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Acórdão do Tribunal Constitucional 658/2024, de 29 de Outubro

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, introduzida pelo artigo 1.º-A da mesma Lei.

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 658/2024



Processo 95/23

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma constante do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), consagrada no artigo 1.º-A do mesmo diploma legal.

Para fundamentar tal pedido, o recorrente alega que a norma em causa foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em mais de três casos concretos, nomeadamente nos Acórdãos n.os 617/2012, 85/2013 e 171/2017, bem como nas Decisões Sumárias n.os 557/2019, 559/2019, 592/2019 e 485/2021, o que permite ter por verificado o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, já que todas as referidas decisões transitaram em julgado.

2 - Foi notificada, nos termos conjugados do artigo 54.º e do n.º 3 do artigo 55.º da LTC, a Assembleia da República, na pessoa do respetivo Presidente e em representação do órgão autor da norma.

Na sequência dessa notificação, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, juntando ainda uma nota técnica sobre a matéria em apreço, elaborada pelos serviços de apoio à respetiva Comissão de Orçamento e Finanças.

3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se firmou.

II - Fundamentação

A. Pressupostos de cognição

4 - O artigo 281.º, n.º 3, da Constituição, estabelece que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas que tenha julgado inconstitucionais ou ilegais em três casos concretos. O artigo 82.º da LTC, por seu turno, atribui ao Ministério Público legitimidade para requerer a apreciação abstrata da constitucionalidade ou legalidade de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo Tribunal em três casos concretos.

Não havendo dúvidas quanto à legitimidade do Ministério Público para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma em causa foi, efetivamente, julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em mais de três casos, designadamente através dos Acórdãos n.os 617/2012, 85/2013 e 171/2017. Para além destes arestos e das decisões sumárias indicadas no pedido, a norma que integra o objeto do pedido foi ainda julgada inconstitucional no recente Acórdão 387/2023.

Acresce não existir divergência quanto ao fundamento da inconstitucionalidade. Em todas as decisões acima mencionadas, a norma constante do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), consagrada no artigo 1.º-A do mesmo diploma legal, foi julgada inconstitucional por violação da proibição constitucional de impostos retroativos, contida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Mostram-se, assim, preenchidos os pressupostos necessários para que o Plenário aprecie a constitucionalidade da norma em apreço.

B. Do mérito

5 - A norma que integra o objeto do pedido encontra-se consagrada no artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas ("CIRC"), consagrada no artigo 1.º-A do mesmo diploma legal.

O artigo 81.º do CIRC, na redação dada pela Lei 55-B/2004, de 30 de dezembro, alterada pela Lei 67-A/2007, de 31 de dezembro, dispunha o seguinte:

Artigo 81.º

"Taxas de tributação autónoma"

"1 - As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º

2 - A taxa referida no número anterior é elevada para 70 % nos casos em que tais despesas sejam efetuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.

3 - São tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

4 - São tributados autonomamente, à taxa de 15 %, os encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.

[...]".

De acordo com a redação introduzida pelo artigo 1.º-A da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, os n.os 3 e 4 do referido artigo 81.º passaram a ter a seguinte redação:

"[...]

3 - São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica:

a) À taxa de 10 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;

b) À taxa de 5 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2 sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade.

4 - São tributados autonomamente, à taxa de 20 %, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.

[...]".

De acordo com o respetivo artigo 6.º, a Lei 64/2008 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação. Porém, o artigo 5.º, n.º 1, da mesma Lei determina que as alterações introduzidas "aos artigos 73.º, 78.º e 85.º do Código do IRS, 81.º e 96.º do Código do IRC e ao artigo 112.º do Código do IMI produzem efeitos desde 1 de janeiro de 2008".

Significa isto que o agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos produzido pela nova redação do n.º 3 do artigo 81.º do CIRC, dada pela Lei 64/2008, de 5 de dezembro, é aplicável, por força da retroação de efeitos prevista no n.º 1 do respetivo artigo 5.º, aos encargos e despesas realizados pelos contribuintes no período compreendido entre 1 de janeiro de 2008 e a data do início de vigência da referida Lei.

6 - O n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, aditado na sequência da revisão constitucional de 1997, estabelece que "[n]inguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei".

No que diz respeito à determinação do sentido e alcance da proibição da criação retroativa de impostos, a jurisprudência constitucional tem acolhido de forma amplamente maioritária o entendimento segundo o qual essa proibição consubstancia uma regra e não um princípio, o que significa que tende a prescindir de mediação concretizadora, sendo, nessa medida, suscetível de aplicação direta.

Uma síntese modelar de tal orientação foi realizada no Acórdão 128/2009, onde pode ler-se o seguinte:

"7.1 - Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).

Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão "retroactividade" usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.

Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal.

As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroactividade em “termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroactividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afectados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram”. (Cfr. neste sentido, e por exemplo, o Parecer da Comissão Constitucional n.º 25/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 16.º Vol., p. 257; o Parecer 14/82, em Pareceres…, 19.º Vol, p. 183; o Acórdão do Tribunal n.º 11/83, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º Vol. p. 11; o Acórdão 141/85, em Acórdãos …, 6.º Vol., p. 39; e ainda os Acórdãos n.os 409/89, 216/90, 410/95 e 1006/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)

Estes critérios, de natureza necessariamente fluida, levaram a que, em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroactivas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4.º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos n.os 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroactivas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).

Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroactividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objectiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroactividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)

Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária."

Da orientação maioritariamente sufragada na jurisprudência deste Tribunal retira-se, assim, que a proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição se destina a sancionar "de forma automática" "a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares" (Acórdão 128/2009), ainda que se dirija apenas à retroatividade autêntica, isto é, abranja somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular produziu já todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga; excluídas do âmbito de aplicação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, encontram-se, por isso, as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas em que a lei nova é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede com as normas fiscais que produzem um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga, continuando a formar-se sob a vigência da nova lei.

Com efeito, como se afirmou logo no Acórdão 399/2010:

"[...] um caso em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga [retroatividade autêntica] e um outro caso em que o facto tributário tenha ocorrido ao abrigo da lei antiga, mas os seus efeitos, designadamente os relativos à liquidação e pagamento, ainda não estejam totalmente esgotados [retroatividade inautêntica] não terão necessariamente o mesmo desvalor constitucional, uma vez que a primeira situação é do ponto de vista da eventual afetação da situação jurídica do contribuinte mais grave que a segunda. E estes dois casos diferenciam-se também de um terceiro em que o facto tributário que a lei nova pretende regular na sua totalidade não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continua formando na vigência da lei nova [retrospetividade], como acontece nos presentes autos".

E, mais adiante:

"[...] dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroatividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retroativa tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos diretos relativos ao rendimento (como é claramente o caso dos presentes autos)".

7 - Os Acórdãos n.os 617/2012 e 85/2013, que se pronunciaram pela inconstitucionalidade da norma que integra o objeto do pedido, aderiram a este entendimento.

Antes de se ter firmado a orientação jurisprudencial acolhida nos mencionados arestos, o Tribunal submetera a juízos de sentido divergente a norma cuja apreciação é aqui requerida.

Assim, o Acórdão 18/2011 começou por não julgar inconstitucional a norma sindicada.

Em sentido oposto viria a pronunciar-se, porém, o Acórdão 310/2012, tendo a oposição de julgados assim originada fundamentado um recurso para o Plenário, interposto deste último aresto com fundamento naquele primeiro.

Tal oposição foi superada através do Acórdão 617/2012, tirado em Plenário, que confirmou o Acórdão 310/2012, então recorrido, com base nos seguintes fundamentos:

"3 - Há que recuar ao ano de 1990 para encontrarmos a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar determinadas despesas a tributação autónoma, ocorrida com a publicação do Decreto-Lei 192/90, de 9 de junho, cujo artigo 4.º previa que “as despesas confidenciais ou não documentadas efetuadas no âmbito do exercício de atividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10 %, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC”.

Esta norma foi objeto de diversas alterações posteriores que, sucessivamente, procederam ao aumento da taxa de tributação nela prevista. Assim, a referida taxa começou por ser de 10 % na versão originária do Decreto-Lei 192/90, de 9 de junho, tendo passado para 25 % com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1995 (cf. artigo 29.º da Lei 3-B/94, de 27 de dezembro), foi elevada para 30 % (ou, no caso de as despesas serem efetuadas por sujeitos passivos de IRC, total ou parcialmente isentos ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola, para 40 %) com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1997 (cf. artigo 31.º, da Lei 52-C/96, de 27 de dezembro), taxas estas que foram ainda aumentadas, respetivamente, para 32 % e 60 %, com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1999 (cf. artigo 31.º, da Lei 87-B/98, de 31 de dezembro).

Posteriormente, com a “Reforma da tributação do rendimento”, aprovada pela Lei 30-G/2000, de 29 de dezembro, foi revogado o Decreto-Lei 192/90, de 9 de junho, e aditou-se ao Código de IRC o artigo 69.º-A (atual artigo 81.º) e ao Código do IRS o artigo 75.º-A (atual artigo 73.º), através dos quais, para além de se prever, a exemplo do que já acontecia com o referido Decreto-Lei 192/90, de 9 de junho, a tributação autónoma das despesas não documentadas, estendeu-se tal tributação em IRS e IRC às despesas de representação e às despesas com viaturas.

Assim, no que respeita ao IRC, e conforme já referido, o artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação dada pela Lei 55-B/2004, de 30 de dezembro, alterada pela Lei 67-A/2007, de 31 de dezembro, determinava, na parte que ora releva, que eram tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, ou mistas, motos ou motociclos efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos e que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (sendo esta a taxa que, como se referiu, veio a ser agravada pela Lei 64/2008, de 5 de dezembro, passando para 10 %, com retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008, por força do artigo 5.º, n.º 1, da referida Lei).

Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.

Saldanha Sanches (cf. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, escreveu o seguinte:

"Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo pode ser objeto de uma valoração negativa: por exemplo, temos uma taxa de 15 % aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4).

Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado - excecionalmente - em objeto de tributação."

Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cf. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.

E esta distinção tem relevância, designadamente, para efeitos de aplicação da lei no tempo e para a análise da questão da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Com efeito, conforme refere Cardoso da Costa “[...] a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias "permanentes" e "periódicas" e "factos" cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma "instantaneamente", para cada um deles "de per si" (maxime, pela distinção entre "impostos periódicos" e "impostos de obrigação única"), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal”, in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).

Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.

Por esta razão, Sérgio Vasques (cf. Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC.

4 - Regressando ao caso concreto, é manifesto que se está perante uma hipótese de aplicação retroativa do disposto no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação introduzida pela Lei 64/2008, de 5 de dezembro, ou seja, aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea, já completamente formados, anteriores à data da sua entrada em vigor.

Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal - a realização de despesas de representação ou com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, no período de 1 janeiro de 2008 até à entrada em vigor da Lei 64/2008, de 5 de dezembro (6 de dezembro de 2008) - ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva.

A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroatividade autêntica.

O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.

Uma vez que a alteração efetuada ao artigo 83.º, n.º 3, do CIRC, através da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, veio aumentar a taxa de tributação autónoma aplicável a despesas de representação e com viaturas, agravando a situação dos contribuintes abrangidos, estava-lhe vedada uma eficácia retroativa.

Contudo, como vimos, embora a referida Lei 64/2008, de 5 de dezembro, tenha entrado em vigor em 6 de dezembro de 2008, o seu artigo 5.º, n.º 1, determinou que tal alteração produzia efeitos a partir de 1 de janeiro de 2008.

Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.

Assim, não pode a lei, sob pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, pelo que, tendo a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, determinado a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, violou a referida proibição constitucional.”

Na verdade, embora a tributação de determinados encargos esteja formalmente inserida no Código do IRC e o respetivo montante seja liquidado no âmbito daquele imposto, tal tributação é uma imposição fiscal materialmente distinta da tributação em IRC. Enquanto aquela incide, excecionalmente, sobre a realização de determinadas despesas, a última incide sobre determinados rendimentos, funcionando apenas como elo entre elas a circunstância dessas despesas serem dedutíveis no apuramento destes rendimentos, visando-se com a criação daquele imposto reduzir a vantagem fiscal resultante da dedução desses custos. Mas a existência do imposto aqui em análise em nada influi no montante do IRC, atuando de forma perfeitamente autónoma relativamente a este, pelo que o seu funcionamento deve ser encarado somente segundo os elementos que o caracterizam.

Assim, esgotando-se o facto tributário que dá origem a esta tributação autónoma, no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação, embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha apenas a efetuar no fim de um determinado período tributário, a aplicação de um agravamento da respetiva taxa, relativamente a encargos ocorridos previamente à entrada em vigor da nova lei que prevê esse agravamento, corresponde a uma aplicação de lei nova a um facto tributário anterior, verificando-se uma situação de retroatividade autêntica proibida perlo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição."

Já no Acórdão 85/2013, o Plenário do Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar um novo recurso, desta feita interposto do Acórdão 382/2012, aresto que, uma vez mais em contradição com o mencionado Acórdão 18/2011, se pronunciara pela inconstitucionalidade da norma sindicada. Aderindo à fundamentação do Acórdão 617/2012 e verificando que o aresto então recorrido o fizera também, o Acórdão 85/2013 não "vislumbr[ou] novos fundamentos que imp[usessem] decisão de sentido diverso", confirmando assim o juízo positivo de inconstitucionalidade alcançado no Acórdão 382/2012.

A fundamentação do Acórdão 617/2012 viria a ser mais recentemente reiterada, sem considerações adicionais, no Acórdão 387/2023, que julgou uma vez mais inconstitucional, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, introduzida pelo artigo 1.º-A da mesma Lei.

8 - Para julgar inconstitucional a norma sindicada, os Acórdãos n.os 617/2012 e 85/2013 aderiram, como se viu, à orientação segundo a qual a proibição de retroatividade da lei criadora de impostos estabelecida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, não "[...] visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança" (Acórdão 617/2012). Por outro lado, e uma vez mais em linha com a anterior jurisprudência constitucional, limitaram a incidência dessa proibição às hipóteses de retroatividade forte ou autêntica, o mesmo é dizer, com exclusão dos casos de retroatividade inautêntica ou ainda a mera retrospetividade - uma tipologia ou graduação de formas de retroatividade oriunda da doutrina e que a jurisprudência constitucional viria a acolher para delimitar o âmbito da proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

Desta abordagem, subsequentemente reiterada nas Decisões Sumárias n.os 557/2019 e 559/2019, assim como no Acórdão 387/2023, viria a afastar-se, porém, o Acórdão 171/2017 em benefício da ideia segundo a qual "o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição deve ser interpretado como estabelecendo um princípio - no sentido preciso que temos dado a essa expressão - de não-retroatividade da lei fiscal. Significa isto que se deverá lançar mão, neste caso, do método de ponderação que tem sido reservado para os casos de retroatividade dita inautêntica. Ora, tal método consiste essencialmente na aplicação do princípio da proteção da confiança, densificado na jurisprudência do Tribunal Constitucional", designadamente no Acórdão 128/2009. Não obstante, tal aresto, a cuja fundamentação aderiram as Decisões Sumárias n.os 592/2019 e 485/2021, não deixou de concluir pela inconstitucionalidade, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração, consagrada no artigo 1.º-A desse diploma, do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, na medida em que, por um lado, considerou "a confiança dos contribuintes que realizaram despesas ao abrigo do regime antigo [...] digna de tutela" e, por outro, que a retroação a 1 de janeiro de 2008 dos efeitos da nova redação conferida à alínea a) do n.º 3 do artigo 81.º do mencionado Código consubstanciava uma lesão excessiva dessa confiança, tendo em conta que "[a] única razão discernível para semelhante solução é a necessidade de o Estado, na etapa finalíssima do ano orçamental, arrecadar receitas fiscais suplementares", sendo certo que, "invocado nesses termos abstratos e utilitários, o interesse público não constitui [...] uma razão válida para que se frustrem as expectativas razoáveis dos cidadãos na estabilidade da sua vida tributária e na confiabilidade da lei fiscal".

9 - A orientação jurisprudencial que vem sendo, em geral, seguida desde o Acórdão 617/2012 encontra sólidos pontos de apoio na doutrina especializada, nomeadamente, no que concerne à natureza da tributação autónoma em apreço e qualificação dos factos tributários subjacentes.

Assim, Casalta Nabais salienta, desde logo, que a tributação autónoma das despesas não documentadas e das despesas de representação e com viaturas consubstanciam uma "[...] tributação sobre a despesa ou consumo e não sobre o rendimento [...]", que visam "[...] evitar que através dessas despesas, as empresas procedessem à distribuição camuflada de lucros, sobretudo dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitas a IRS ou IRC enquanto lucro das empresas, bem como combater a fraude e evasão fiscal que tais despesas ocasionariam [...]" - (cf. Direito Fiscal, 11.ª ed., Coimbra, p. 2019, p. 576). Assim, porque constituem tributações sobre a despesa, estas tributações autónomas configuram "[...] impostos instantâneos ou de obrigação única [...]" - ibidem, p. 577, nota 165.

Neste mesmo sentido se pronuncia Sérgio Vasques, que criticou a doutrina do Acórdão 18/2011, entretanto superada, nos seguintes termos: "[...] os impostos sobre o rendimento contemplam elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias ou as taxas autónomas do IRS e IRC. No acórdão TC n.º 18/2011, de 12.01.2011, porém, relativo ao agravamento das taxas de tributação autónoma de IRC sobre despesas com viaturas, concretizado em dezembro de 2008 com efeitos reportados ao princípio desse ano, o tribunal ignora a questão, integrando as despesas avulsas sujeitas a tributação autónoma no seio do rendimento anual que serve de base de incidência ao IRC. Trata-se de uma forma de ver as coisas que não conseguimos subscrever (...)" (cf. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Coimbra, 2018, p. 344, nota 76).

E, não menos assertivamente, também Ana Paula Dourado afirma, a respeito do Acórdão 18/2011, que "a argumentação do TC que foi votada por maioria não era convincente, pois o tratamento das despesas (documentadas) como dedutíveis significa que enquanto despesas elas contribuem para o apuramento da matéria tributável e, portanto, para o apuramento do IRC como imposto sobre o rendimento acréscimo [...]. Mas enquanto facto tributário, as despesas não constituem por definição rendimento acréscimo" (cf. Direito Fiscal, 7.ª ed., Coimbra, 2022, p. 204). Na verdade, segundo esta Autora, "[...] a nossa legislação fiscal consagra as tributações autónomas como factos tributários de obrigação única [...], uma vez que a tributação incide sobre cada ato de despesa, e o facto de a tributação autónoma estar sistematicamente incluída nos códigos do IRS e do IRC não a torna uma tributação de factos de formação sucessiva. Assim sendo, as leis novas mais onerosas devem aplicar-se a factos tributários futuros" (ibidem, p. 206).

Consequentemente, e já a respeito do Acórdão 617/2012 - que iniciou toda a jurisprudência subsequente acima descrita -, Ana Paula Dourado considera que "[...] o TC entendeu corretamente que na tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se tratando de um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas de um facto tributário instantâneo típico dos impostos de obrigação única [...]" (ibidem, pp. 202-203).

10 - Em suma, e como o Tribunal vem decidindo há mais de uma década, a norma sindicada, na medida em que determina a aplicação de norma fiscal mais gravosa a factos tributários pretéritos - porque de natureza instantânea e não de formação sucessiva -, incorre, efetivamente, na violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, impondo-se, com base nos fundamentos constantes do Acórdão 617/2012, subsequentemente reiterados nos Acórdãos n.os 85/2013 e 387/2023, a declaração da respetiva inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Tal conclusão, diga-se ainda, não se alteraria mesmo encarando a norma sindicada à luz da fundamentação do Acórdão 171/2017, já que, ainda que por distintas razões, também aí se considerou ocorrer a violação artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 64/2008, de 5 de dezembro, no segmento em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, introduzida pelo artigo 1.º-A da mesma Lei.

Lisboa, 1 de outubro de 2024. - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca - Maria Benedita Urbano - José Teles Pereira - Carlos Medeiros de Carvalho - Gonçalo Almeida Ribeiro - Dora Lucas Neto - Mariana Canotilho - José João Abrantes.

118282205

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5947408.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1990-06-09 - Decreto-Lei 192/90 - Ministério das Finanças

    Altera o Código do IRC, aprovado pelo Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro, bem como o Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei 215/89, de 1 de Julho.

  • Tem documento Em vigor 1996-12-27 - Lei 52-C/96 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 1997.

  • Tem documento Em vigor 1998-12-31 - Lei 87-B/98 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento de Estado para 1999.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-29 - Lei 30-G/2000 - Assembleia da República

    Reforma a tributação do rendimento e adopta medidas destinadas a combater a evasão e fraude fiscais, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, o Estatuto dos Benefícios Fiscais, a Lei Geral Tributária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e legislação avulsa.

  • Tem documento Em vigor 2004-12-30 - Lei 55-B/2004 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 2005.

  • Tem documento Em vigor 2007-12-31 - Lei 67-A/2007 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 2008.

  • Tem documento Em vigor 2008-12-05 - Lei 64/2008 - Assembleia da República

    Aprova medidas fiscais anticíclicas, alterando o Código do IRS, o Código do IMI e o Estatuto dos Benefícios Fiscais, tendo em vista minorar o impacto nas famílias dos custos crescentes com a habitação, e cria uma taxa de tributação autónoma para empresas de fabricação e de distribuição de produtos petrolíferos refinados.

  • Tem documento Em vigor 2018-04-19 - Lei Orgânica 1/2018 - Assembleia da República

    Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)

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