fins cautelares. Todavia, no caso de o arguido já ter sido condenado em duas instâncias sucessivas, o prazo máximo eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada. Embora continue a valer o princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, a gravidade dos indícios que militam contra o arguido justifica aí a elevação do prazo. Para evitar que a prisão preventiva se possa perpetuar, estipula-se que os prazos previstos para essa medida não podem ser ultrapassados quando existir pluralidade de processos (artigo 215.º).» [vd. a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 31, de 23 de dezembro de 2006, da qual germinou a Lei 48/2007, de 29 de agosto].
Temos, assim, que, até à Lei 48/2007, de 29 de agosto, os prazos máximos de prisão preventiva em caso de condenação em 1.ª instância, confirmada em sede de recurso ordinário, ainda não transitada, eram de 2 anos [n.º 1, al. d)], 30 meses quando se procedesse por um dos crimes referidos no artigo 209.º do Código de Processo Penal [redação do Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro], ou por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos ou por algum dos crimes previstos no art.º 215.º, n.º 2 [redação da Lei 59/98, de 25 de agosto] [n.º 2], e 4 anos quando o procedimento fosse por um dos crimes referidos no art.º 209.º do Código de Processo Penal [redação do Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro], ou por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos ou por algum dos crimes previstos no art.º 215.º, n.º 2 [redação da Lei 59/98, de 25 de agosto] e se revelasse de excecional complexidade [n.º 3]. Em caso de recurso para o Tribunal Constitucional, estes prazos eram acrescentados de 6 meses e passavam a ser de 2 anos e 6 meses, 3 anos [36 meses] e 4 anos e 6 meses, respetivamente [n.º 4].
Com a Lei 48/2007, de 29 de agosto, os mesmos prazos foram reduzidos para 1 ano e 6 meses [n.º 1, al. d)], 2 anos [n.º 2] e 3 anos e 4 meses [n.º 3], aumentando para 2 anos, 2 anos e 6 meses e 3 anos e 10 meses, respetivamente, na hipótese de recurso para o Tribunal Constitucional [n.º 5], abrindo-se uma exceção no caso de condenação em duas instâncias sucessivas [n.º 6] por se entender que, nessa hipótese, a gravidade e o peso dos indícios que militam contra o arguido justificam a elevação do prazo para metade da pena que tiver sido fixada.
Ora, considerando a descrita evolução histórica e as diferentes razões de ser que subjazem à extensão do prazo máximo da prisão preventiva em caso de recurso para o Tribunal Constitucional [citadas no Acórdão 2/2008 do Tribunal Constitucional] e à elevação do prazo máximo da prisão preventiva na hipótese de condenação em 1.ª instância confirmada em sede de recurso ordinário [assinaladas na exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X], ter-se-á de concluir que o legislador não quis que o acréscimo previsto no [atual] n.º 5 se aplicasse na situação contemplada do n.º 6.
Repare-se que este n.º 6 abre a porta a um aumento significativo dos prazos de prisão preventiva e, nessa medida, a aceitação de uma dupla prorrogação desses prazos, para além de não estar amparada na letra da lei [tal como o anterior n.º 4, o atual n.º 5 do art.º 215.º do Código de Processo Penal apenas remete para os prazos referidos nas als. c) e d) do n.º 1 e dos correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3 do mesmo normativo], contrariaria a intenção do legislador de 2007 de proceder à sua redução «em termos equilibrados» [e de que o novo n.º 7, ao fixar um prazo máximo global para a prisão preventiva sofrida em todos os processos pendentes contra o arguido ainda que os mesmos não estejam em conexão, não deixa igualmente de constituir reflexo] e seria suscetível de afrontar o princípio geral da proporcionalidade, a que também estão sujeitos os prazos de prisão preventiva [cf. JOSÉ LOBO MOUTINHO, in Constituição Portuguesa anotada, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Volume I, 2.ª edição revista, Universidade Católica Editora, pág. 483, anotação VII], consagrado no art.º 18.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição, segundo o qual as restrições dos direitos, liberdades e garantias - entre os quais se inclui, naturalmente, o direito à liberdade [art.º 27.º, n.º 1, da Constituição] - devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos [vd., aliás, ELISABETE FERREIRA e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 947, comentário 18].
3.1 - Aqui chegados, estamos em condições de formular a seguinte conclusão em conformidade com o disposto no art.º 442.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
O acréscimo por seis meses dos prazos máximos da prisão preventiva em razão da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional previsto no art.º 215.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, não se aplica na hipótese legal do n.º 6 do mesmo normativo em que o prazo máximo da prisão preventiva já se eleva para metade da pena de prisão que tiver sido fixada ao arguido”.
Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 443.º do CPP), cumprindo decidir.
II. Fundamentação
A. Da questão de direito; da oposição de julgados
1 - A decisão tomada pela 3.ª secção criminal, no acórdão de 08.11.2023, que afirmou a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais, pelo que há que reexaminar a questão, ainda que sucintamente e usando as considerações do acórdão preliminar que, aliás. se perfilham.
O acórdão recorrido foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 29 de março de 2023, decidindo petição de habeas corpus requerida nos presentes autos, tendo transitado em julgado a 20.07.2023.
O acórdão fundamento foi, igualmente, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 13.12.2018, em decisão de habeas corpus, no Proc. 87/18.0YFLSB, transitado em julgado, em 13.12.2018, acessível em DGSI.
O recurso foi interposto pelo condenado, no dia 27.07.2023, dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, previsto no n.º 1 do artigo 438.º do CPP. O recorrente tem legitimidade, os acórdãos em conflito são ambos do Supremo Tribunal de Justiça e transitaram em julgado, não sendo admissível recurso ordinário do acórdão recorrido.
Estão assim verificados os pressupostos formais do recurso, a que se referem os artigos 437.º, n.os 1, 2, 4 e 5, e 438.º, n.º 1, do CPP.
Cumpre, pois, verificar a mesmidade da questão de direito e a oposição de julgados relevante.
Quanto à concretização dos pressupostos substanciais, fixemo-nos na decisão dos acórdãos em causa.
1.a. No que ora importa, a situação de facto em apreço e a decisão do acórdão recorrido são as seguintes:
1 - O ora recorrente, então, peticionante, encontrava-se sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, desde o dia 21.12.2020.
2 - Medida revista e mantida nos despachos de 16.03.2021, de 25.03.2021, de 07.05.2021, no Acórdão condenatório proferido a 29.06.2021, no despacho de 24.09.2021, no despacho de 16.12.2021, no Acórdão Condenatório proferido a 17.12.2021, e nos despachos de 08.03.2022, 03.06.2022, 29.08.2022, 14.11.2022, 20.2.2023 e 7.3.2023.
3 - Do acórdão condenatório de 17.12.2021 foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a decisão da primeira instância.
4 - O ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
5 - A pena fixada foi de 4 anos e 6 meses.
6 - Sendo que se iniciou o cumprimento da medida de coação em 21.12.2020,
- Sem se aplicar a elevação prevista no n.º 5 do art.º 215.º do CPP ao prazo previsto no n.º 6 do mesmo artigo, o prazo teria terminado em 21.03.2023;
- Aplicando a elevação prevista no n.º 5 do art.º 215.º do CPP ao prazo previsto no n.º 6 do mesmo artigo, o terminus da pena ocorreria, apenas, em 21.09.2023;
- Incidindo o n.º 5 do art.º 215.º do CPP sobre o prazo de dois anos (artigo 215.º n.º 2 do CPP), o terminus da pena ocorreria em 21.6.2023
O Tribunal decidiu que:
“6. Recordemos, então, o previsto nesses normativos.
“7. Ora o que está em causa, e a situação com que tem de se lidar (como resulta dos autos), é que houve condenação em 1.ª Instância. Houve mesmo confirmação dessa condenação pelo Tribunal da Relação. E depois recurso para o Tribunal Constitucional.
8 - Ou seja, deve aplicar-se o princípio da legalidade, especialmente aqui na versão do velho brocardo ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Mais ainda: Ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit - onde a lei desejou dizer, disse-o; onde não desejou, calou-se. O intérprete não pode substituir-se à lei, nem forçar uma interpretação que não tenha no texto da lei o conveniente e necessário suporte (artigo 9.º n.º 2 do Código Civil: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”). Ora a lei elencou exatamente as situações da elevação do prazo.
O Acórdão do TC 2/2008 (Processo 1087/07, 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha) que tem pertinência para esta matéria, assim como comentários doutrinais ao normativo do CPP não se nos afigurarem permitir, salvo melhor entendimento, encontrar qualquer obstáculo à nossa presente interpretação. Em grande medida, explicitam doutamente a previsão legislativa e a ratio da elevação do prazo, para os casos em que se aplica.
Não se pode ainda olvidar que a imposição de limite à prisão preventiva, reduzindo-a para metade da duração da pena, no caso do n.º 6 do artigo 215.º do CPP dá um sinal de que princípio da presunção de inocência determina limites, até por razões de constitucionalidade (artigo 32.º, n.º 2 da CRP), à duração da prisão preventiva. Não seria curial, assim, “fazer entrar pela janela o que se impediu que entrasse pela porta” (como na muito citada fábula de La Fontaine), sistematicamente e sem limites aumentando o prazo da prisão preventiva sempre que se recorresse para o Tribunal Constitucional. Não é o caso, porém. Se, por um lado, há limites no n.º 6 do artigo 215.º, também há alargamento ou subida de prazo no n.º 5 do dito artigo. E um não contraria o outro, havendo uma unidade ao menos lógica do ordenamento jurídico. Todos os normativos têm uma razão de ser.
8 - Tudo ponderado, há sim lugar à aplicação, in casu, do referido n.º 5 do artigo 215.º do CPP, por se verificar a respetiva previsão ou hipótese normativa, o que torna necessária a aplicação da inerente estatuição (ou sanção).
Outra normatividade é, naturalmente, também aplicável, mas não fere o essencial do referido normativo. O n.º 6 do artigo 215.º do CPP prescreve que “No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”. Nada conflitua, e têm de se aplicar ambos os normativos, como é evidente.
A pena fixada foi de 4 anos e 6 meses. Logo, o prazo máximo de prisão preventiva será o de 2 anos e 3 meses. Porém, com a elevação referida no n.º 5 do artigo 215.º
Sendo que se iniciou a medida de coação em 21.12.2020, sem se aplicar a elevação aplicável, é certo que o prazo teria terminado em 21.03.2023. Diz a informação do Tribunal a quo:
“O prazo máximo da medida de coação aplicada ao arguido terminaria no passado dia 21 de março de 2023, no entanto existe informação nos autos da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, então se cumpriram 2 anos e 3 meses. Com a elevação de seis meses, terminará apenas em 22.9.2023.
Não se pode subtrair à previsão explícita do artigo 215.º, n.º 5, nas remissões que faz, nenhum elemento. Verifica-se a hipótese, logo, aplica-se a estatuição desse normativo constante. A interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é o conector jurídico essencial.
9 - Assim sendo, o prazo máximo de prisão preventiva do peticionante não atingiu o seu limite no referido dia 21 de março de 2023, nem assim se mantém em violação do disposto nas disposições conjugadas dos n.os 1, alínea d), 2 e 6 do CPP. Pelo contrário, aplica-se-lhe a elevação do período em causa por mais seis meses. Tal é motivo suficiente para o indeferimento da requerida providência de Habeas Corpus, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, alínea c) do CPP, atenta a previsão dos artigos 215.º, n.os 5 e 6 do CPP.”
2.b. Por sua vez, o acórdão fundamento, sobre matéria que se sintetiza, decidiu como segue:
a) O peticionante encontrava-se preso preventivamente desde 3 de maio de 2017;
b) No âmbito do processo à ordem do qual lhe foi aplicada a medida de prisão preventiva, foi condenado, pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de cinco anos de prisão efetiva;
c) Essa pena foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa;
d) A decisão não transitou em julgado porque da mesma foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, à data, ainda pendente;
e) A petição de habeas corpus deu entrada em juízo no dia 28 de novembro de 2018.
f) Sendo que se iniciou a medida de coação em 03.05.2017, sem se aplicar a elevação prevista no n.º 5, do art.º 215.º do CPP, o prazo teria terminado em 03.11.2018.
O Tribunal decidiu que:
“Porém, o alargamento de seis meses a que se refere o n.º 5 do artigo 215.º do CPP tem como referência expressa “os prazos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3.” pelo que, quer a letra quer o espírito da lei afastam essa interpretação.
Com efeito, se o legislador pretendesse o alargamento do prazo sempre que houvesse recurso para o Tribunal Constitucional não aludiria às referidas normas e diria simplesmente que o prazo acresceria em seis meses no caso de interposição desse recurso, ao invés de indicar um âmbito de incidência específica da norma em causa. Por outro lado, o princípio da presunção de inocência impõe limites, até por razões de constitucionalidade (artigo 32.º, n.º 2 da CRP), à duração da prisão preventiva que o legislador entendeu, razoavelmente, fixar em metade da pena aplicada, quando confirmada em sede de recurso ordinário.
O facto de o n.º 6 do artigo 215.º dizer que “No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada” (sublinhado nosso) não prejudica o entendimento acima expresso. Como refere Vinício Ribeiro a propósito desse segmento da norma, “…podendo dar a entender que nessa hipótese a prisão preventiva será sempre superior à que resultar da combinação do disposto nos números anteriores, tal não corresponde à verdade”, acrescentando o mesmo autor que só assim será no caso das penas mais elevadas.” (destacado nosso)
3. a. A identidade das situações de facto parece impor-se:
- Em providencia de habeas corpus, os peticionantes encontravam-se sujeitos a medidas de coação privativas da liberdade;
- Em ambos os casos, os arguidos haviam sido condenados em pena de prisão, confirmada em recurso para o Tribunal da Relação competente;
- Na pendência do recurso para o Tribunal Constitucional, foi ultrapassado o prazo previsto no n.º 6, do art.º 215.º, do CPP;
O acórdão recorrido procedeu a interpretação do n.º 5, do art.º 215.º do CPP, no sentido de que este é aplicável ao prazo previso no n.º 6, do mesmo artigo e, assim, indeferiu a petição.
O acórdão fundamento decidiu por interpretação no sentido de que o n.º 5, do art.º 215.º, do CPP, apenas é aplicável aos prazos nele expressamente indicados e, em consequência, deferiu o requerimento de habeas corpus.
b) Ou seja, perante idênticas situações de facto, os dois acórdãos decidiram de forma oposta, por perfilharem diferente interpretação quanto ao alcance da norma do n.º 5 do art.º 215.º do CPP, no que se refere à sua aplicabilidade ao prazo previsto no n.º 6 do mesmo artigo, sendo certo que entre a prolação dos mesmos não teve lugar qualquer alteração legislativa.
Em resumo, mostram-se preenchidos, in casu, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.
Reafirma-se, assim, a oposição de julgados, em conformidade com o disposto no artigo 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, porquanto os acórdãos recorrido e fundamento, versando sobre idêntica situação de facto, assentam em soluções jurídicas opostas para a mesma questão de direito, sendo expresso o antagonismo dos respetivos dispositivos.
4 - A oposição de julgados respeita à interpretação do n.º 5 do art.º 215.º, do CPP, no que se refere à sua aplicabilidade ao prazo previsto no n.º 6 do mesmo artigo.
B. Apreciando
1 - O direito fundamental à liberdade e segurança e os prazos de prisão preventiva
a) O direito à liberdade e segurança
O artigo 27.º da Constituição da República define o direito à liberdade, integrando-o nos direitos, liberdades e garantias enunciados no Título II, e delimita as restrições a ele admissíveis:
“1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2 - Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3 - Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; [...]
4 - Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.
5 - A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.”
O artigo 28.º estabelece os parâmetros constitucionais de aplicação da prisão preventiva, afirmando a sua natureza excecional e a sua sujeição a prazos, cuja determinação remete para a lei:
“1. A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.
2 - A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.
3 - A decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação da liberdade deve ser logo comunicada a parente ou pessoa da confiança do detido, por este indicados.
4 - A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.”
Por sua vez, o art.º 31.º institui a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de detenção ou prisão ilegal.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) 1, no art.º 5°, erigiu, em termos similares, o direito à liberdade como direito fundamental:
“1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal:
a) Se for preso em consequência de condenação por tribunal competente;
b) Se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada, em conformidade com a lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita pela lei;
c) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido; [...]”
O art.º 9.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PICP)2 estabelece, quanto ao direito à liberdade e segurança que:
“1 - Todo o indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém pode ser objecto de prisão ou detenção arbitrária. Ninguém pode ser privado da sua liberdade a não ser por motivo e em conformidade com processos previstos na lei.
2 - Todo o indivíduo preso será informado, no momento da sua detenção, das razões dessa detenção e receberá notificação imediata de todas as acusações apresentadas contra ele.
3 - Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma infracção penal será prontamente conduzido perante um juiz ou uma outra autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciárias e deverá ser julgado num prazo razoável ou libertado. A detenção prisional de pessoas aguardando julgamento não deve ser regra geral, mas a sua libertação pode ser subordinada a garantir que assegurem a presença do interessado no julgamento em qualquer outra fase do processo e, se for caso disso, para execução da sentença.
4 - Todo o indivíduo que se encontrar privado de liberdade por prisão ou detenção terá o direito de intentar um recurso perante um tribunal, a fim de que este estatua sem demora sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação se a detenção for ilegal.
5 - Todo o indivíduo vítima de prisão ou de detenção ilegal terá direito a compensação.”
A Carta dos Direitos Fundamentais da UE incorpora, igualmente, no artigo 6.º, o direito à liberdade e segurança.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), estabelece, no seu artigo 3.º, que “[t]odo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. E, concretizando a proteção do direito à liberdade, prevê que “[n]inguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado” (artigo 9.º), estabelecendo-se o direito a um julgamento equitativo (artigo 10.º) e com defesa assegurada (artigo 11.º), e enunciando-se o princípio de presunção da inocência e da proibição da retroatividade da lei penal (artigo 11.º).
b) As restrições ao direito à liberdade
O art.º 18.º da CRP regulamenta o regime dos direitos, liberdades e garantias, de âmbito definido no artigo precedente, enunciando, nos n.os 2 e 3, as condições imperativas da sua restrição legal:
“2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3 - As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”
Igualmente, o art.º 18.º da CEDH define os limites da aplicação de restrições aos direitos nela prescritos:
“As restrições feitas nos termos da presente Convenção aos referidos direitos e liberdades só podem ser aplicadas para os fins que foram previstas.”
Na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, o art.º 52.º estatui que:
1 - Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.
3 - Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.
4 - Na medida em que a presente Carta reconheça direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, tais direitos devem ser interpretados de harmonia com essas tradições.
6 - As legislações e práticas nacionais devem ser plenamente tidas em conta tal como precisado na presente Carta.
7 - Os órgãos jurisdicionais da União e dos Estados-Membros têm em devida conta as anotações destinadas a orientar a interpretação da presente Carta.”
A garantia do conteúdo essencial do direito fundamental (na Constituição e, pode afirmar-se, no direito convencional e da UE citados) é, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “uma baliza última de defesa dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que em nenhum caso deverá ser invadido [...] porque, em última análise, para não existir aniquilação do núcleo essencial, é necessário que haja sempre um resto substancial de direito, liberdade e garantia que assegure a sua utilidade constitucional” 4.
Para Jorge Miranda, “o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito” 5.
As normas processuais penais que corporizam o mandato constitucional restritivo de um direito fundamental, no caso, o direito à liberdade que integra o círculo dos direitos liberdades e garantias, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, subordinando-se ao princípio geral da proporcionalidade, e não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
O intérprete, no que respeita às normas processuais penais que materializem limitações ao direito à liberdade, não pode, no mínimo, nos mesmos termos que o legislador, pôr em causa o sentido e extensão da proteção constitucional, preservando a correspondência à letra da lei; deve, em suma, aproximar-se de uma forma declarativa de interpretação.
c) Os prazos
a) A natureza excecional da prisão preventiva, declarada, como vimos, no n.º 2 do artigo 28.º da Constituição, implica que a mesma seja sujeita a prazos máximos que não frustrem o seu fundamento constitucional; sujeição a prazos máximos, aliás, imposta pelo n.º 4 do mesmo artigo.
Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 555/2008, de 19.11, “Daqui decorre que o legislador ordinário, no cumprimento dessa incumbência, está sujeito ao princípio de que o tempo de prisão preventiva se configura como um tempo excepcional de restrição do direito fundamental da liberdade, pelo que o deve limitar ao necessário (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), para salvaguardar os outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, no caso, a prevenção do interesse da realização efectiva e eficaz da justiça penal.
Dito de outro modo, o legislador ordinário está sujeito a um princípio de razoabilidade, ínsito no princípio da proporcionalidade e, como bem se faz notar no Acórdão 404/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, próximo do requisito do “prazo razoável” a que alude o n.º 3 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.” (itálico nosso)
No modelo adotado pelo Código de Processo Penal, o prazo de prisão preventiva não pode exceder certos limites acumulados, reportados a quatro marcos processuais (dedução da acusação, prolação da decisão instrutória quando tenha havido instrução, condenação em 1.ª instância e trânsito em julgado da condenação).
A lei prevê, ainda, um outro limite para o prazo máximo da prisão preventiva, através do n.º 6 do artigo 215.º, que resulta da confirmação em sede de recurso ordinário da sentença condenatória de primeira instância.
b) Os n.os 5 e 6 do art.º 215.º do CPP - breve nota histórica
O atual n.º 5 constava, já, sob o n.º 4, da versão original, aprovada pelo Decreto-Lei 78/87, de 17.02, mantendo-se inalterado, apesar das 43 alterações sofridas pelo CPP.
Na sua previsão, os “prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial”.
Este acréscimo do prazo, em 6 meses, nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 2/2008, de 04.01, “mostra-se justificado, segundo a razão de ser da lei, não apenas pelo eventual protelamento do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também pela possível demora produzida na emissão de uma decisão em primeira instância. Ou seja, a prorrogação do prazo de prisão preventiva é legitimada pelo potencial efeito dilatório do recurso de constitucionalidade, quer porque com a interposição desse recurso se evitou que o processo chegasse ao seu termo com o trânsito em julgado da decisão condenatória, quer porque esse recurso se poderá repercutir de algum modo no julgamento da causa.”
Por sua vez, o n.º 5 foi introduzido pela Lei 48/2007, de 29.08, que procedeu à 15.ª alteração ao CPP, dispondo o seguinte:
“No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”.
A redação do artigo 215.º, na reforma de 2007, reduziu os prazos de prisão preventiva para cada uma das situações elencadas nos n.os 1 e 2 e aditou o n.º 6.
Da exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X/2, de 20.12.2006, constava, a este respeito: “Os prazos de prisão preventiva são reduzidos em termos equilibrados, para acentuar o carácter excepcional desta medida sem prejudicar os seus fins cautelares. Todavia, no caso de o arguido já ter sido condenado em duas instâncias sucessivas, o prazo máximo eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada. Embora continue a valer o princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, a gravidade dos indícios que militam contra o arguido justifica aí a elevação do prazo. Para evitar que a prisão preventiva se possa perpetuar, estipula-se que os prazos previstos para essa medida não podem ser ultrapassados quando existir pluralidade de processos (artigo 215.º)”. (destacado nosso)
O, então introduzido, n.º 6 foi objeto de dúvidas quanto à sua constitucionalidade, dado o prolongamento que proporciona, em alguns casos muito significativo, de privação da liberdade, sem condenação transitada em julgada.
Assim, Maia Costa defende que a norma se encontra “sobres os limites consentidos” pela Constituição:
“A norma deste n.º 6 permite um alongamento significativo da prisão preventiva que poderá ser entendido como contendendo com o princípio da presunção de inocência, ou como constituindo como que uma “pré-execução” de pena, também em infração àquele princípio. A norma assenta numa conceção “gradualista” daquele princípio, segundo a qual ele não tem a mesma intensidade ao longo do processo, conceção essa que poderá justificar-se desta forma: com a condenação em 1.ª instância, decretada após uma audiência formal em que o arguido pôde apresentar sem restrições a sua defesa, e a posterior confirmação dessa condenação pelo tribunal superior, existe um fundamento sólido de imputação da responsabilidade criminal que provoca uma natural “erosão” ou “fragilização” do princípio da presunção de inocência; por isso, o estabelecimento de novos prazos de prisão preventiva a partir da confirmação da condenação em primeira instância, e tendo como referência a pena fixada, mostra-se materialmente justificado, não podendo considerar-se ofensivo daquele princípio.
Contudo, esta regra poderá levar à previsão de prazos muito longos de prisão preventiva. Seria certamente mais consentâneo com o referido princípio da presunção de inocência, o estabelecimento de um limite máximo inultrapassável, independentemente da medida da pena. Nesta hipótese, a constitucionalidade da norma poderia ser consistentemente argumentada. A solução legal adotada, porém, estabelecendo exclusivamente como referência para a prisão preventiva a medida da pena aplicada, assemelha-se fortemente a uma pré execução dessa pena. Por isso, a constitucionalidade da norma no confronto com o princípio da presunção de inocência não pode deixar de ser questionada. No mínimo, o que se poderá dizer é que ela se situa nos limites consentidos por esse princípio, mas precisamente sobre esses limites. Note-se que a conceção gradualista do princípio de presunção de inocência foi rejeitada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 1166/96, posição reafirmada no Acórdão 524/97. No sentido de inconstitucionalidade do preceito, ver Pinto Albuquerque, pág. 620 I, Augusto Silva Dias, “A prisão preventiva após a revisão de 2007. Foi superada a crise?” Estudos em honra do Prof. José de Oliveira Ascenção, volume 2, páginas 1389-1391.” 6
Elisabete Ferreira e Pinto de Albuquerque defendem que a norma é inconstitucional:
“Em qualquer caso, a disposição é desproporcional e viola a presunção de inocência, por exemplo, no caso de homicídio qualificado, punido com a pena de 20 anos de prisão confirmada pelo TR, o limite máximo de prisão preventiva é de 10 anos! Este alargamento da prisão preventiva é manifestamente contrário ao princípio da presunção de inocência e ao princípio da liberdade, violando o padrão europeu fixado em face dos arts. 5.º, § 4.º e 6.º, § 2.º da CEDH, pelo que o art. 215.º, n.º 6 é inconstitucional.” 7
Com estas breves notas, não se pretende retomar esse debate, aliás, estranho ao objeto do recurso e que não teve eco na jurisprudência deste Tribunal ou do Tribunal Constitucional, mas evidenciar o impacto que, pela extensão da restrição ao direito à liberdade, a introdução do n.º 6 do art.º 215.º do CPP produziu.
3 - A questão jurídica objeto de oposição
a) Da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão, apenas foi recenseado, no sentido do acórdão recorrido:
- O acórdão de 27.12.2012, proferido no Proc. n.º 911/10.5TBOLH.S1, Rel. Armindo Monteiro.
Sem fundamentação específica, rejeita a petição de habeas corpus, além do mais: “Por fim, na análise do terceiro pressuposto na modalidade de excesso de prisão preventiva - al. c) - é de reter que o requerente foi preso preventivamente em 15.11.2008 e a sua condenação em 9 anos de prisão foi confirmada em sede de recurso ordinário pelos tribunais de recurso, da Relação e do STJ, pelo que nos termos do artigo 215 n.º 6, do CPP, a sua duração é de 4 anos e 6 meses (o prazo máximo é de metade) mas porque o requerente interpôs recurso para o TC, acrescem mais 6 meses, só em 15.11 2013 se esgotando o prazo máximo.”
Da jurisprudência do Tribunal Constitucional, com interesse para o objeto do recurso, importa ter em conta o, já citado, Acórdão 2/2008, Rel. Carlos Fernandes Cadilha.
b) Refira-se, em primeiro lugar, que o n.º 6 do art.º 215.º do CPP apenas se aplica quando o prazo correspondente a metade da pena aplicada não for inferior ao previsto na alínea d) do n.º 1 ou correspondente do n.º 2, ambos do art.º 215.º, com a elevação, se for o caso, prevista no n.º 5 do mesmo artigo.
Com efeito, a definição de uma nova lógica de prazos de prisão preventiva, desligada da fase em que o processo se encontra e apenas em relação com a confirmação da condenação em sede de recurso ordinário, significa, necessária e literalmente, uma “elevação” do prazo, em razão de uma ideia de erosão da presunção de inocência que ocorrera com o acórdão confirmatório.
Como diz Maia Costa, em interpretação que se acolhe, “O n.º 6 fala de elevação do prazo de prisão preventiva, o que revela que a regra nele contida só vale, quando por via da sua aplicação, o prazo não é inferior ao que resulta da aplicação das restantes regras do artigo. Assim, se metade da pena confirmada for inferior aos prazos estabelecidos nos n.os 1, 2, 3 e 5 deste artigo, serão estes os prazos que prevalecem.” 8 (destacado nosso).
Ou seja, na ponderação da elevação do prazo prevista no n.º 6 do art. 215.º do CPP, há que verificar, antes do mais, se o prazo resultante da aplicação das disposições conjugadas dos n.os 1, 2 e 5 da mesma disposição legal não é superior a metade da pena.
c) Movendo-se no domínio de normas legais sujeitas ao regime do art.º 18.º da CRP, a interpretação da norma em causa deve ater-se, em primeiro lugar, ao elemento literal. Com efeito, estando a margem de regulação do legislador constitucionalmente conformada, não poderá o intérprete exorbitar o alcance do texto legal.
Ora, não obstante as sucessivas alterações do CPP e, em particular, a importante reforma de 2007, o atual n.º 5 do art.º 215.º corresponde ao texto inicial do n.º 4 do art.º 215.º, da versão original do CPP.
A norma em causa fixa, de forma clara, o âmbito da sua aplicação: “Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.”
Da literalidade da norma, resulta a sua não aplicação ao prazo elevado do n.º 6 do mesmo artigo.
O elemento histórico, supra sumariado, confere indubitável apoio ao modelo assim concebido: na reforma de 2007, a redução geral dos prazos de prisão preventiva foi acompanhada da introdução de um novo prazo máximo, sempre superior aos prazos “gerais”, no caso de decisão, em recurso, confirmatória da condenação e manteve-se a redação do n.º 5.
O facto de, ao contrário dos prazos previstos nos n.os 1 e 2 do art.º 215.º, o prazo previsto no n.º 6 não ser determinado em unidade temporal e ter como medida a pena em concreto aplicada (na decisão em 1.ª instância ou na decisão em recurso) confere-lhe uma amplitude tal que impõe cuidadosa formulação, dentro dos limites da extensão e do alcance do conteúdo essencial do direito.
Não se afigura admissível uma interpretação que proceda à extensão do âmbito de aplicação, definido com precisão, do n.º 5 do art.º 215.º, a um prazo máximo de prisão preventiva com a natureza do previsto no n.º 6 do mesmo artigo, na ausência de previsão legal expressa.
A aplicação do n.º 5, em caso de recurso para o Tribunal Constitucional, ao prazo elevado previsto no n.º 6 (porque, da decisão confirmatória, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, diretamente ou de acórdão proferido pelo Supremo, em recurso daquela decisão), significaria um acréscimo de 6 meses a um prazo máximo superior - podendo ser muito superior, ao resultante das regras gerais, conjugadamente aplicáveis, dos n.os 1, 2 e 5 do art.º 215.º
Tal interpretação, ao exorbitar os limites da literalidade da norma, contraria o princípio da legalidade penal e o regime constitucional aplicável ao direito consagrado no n.º 1 do art.º 32.º da Constituição.
III. Decisão
Face ao exposto, o Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:
a) Fixar a seguinte jurisprudência:
“O acréscimo de seis meses dos prazos de duração máximos de prisão preventiva, em razão da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, previsto no art.º 215.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, não se aplica na hipótese legal do n.º 6 do mesmo normativo.”
b) Confirmar o Acórdão recorrido, por se não mostrar excedido o prazo máximo resultante da aplicação conjugada dos n.os 1, 2 e 5 do art. 215.º do CPP.
Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 3 de julho de 2024. - Teresa de Jesus Oliveira de Almeida (Relatora) - Agostinho Soares Torres - António Latas - Jorge Gonçalves - João António Gonçalves Fernandes Rato - Heitor Vasques Osório - Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo - Albertina das Dores Nunes Aveiro Pereira - Celso José das Neves Manata - Antero Luís - Eucária Maria Martins Vieira - Horácio Correia Pinto - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - José Luís Lopes da Mota - Ana Maria Barata de Brito - Maria do Carmo da Silva Dias - Pedro Branquinho Ferreira Dias - Leonor do Rosário Mesquita Furtado - Nuno A. Gonçalves (vencido conforme voto que junto) - Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida - vencida com os mesmos fundamentos do voto vencido do Conselheiro Nuno Gonçalves.
***
VOTO VENCIDO
Não votei a jurisprudência fixada porque continuo convencido, - amparado também na jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional que diretamente versou sobre o efeito que a interposição de recurso para aquele alto Tribunal projeta, ope legis, sobre o prazo máximo da prisão preventiva -, que a interpretação correta das normas dos números 5 e 6 do artigo 215.º do Código de Processo Penal é a de que “todo e qualquer recurso interposto para o Tribunal Constitucional, no decorrer de um processo crime à ordem do qual se encontra(m) arguido(s) em situação de prisão preventiva, determina necessariamente um acréscimo de 6 meses aos prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como aos correspondentemente referidos nos n.º 2 e 3 do preceito”, conforme firmou o Tribunal Constitucional na Decisão Sumária n.º 573/2018, que, no essencial, se socorreu, reproduzindo-a e reafirmando-a, a fundamentação do seu Acórdão 2/2008.
Fundamentando: --
1 - A jurisprudência fixada no vertente aresto aderiu à argumentação jurídico-adjetiva que motivou o acórdão fundamento que se pretende fundar nos métodos da interpretação literal e teleológica.
a) Quanto à literalidade, contata-se que o argumento nuclear que justificou o deferimento da providência de habeas corpus requerida ao Supremo Tribunal de Justiça no processo 87/18.0YFLSB foi o de que “se o legislador pretendesse o alargamento do prazo sempre que houvesse recurso para o Tribunal Constitucional não aludiria às referidas normas e diria simplesmente que o prazo acresceria em seis meses no caso de interposição desse recurso, ao invés de indicar um âmbito de incidência específica da norma em causa”. Sendo certo que ao prazo estabelecido nas normas a que se está a referir são as das alíneas c) e d) do n.º 1 e do prazo alargado que lhes corresponde nos números 2 e 3 do artigo 215.º do Código de Processo Penal.
Interpretação sincopada da literalidade como também da teleologia que presidiu à fixação dos prazos legais da prisão preventiva em processo penal.
Como facilmente se aceitará, com a referida remissão normativa, expressa e taxativamente especificada, quis o legislador excluir o alargamento dos prazos da prisão preventiva limitados pela data da dedução de acusação e pela data da decisão instrutória consagrados nas alíneas a) e b) do n.º 1 e, correspondentemente, expandidos nos números 2 e 3 do artigo 215.º do Código de processo Penal.
Tem-se por evidente que se o legislador tivesse dito, como no acórdão fundamento se quis supor que, sendo assim, diria “simplesmente que o prazo acrescia seis meses no caso de interposição de recurso” para o Tribunal Constitucional não havia como não interpretar que também tinha querido aumentar em 6 meses os prazos da prisão preventiva com o limite fixados naquelas duas primeiras normas do n.º 1.
Mas não disse. Ao invés, ao remeter expressamente para os prazos das alíneas c) e d) não concede qualquer margem para que o alargamento estabelecido no n.º 5 se possa, por qualquer modalidade de interpretação, estender aos prazos do inquérito e da instrução.
Por outro lado, não constando daquela remissão expressa qualquer distinção entre os prazos fixados e respetivos marcos, das alíneas c) e d) e os correspondentemente aumentados nos números 2 e 3, não se vislumbram motivos convincentes para diferenciar substancialmente o aumento em 6 meses conforme o recurso para o Tribunal Constitucional é da decisão da primeira instância ou é de acórdão não absolutório proferido em recurso ordinário.
A luz da interpretação literal não será defensável entender que a remissão constante da norma do n.º 5 para o marco do prazo da prisão preventiva limitado pelo do trânsito em julgado da decisão condenatória não se aplique à fase de recurso ordinário do processo penal.
Aliás, ainda no âmbito desta modalidade da hermenêutica jurídica, salienta-se que a norma do n.º 6 está concebida sobre o conceito de confirmação da condenação decretada na primeira instância. Não obstante valer aqui o princípio da legalidade, aceita-se, como está estabilizado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional uma interpretação declarativa que confira às normas que regem sobre os prazos da prisão preventiva um sentido mais ou menos restritivo. Todavia, sem olvidar que só existe confirmação se o tribunal ad quem, conhecendo do objeto do processo, confirma a culpabilidade do arguido e a pena aplicada (em qualquer dessas vertentes in mellius ou agravando-a ou até simplesmente rejeitando o recurso). E se o tribunal de recurso não tiver confirmado a condenação e/ou a pena, limitando-se, por exemplo, a reenviar o processo para novo julgamento da totalidade do objeto do processo e for interposto recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do tribunal de recurso, que prazo da prisão preventiva se aplica? Bom está de ver que a jurisprudência o entendimento adotado no acórdão recorrido e a jurisprudência adotada resolve esta questão, respondendo clara e inequivocamente, com a prorrogação estabelecida no n.º 5. Não parece que a jurisprudência ora fixada tenha equacionado essa questão.
Conclui-se, pois, que o argumento literal invocado na fundamentação do acórdão fundamento, a que o presente AFJ aderiu, não tem qualquer apoio na letra da lei.
b) E também não convence o argumento histórico que se foi buscar para afirmar o que se supõe ser o pensamento do legislador.
A norma do atual n.º 5.º do artigo 215.º vêm já desde a versão originária do Código de Processo Penal, onde tinha o n.º 4 e mantem-se sem alterações.
O vigente n.º 6 do mesmo preceito foi aditado pela Lei 48/2007 de 29 de agosto (que teve na sua base a proposta de Lei 109/X). Alteração legislativa que também intercalou o atual n.º 4.
Enfatizando a preocupação do legislador em não prejudicar os fins cautelares da prisão preventiva, o então Ministro da Justiça, no discurso de apresentação e discussão daquela proposta de lei na Assembleia da República disse textualmente o seguinte: “Esta é também uma revisão que abre a porta não só à redução mas também à ampliação, em certos casos, do prazo da prisão preventiva, em modo contrastante com a realidade com que hoje nos deparamos quando sabemos da libertação de presos preventivos já duas vezes condenados a pesadas penas” (o bold é nosso e apenas para realçar).
Justificação suficientemente explicita de que o legislador - a redação da proposta é a que passou para o texto da lei -, escandalizado com a libertação de presos preventivos condenados em duas instâncias em pesadas penas de prisão, repudiou firmemente o encurtamento dos prazos da prisão preventiva em tais situações. Acentua-se que com a expressão “já duas vezes condenados a penas pesados” dúvidas razoáveis não restam de ter querido referir-se à condenação em primeira instância confirmada ou agravada pela segunda instância, em recurso. Não, seguramente, a duas condenações na mesma instância em processos diferentes. Para reger sobre tais situações aditou a norma do n.º 7, do artigo 215.º do Código de Processo Penal.
c) Quanto à teleologia da norma interpretada com o sentido do alargamento do prazo máximo da prisão preventiva como efeito, ope legis, da interposição de recurso de constitucionalidade, aderimos, com a devida vénia, à fundamentação do Acórdão 2/2008 do Tribunal Constitucional que, ao invés do que ressuma do AFJ - onde vem citado -, ampara o entendimento que adotamos no acórdão recorrido, - também seguido no anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2023, tirado no Processo 4/18.7GMLSB-F.S1 - 3.ª Secção e que aqui reafirmamos.
Para demonstrar que assim é, na realidade, passamos, com a devida vénia, a citá-lo (com bold nosso para realçar): --
A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais. [...].
[...] os prazos de duração máxima de prisão preventiva são pré-determinados segundo a fase processual, a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento.
Diferentemente, por efeito do disposto no n.º 5 do artigo 215.º do CPP, a lei não pré-determina o prazo total de prisão preventiva a considerar quando tenha sido interposto um recurso para o Tribunal Constitucional, mas estabelece um acréscimo de 6 meses, quando tenha havido esse recurso, aos prazos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 1 desse artigo e aos correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3.
Note-se que a norma não distingue entre recursos de decisão condenatória ou recursos de decisão interlocutória, nem quanto ao efeito e regime de subida do recurso, limitando-se a fixar um acréscimo temporal único sempre que tenha havido recurso para o Tribunal Constitucional, o que significa que o legislador ponderou esse prazo como sendo o suficiente para resolver, em processo de fiscalização concreta, as questões de constitucionalidade, independentemente da fase processual em que se suscitem e das vicissitudes ou complexidade do processado.
Estimando a lei um prazo que, consoante as circunstâncias do caso, se entende adequado para que, em processo penal com réu preso, seja proferida decisão final e sejam apreciados os recursos admissíveis na ordem jurisdicional comum - e considerando esse como o prazo razoável para a duração da prisão preventiva -, o acréscimo de 6 meses a esse limite temporal, decorrente da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, visa suprir o retardamento processual que sempre resulta da utilização desse meio recursório, que, por vezes, tem um mero intuito dilatório.
E sublinhe-se que o prazo acrescido é único independentemente das circunstâncias do caso, e independentemente de ter sido interposto um ou vários recursos de constitucionalidade.
[...]
Como se viu, o acréscimo do prazo de prisão preventiva por efeito de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem como objectivo contrariar a dilação que decorre do simples facto de ter sido interposto um recurso desse tipo, visto que essa é uma consequência que se encontra desligada de qualquer outra específica vicissitude processual, e, designadamente, do eventual efeito suspensivo dos termos do processo.
Se se tratar de um recurso de constitucionalidade que incida sobre a decisão condenatória proferida, em sede de recurso, pelo tribunal da relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, naturalmente que esse recurso vai impedir que a condenação transite em julgado, determinando um protelamento da resolução do processo. Mas o recurso interposto de qualquer decisão [...], mesmo que deva subir em separado e não produza efeito suspensivo do processo (artigos 406.º e 408.º do CPP), implica sempre um retardamento processual que resulta da tramitação e expedição do recurso, da necessária prolação do despacho de admissão do recurso e da fixação do respectivo efeito e regime de subida, e que obriga, subindo o recurso em separado, a que o juiz averigue se o mesmo se mostra instruído com todos os elementos necessários à boa decisão da causa, determinando, se for caso disso, a extracção e junção de certidão das pertinentes peças processuais (artigo 414.º do CPP). Nestes termos, o recurso desencadeia sempre uma actividade processual autónoma que perturba o andamento do processo e que, em maior ou menor medida, poderá retardar a prolação da decisão final.
Mas, para além de tudo isso, o aditamento do prazo de seis meses ao limite máximo aplicável de prisão preventiva, sempre que seja introduzido em juízo um recurso de constitucionalidade, destina-se a permitir que esse recurso seja decidido no Tribunal Constitucional e que, em consequência, os tribunais de instância possam reformar, em conformidade com o juízo de constitucionalidade que tenha sido adoptado, a decisão recorrida.
Esse é o prazo que o legislador considerou, em abstracto, como sendo suficiente para a apreciação, pelo tribunal competente, da questão de constitucionalidade suscitada e para a eventual subsequente reformulação do processado ou prolação de uma nova decisão, independentemente do circunstancialismo concreto que seja aplicável ao caso. Trata-se de um prazo que é considerado normalmente adequado para solucionar todas as questões que são supervenientemente colocadas por via do recurso de constitucionalidade, independentemente das consequências práticas que ele tenha produzido no desenvolvimento do processo. Sendo, por isso, também, indiferente, do ponto de vista da finalidade da lei, que o recurso tenha ou não determinado a suspensão dos termos do processo ou um efectivo atraso na sua prossecução.
Nestes termos, o acréscimo do prazo de prisão preventiva previsto no n.º 5 do artigo 215.º do CPP mostra-se justificado, segundo a razão de ser da lei, não apenas pelo eventual protelamento do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas também pela possível demora produzida na emissão de uma decisão em primeira instância. Ou seja, a prorrogação do prazo de prisão preventiva é legitimada pelo potencial efeito dilatório do recurso de constitucionalidade, quer porque com a interposição desse recurso se evitou que o processo chegasse ao seu termo com o trânsito em julgado da decisão condenatória, quer porque esse recurso se poderá repercutir de algum modo no julgamento da causa.
É, por outro lado, irrelevante que se não encontre já pendente o recurso para o Tribunal Constitucional quando opera a dilação ao prazo máximo de prisão preventiva aplicável por força das disposições conjugadas da alínea c) do n.º 1 e dos n.os 2 e 3 do artigo 215.º Justamente porque o aumento do prazo se destina a suprir o efeito negativo que a interposição do recurso poderá vir a gerar relativamente a qualquer das fases do processo, segundo o momento processual em que o recurso seja interposto, e deverá reflectir-se necessariamente no cômputo global do prazo de prisão preventiva.
Reconhecendo-se ao legislador, como se deixou vincado, uma certa margem de conformação quanto à fixação dos prazos de prisão preventiva, por efeito do disposto no artigo 28.º, n.º 4, da Constituição, não parece que o acréscimo de seis meses ao limite máximo da prisão preventiva por via da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tal como prevê o n.º 5 do artigo 215.º do CPP, represente uma restrição desproporcionada ou excessiva em relação aos fins que se pretendem obter. Isso porque - como se anotou -, essa prorrogação do prazo é aplicável por uma única vez, ainda que o interessado - como é o caso - tenha interposto mais do que um recurso de constitucionalidade. E também porque se traduz num acréscimo temporal que se mostra ser ajustado às possíveis incidências processuais que poderão resultar da interposição de um recurso desse tipo.»
Fundamentação reafirmada na Decisão Sumária inicialmente citada.
E que, ademais resolve a questão da unicidade do aumento do prazo consagrado na norma do n.º 5. É aumentado automaticamente, ope legis, uma só vez, sendo irrelevantes para esse efeito o número dos recursos de constitucionalidade interpostos pelo condenado.
d) No bosquejo pelos comentadores citados no AFJ não vimos que defendam a doutrina fixada no vertente aresto. Bem que se pode dizer que aceitam ou que não lhes suscitou qualquer reserva o alargamento do prazo da prisão preventiva marcado pelo trânsito em julgado da decisão condenatória quando o recurso para o Tribunal Constitucional é interposto na fase julgamento, sem distinguir se houve ou não confirmação da decisão condenatória recorrida.
e) Questão muito diferente, mas não confundível com a do estrito aumento do prazo da prisão preventiva decorrente da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, é a da conformidade constitucional e bem assim com o regime dos direitos fundamentais consagrados em instrumentos jurídicos de direito internacional universal, europeu e comunitário, do alargamento do prazo estabelecido pela norma do n.º 6 do referido artigo 215.º que em casos gravemente punidos pode ascender ao máximo de 12 anos e 6 meses de prisão preventiva.
Mas não é essa a questão sobre a qual se fixou jurisprudência no presente acórdão. E, como facilmente se compreenderá, não é por impedir que a um prazo de prisão preventiva dessa ou aproximada dimensão se acrescentem mais 6 meses que deixara de ser excessivo.
Pelo exposto, fixaria jurisprudência com o sentido seguinte:
“O recurso interposto para o Tribunal Constitucional no decorrer de um processo crime à ordem do qual se encontra(m) arguido(s) em situação de prisão preventiva, determina necessariamente um acréscimo de 6 meses aos prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como aos correspondentemente referidos nos n.º 2 e 3 e, consequentemente, ao prazo previsto no n.º 6 do artigo 215.º do Código de Processo Penal”.
Nuno A. Gonçalves
1 Convenção adotada em Roma, a 4 de novembro de 1950, com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de novembro de 1978, tendo sido aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13 de outubro, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 236/78 (retificada por Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 286/78, de 14 de dezembro).
2 Da Organização das Nações Unidas, Aprovado para ratificação pela Lei 29/78, de 12/06 (retificada mediante retificação publicada no Diário da República n.º 153/78, de 06/07) Diário da República I, n.º 133, de 12/06/1978 (Lei 29/78).
3 Juridicamente vinculativa com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009.
4 Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, pág. 395.
5 Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2000, pág. 341.
6 Código Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 3.ª Edição Revista, 2021, pág. 838.
7 Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 947, comentário 18.
8 Ob. Cit., n. 12 da anotação ao art.º 215.º, pág. 838.
118458405
Anexos
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Ligações deste documento
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1978-06-12 -
Lei
29/78 -
Assembleia da República
Aprova, para ratificação, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
-
1978-10-13 -
Lei
65/78 -
Assembleia da República
Aprova, para ratificação, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também designada Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, concluída em Roma, em 4 de Novembro de 1950, cujo texto em francês e respectiva tradução portuguesa acompanham o presente diploma. São, igualmente, aprovados para ratificação: - o Protocolo nº1 Adicional à Convenção, concluído em Paris, em 20 de Março de 1952; - o Protocolo nº2, que confere ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem competência (...)
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1987-02-17 -
Decreto-Lei
78/87 -
Ministério da Justiça
Aprova o Código de Processo Penal.
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1998-08-25 -
Lei
59/98 -
Assembleia da República
Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.
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2007-08-29 -
Lei
48/2007 -
Assembleia da República
Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.
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