Acórdão 2/94
Processo 45325
Acordam no plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra veio, ao abrigo do disposto nos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão daquele Tribunal de 17 de Março de 1993, proferido no processo 52/93, transitado em julgado, alegando, em substância e com interesse, que:
No acórdão recorrido decidiu-se que o prazo estabelecido no artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, para efeitos de recurso da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, é «um prazo judicial», o qual se suspende de acordo com o artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil;
Por seu turno, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Maio de 1990, proferido no processo 18/89, também transitado em julgado, decidiu, pelo contrário, que o mesmo prazo não é um «prazo judicial» e que, por não ter essa natureza, não sofre qualquer suspensão, antes correndo continuamente;
Verifica-se, pois, que os indicados acórdãos, relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, acolheram soluções claramente opostas;
Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido, pelo que estão reunidas as condições de admissibilidade do recurso.
2 - Subiram os autos a este Supremo Tribunal e, proferido o despacho liminar, decidiu-se, por Acórdão de 16 de Dezembro de 1993, que o recurso devia prosseguir, porquanto se verifica que se trata de acórdãos de relações diferentes, proferidos no domínio da mesma legislação, que deram solução oposta à mesma questão de direito (artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Cumprido o disposto no artigo 442.º, n.º 1, do mesmo diploma, apenas o Ministério Público, através do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo, apresentou alegações.
Nesta douta peça concluiu que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:
O prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 356/89, de 17 de Outubro, não tem carácter judicial.
3 - Considerando este plenário que é inquestionável a oposição de julgados reconhecida no acórdão preliminar, cumpre agora apreciar e decidir.
O acórdão recorrido funda a sua decisão, em síntese, na seguinte argumentação:
De harmonia com o artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, «sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal»;
Logo, e por força do disposto nos artigos 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 e da remissão feita por este para as disposições da lei do processo civil, o caso é regulado pelo artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual o prazo judicial se suspende durante as férias, sábados, domingos e feriados.
Por sua vez, o acórdão fundamento estriba-se nas seguintes razões:
O prazo de impugnação judicial do artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei 433/82 não é um prazo processual em virtude de tal acto de impugnação não ser um acto judicial, quer por revestir a natureza de uma providência de acções (sic) - artigo 144.º, n.º 4 - quer porque é realizado perante a autoridade administrativa e antes de existir qualquer processo - artigos 137.º, 150.º e seguintes - e por isso não lhe é aplicável a suspensão prevista no artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
4 - Reconhecendo, com o Exmo. Magistrado do Ministério Público, que são escassos os subsídios da doutrina e da jurisprudência para a resolução do problema posto, vejamos em que sentido deverá ser resolvido.
Não pode aderir-se a qualquer solução que tenha como ponto de chegada o artigo 144.º do Código de Processo Civil (seja para o julgar aplicável, como o acórdão recorrido, seja para rejeitar a sua aplicação, como o acórdão fundamento) sem que primeiramente se saiba em que consiste o «prazo judicial», pois que o artigo 144.º o não define e parte do pressuposto de que o respectivo conceito é conhecido dos juristas.
Segundo Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 48), «os prazos judiciais fixam os lapsos de tempo a partir dos quais o acto deve ser praticado ou dentro dos quais o acto pode ser realizado».
Anselmo de Castro (Lições de Processo Civil, III, p. 75) ensinava que «prazo judicial é o período de tempo a que a lei sujeita a prática válida de um determinado acto em juízo».
Por sua vez, Alberto dos Reis (Comentário, 2.º, p. 57) entendia que «a função do prazo judicial consiste em regular a distância entre os actos do processo», que «pressupõe necessariamente que já está proposta a acção, que já existe em determinado processo».
Destes ensinamentos se pode concluir que só será prazo judicial o prazo a que está sujeito qualquer acto a praticar dentro do processo e não fora dele ou que (como afirmava Vaz Serra, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 107.º, p. 214) o prazo judicial pressupõe que a acção já está em juízo.
Esta é também a conclusão do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 1981 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 305.º, p. 246), relatado pelo ilustre conselheiro Jacinto Rodrigues Bastos, onde se entendeu que o disposto no n.º 3 do artigo 144.º do Código de Processo Civil apenas se aplica ao prazo judicial, isto é, ao prazo concedido para a prática de certo acto em juízo.
5 - Ora, o recurso a que alude o artigo 59.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 433/82 não é apresentado em juízo, mas perante a autoridade administrativa.
E perante ela o processo permanece, até que por esta os autos sejam enviados ao Ministério Público (artigo 62.º, n.º 1, do mesmo diploma), podendo, entretanto, e até ao envio dos autos, a mesma autoridade administrativa revogar a decisão de aplicação da coima (artigo 62.º, n.º 2), o que significa que, até ao envio dos autos ao Ministério Público, tudo se mantém no âmbito meramente administrativo, não representando a interposição do recurso a imediata entrada na fase judicial do processo.
Donde se conclui que, fazendo o recurso de impugnação parte da fase administrativa do processo, e não da fase judicial, não pode esse acto - de interposição - ser considerado acto praticado em juízo e, consequentemente, não pode também o respectivo prazo ser considerado «prazo judicial», a que seja aplicável o disposto no artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, por força do artigo 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Argumenta o acórdão recorrido, em contrário, que o Decreto-Lei 433/82 contém norma expressa para resolver o caso: o já indicado artigo 41.º, n.º 1.
Todavia, o argumento dá por demonstrado aquilo que se pretende demonstrar.
E, como bem acentua o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nas suas alegações, tudo aponta no sentido de que o preceito do artigo 41.º, n.º 1, só tem aplicação à matéria do capítulo onde está inserido, designadamente à fase administrativa do processo.
Com efeito, e se o artigo 41.º, n.º 1, apontasse o direito subsidiário aplicável a todo o Decreto-Lei 433/82, não fariam sentido as normas dos seus artigos 66.º (que indica os preceitos subsidiários aplicáveis à audiência em 1.ª instância judicial), 74.º, n.º 4, e 78.º, n.º 3 (que mandam aplicar a tramitação do recurso em processo penal aos recursos para a relação), normas essas claramente atinentes à fase judicial.
O que mostra que o legislador teve em atenção as diversas estrutura e natureza das duas fases do processo (a administrativa e a judicial), elegendo para cada uma delas, em separado, o direito subsidiário aplicável, sem esquecer mesmo o regime tributário distinto de cada uma delas (v. o artigo 93.º do Decreto-Lei 433/82).
6 - Ora, a fase administrativa do processo de contra-ordenação, que é tributária do próprio processo administrativo (note-se que todo o processo de contra-ordenação foi pensado para ser exclusivamente do foro administrativo, como se vê do preâmbulo do Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho, e só «após algumas hesitações» se optou por atribuir aos tribunais comuns - «como solução eventualmente provisória» - a competência para conhecer do recurso de impugnação judicial, embora se reconheça de boamente que «a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos», deve reger-se pelos respectivos princípios fundamentais.
Na mesma linha, reconhece José de Faria Costa (in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXII, 1986, p. 166, no seu estudo «os problemas jurídicos e práticos postos pela diferença entre o direito criminal e o direito administrativo penal») que «talvez que em rigor e no respeito dos princípios o recurso devesse ser apresentado não perante um tribunal ordinário mas perante um tribunal administrativo; se a decisão da aplicação da coima está na origem ligada à autoridade administrativa, seria normal que o tribunal para o recurso fosse o tribunal administrativo».
Compreende-se bem, por consequência, que à fase administrativa do processo de contra-ordenação sejam aplicados os referidos princípios.
Ora, o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo uniformemente (inflectindo na sua anterior posição) que, após a entrada em vigor da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho, artigo 28.º, n.º 2), o prazo de impugnação judicial, que agora tem natureza substantiva e não processual, se conta nos termos do artigo 279.º do Código Civil (v. Acórdãos do Supremo Tribunal Aministrativo, citados nas alegações do Ministério Público, de 12 de Maio de 1988 e 5 de Julho de 1989, in Boletim do Ministério da Justiça, n.os 377.º, p. 305, e 389.º, p. 424, e respectivas anotações, e ainda os Acórdãos de 6 de Fevereiro de 1990 e 22 de Novembro de 1990, sumariados no mesmo Boletim, n.os 394.º, p. 510, e 401.º, p. 614).
Por outro lado, também o legislador do Código do Procedimento Administrativo (Decreto-Lei 442/91, de 15 de Novembro), nos artigos 71.º, n.º 2, e 72.º deste diploma, ao fixar os prazos dos actos dos interessados e o regime da respectiva contagem (mesmo para efeitos da reclamação ou dos recursos previstos nos artigos 161.º e seguintes), optou por um regime diferente do dos actos judiciais previsto no artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
7 - De tudo o que acaba de ser exposto é lícito concluir-se que o prazo do recurso do artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei 433/92, que diz respeito à fase administrativa do processo de contra-ordenação, não é um prazo judicial a que se aplique o disposto no citado artigo 144.º, n.º 3.
Nesta conformidade, e nos termos do artigo 445.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, fixa-se, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
Não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei 356/89, de 17 de Outubro.
Consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e reenvia-se o processo ao tribunal que o proferiu.
Sem tributação.
10 de Março de 1994. - António de Sousa Guedes - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - António Joaquim Coelho Ventura - Costa Pereira - Fernando Lopes de Melo - Humberto Carlos Amado Gomes - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - Fernando Jorge Castanheira da Costa - António Alves Teixeira do Carmo - Manuel Luís Pinto de Sá Ferreira - José António Lopes Cardoso Bastos - José Sarmento da Silva Reis.